arqueologia no pelourinho - iphanportal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/colreg_arqueologia... · ii...
Embed Size (px)
TRANSCRIPT
-
A rqueologia
no pelourinho
P r o g r a m a M o n u m e n t a / I p h a n
Ar
qu
eo
lo
gi
a n
o P
el
ou
ri
nh
oP
ro
gr
am
a
Mo
nu
me
nt
a
/
Ip
ha
n
Este livro contm o registro da pesquisa arqueolgica desenvolvida
na rea do Pelourinho, enquanto o Programa Monumenta ali
restaurava 76 imveis multifamiliares. O principal objetivo desse
trabalho foi diagnosticar e investigar, no solo da rea em
recuperao, os vestgios deixados pelas sucessivas ocupaes que
sofreu, desde os primrdios da colonizao.
Diversos profissionais envolvidos no trabalho elaboraram os
artigos, que esto aqui reunidos, com o relato e o estudo dos
mltiplos aspectos em que se desdobrou a pesquisa: das
variadas tcnicas de prospeco at o levantamento de
dados e a anlise histrica decorrente.
do importante volume de
conhecimentos produzidos pela
equipe em questo que o pblico
leitor e, em especial, os gestores de
obras de restauro de stios
urbanos histricos podero
valer-se agora.
-
P r o g r a m a M o n u m e n t a / I p h a n
Arqueologia
no Pelour in ho
-
Crditos
Presidenta da Repblica do BrasilDilma Rousseff
Ministra de Estado da CulturaAna de Hollanda
Presidente do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico NacionalCoordenador Nacional do Programa Monumenta
Luiz Fernando de Almeida
Coordenador Nacional Adjunto do Programa MonumentaRobson Antnio de Almeida
Diretoria do IphanAndrey Rosenthal Schlee
Clia Maria CorsinoMrcia Helena Gonalves Rollemberg
Maria Emlia Nascimento Santos
A772 Arqueologia no Pelourinho / Organizado por Rosana Najjar. Braslia, DF : Iphan / Programa Monumenta, 2010.288 p. : il. color. ; 23 cm. __ (Registro ; 3).
ISBN : 978-85-7334-176-8
1. Arqueologia - Bahia. 2. Pelourinho. I. Najjar, Rosana. II. Ttulo. III. Srie.
CDD 930
www.iphan.gov.br | www.monumenta.gov.br | www.cultura.gov.br
Coordenao editorialSylvia Braga
Edio Caroline Soudant
Organizao Rosana Najjar
Copidesque e preparaoDenise Costa Felipe
RevisoAna Lcia LucenaGilka Lemos
Design grficoRonald Neri
FotosNelson KonSylvia BragaProjeto Pelourinho de Arqueologia, do Programa Monumenta/Iphan
-
5
P r o g r a m a m o n u m e n ta I P h a n
apresentao
Com esta nova publicao, temos o prazer de registrar o trabalho de pesquisa arqueolgica na rea da 7 Etapa do
Projeto de Recuperao do Centro Histrico de Salvador.
Enquanto o Programa Monumenta restaurava 76 imveis multifamiliares do Pelourinho, para neles promover a
fixao dos prprios moradores do bairro, coube tambm ao Iphan realizar a pesquisa arqueolgica da rea, que
abrangeu 11 quarteires, totalizando em torno de 52.300m. O Projeto Pelourinho de Pesquisa Arqueolgica no
se ateve rea da 7 Etapa do Projeto de Recuperao do Centro Histrico de Salvador. Incluiu-se ainda o terreno
adjacente poligonal da pesquisa, no Quartel do Corpo de Bombeiros. Naquela rea, fomos surpreendidos pela
descoberta de vestgios de fundaes que, muito provavelmente, pertenceram Capela de Nossa Senhora de
Guadalupe, erigida em 1776 pela Irmandade dos Pardos de Nossa Senhora de Guadalupe e demolida em 1857.
O Projeto Pelourinho teve incio em maro de 2006 e durou quatro anos e meio. Seu principal objetivo foi diagnosticar
e pesquisar, no solo da rea em recuperao, os vestgios deixados pelas sucessivas ocupaes que sofreu, desde os
primrdios da colonizao. O Iphan, no entanto, teve sempre em perspectiva a necessidade de incluir a populao
local no processo de pesquisa e restauro, buscando valorizar sua relao de pertencimento e responsabilidade com
o Centro Histrico.
Este registro, elaborado pelos diversos profissionais envolvidos no trabalho, d conta dos numerosos e imbricados
aspectos que concorreram para o sucesso da empreitada: desde as variadas tcnicas de prospeco e pesquisa at
o levantamento de dados e a anlise histrica.
do resultado desse complexo trabalho e do importante volume de conhecimentos produzidos que o pblico leitor
e, em especial, os gestores de obras de restauro de stios urbanos histricos podero valer-se agora.
Luiz Fernando de Almeida Presidente do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
Setembro 2011
-
Detalhe da rea objeto da pesquisa
arqueolgica, vendo-se a rua So Francisco e a
torre da igreja de mesmo nome, ao fundo.
-
Nel
son
Kon
-
Sumrio
apresentao 03
o projeto Pelourinho de arqueologia 09I escavando o Pelourinho: o desafio da pesquisa arqueolgica 11
uma viso histrica da rea do projeto 29II Pesquisa histrica e arqueologia 31III De olho no cortio! moradia e controle social no sculo XIX 54IV Desce esgoto. os canos reais e outros canos do Centro histrico 74
o dilogo com outros campos do saber 89V a relao entre o arqueomagnetismo e a arqueologia 91VI a geoarqueologia no Projeto Pelourinho 104VII o mtodo geofsico (gPr) e a arqueologia 116VIII o banco de dados na pesquisa arqueolgica 127
o dilogo com a arquitetura 137IX as fachadas do Pelourinho 139X o ladrilho hidrulico no Centro histrico de Salvador 149
o projeto de educao patrimonial 165XI arquelogos e comunidades locais no projeto de educao patrimonial 167XII Quando a arqueologia vai escola 185XIII um olhar socioarqueolgico. o patrimnio cultural e o sujeito histrico 198
alguns resultados inditos 211XIV nem tudo caco: a integridade escondida sob os pisos 213XV o resgate de uma histria: a Capela de nossa Senhora de guadalupe 224XVI um passado atravs do lixo 245XVII Compra-se aterro! um novo olhar sobre o Centro histrico de Salvador 266
anexos 280estudo de caso 281Imveis Pesquisados Projeto Pelourinho de arqueologia 2006- 2010 284agradecimentos 286 equipe Projeto Pelourinho de arqueologia 2006 - 2010 288autores 291
-
01 - O projeto Pelourinho de arqueologia 09
03 - O dilogo com outros campos do saber 89
05 - O projeto de educao patrimonial 165
02 - Uma viso histrica da rea do projeto 29
04 - O dilogo com a arquitetura 137
06 - Alguns resultados inditos 211
-
Igreja e ladeira dos Aflitos. Foto de J.
Schleier pertencente ao acervo da
Fundao Biblioteca Nacional. Observar,
na imagem do sculo XIX, que ainda no
h ocupao no lado ngreme da ladeira, e
a presena de reas muradas nas fachadas
das casas, que hoje no mais existem.
-
O Projeto Pelourinho de Arqueologia
01
Nel
son
Kon
-
O P
RO
JET
O P
ELO
UR
INH
O D
E A
RQ
UEO
LOG
IA
Garrafas grs.
Nel
son
Kon
-
13
P r o g r a m a m o n u m e n ta I P h a n
Rua So Francisco, com algumas das casas em etapa final de recuperao.
I - escavando o Pelourinho: o desafio da pesquisa arqueolgica
A origem
O Projeto Pelourinho de Pesquisa Arqueolgica iniciou-
se em maro de 2006 com o objetivo de diagnosticar
e pesquisar a rea da 7 Etapa do Projeto Recuperao
do Centro Histrico de Salvador. Foi realizado com
verbas do Programa Monumenta/Iphan programa
estratgico do Ministrio da Cultura que busca conjugar
a recuperao e a preservao do nosso patrimnio
cultural com o desenvolvimento econmico e social e
apoio do Iphan (Departamento de Patrimnio Material/
Depam e Superintendncia na Bahia).
Cumpre ressaltar que a rea do atual Pelourinho foi
testemunho dos primrdios da colonizao do pas
e, portanto, encerra em seu solo valiosos vestgios
das sucessivas ocupaes que sofreu de extrema
importncia para a Histria do Brasil, merecia ser
estudada previamente, antes de ser danificada por
obras civis a serem realizadas.
Nesse sentido, cabe ao Iphan, principal rgo de
preservao do patrimnio cultural brasileiro, fazer
cumprir o previsto na legislao de preservao do
patrimnio arqueolgico1, sempre com o intuito de
produzir conhecimento que venha a efetivar nossa
identidade nacional.
O Projeto Pelourinho de Arqueologia cujos trabalhos
de campo comearam em julho de 2006 foi um grande
1 Lei Federal 3.924/61, Decreto-lei Federal 25/37, Artigo 216 da Constituio e Portaria Iphan 230/2002.
Rosana Najjar
desafio desde sua formulao, pois no se caracterizou
como um mero acompanhamento de obras. Seu
objetivo foi diagnosticar o potencial arqueolgico da
rea e tambm desenvolver pesquisas sistemticas
nas reas apontadas como de especial interesse, face
aos resultados das prospeces e/ou pelo profundo
levantamento histrico realizado especialmente para
o projeto. Seu objetivo, ainda, alm da necessidade de
cumprir a legislao, foi o de fazer um retrato da rea
da 7 Etapa de Recuperao do Centro Histrico de
Nel
son
Kon
-
14
A r q u e o lo g i A n o P e lo u r i n h o
Salvador sob o prisma da Arqueologia, para melhor
compreender a ocupao do que hoje conhecemos
como Centro Histrico. A cidade de Salvador foi a
primeira capital do Brasil, sendo seu Centro Histrico
tombado como Patrimnio Histrico brasileiro desde
1984 e reconhecido pela Unesco como Patrimnio
Cultural da Humanidade a partir de 1985.
A numerosa equipe que desenvolveu a pesquisa
durante os quatro anos e meio de sua durao contou
com a participao de profissionais e consultores de
diferentes reas, alm de membros da comunidade local
(nos anexos consta a lista completa da equipe). Essa
interdisciplinaridade, caracterstica bsica do projeto,
nos mostrou os caminhos que permitiram entender a
complexidade da rea objeto da pesquisa.
A poligonal2 da rea de pesquisa abrange um total
de 11 quarteires, totalizando em torno de 52.300m
e engloba obras em imveis degradados que foram
2 Limitada ao sul pela rua Monte Alverne, incluindo o Convento de So Francisco; ao norte, at os prdios do Tesouro 1 e 2 e Igreja da Ajuda; a leste, parte das quadras 30S e 31S na rua So Francisco; e a oeste, a rua Jos Gonalves.
ou ainda sero recuperados (a pesquisa arqueolgica
terminou, mas as obras ainda continuam), atendendo
a cinco programas de habitao popular, que somados
vo oferecer 76 imveis3 multifamiliares. Toda a rea
encontra-se em avanado processo de arruinamento
e est tomada pelo comrcio e consumo de crack e
pela prostituio. A pesquisa, portanto, visa no s
desvelar como a vida ali se desenvolvia no passado,
como auxiliar na recuperao da regio, hoje muito
violenta e degradada. Esperamos que pelo menos
essa rea retorne ao seu carter predominantemente
residencial, distinta do restante do Centro Histrico,
ocupado hoje quase em sua totalidade por atividades
ligadas ao turismo.
A 7 Etapa de Recuperao previu obras em 93 imveis.
Portanto, esse constituiria o universo a ser estudado,
mas alguns imveis no puderam ser objeto da
pesquisa arqueolgica, pois no foram desocupados
ou seu estado de arruinamento no oferecia segurana
3 Esse total no o referente s casas ou lotes hoje existentes, mas sim aos imveis a serem construdos. Os programas habitacionais, em alguns casos, consideram como nico um imvel que ir ocupar mais de um lote/casa existente.
Cotidiano das pesquisas.
-
15
P r o g r a m a m o n u m e n ta I P h a n
para a realizao de qualquer atividade. Assim, a
investigao se concentrou em 63 imveis, observados
entre julho de 2006 e dezembro de 2009, quando foram
encerradas as pesquisas de campo no ltimo imvel a
ns disponibilizado.
O fato de no termos examinado a totalidade dos im-
veis no deve ser interpretado como uma perda, uma
vez que os 63 pesquisados (nos anexos consta a lista
completa dos imveis) mostraram-se bem distribudos
dentro do universo social da rea, permitindo uma
excelente abordagem. A deciso de encerrar a etapa
de campo foi tomada com total segurana, pois
j tnhamos material suficiente para responder s
questes formuladas e conhecimento das vrias
realidades arqueolgicas existentes no permetro da
pesquisa. Todos os 11 quarteires tiveram imveis
analisados, proporcionando uma ampla viso dos
diferentes contextos. E foram vrias as abordagens: em
14 imveis realizamos (alm das prospeces) pesquisa
sistemtica; em 29, prospeces amplas; em 20, o registro
cadastral detalhado (ver mapa temtico a seguir).
Um empreendimento do porte da 7 Etapa de
Recuperao do Centro Histrico de Salvador, que
envolve vrios agentes de todas as esferas de governo,
demandou da equipe da pesquisa arqueolgica,
para alm do desenvolvimento do projeto cientfico,
competncia no estabelecimento das relaes entre
as partes. Nossa postura durante todo o processo foi
de observar o cronograma das obras, com o intuito
de afetar o menos possvel os prazos estabelecidos.
Entretanto, nem sempre o cronograma das obras foi
cumprido, prejudicando as pesquisas arqueolgicas e,
por outro lado, em alguns poucos casos, obras foram
paralisadas temporariamente em funo da necessidade
de aprofundamento das pesquisas. De
um modo geral, a gesto dos
interesses entendidos a
priori como conflituosos
se mostrou bastante
satisfatria com o
decorrer do tempo.
Gostaramos,
inclusive, de desejar
sucesso e agradecer
a todos os envolvidos
pela ateno que
nos deram.
Fornilho de cachimbo representando uma cabea humana.
Nel
son
Kon
-
O P
RO
JET
O P
ELO
UR
INH
O D
E A
RQ
UEO
LOG
IA
-
O P
RO
JET
O P
ELO
UR
INH
O D
E A
RQ
UEO
LOG
IA
-
Viso interna da fachada posterior da casa 21, rua 28
de Setembro, antiga rua do Tijolo.
-
Servido em imvel da rua So Francisco, em etapa final de recuperao.
Nel
son
Kon
Nel
son
Kon
-
20
A r q u e o lo g i A n o P e lo u r i n h o
O P
RO
JET
O P
ELO
UR
INH
O D
E A
RQ
UEO
LOG
IA
O livro
O presente livro considerado pela equipe do projeto
como um dos principais produtos do Projeto Pelourinho
de Arqueologia, pois fruto da consolidao de parte
considervel dos dados produzidos e, sobretudo, seu
principal veculo de divulgao para o grande pblico.
Desde o incio, vimos exposto o projeto em vrios
congressos e seminrios, nacionais e internacionais,
cumprindo obrigao de discutir o conhecimento
produzido com nossos pares. Entretanto, faltava ainda
a apresentao de seus resultados sistematizados
para a parcela da populao diretamente envolvida.
Temos conscincia de que no s ela, mas a populao
Prdio anexo ao Liceu. Evidenciao da base
de fundao para pilares.
brasileira em geral (apesar dos esforos dos arquelogos
brasileiros) ainda se pergunta: para que serve a
Arqueologia?
Essa pergunta formulada por todos, em particular
pelos que participaram do processo das escavaes,
seja a populao afetada pelo projeto ou os
profissionais envolvidos na 7 Etapa de Recuperao do
Centro Histrico de Salvador, uma vez que raramente
tm contato com as histrias produzidas a partir da
Arqueologia, ou seja, com os resultados sistematizados e
palpveis. Essa questo tem origem perversa, baseada na
ausncia de informaes desde o ensino bsico brasileiro
sobre o que Arqueologia e qual seu papel como mais
uma fonte de produo de conhecimento a respeito
do nosso passado. O livro busca, portanto, apresentar a
todos os pblicos, numa linguagem sempre que possvel
descomplicada, alguns resultados das pesquisas, a partir
de captulos com contedos especficos, mas que no
conjunto de sua leitura oferecem uma viso geral do
conhecimento produzido por meio da Arqueologia.
A seguir mostramos como foi o desenrolar das pesquisas,
aproveitando para, sempre que oportuno, remeter a
cada captulo do livro.
O incio
At o incio dos trabalhos, nenhuma pesquisa
arqueolgica de flego sobre a implantao do urbano
da cidade alta fora desenvolvida. Assim, nosso projeto
carecia de informaes que nos auxiliassem a formular
questes. A partir dessa realidade, e objetivando
uma melhor compreenso da rea de estudo sob o
-
P r o g r a m a m o n u m e n ta I P h a n
ponto de vista da Arqueologia, optou-se pelo uso
de procedimentos tericos e metodolgicos que
subsidiassem o estabelecimento de indagaes a serem
respondidas e, ao mesmo tempo, permitissem uma
avaliao prvia dos estgios da ocupao espacial
da rea onde hoje fica o Centro Histrico da Cidade
do Salvador.
Partindo dos pressupostos de que a Arqueologia a
cincia da cultura material e que o objeto arquitetnico
cultura material, o aporte terico adotado pela
pesquisa foi o da Arqueologia ps-processualista
(Hodder, 1995), que por sua vez pressupe que os
objetos no seriam apenas resultado da adaptao, mas
sim elementos com mltiplos significados utilizados
pelos indivduos de uma sociedade para simbolizar
suas relaes. Nessa perspectiva, no importa que
existam dezenas, centenas de objetos [ou edificaes];
aqui no a quantidade que vale, mas a qualidade. Da
mesma maneira, [] no a sociedade que est em
jogo, mas as aes de cada indivduo para interagir
nessa sociedade, aceitando ou resistindo as suas regras
sociais (Najjar, 2005, p. 15-16). A partir desse olhar, cada
um dos imveis pesquisados e a prpria malha urbana
foram nossos objetos de pesquisa, e entendidos como
a materializao de vrios aspectos da sociedade de
Salvador desde a sua fundao no sculo XVI.
Essa viso potencialmente nos permite
revelar as relaes existentes entre
os vrios sujeitos da histria daquela
rea opressores e oprimidos. Nesse
sentido, pretendemos, a partir dos
resultados das escavaes, dar voz s
pessoas de todos os segmentos sociais
que l viveram.
O projeto segue tambm os procedimentos
estabelecidos no Manual de arqueologia
histrica do Monumenta/Iphan (Najjar,
2005) em busca de uma maior qualidade
Estruturas presentes na casa 3, rua Beco do Seminrio.
Garrafa grs.
Nel
son
Kon
-
22
A r q u e o lo g i A n o P e lo u r i n h o
e produtividade para o desenvolvimento da pesquisa
arqueolgica dentro dos projetos de restaurao
arquitetnica.
A pesquisa arqueolgica partiu da anlise dos imveis
como unidade mnima de observao, visando
compreender o todo, onde o urbano o foco principal,
mas no o nico. Nosso objetivo foi entender como se
deu a formao daquela rea, estabelecendo as etapas
e respectivos modos de ocupao.
Em resumo, nosso enfoque centrou-se no estudo da
urbanizao da rea atravs dos tempos, mas sem
deixar de observar a presena dos indivduos que
construram aquela cidade chamamos a ateno para
uma parte da rea de pesquisa que detm testemunhos
do primeiro ncleo da cidade de Salvador, fundada
no sculo XVI, o que determina um longo intervalo
temporal a ser investigado.
O desenrolar da pesquisa
A partir do aporte terico-metodolgico adotado,
do levantamento histrico e dos primeiros meses de
pesquisas, alguns questionamentos e pressupostos
foram levantados como bases para o desenvolvimento
do projeto:
necessrio desvelar as relaes de classes, por meio da cultura material, observando como os
agentes sociais representativos da sociedade
soteropolitana do perodo estudado (sculos XVI a
XXI) se relacionavam e expressavam sua cultura.
importante observar o ambiente construdo como fonte de dados que nos permita interpretar o
perfil dos indivduos que compunham a sociedade
nos diferentes perodos da formao da cidade de
Salvador; a arquitetura como marcador temporal.
Escavao na casa 39, rua 28 de
Setembro.
-
23
P r o g r a m a m o n u m e n ta I P h a nO
PR
OJE
TO
PEL
OU
RIN
HO
DE
AR
QU
EOLO
GIA
Deve-se estar atento aos vrios limites que a cidade j teve: chamava-nos a ateno a existncia
de muros, construes que limitam os vrios
permetros que a cidade possuiu e que inicialmente
foram erguidos com intuito de proteo, mas que na
realidade eram marcos na paisagem que impunham
fronteiras tambm sociais. Viver dentro ou fora do
muro tinha seu significado. Vrios autores (Goulart,
2000; Santos, 2001; Carneiro, 1980; Sampaio, 1949)
comentam a respeito dessas edificaes. Alguns,
por meio da cartografia, mostram mapas e desenhos
de poca que fornecem dados sobre a localizao
destas. No entanto, onde esto essas rugosidades4?
O que sobrou delas?
Outra questo levantada diz respeito ao binmio tempo e espao (Santos, 1994), visto como
elemento atuante na evoluo da ocupao
urbana, j que estamos trabalhando em uma
rea onde encontramos contextos de ocupaes
diferentes, tanto temporal quanto espacialmente, e
que compreende desde meados do sculo XVI at
os dias atuais.
Deve-se desvelar como foi o crescimento da cidade de Salvador, como o arranjamento urbano chegou
ao que observamos hoje, saber como se deu a
ocupao do espao.
Faz-se necessrio observar os sistemas construtivos empregados, as diferenas e/ou semelhanas
entre os tipos de tcnicas, materiais utilizados e
contexto do assentamento diante da topografia
da rea (padres de assentamentos). A partir da
4 Na Geomorfologia, designa as marcas do passado fixadas no espao (Santos, 1978).
Atividades de registro e pesquisa, casa 37, rua 28 de Setembro.
-
24
A r q u e o lo g i A n o P e lo u r i n h o
O P
RO
JET
O P
ELO
UR
INH
O D
E A
RQ
UEO
LOG
IA
diversidade de vestgios imveis ou superartefatos
encontrados, correlacionar os sistemas construtivos
com o terreno em que se encontram edificados.
Torna-se fundamental considerar nas pesquisas o contexto topogrfico do lugar. Foram observadas
durante as escavaes vrias sobreposies de
aterros formados principalmente por lixo (cultura
material mvel). Diante dessa constatao,
preciso conhecer a lgica desses aterros, temporal e
espacialmente, e a relevncia que tiveram em cada
momento na ocupao da rea.
No campo, a abordagem foi padronizada, sendo a
primeira etapa uma visita tcnica ao imvel, que
serviu para um diagnstico prvio. Em seguida,
realizaram-se prospeces arqueolgicas, e, com
base nos resultados das prospeces somados
aos resultados dos outros estudos desenvolvidos
(histrico, geolgico, geoarqueolgico, geofsico,
arqueomagntico etc.), dava-se incio s escavaes
sistemticas em locais determinados como de especial
interesse. Para finalizar, mesmo depois das pesquisas
sistemticas terem ocorrido, todas as obras civis foram
acompanhadas pela equipe do projeto, buscando-se
observar novas evidncias. Nos raros imveis onde no
houve prospeco, realizou-se o registro detalhado de
suas caractersticas.
O levantamento histrico, de fundamental importncia
para as anlises e tomadas de deciso, desde o incio
da pesquisa arqueolgica foi feito especialmente para
Evidenciao de piso arqueolgico.
-
25
P r o g r a m a m o n u m e n ta I P h a nO
PR
OJE
TO
PEL
OU
RIN
HO
DE
AR
QU
EOLO
GIA
o projeto pela equipe de historiadores, a partir de
fontes primrias e secundrias. Teve como enfoque
predominante a formao e a evoluo da Cidade do
Salvador, desde seu primeiro assentamento urbano
(ncleo primitivo) ao arranjamento urbano atual,
passando por aspectos bastante pontuais, quando os
resultados das escavaes assim recomendavam. Seus
resultados percorrem todos os captulos do livro, mas o
levantamento propriamente dito tratado na parte 02,
que traz a viso histrica do projeto. Nela destacamos o
captulo II: Pesquisa histrica e Arqueologia.
Em vrios momentos do trabalho, a equipe de
historiadores precisou se debruar sobre questes
especficas e de especial interesse para responder a
questes que surgiram no decorrer das pesquisas. Os
principais exemplos esto explicitados no captulo III,
De olho no cortio! Moradia e controle social no sculo XIX;
captulo IV, Desce esgoto. Os canos reais e outros canos
do Centro Histrico de Salvador; captulo XV, O resgate de
uma histria: a Capela de Nossa Senhora de Guadalupe;
captulo XVII, Compra-se aterro! Um novo olhar sobre o Centro Histrico de Salvador.
Do ponto de vista do superartefato arquitetnico,
adotou-se como procedimento padro a caracterizao
dos imveis do projeto no contexto do conjunto urbano
que, nesse sentido, foi realizada a partir da observao,
descrio e avaliao dos elementos e tcnicas
construtivas utilizados. Tambm foram observados
o partido arquitetnico e a disposio do espao
construdo, bem como as intervenes ocorridas ou
provocadas ao longo do tempo. Todos esses aspectos
foram entendidos como testemunhos histricos e
culturais, buscando-se compreender o desenvolvimento
da cidade e a sociedade na qual se produziram. Esse
extenso e detalhado levantamento foi realizado pela
equipe de arquitetos do projeto e est parcialmente
retratado na quarta parte do livro, que trata do
dilogo com a Arquitetura a partir dos captulos IX e X,
respectivamente, As fachadas do Pelourinho e O ladrilho
hidrulico no Centro Histrico de Salvador. Chamamos
a ateno para a excelncia dos registros grficos
realizados, objetivo que perseguimos durante todo
o projeto.
A coleo de artefatos mveis coletados
bastante diversificada e numerosa,
contabilizando cerca de 400 mil
peas a maioria do material
vem dos aterros pesquisados. E
foi dividida em nove subcolees,
baseadas nos tipos de material:
cermico, ltico (pedra), sseo,
malacolgico (conchas),
vtreo (vidro), metlico,
de madeira e plstico. A
nona subcoleo a dos
materiais construtivos, que
foram agrupados dentro de
uma nica coleo e no
esto separados por matria-
prima. A coleo cermica, a
mais significativa, contabiliza
cerca de 250 mil peas, sendo
as mais antigas atribudas aos
indgenas que viveram na rea
antes da chegada dos colonizadores.
A coleo de artefatos culturais mveis
objeto do captulo XVI do livro, Um
passado atravs do lixo.
Cermica no vidrada.
-
Estruturas evidenciadas abaixo
das fundaes da casa 27, rua Monte Alverne.
-
Viso area da pesquisa na casa 15, rua Guedes de Brito.
-
Atividade de registro da fachada da casa 21, rua 3 de Maio.
Fundaes da casa 41, rua 28 de Setembro, antiga rua do Tijolo.
Prdio anexo ao Liceu.
Evidenciao do forno existente abaixo do piso da casa 33, rua Guedes de Brito.
-
29
P r o g r a m a m o n u m e n ta I P h a nO
PR
OJE
TO
PEL
OU
RIN
HO
DE
AR
QU
EOLO
GIA
Todas as subcolees foram tratadas, analisadas,
acondicionadas e guardadas no Laboratrio de
Arqueologia da Casa dos Sete Candeeiros, uma das sedes
do Iphan em Salvador. Os trabalhos foram encerrados
em agosto de 2010.
Para melhor interpretar os dados, o projeto contou ainda
com um time de consultores de vrias reas e utilizou-
se de tecnologias de ponta como ferramentas de
trabalho e anlise. Os resultados dessas parcerias esto
refletidos em todos os captulos, mas podem ser melhor
dimensionados a partir da leitura dos captulos V, VI e VII
da terceira parte do livro, que trata do dilogo com outros
campos do saber: A relao entre o Arqueomagnetismo e
a Arqueologia; A Geoarqueologia no Projeto Pelourinho; O
mtodo geofsico (GPR) e a Arqueologia.
Do time de consultores destacamos os que se dedicaram
ao nosso subprojeto de educao patrimonial. Esses
profissionais, educadores e arquelogos especialistas
na rea, tiveram a rdua tarefa de estabelecer uma
ponte entre o projeto e vrios segmentos da sociedade
envolvidos direta e indiretamente com ele, aceitando
o desafio de traduzir inclusive as tecnologias de ponta
para nossos interlocutores. O trabalho desenvolvido
examinado na quinta parte do livro O projeto de
educao patrimonial , que rene os captulos XI, XII
e XIII, respectivamente: Arquelogos e comunidades
locais no projeto de educao patrimonial; Quando a
Arqueologia vai escola; Um olhar socioarqueolgico. O
patrimnio cultural e o sujeito histrico.
Por ltimo, destacamos alguns resultados, mesmo que
preliminares, referentes s relaes entre os grupos ou
classes que conviviam na rea estudada. Nossas anlises
mostram vestgios ligados prtica de rituais religiosos
domsticos nos imveis trabalhados, e o captulo XIV
Nem tudo caco: a integridade escondida sob os pisos
trata desse assunto, que vem sendo aprofundado pelo
arquelogo Samuel Gordenstein em seu doutoramento
na UFBA.
Objetivando melhor salvaguardar todo o contedo
produzido durante os quatro anos e meio de trabalho,
foi criada uma base de dados especfica para o projeto,
onde as informaes esto organizadas e disponveis
para consulta. Esperamos inserir esses dados no
endereo eletrnico do Iphan assim que possvel. O
captulo VIII, O banco de dados na pesquisa arqueolgica,
apresenta a base de dados.
O Projeto Pelourinho de Arqueologia trouxe resultados
inditos e extremamente estimulantes, fornecendo uma
farta gama de materiais e, sobretudo, de novos olhares
Triagem de material em laboratrio, da Casa dos Sete Candeeiros.
-
30
A r q u e o lo g i A n o P e lo u r i n h o
O P
RO
JET
O P
ELO
UR
INH
O D
E A
RQ
UEO
LOG
IA
e descobertas sobre o urbano do Centro Histrico de
Salvador. Merece ser conhecido e continuado. o que
esperamos!
Referncias
CARNEIRO, Edison. A cidade do Salvador 1549: uma
reconstituio histrica. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira, 1980.
HODDER, Ian. Theory and Practice in Archaeology.
London/New York: Routledge, 1995.
NAJJAR, Rosana. Construtores de igrejas: um estudo
arqueolgico da presena da Companhia de Jesus no
litoral brasileiro. So Paulo, 2005. Tese (doutorado),
Universidade de So Paulo.
______ . Manual de arqueologia histrica em projetos de
restaurao. Braslia: Iphan, 2005.
REIS, Nestor Goulart. Imagens de vilas e cidades do Brasil
colonial. So Paulo: Edusp, 2000.
SAMPAIO, Teodoro. Histria da fundao da cidade de
Salvador. Bahia: Tip. Beneditina, 1949.
SANTOS, Milton. Tcnica, espao, tempo. So Paulo:
Hucitec, 1994.
SANTOS, Paulo. Formao de cidades no Brasil colonial.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001.Casa dos Sete
Candeeiros. Pesquisa e anlise
das colees em laboratrio.
-
UMA VISO HISTRICA DA REA
DO PROJETO
02
Nel
son
Kon
-
UM
A V
IS
O H
IST
R
ICA
DA
R
EA D
O P
RO
JET
O
Cermica vidrada.
Nel
son
Kon
-
33
P r o g r a m a m o n u m e n ta I P h a nU
MA
VIS
O
HIS
T
RIC
A D
A
REA
DO
PR
OJE
TO
Reconstruir a histria da cidade de Salvador, seu processo
de ocupao e desenvolvimento, determinando o
perfil econmico e social da cidade da Bahia1, foi o
principal objetivo da pesquisa histrica desenvolvida
no decorrer do Projeto de Pesquisa Arqueolgica
da 7 Etapa de Recuperao do Centro Histrico de
Salvador (Monumenta/Iphan) ou Projeto Pelourinho de
Arqueologia. A seleo e a coleta de fontes primrias,
secundrias e iconogrficas nos arquivos mais
importantes das cidades do Rio de Janeiro e Salvador
permitiram a contextualizao e serviram de base
1 Salvador era usualmente chamada cidade da Bahia at o sculo XIX.
II - Pesquisa histrica e arqueologiaAlane Fraga do Carmo - Dbora Bacelar Bastos
para as anlises das fontes primrias no estudo dos 11
quarteires do Centro Histrico de Salvador, relativos
7 Etapa.
Para o perodo compreendido entre os sculos XVI
a XVIII, em razo de dificuldade de acesso a fontes
primrias, a anlise deteve-se especificamente sobre
as fontes secundrias e iconogrficas. Na primeira
etapa, o levantamento das fontes foi feito nos arquivos
e bibliotecas das unidades do Iphan no Rio de Janeiro
em especial as bibliotecas Noronha Santos, Paulo
Santos, do Museu da Repblica e da Superintendncia
do Iphan no Rio de Janeiro , onde foram encontradas
importantes referncias sobre a histria de Salvador.
-
Pesquisa na casa 27, rua Monte
Alverne.
-
36
A r q u e o lo g i A n o P e lo u r i n h o
UM
A V
IS
O H
IST
R
ICA
DA
R
EA D
O P
RO
JET
O
A pesquisa iconogrfica, importante para complementar
as informaes dos documentos escritos, posteriormente
se estendeu Biblioteca Nacional e ao Arquivo Nacional,
no Rio de Janeiro, entidades que dispem de maior
documentao nessa rea.
Num segundo momento, tentando responder a questes
especficas da pesquisa arqueolgica, foram consultadas
fontes que pudessem esclarecer detalhes da construo
da malha urbana da cidade de Salvador: o Arquivo
e Biblioteca Pblica do Estado da Bahia e o Arquivo e
Biblioteca Municipal Gregrio de Mattos (Salvador/BA).
Tambm recorreu-se aos arquivos da Santa Casa de
Misericrdia da Bahia e da Fundao Mario Leal Ferreira
(Salvador/BA), alm das bibliotecas do Instituto Histrico
e Geogrfico da Bahia, do Estado da Bahia, do Museu de
Arte do Estado da Bahia, da Faculdade de Arquitetura
da Universidade Federal da Bahia e da Superintendncia
do Iphan na Bahia. O levantamento bibliogrfico foi
extenso, assim como a coleta de dados, contemplando
no s a formao e constituio fsica de Salvador, mas
tambm as transformaes e permanncias no decorrer
de quase quatro sculos de histria da cidade. O volume
documental reunido chega a aproximadamente trs mil
exemplares. E foram consultados, aproximadamente,
sete mil documentos.
A metodologia empregada relacionou-se diretamente
s necessidades da pesquisa arqueolgica, de modo
que houve aprofundamento em certas questes
ou hipteses histricas. Alguns temas adquiriram
prioridade por serem desconhecidos ou pelo grande
interesse que despertaram na equipe, como a Capela de
Nossa Senhora de Guadalupe e o comrcio de aterro na
cidade de Salvador.
Para buscar entender o cotidiano das ruas do Pelourinho,
as atividades ali desenvolvidas e chegar a conhecer seus
moradores, optamos pela escolha de uma nica rua
a do Tijolo, atual 28 de Setembro, pela diversidade de
atividades comerciais e artsticas em seus imveis no
sculo XIX, que nos surpreendeu desde os primeiros
passos da pesquisa. Nela funcionou uma galeria de
arte, uma tipografia, um consultrio odontolgico, a
sociedade abolicionista Dois de Julho, formada por
alunos da Faculdade de Medicina, uma Sociedade de
Belas Artes, uma fbrica de chocolate, algumas tavernas.
Entre seus moradores, havia padres, funcionrios
pblicos, militares, mdicos, professores e escravos,
inclusive vrios mals envolvidos na Revolta dos Bzios
ocorrida em 1835. Iniciamos a pesquisa tentando
verificar se o nome da rua derivava da existncia, no
local, de fbricas de tijolos que abasteceriam a cidade
em formao no perodo colonial. Porm, esse fato no
foi comprovado, nem pelas escavaes arqueolgicas,
nem pela pesquisa histrica.
Decidimos investigar o cotidiano da rua durante
o perodo oitocentista (sculo XIX), por causa da
Fragmento de faiana.
-
37
P r o g r a m a m o n u m e n ta I P h a nU
MA
VIS
O
HIS
T
RIC
A D
A
REA
DO
PR
OJE
TO
disponibilidade de fontes e por notar nos imveis ali
localizados alguns vestgios desse perodo. Em etapa
posterior, nos preocupamos em investigar quem eram
os indivduos que viveram ali, baseando a pesquisa no
nome. O nome passou a ser o fio pelo qual nos guiamos
no labirinto dos arquivos e fontes na tentativa de chegar
mais perto da vida que se passou naquelas ruas e casas
do Centro Histrico de Salvador, durante o sculo XIX
(Ginzburg; Poni, 1979).
1 fase da pesquisa: construo e desenvolvimento urbano de Salvador
Na primeira fase da pesquisa destacamos as fontes
secundrias que melhor responderam s indagaes
acerca da configurao fsica do stio arqueolgico.
Uma das questes era saber se Salvador foi uma cidade
planejada e se sua planta baseou-se no modelo das
cidades portuguesas. Entendemos que o regimento
no previa um plano para a cidade, mas Lus Dias, o
mestre de obras que veio na armada de Tom de Sousa,
levava consigo modelos de planos de cidades que
talvez pudessem ser adaptados topografia da regio
de Salvador. O plano que realizou seria informal, moda
medieval. Nesse contexto predominava a preocupao
com a defesa.
Alm da ateno com a defesa, a criao da cidade de
Salvador acabou por seguir, assim como diversas outras
cidades fundadas na Amrica Portuguesa, uma tradio
lusa de organizao urbana segundo as esferas polticas,
sociais e econmicas. Desta forma, Salvador
foi criada com um termo e um rossio, sendo o
primeiro territrio sob a autoridade municipal e
o rossio, uma parte do termo prxima ao espao
urbano, cuja finalidade era propiciar condies
para o pastoreio de uso domstico dos moradores
e o fornecimento de lenha a ser usada como
combustvel principal. era o rossio ainda uma rea
livre para expanso urbana2.
Salvador era uma cidadela elevada acima do mar,
circundada de muralhas muralhas com baluartes.
Quando a cidade ultrapassou as muralhas e chegou
beira-mar, ficou dividida, como ainda hoje, em cidade
alta e cidade baixa, apresentando uma tendncia ao
traado regular.
O local escolhido para a construo da cidade estendia-
se sobre uma montanha ngreme, de difcil acesso, mas
plana em seu topo. Era cercado pelo rio das Tripas, que
contribua para a formao de charcos e lamaais quase
intransponveis. A Ribeira dgua, como chamava Edison
Carneiro (1980), inundava o vale, transformando-o em
um perigoso lamaal. A preocupao com a defesa
militar teve grande influncia na deciso da escolha do
terreno para a construo da cidade, prtica usual dos
lusitanos, como podemos perceber em outras cidades
portuguesas.
Para aliarem-se s defesas naturais, foram levantados
alguns baluartes e uma cerca. A cerca, um tipo de paliada,
mostrou-se ineficiente, j que era facilmente destruda at
mesmo por animais como porcos e bois. O governador
ento ordenou a construo de uma proteo mais rgida
2 As citaes aqui transcritas tiveram a grafia atualizada, quando necessrio, para facilitar a leitura. FUNDAO Gregrio de Mattos; Universidade Federal da Bahia; Centro de Estudos de Arquitetura na Bahia. Evoluo fsica de Salvador: 1549 a 1800. Salvador: Pallotti, 1998, p. 37. (Edio especial.)
-
38
A r q u e o lo g i A n o P e lo u r i n h o
para substitu-la: um muro de taipa em torno do qual se
encontravam profundos fossos. Segundo Carneiro (1980),
o muro era de boa, e grossa taipa, de barro, e madeira.
H, inclusive, uma grande discusso entre os historiadores
sobre a verdadeira localizao do muro3.
Outro elemento de interesse foi a evoluo do ncleo
primitivo a partir de 1549. Teodoro Sampaio (1949)
3 Sobre essa discusso ver CARNEIRO, Edison. A cidade do Salvador 1549: uma reconstituio histrica. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1980; SAMPAIO, Teodoro. Histria da fundao da cidade de Salvador. Bahia: Beneditina, 1949; e SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado descriptivo do Brasil em 1587, 3 ed. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938.
tambm traz informaes interessantes sobre o incio
das construes na cidade:
as casas, de princpio, se construram todas trreas,
feitas de taipa de mo e somente coberta de palma.
as fortificaes de entorno fizeram-se tambm de
pau a pique, semelhana das cercas, ou estacadas
em uso nas aldeias do gentio.
Lus Dias, mestre de obras, em carta de 1551 afirmava
estarem concludas as obras mais importantes da cidade.
oito casas e o que menos tem do seis casas e
so as dez de taiparia, que as outras so de parede
de mo e de madeira e barro e feno [] por
Planta de Salvador, de 1625 a 1631, atribuda
ao cosmgrafo portugus Joo
Albernaz, includa no Livro que d Razo do
Estado do Brasil, de Diogo de Campos
Moreno.
-
39
P r o g r a m a m o n u m e n ta I P h a nU
MA
VIS
O
HIS
T
RIC
A D
A
REA
DO
PR
OJE
TO
conseguinte, pequena era a ocupao na cidade
alta, mesmo no recinto fortificado. na amostra foram
indicadas as casas j existentes em agosto de 1551,
as quais foram construdas nas quadras resultantes
da locao de ruas feita pelo mestre das obras da
cidade (n. 1). nas mesmas quadras, as que estavam
j parcialmente ocupadas, povoadas, tinham 8
(oito) casas no mximo e 6 (seis) no mnimo, o que
era, de fato, muito pouco. Delas, somente 10 (dez)
eram de taiparia, sendo as demais de pedra de mo
e de madeira e barro e feno, o que compreensvel,
visto sabermos que s recentemente comeara
a fabricao de cal e a explorao de pedreiras,
reservando-se o uso da alvenaria de pedra com
cal para os edifcios pblicos, que eram, como
se observa, as nicas edificaes cobertas de
telha cermica. Com o correr do tempo que
semelhantes tcnicas construtivas seriam utilizadas
na arquitetura civil privada4.
Os relatos de poca demonstram que a densidade
de construes e ocupao da cidade alta ainda era
pequena no ano de sua fundao, contando essa
regio com uma populao ainda incipiente. Tal fato
comprovado por carta datada de 30 de abril de 1549,
destinada ao rei por Antnio Cardoso de Barros, ento
provedor-mor da Fazenda. Lus Dias informava ainda
sobre a possibilidade da construo de outras casas no
local: muitas casas se podem fazer nestas ladeiras se
isto houver de ir avante5. Os trabalhos de escavao
4 FUNDAO Gregrio de Mattos; Universidade Federal da Bahia; Centro de Estudos de Arquitetura na Bahia. Evoluo fsica de Salvador: 1549 a 1800. Salvador: Pallotti, 1998, p. 50. (Edio especial.)
5 Idem, ibidem, p. 51.
arqueolgica no stio, principalmente na chamada
rea do Groto, uma rea ngreme, de difcil acesso,
comprovaram que espaos desse tipo foram mais
aproveitados para a construo de moradias a partir
do sculo XVII, o que verificamos por meio das fontes
secundrias.
Quanto aos sistemas construtivos utilizados no primeiro
ncleo urbano de Salvador, os materiais empregados
seguiriam uma ordem de disponibilidade local:
pedra e cal, pedra e barro, taipas ou madeira, como
melhor puder ser de maneira que seja forte, por
conseguinte, a resistncia dos materiais teria de ser
considerada6.
Para alm da preocupao com os materiais
construtivos, nos interessava entender como e quando
o aterro construtivo viria a se tornar uma opo vivel
para o nivelamento do terreno em reas ngremes no
Centro Histrico de Salvador. Um relato de Teodoro
Sampaio sobre os limites da cidade ajudou a responder
parte dessa questo: o aterro formado por entulho
foi utilizado desde os primrdios da construo de
Salvador. A outra parte da questo s seria respondida
pela documentao referente ao sculo XIX. A seguir, as
palavras de Sampaio (1949, p. 184):
entre o comeo da rua da misericrdia, na praa
do Palcio, e o largo do theatro, onde o terreno
comeava a descer, no extremo sul. neste mbito
to pequeno abriram-se quatro portas, flanqueadas
por baluartes improvisados: a que abria para o
norte, no comeo da rua da misericrdia, onde
havia depresso natural do terreno, servindo de
6 Idem, ibidem, p. 48.
-
40
A r q u e o lo g i A n o P e lo u r i n h o
fosso, que depois se entulhou, na altura da rua do
tijolo; a que abria para o sul, no vrtice do tringulo
fortificado, correspondia ao que hoje so os fundos
do theatro S. Joo e se denominou porta de S. Luzia,
por causa de uma ermida que a junto se edificou; a
que ficava do lado da terra, olhando ao nascente,
era uma porta pequena, accessvel da baixada
fronteira por meio de uma ladeira em degraus,
que ainda hoje se chama beco da gua de gasto;
a que abria para o lado do mar, na altura da rua
atual do Pau da Bandeira, dava acesso ao caminho,
parte rampado, parte em degraus, que, do porto ou
ribeira das naus, galgava a encosta do monte pelo
melhor do seu ngreme terreno (grifo nosso).
Um momento importante da histria de Salvador foi a
invaso holandesa (1624-1625). A cidade sofreu terrveis
danos, tendo parte de seu tecido urbano destrudo,
principalmente nos bairros de ocupao mais recente,
como o de So Bento e do Carmo. Em relao construo
civil, que na poca da invaso se encontrava em torno
de mil casas, no houve grandes estragos. Os principais
prdios tambm se mantiveram intactos. Preocupando-
se em fortificar a cidade recm-tomada, os holandeses
promoveram algumas obras de represamento de rios,
como a do rio das Tripas, para a construo do que ficou
conhecido como o Dique dos Holandeses.
O desenvolvimento urbano da cidade de Salvador
ocorreu rapidamente, logo aps sua fundao. No
Representao do momento da invaso holandesa. Observar
represamento provocado pelos diques,
1625. Fonte: Urbs Salvador, 1671, Arnoldus
Montanus, publicado no Atlas An Accurate
Description and Complete History of America, de
John Ogilby.
-
41
P r o g r a m a m o n u m e n ta I P h a nU
MA
VIS
O
HIS
T
RIC
A D
A
REA
DO
PR
OJE
TO
final do sculo XVI e incio do seguinte, sua ocupao
territorial j havia superado a rea intramuros7. Por meio
da bibliografia, possvel perceber que durante os dois
primeiros sculos de construo e desenvolvimento,
o territrio foi amplamente distribudo aos habitantes
e colonizadores. Um estudo mais atento dos nomes
desses indivduos seria interessante para a percepo
da distribuio no s geogrfica, mas tambm poltica,
social e econmica da cidade.
Antnio Sampaio destaca o perodo que vai de
1651 at o ano da independncia do Brasil em 1822.
Identificando-o como o sculo de ouro da Bahia
colonial, ele caracteriza esse intervalo como de grande
crescimento populacional e urbano da cidade as
descries dos viajantes, entre 1685 e 1717, apontam
uma povoao no incio do sculo dezoito, com
2.000 casas (Sampaio, 1999, p. 55-56). O crescimento
populacional se pautava por um grande crescimento
econmico de Salvador. Nessa mesma poca,
existiam hortas ao lado das fontes. nas ruas estreitas
do bairro da Praia localizavam-se diversos artfices
(funileiros, ferreiros, sapateiros, alfaiates, barbeiros
etc.). Para os lados da Vitria, graa e Vila Velha do
Pereira comeavam a surgir chcaras residenciais
(tavares, 2001, p. 121).
Alm de centro administrativo, a cidade de Salvador era
um dos grandes polos econmicos da colnia americana,
destacando-se na produo de acar. Essa evoluo
econmica da Bahia como um todo, e particularmente
de Salvador, foi acompanhada tambm por um profundo
desenvolvimento arquitetnico e urbanstico.
7 Idem, ibidem, p. 60.
Com o enriquecimento da cidade, motivado prin-
cipalmente pelo comrcio, havia a necessidade de
regulamentao da ordem urbana, em especial por
causa do carter escravista de Salvador.
as terras da cidade foram tombadas em 1653;
foi requerido aos foreiros que apresentassem
seus ttulos nas trs lguas de terra em quadra,
que pertenciam Cmara, situadas entre Itapu
e o rio Joanes, em 1757. as primeiras provises
de alinhamento foram estabelecidas em 1695
(Vasconcellos, 2002, p. 83).
Essas provises tentavam evitar as tortuosidades das
ruas e obrigar os proprietrios a seguir um traado
ordenado. Previam que toda pessoa que fizesse casa
sem ser arruada ou fora do arruamento teria sua obra
destruda, e ainda seria presa por 30 dias.
Alguns viajantes que passaram pela
cidade em finais do sculo XVII e incio
do seguinte relataram o panorama
encontrado, nos deixando
importantes fontes de anlise. Em
1714, o engenheiro militar Amadeu
Francisco Frezier visitou Salvador
e relatou que por volta de 90% da
populao baiana era composta
de negros, que encontrou duas
mil casas, geralmente bem
construdas. Seus habitantes
viviam bem alojados e fartos de
bom mobilirio8. Em 1717, La
Barbinais conta que na cidade alta
8 Idem, ibidem, p. 106.
Fragmento de garrafa grs.
-
42
A r q u e o lo g i A n o P e lo u r i n h o
as casas eram grandes e cmodas, mas tal aciden-
tado do solo que as ruas ficavam desagradveis e
perdiam o efeito ornamental. [] a parte edificada
compreendida entre as portas urbanas no era das
maiores, mas se se levasse em conta os arrabaldes,
tinha-se uma rea bastante considervel9.
Direcionando o olhar para a rea do atual Centro
Histrico, que compreendia a freguesia da S, pudemos
traar um perfil de algumas ruas durante o sculo XVIII.
Pedro de Almeida Vasconcelos contribui com uma
informao interessante a respeito dessa localidade.
Na rua Cruzeiro de So Francisco, no incio do sculo
XVII, foi construdo o solar onde nasceu Gregrio de
Matos10. Continua seu relato, focalizando os arredores
9 Idem, ibidem, p. 107.
10 VASCONCELOS, Pedro de Almeida. Salvador: transformaes e permanncias (1549-1999). Ilhus: Editus, 2002, p. 58.
do Convento de So Francisco: Soares de Souza
informou, em 1587, da existncia de uma rua muito
comprida, diante do colgio, rumo ao norte, povoada
de casas e moradores, alm da qual estava um mosteiro
de capuchinhos de Santo Antnio, com a cerca do
mosteiro indo at o mar11. Com informaes pontuais,
o autor mostra que mais a leste [da praa do Palcio], o
solar do grande financista Joo de Matos de Aguiar foi
construdo em 1674, na atual ladeira da Praa, que liga a
praa do Palcio freguesia de Santana12.
11 Idem, ibidem, p. 63-64.
12 Idem, ibidem, p. 102.
Praa Municipal, Salvador, fins
do sculo XIX (Sampaio, 2005,
p. 75).
-
43
P r o g r a m a m o n u m e n ta I P h a n
2 fase da pesquisa: A freguesia da S no sculo XIX suas ruas, casas e pessoas
Considerando o sculo XIX como provavelmente o
perodo de construo dos imveis que foram objeto
da pesquisa arqueolgica, e o volume de fontes
encontradas nos principais arquivos da cidade de
Salvador, procedemos ao levantamento de documentos
e trabalhos clssicos e atuais sobre a regio especfica da
freguesia da S, bem como seu processo de povoamento
e urbanizao durante o sculo XIX.
A freguesia da S foi criada em 1552 por D. Pero Fernandes
Sardinha. Era o centro do governo administrativo,
legislativo, judicirio e religioso da provncia. Nela
rivalizavam-se dois poderes na procura do domnio
espiritual e/ou material sobre os habitantes da cidade,
principalmente no final do sculo XIX, quando a Igreja j
no se conformava com a preponderncia civil. A S era
onde se haviam instalado as mais importantes famlias
da provncia, mas j na primeira metade do sculo XIX
perdia a caracterstica de freguesia elitista. Os sobrados,
onde viviam grandes famlias, transformavam-se em
moradas de muitos e se subdividiam em vrios fogos13,
instalados em andares, lojas, stos e sobresstos,
abrigando trabalhadores pobres, africanos e crioulos
libertos e at escravos de ganho. A freguesia da S,
contudo, era o centro da vida, o corao da cidade, onde
tinham representatividade os poderes institucionais.
De importncia considervel nesta fase da pesquisa
foram as fontes da srie Obras pblicas, localizadas
na seo colonial do Arquivo Pblico do Estado da
13 Fogos so unidades domiciliares. As contagens censitrias eram baseadas em nmero de fogos, no de moradores ou imveis.
Bahia. Essa documentao refere-se s principais
obras realizadas na cidade por iniciativa do governo
provincial, apesar de feitas, na prtica, por particulares,
numa espcie de concorrncia pblica que assegurava
a arrematao das obras diante do governo. Essa
vastssima documentao serviu para entendermos
como se deu o processo de urbanizao da rea da S
e suas imediaes, palco de grandes obras como a rua
ou estrada da Vala, antiga Baixa dos Sapateiros, atual J.
J. Seabra. A seguir destacamos um documento, a ttulo
de exemplo:
Senhor Diretor Illustrissimo excelentissimo Senhor.
tendo chegado em tal ponto, com o desentulho
do rio das tripas, em que he indispensvel passar
por quintaes particulares, remover cercas e muros,
profundar e alargar o [aluveo] do mencionado
rio, e depositar nas margens o resultante material
contra a opposio brutal de quase todos os
Rua da Vala, atual J.J. Seabra (Baixa dos Sapateiros). Salvador, 1875 (Sampaio, 2005, p. 78).
-
44
A r q u e o lo g i A n o P e lo u r i n h o
UM
A V
IS
O H
IST
R
ICA
DA
R
EA D
O P
RO
JET
O
proprietrios, cumpre-me levar ao conhecimento
de Vossa excelncia que no podendo mais resistir
aos insultos e ameaas pessoaes, como acabei de
soffrer hontem, me foi foroso parar a obra at
nova disposio e enrgicas providencias que devo
reclamar das competentes authoridades. Deos
guarde Vossa excelncia. Bahia 25 de novembro
de 1846. Joo Baptista Ferrari [] Bahia 25 de
novembro de 1846. respondido em 13 de janeiro
de 184714.
Procurando montar um panorama da infraestrutura da
freguesia da S ao longo do sculo XIX, um dos locais
mais atingidos pelas epidemias que assolaram a Bahia
no perodo, foram utilizados os maos de documentos
sobre epidemias, medidas sanitrias, higiene e limpeza
da cidade, das sries Limpeza pblica e Inspetoria de
higiene do Apeb, que trouxeram algumas informaes
sobre os moradores dessa freguesia, como demonstra o
documento abaixo:
14 ARQUIVO Pblico do Estado da Bahia (doravante APEB), seo colonial, srie obras pblicas, 1825-1851, mao 4882.
officio da Cmara municipal declarando haver
providencias a respeito do concerto e asseio do
cano e pateo do sobrado 51, a rua do maciel de
Baixo na S, pertencente a Firmino Jos alves de
arajo, habitado por cerca de 50 pessoas e que o
quintal alludido, conforme informou o Fiscal geral
fora limpo e acha-se asseiado como convem de
hygiene pblica15 (grifo nosso).
Para entendermos a dinmica de ocupao da S do
ponto de vista imobilirio e social no perodo estudado,
recorremos srie Juzes de paz fonte exaustivamente
trabalhada por vasta bibliografia dedicada Histria
social na Bahia , que possibilitou um contato mais
prximo, podemos assim dizer, com os verdadeiros
protagonistas da histria dessa freguesia no sculo XIX:
seus habitantes. Por meio dela, pudemos conhecer o
cotidiano das pessoas comuns: funcionrios pblicos,
vivas, comerciantes, libertos empregados nos mais
variados negcios e escravos de ganho, principais
ocupantes das chamadas lojas, situadas nos pores dos
sobrados. Essa fonte abriu horizontes para recordarmos
algo singular, ocorrido em 1835 na freguesia da S,
centro poltico-administrativo de Salvador: a maior
rebelio de escravos africanos ocorrida no Brasil a
Revolta dos Mals.
Essa constatao levou-nos a consultar os Autos da
devassa da Rebelio dos Mals, fonte impressa nos Anais
do Apeb, que nos trouxe gratas surpresas, como a
verificao de que muitos envolvidos na rebelio eram,
em algum perodo, moradores em ruas da regio alvo
do Projeto Pelourinho. A seguir, um documento da srie
Juzes de paz:
15 APEB, seo colonial, srie inspetoria de higiene, 1888-1889, mao 5617.
Ferro de passar roupas.
-
45
P r o g r a m a m o n u m e n ta I P h a nU
MA
VIS
O
HIS
T
RIC
A D
A
REA
DO
PR
OJE
TO
Ilustrssimo excelentssimo Senhor. Por me constar
que alguns moradores desta Freguesia ainda
conservam em seu poder armas, que no dia 4 de
maio recebero no trem do noviciado apesar dos
Bandos e ordens que se tem publicado para que os
entregassem aos Juizes de Paz respectivos passei
esta manh a dar busca acompanhado do escrivo
deste Juzo e auxiliado pelo Comandante da Polcia
com 12 soldados em 3 casas mais suspeitas a 1
na rua do tijolo, aonde mora o crioulo Victorino
Joaquim, carpina, e nella achei 1 arma, 1 patrona
com 4 cartuxos, 5 balas,1 martelinho, 1 baioneta e
1 cinturo, e por isso mandei-o recolher a cadeia
a minha ordem, e agora mesmo o vou passar ao
Desembargador ouvidor geral da Coroa a quem
passo a dar parte, remetendo o competente termo
de achada, para proceder conforme a Lei16 (grifo
nosso).
16 APEB, seo colonial, srie juiz de paz, 1830-1831, mao 2681.
Outras fontes que trazem informaes sobre os
moradores e proprietrios dos imveis do Pelourinho
so a srie Tesouraria - dcimas de casas do Apeb e os
Livros de dcimas urbanas e IPTU, disponveis no Arquivo
Pblico Municipal de Salvador (APMS). Os proprietrios
eram obrigados a pagar os impostos anuais sobre seus
imveis e a informar o fim destinado a eles, se moradia
ou aluguel, e, no caso da locao, informar o nome dos
inquilinos. Alm dos nomes, trazem informaes sobre
a configurao do imvel, o nmero de cmodos etc.
Como exemplo, reproduzimos na tabela abaixo os
registros contidos no livro de IPTU de 1893, freguesia
da S, em especial para a rua do Tijolo, atual rua 28 de
Setembro.
Tambm mereceram ateno os Livros de notas dos
tabelionatos da capital, disponveis no Apeb, onde
constam as certides de compra, venda, doao,
locao e hipoteca dos imveis de Salvador. Esse registro
nos remeteu a alguns dos principais proprietrios e a
descries de alguns imveis contemplados na rea
Rua N. do imvel Proprietrio InquilinosTipo de imvel
Rua 28 de setembro 37 Jos de Azevedo FernandesLoja: inquilino ausenteAndar e sto: Francisco Pereira de Miranda
sobrado
Rua 28 de setembro 39 Constantino Jos Gonalves Loja: Joanna FranciscaAndar: o proprietrio sobrado
Rua 28 de setembro 41 Jos de Azevedo Fernandes Loja: Janurio DamsioAndar: Thomaz Florncio de Mattos sobrado
Rua 28 de setembro 43 Samuel Amrico de Freitas Flora Adelaide Coelho casa trrea
Rua 28 de setembro 45 Alexandrina Garcia Rosa Loureno de Queiroz casa trrea
-
46
A r q u e o lo g i A n o P e lo u r i n h o
UM
A V
IS
O H
IST
R
ICA
DA
R
EA D
O P
RO
JET
O
do Projeto Pelourinho. Com o mesmo intuito, visando
identificar tcnicas de construo e os materiais
nelas empregados, e possibilitando o cruzamento de
informaes com dados arquitetnicos e arqueolgicos,
foram consultados o Livro de tombamento dos bens
imveis da Santa Casa de Misericrdia da Bahia, no
Arquivo da Santa Casa de Misericrdia, o Inventrio de
conta e tombo da Irmandade do Santssimo Sacramento
da S e a Avaliao e arrematao dos bens da Irmandade
de Nossa Senhora da F da srie Conta e tombo, no Apeb.
escriptura de venda, compra, paga e quitao
que fasem antonio Jos Pereira, artista e sua
mulher Dona Jesuna de Souza Braga, residentes
na Freguesia de Sam Pedro desta Capital ao
negociante Joo Jos de magalhes, do sobrado de
n.18 municipal sito em terreno prprio na rua do
Bispo do Curato da S desta Capital pela quantia de
2:000$000 como abaixo se declara.
Pelos primeiros outorgantes foi dito que eram
senhores e possuidores do sobrado municipal
18, sito em terreno prprio na rua do Bispo do
Curato da S desta capital, contendo trinta e cinco
palmos de frente, duas portas tambem na frente,
sendo uma da servido do sobrado, e outra da
loja, que tem sala; e dous quartos, e soto, a qual
tem janellas que deito para cima do telhado da
frente, tres quartos pequenos, e cosinhas, tendo
duas divises internas de
frontal singello, e
estuque, e no
primeiro
pavimento superior quatro janellas rasgadas e
saccadas de madeira, sala gabinete e quarto, e
dividindo-se o dito sobrado por um lado com a
da Santa Casa de misericrdia, e por outro com o
sobrado do mesmo magalhes [] (grifo nosso)17.
Uma fonte indispensvel ao estudo da urbanizao
da cidade, presente no Arquivo Pblico Municipal de
Salvador, so as Posturas municipais. Foram consultados
alguns livros de posturas que tratavam das principais
normas e proibies que orientavam a construo e
trabalhos de infraestrutura em Salvador, assim como sua
vida social. Sobre o destino do lixo na cidade, por exemplo,
a postura n. 1 de 1846 versa o seguinte:
Fica proibido o lanamento de lixo, e qualquer
outra qualidade de entulho nas marinhas em frente
dos cais de desembarque; pena de dez mil ris, e
oito dias de priso. Ficam revogadas as disposies
em contrrio. 29 abril 184618.
Numa tentativa de formar um panorama detalhado
sobre a freguesia da S, e mais especificamente sobre a
antiga rua do Tijolo, atual rua 28 de Setembro, coletamos
documentos manuscritos e plantas de vrios imveis.
Demos especial importncia s descries dos imveis,
s certides de compra, venda e locao dos mesmos
imveis e aos inventrios dos seus proprietrios.
Privilegiamos tambm a busca por imagens do local,
iconografia, mapas e plantas. No caso das ltimas, as
encontramos acompanhadas por valiosas descries
17 APEB, seo judiciria, srie livro de notas da capital, 1877, tabelio lvaro Lopes da Silva, livro n. 525.
18 ARQUIVO Pblico Municipal de Salvador (doravante APMS). Fundo cmara, livro de posturas da Cmara Municipal, 1837-1847, p. 17.
Prato em faiana.
-
47
P r o g r a m a m o n u m e n ta I P h a nU
MA
VIS
O
HIS
T
RIC
A D
A
REA
DO
PR
OJE
TO
dos cmodos e discusses acerca dos dispositivos legais
que norteavam a construo civil no incio do sculo XX
na Bahia. A seguir, a avaliao e descrio de um imvel
com seu respectivo mobilirio, contido no inventrio de
Quintino Olmpio dos Santos, datado de 1911:
um sobrado de nmero trinta e nove sito rua 28
de Setembro, distrito da S, edificado em terreno
prprio, medindo seis metros de frente, dividindo-
se em loja, um andar e sto; a loja com porta e uma
janela tem duas salas, um quarto, cozinha e quintal
murado e toda cimentada; o andar nobre com
porta de entrada independente tem trs janelas
com sacadas de ferro, duas salas e trs quartos,
sendo todo forrado esse andar; o sto, com trs
janelas para o telhado da frente, trs para o do
fundo, tem duas salas e um quarto, tudo de telha
van; construdo o prdio sobre paredes dobradas da
caixa do edifcio e singelas as divisrias; divide-se
de um lado com a casa de Joaquim gonalves maia
e do outro com propriedade de Jos Lopes, sobrado
descrito este que por estar carecendo de consertos
o avaliaram em oito contos de ris (8:000$).
mveis existentes no sobrado nmero trinta e nove,
rua 28 de Setembro, distrito da S:
uma moblia de jacarand antiga a muito usada,
composta de um sof, duas bancas, quatro cadeiras
de brao e doze [poltronas], e o que tendo avaliaram
em comum acordo em oitenta mil ris. Dois
candeeiros de vidro; dois pares de castiais com
arranjos de vidros, dois pares de jarros pequenos e
um par de escarradeiras, o que tudo avaliaram de
comum acordo em vinte mil ris. Duas estantes,
com ferramentas dentrias, enferrujadas, e mais
quatro peas tambm para trabalhos em dentes,
tudo muito estragado, pelo que avaliaram tudo
em cinqenta mil ris. uma cadeira de encosto, de
couro, estragada, que avaliaram em cinco mil ris.
um espelho quadrado com o vidro inutilizado,
que avaliaram por trs mil ris. Dois quadros com
figuras, que avaliaram em dois mil ris. uma cama
de vinhtico francesa com lastro de palhinha, que
avaliaram em doze mil ris. uma outra cama com
lastro de tbuas, que avaliaram em dez mil ris.
uma mesa antiga para jantar, que avaliaram por
seis mil ris. uma marquesa, que avaliaram em mil
e quinhentos ris. Somando todos os mveis: cento
oitenta e nove mil e quinhentos ris19.
A srie Mapas e plantas, disponvel no APMS, nos
trouxe a possibilidade de visualizar e cruzar dados
acerca da descrio dos imveis presentes na rea de
interesse desta pesquisa, bem como acompanhar a
movimentao oficial sobre a liberao para construo
e reforma de imveis na cidade durante o final do
sculo XIX e incio do sculo XX. Anexado s plantas,
principalmente das fachadas dos imveis, h processos
com pedidos de liberao de obras, que informam sobre
a utilizao de novos materiais e modas arquitetnicas
importadas das principais cidades europeias e o perodo
em que se deu a adio de andares em alguns imveis
na rea pesquisada. Esses dados auxiliaram uma das
pesquisas desenvolvidas pelos arquitetos ligados ao
projeto de arqueologia na 7 Etapa20.
19 APEB, seo judiciria, srie inventrio, inventrio de Quintino Olmpio dos Santos, 1911-1921, doc. 01/366/708/06.
20 Ver captulo IX.
-
Fachada posterior da casa 22, rua 28 de Setembro,
antiga rua do Tijolo.
-
Fachadas posteriores das casas 33, 35 e 37, rua So Francisco.
Retirada de lixo e entulho da casa 39, rua 28 de Setembro, antiga rua do Tijolo.
Fachada posterior da casa 24, ladeira da Praa.
-
50
A r q u e o lo g i A n o P e lo u r i n h o
UM
A V
IS
O H
IST
R
ICA
DA
R
EA D
O P
RO
JET
O
3 fase da pesquisa: tentando responder algumas questes da Arqueologia
Desde o incio das escavaes, a quantidade e variedade
de tipos de aterros encontrados despertou o interesse
da equipe de arqueologia. Os aterros foram utilizados
para nivelar terrenos e ruas, viabilizando a construo
das edificaes. Na sua maioria, so compostos
basicamente de restos de cultura material mvel e de
material construtivo. Em alguns locais, h camadas de
aterro com nove metros de profundidade. A principal
justificativa para o uso de tal volume de aterro foi
a necessidade de vencer as grandes declividades
presentes na rea do Centro Histrico de Salvador.
Essa caracterstica geomorfolgica explica o porqu
dessa rea ter sido ocupada to tardiamente. Pode-
se destacar nesse contexto o inusitado comrcio de
aterro, fomentado pela enorme demanda que se tinha
desse material, procurado no s por proprietrios
interessados em nivelar seus terrenos como tambm
pelo poder pblico, para utilizao em suas obras21.
Illustrissimo excelentissimo Senhor
o governo teve em vista, celebrando a referido
contracto do Campo da Polvora, 1 evitar dos cofres
publicos um aumento de despeza com o desaterro
desse campo; 2 acabar com os charcos pestiferos,
que existem no corao da cidade, que de outra
forma no se podendo extinguir; 3 o proveito
que poderia colher o emprezario Supplicante
em depositar em logar prximo o lixo, que de
outra forma seria obrigado a levar para paragens
longinquas; 4 aformozear a rua da Valla nivelando-a
com os quintaes circunvizinhos; 5 crear terrenos
21 Sobre esse assunto, ver captulos V, VI e XVII.
de construco com o consentimento e a pedido
dos respectivos proprietrios. tamanhos benefcios
no sendo para desprezar-se, em vista da grande
utilidade publica que teve o governo em mira, o
Supplicante pede a Vossa excelncia defferimento a
esta sua preteno. Bahia [22] de setembro de 1877.
antonio Joaquim Cardoso de Castro22.
A pesquisa arqueolgica encontrou um nmero
considervel de galerias subterrneas passando pelos
quintais ou sob a estrutura de diversas casas. Essa
configurao foi representativa principalmente nas
casas 37, 39 e 41 da rua 28 de Setembro. O material
construtivo das galerias variou entre pedras, tijoleiras
e grs, principalmente. O dimetro dessas estruturas
tambm variou, sendo que as de maior dimetro
foram classificadas pelos arquelogos como galerias
primrias, visto que outras de menor dimetro, galerias
secundrias, eram a elas ligadas.
Para entender as circunstncias de implantao
desse processo e a ocupao dessa rea, recorremos
documentao referente s obras no sistema de
abastecimento de gua e de esgoto, tanto no arquivo
estadual como no municipal. Encontramos relatrios
e projetos para saneamento da cidade e uma
srie de discursos sobre salubridade, urbanizao
e embelezamento de Salvador, luz das maiores
cidades europeias. Nesses projetos tambm se acham
referncias sobre a precria rede de esgotos da poca
(final do sculo XIX e incio do sculo XX), composta
pelos chamados canos reais construdos ainda no
sculo XVII , que passavam por algumas ruas quase
22 APEB, seo colonial, srie limpeza pblica, 1854-1889, mao 1612.
-
51
P r o g r a m a m o n u m e n ta I P h a nU
MA
VIS
O
HIS
T
RIC
A D
A
REA
DO
PR
OJE
TO
na superfcie, e pelos canos que saam das residncias,
os quais deviam ser ligados aos canos reais pelo
prprio proprietrio23.
Tentando contextualizar dois achados arqueolgicos
singulares na totalidade da rea explorada por essa
pesquisa um poo, no imvel nmero 3, no beco
do Seminrio, e um possvel forno no imvel nmero
33, na rua Guedes de Brito , iniciamos a pesquisa
documental para o sculo XVI, em busca de fontes
e bibliografia que possibilitassem relacionar a rea
do antigo Colgio dos Jesutas, localizado no atual
Pelourinho, com esses achados.
Sabamos que era comum a presena de olarias ou
fornos nos domnios dos jesutas em vrias regies do
Brasil, e tentamos localizar algo parecido no colgio
23 Ver captulo IV.
situado em Salvador. Em levantamento efetuado no
Apeb, encontramos uma relao de bens da Ordem
Inaciana, colocada em hasta pblica no ano de 1763,
mas tratava de propriedades rurais localizadas em sua
maior parte no Recncavo.
A fim de explorar outras hipteses e possibilidades,
recorremos bibliografia acerca da produo de
materiais construtivos, na tentativa de relacionar
o mencionado forno produo de tais materiais
construtivos no centro de Salvador. Fizemos tambm
uma visita tcnica a Maragogipinho, localidade
tradicional na fabricao de cermica, para conhecer
e observar in loco os fornos remanescentes do perodo
colonial e outros que, segundo relatos dos oleiros
locais, embora recentemente construdos, conservam
a mesma estrutura dos fornos antigos. A visita foi
proveitosa, pois observamos as estruturas dos fornos
Companhia do Queimado, Salvador (Sampaio, 2005, p. 109).
-
52
A r q u e o lo g i A n o P e lo u r i n h o
antigos, para ns desconhecidos at ento, e reforou
a hiptese de que o artefato encontrado seria um forno
nos mesmos moldes, apesar de at o momento no
termos encontrado documentos que o comprovem.
Para verificar uma outra hiptese, a de que o forno
estaria relacionado incinerao de lixo domstico pelo
poder municipal, pesquisamos as polticas de limpeza
da cidade de Salvador durante os sculos XIX e XX.
De acordo com o Relatrio das gestes dos negcios
municipais de 1895, os primeiros fornos foram instalados
no final do sculo XIX, na rea da antiga rua da Vala.
No incio do sculo XX, a construo de novos fornos
ainda era premente. Em 1906, montaram-se trs novos
equipamentos no largo Dois de Julho, Caminho de Areia
e Distrito da Vitria, em consonncia com o incio das
obras de saneamento da rea central da cidade, que
marcaram os antecedentes das intervenes urbanas
de Salvador ao estilo haussmaniano24.
24 Referente remodelao de Paris conduzida pelo urbanista Georges Eugne Hausmann na segunda metade do sculo XIX. SILVA, Margareth e SANTOS, Denise. Evoluo das polticas de limpeza urbana na organizao do espao de Salvador. Disponvel em . Acesso em maio 2010.
Essa hiptese foi descartada quando encontramos
fotografias dos fornos utilizados para incinerar lixo e
descobrimos sua localizao em reas muito afastadas
do centro da cidade. Por fim, levantou-se a possibilidade
de o forno ser utilizado para fabricao de alimentos
como pes e biscoitos, j que essa rea possua muitas
padarias e casas de massas. Uma planta anexa a um
pedido de permisso para a construo de um forno de
padaria na rua Saldanha da Gama deixou claro pela sua
semelhana que a estrutura encontrada provavelmente
era de um forno com essa finalidade.
Esgotada a pesquisa sobre o forno, passamos
investigao sobre poos na rea do projeto. Alguns
elementos apontaram para a existncia de poos em
propriedades particulares, que serviriam para o servio
domstico, tendo em vista a abundncia de lenis
freticos na rea, como informam algumas das 24 cartas
redigidas por Lus dos Santos Vilhena.
toda montanha na sua falda geme gua, e poucas
so as casas que no tenham sua poa, em que a
aproveitam toda, porm salobra. []
Dentro j na cidade, um pouco abaixo da igreja e
freguesia de Santa anna, fica a Fonte do gravat,
Possvel forno identificado na casa
33, rua Guedes de Brito.
-
53
P r o g r a m a m o n u m e n ta I P h a nU
MA
VIS
O
HIS
T
RIC
A D
A
REA
DO
PR
OJE
TO
a mais imunda, e pior de todas, porm a mais
frequentada por ser a nica pblica, que h dentro
na cidade; digo pblica por ser naquela paragem;
h porm alguns poos, de que seus donos vendem
a gua, a quem a no pode haver nas duas nicas
bicas que tem aquela fonte; h tambm mais um
poo junto capela de S. miguel, do qual se serve o
povo daquela vizinhana, e havia no Stio do maciel
um outro, que me dizem a rogara a si um particular,
quando este era do Pblico25.
Na busca por contextualizar as estruturas encontradas
(forno e poo), muitas fontes foram consultadas, mas
25 CATLOGO 68 do Arquivo Pblico Nacional do Rio de Janeiro. In APEB, seo de microfilmagem, filme 60, documento 702A. (Cartas de Lus dos Santos Vilhena, livro I, carta II.)
poucas realmente trouxeram contribuies. At o
momento, estamos elaborando hipteses acerca da
finalidade dos artefatos.
Outra descoberta que concentrou um grande esforo de
pesquisa foi a runa da antiga Capela de Nossa Senhora
de Guadalupe, encontrada sob o ptio do Quartel do
Corpo de Bombeiros da Barroquinha. A capela foi
fundada em 1776 pela Irmandade dos Pretos e Pardos
de Nossa Senhora de Guadalupe, e demolida em 1857.
Alm da estrutura do templo, encontraram-se algumas
ossadas humanas em posio de enterramento primrio
e cristo.
Segundo a bibliografia especializada, at a segunda
metade do sculo XIX era comum o enterramento em
igrejas, principalmente dos membros das irmandades.
Planta esquemtica do forno e corte da casa 33, rua Guedes de Brito.
-
54
A r q u e o lo g i A n o P e lo u r i n h o
As igrejas tambm se obrigavam a enterrar os indigentes
deixados em suas portas, o que no caso da Capela
de Guadalupe perfazia um total de 7% dos enterros
ocorridos por ano na freguesia da S.
Aps exaustiva pesquisa em sries documentais
referentes religio, bens da Igreja, irmandades,
testamentos, obras em igrejas e na rua da Vala,
conseguimos reunir alguns documentos que apontam
a localizao do prdio da capela e confirmam a posio
dos enterramentos, voltados para a atual ladeira da
Praa. Ou seja, provavelmente a Capela de Guadalupe
tinha sua entrada voltada para a ladeira da Praa, fundo
para a antiga rua do Tijolo, atual rua 28 de Setembro
e lateral esquerda voltada para a antiga rua da Vala,
atual avenida J. J. Seabra. Tambm tivemos acesso
aos testamentos de alguns membros da irmandade,
entre irmos patronos e pardos que nela exerceram
diversos cargos, na tentativa de traar o perfil da
entidade, seu poder aquisitivo e de agregao da
comunidade local etc.26.
Outra demanda do projeto, qual a pesquisa histrica
deu suporte, est relacionada com as escavaes
realizadas no imvel 39 da rua 28 de Setembro, onde
houve o resgate de um pequeno vasilhame com um
ovo dentro. Segundo o relato de um morador do Centro
Histrico, trata-se de uma prtica ligada tradio
26 Sobre o tema, ver captulo XV.
Escravos carregadores de gua no chafariz
do largo Dois de Julho. Fins do sculo XIX
(Sampaio, 2005, p. 107).
-
55
P r o g r a m a m o n u m e n ta I P h a nU
MA
VIS
O
HIS
T
RIC
A D
A
REA
DO
PR
OJE
TO
africana para a proteo da residncia. Sua datao foi
estimada com base em consulta feita ao inventrio de
Quintino Olmpio dos Santos, de 1911, no qual se relata
a existncia de um piso de cimento e a escavao
mostrou que o artefato foi depositado antes desse piso.
A partir do cruzamento dessas informaes, podemos
presumir, ou pelo menos limitar a data de colocao
desse artefato no imvel: antes de 1911. A descoberta
abriu um universo at ento pouco desvelado pelas
peas desenterradas pela arqueologia: a presena negra
na rea de pesquisa.
Concluda a etapa de coleta de dados, pretendemos
nos dedicar a sua anlise, junto com as equipes de
arqueologia e arquitetura. No intentamos chegar a
quaisquer proposies nesta etapa da pesquisa, pois
os dados coletados ainda no foram devidamente
analisados.
Concluso
A pesquisa histrica relacionada a pesquisas
arqueolgicas e arquitetnicas consiste em grande
desafio para o historiador. No entanto, a possibilidade
de auxiliar no entendimento de um processo to
surpreendente quanto a formao e desenvolvimento
de uma cidade como Salvador uma das experincias
mais estimulantes para o trabalho de qualquer
profissional das cincias humanas.
O desafio consiste em pesquisar e entender um
processo histrico muito longo e ao mesmo tempo
em ter cuidado para no transpor para nosso objeto
generalizaes recorrentes na bibliografia, que a
pesquisa arqueolgica vem questionar e suplantar.
Quebrar paradigmas sempre uma tarefa rdua,
cuidadosa, mas completamente apaixonante.
Referncias
CARNEIRO, Edison. A cidade do Salvador 1549: uma
reconstituio histrica. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira, 1980.
FUNDAO Gregrio de Mattos, Universidade Federal
da Bahia, Centro de Estudos de Arquitetura na Bahia.
Evoluo fsica de Salvador: 1549 a 1800. Salvador: Pallotti,
1998. (Edio especial.)
GINZBURG, C.; PONI, C. O nome e o como: troca desigual
e mercado historiogrfico. In GINZBURG, C., org. A micro-
histria e outros ensaios. Lisboa. Difel, 1979.
SAMPAIO, Antonio Heliodrio Lima. Formas urbanas: cidade-real e cidade-ideal. Contribuio ao estudo
urbanstico de Salvador. Salvador: Quarteto, 1999.
SAMPAIO, Teodoro. Histria da Fundao da cidade de
Salvador. Bahia: Tip. Beneditina, 1949.
SILVA, Margareth, SANTOS, Denise. Evoluo das
polticas de limpeza urbana na organizao do espao de
Salvador. Disponvel em . Acesso em maio 2010.
TAVARES, Luis Henrique Dias. Histria da Bahia. So Paulo: Unesp/Salvador: Edufba, 2001.
VASCONCELOS, Pedro de Almeida. Salvador: transformaes e permanncias (1549-1999). Ilhus:
Editus, 2002.
-
56
A r q u e o lo g i A n o P e lo u r i n h o
UM
A V
IS
O H
IST
R
ICA
DA
R
EA D
O P
RO
JET
O
Salvador era uma cidade considerada insalubre pelos
ilustrados do sculo XIX. Isso significava, em termos
prticos, que ela no era digna de receber visitantes e
investimentos estrangeiros, e sua imagem perante a
Europa estava bastante comprometida. Tal estado devia-
se principalmente, segundo mdicos e autoridades
administrativas, falta de higiene de seus habitantes.
Por higiene compreendia-se desde hbitos ligados
limpeza do corpo, da habitao e das ruas, at a extino
de prticas culturais consideradas incivilizadas e imorais.
O gegrafo e engenheiro sanitarista Teodoro Sampaio,
como outros pensadores de sua poca, estava atento
ao discurso higienista defendido principalmente pelos
mdicos durante a segunda metade do sculo XIX,
quando as epidemias do clera e da febre amarela
assolaram a cidade. Ajudando o governo provincial a
contornar um dos mais desconcertantes problemas do
sculo, os lentes da Faculdade de Medicina da Bahia
reivindicaram maior participao nas polticas pblicas
ligadas a urbanizao e sade pblica1.
O discurso mdico espalhou-se por vrias regies
do Imprio e na Bahia, assim como no Rio de Janeiro,
a defesa da sanidade do corpo, da salubridade das
habitaes e de hbitos considerados civilizados
e moralizantes, esteve relacionada a polticas de
reorganizao do espao urbano, ocupado por uma
populao pobre, principalmente negra e mestia. A
fiscalizao e represso s prticas culturais negras
ritos de cura e religiosos, costumes sexuais etc. dessa
1 Sobre discurso mdico e participao dessa classe nas polticas pblicas, e formao do pensamento ilustrado do pas na segunda metade do sculo XIX, ver principalmente SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil, 1870-1930. So Paulo: Companhia das Letras, 1993.
III - De olho no cortio! moradia e controle social no sculo XIX
Alane Fraga do Carmo - Dbora Bacelar Bastos
Imagem da rea da pesquisa
no incio dos trabalhos.
-
57
P r o g r a m a m o n u m e n ta I P h a n
populao, considerada perigosa em sua essncia,
eram alvos do projeto de limpeza higienista.
Segundo os projetos higienistas, as classes pobres e
viciosas deviam ser afastadas dos centros urbanos das
grandes cidades, pois eram um perigo para a sociedade
por causa de sua aglomerao e promiscuidade, sua
propenso para o crime e sua falta de higiene. Em
Salvador,