arqueomitologia uma breve introdução tessituras

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artigo sobre as relações entre cultura material de mitologia e, também, sobre o corrente teórica conhecida como arqueomitologia

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  • MEGA, Orestes J.; MATOS, Lennon O.; MACHADO E SILVA , Antnio C. R. A. Arqueomitologia: uma breve introduo. Tessituras, Pelotas, v. 1, n. 1, p. 101-122, jul./dez. 2013.

    ARQUEOMITOLOGIA: uma breve introduo

    Orestes Jayme Mega1

    Lennon Oliveira Matos2

    Antnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva3

    Resumo: Este artigo coloca-se como um ensaio onde a questo das relaes entre a cultura material e a mitologia explorada atravs de uma perspectiva baseada numa vertente da arqueologia que, embora pouco divulgada e conhecida, proporcionou grande avano no estudo das antigas crenas humanas, a arqueomitologia. Neste trabalho realizamos uma breve reflexo a respeito da importncia que a mitologia exerceu e ainda exerce em vrias sociedades tanto do passado quanto do presente. Exploramos, ainda, as questes tericas referentes ao estudo da mitologia. Apresentamos aqui algumas teorias onde a mitologia entendida de diversas formas que vo desde abordagens evolucionistas dos mitos at aquelas onde os mitos aparecem como necessidades de fundo psicolgico dos seres humanos. Tratamos, ainda, da questo de como os arquelogos tm trabalhado o tema, mostrando a grande diversidade de abordagens usadas dentro da arqueologia quando em contato com elementos da cultura material que direta ou indiretamente refletem algum elemento mtico. Nossa proposta neste artigo fazer uma apresentao das principais premissas da arqueomitologia, oferecendo aos leitores uma brevssima introduo ao tema. Palavras-chave: Arqueomitologia; mitologia; teoria.

    1 Licenciado em letras e histria pela UNG; Bacharel em arqueologia e preservao

    patrimonial pela UNIVASF; Pesquisador independente; Professor de ingls na Secretaria

    de Estado de Educao do Amap. E-mail: [email protected] . 2 Estudante de Arqueologia e Preservao Patrimonial na Universidade Federal do Vale do

    So Francisco UNIVASF; Pesquisador Colaborador do Ncleo de Estudos Foucaultiano Universidade Estadual do Piau UESPI. E-mail:[email protected] . 3 Bacharel em arqueologia e preservao patrimonial pela Universidade Federal do Vale do

    So Francisco UNIVASF; Pesquisador independente. E-mail: [email protected].

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    Abstract: This article works as an essay where the question of the relations between material culture and mythology is explored trough an approach based in a branch of archaeology that, although little broadcasted and known, has provided a big advance in the study of the ancient human beliefs, the archaeomythology. In this work we have done a brief reflection about the importance that mythology had and still has in many societies in the past and even in the present. We also explore the theoretic questions that refer to the study of mythology. We present some theories where the mythology is understood in many ways that goes since evolutionary approaches of the myths until those where the myths appear as deep human psychological needs. We also explore the question about how archaeologists have worked this theme, showing the big diversity of approaches used in archaeology when in contact with material culture elements that directly or indirectly reflect some mythical element. Our purpose in this article is to do a presentation about the main premises of archaeomythology, offering to the readers a very brief introduction to the theme. Keywords: Archaeomythology; mythology; theory.

    Introduo

    Este artigo tem por finalidade fazer uma breve anlise de uma

    abordagem terica dentro da arqueologia que tem como principal

    caracterstica a ampla utilizao de mitos para fazer interpretaes do

    registro arqueolgico, assim como a ampla utilizao do registro

    arqueolgico para fazer interpretaes de mitos, sejam estes atuais ou

    pretritos. Tal abordagem terica conhecida como arqueomitologia e foi

    desenvolvida pela arqueloga nascida na Litunia, mas naturalizada

    estadunidense Marija Gimbutas (1921-1994), autora de livros tais como

    Bronze Age Cultures in Central and Eastern Europe (1965), The Goddesses

    and Gods of Old Europe. 6500 3500 B.C: Myths and Cult Images (1982),

    The Civilization of the Goddess (1991).

    Tendo como foco a interdisciplinaridade, a arqueomitologia congrega

    questes que fazem com que fontes imateriais sejam levadas em

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    considerao no momento de se interpretar o registro arqueolgico. Desta

    forma, disciplinas como lingustica, folclore, antropologia, histria, mitologia

    comparada, psicologia, etc., se juntam arqueologia para formar

    ferramentas interpretativas que no s esto preocupadas em estudar o

    passado atravs dos itens materiais pretritos, mas tambm a de estudar o

    passado atravs do substrato cultural presente nas culturas ainda vivas. Tal

    substrato pode assumir diferentes formas: contos folclricos, ritos agrcolas,

    mitologias contemporneas, etc.

    O surgimento da arqueomitologia est relacionado com as pesquisas

    realizadas por Marija Gimbutas em stios neolticos do sudeste europeu. Ela

    interpretou o registro arqueolgico encontrado nesta regio como sendo

    vestgios de populaes que tinham assentamentos bem construdos,

    elegante arte cermica e escultrica, artesanato especializado, elaboradas

    tradies rituais, grande nmero de esculturas antropomrficas e

    zoomrficas encontradas em casas por toda a regio e cuja maioria foi

    identificada como sendo feminina, refletindo a centralidade das mulheres

    nas atividades rituais (GIMBUTAS, 1974, 1989, 1991 e HODDER, 1990,

    apud MARLER, 2006).

    Tais caractersticas diferiam bastante das dos povos que ocuparam a

    mesma regio, mas que tinham fundamentos culturais muito diferentes.

    Estes povos posteriores possuam estruturas sociais, cultura material,

    ideologias e mitologias que divergiam em tantos aspectos das dos

    antecessores que o choque blico e cultural foi inevitvel. Segundo a

    interpretao de Gimbutas, os povos neolticos datados entre o stimo e o

    quinto milnio a.C., que habitavam os stios por ela escavados possuam

    mitologias matrifocais, isto , mitologias centradas em figuras femininas

    (MARLER, 2006). Entre estas figuras encontram-se as das deusas-mes,

    possuidoras de grande influncia. Tais mitologias foram substitudas por

    outras que, contrariamente, eram centradas em divindades masculinas e

    guerreiras. Essas mitologias guerreiras foram levadas para ao sudeste

    europeu por povos provenientes do norte do mar Negro que Gimbutas

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    nomeou como Kurgans devido aos seus peculiares tmulos em forma de

    morros. Tais povos eram possuidores de uma cultura guerreira e patriarcal

    baseada no pastoreio. O encontro entre estes diferentes povos teria sido

    violento e teria causado grandes modificaes lingusticas, econmicas,

    sociais e ideolgicas que, inevitavelmente, tambm ocasionariam mudanas

    nas mitologias tanto dos vencidos quanto dos vencedores. Entretanto, apesar

    das modificaes, uma parte das antigas mitologias matrifocais teria

    sobrevivido, gerando um substrato perceptvel que, quando estudado de

    maneira interdisciplinar, poderia revelar estas sobreposies de culturas no

    passado distante.

    A ideias de Gimbutas foram aceitas por parte da comunidade

    arqueolgica mas rechaadas por outra parte desta mesma comunidade, que

    no poupou esforos em lanar muitos ataques ao que pejorativamente

    comearam a denominar de New Age Archaeology, fazendo com isso um

    paralelo entre as ideias de Gimbutas e as ideias do movimento Nova Era. As

    crticas foram de diversas naturezas, mas tinham como foco a viso sexista

    que Gimbutas havia dado ao registro arqueolgico neoltico. Isso porque ela

    havia contestado a supremacia masculina tida como inerente s sociedades

    humanas por alguns autores (MARLER, 2006). Neste sentido, na concluso

    de um artigo de Joan Marler, apresenta-se um resumo dos impactos das

    ideias de Gimbutas no mundo acadmico e na sociedade ocidental em geral:

    Marija Gimbutas enfatiza que o patriarcado no surgiu na

    Europa como uma evoluo natural a partir de estruturas igualitrias mais antigas, ou foi a dominncia masculina

    uma caracterstica universal das sociedades pr-histricas. A

    desestabilizao e colapso das antigas sociedades europeias

    resultaram de uma progressiva coliso e amlgama entre dois sistemas culturais que eram cultural e ideologicamente

    diametricamente opostos. A cultura Kurgan desenvolveu

    padres de agresso territorial no spero ambiente da estepe

    circumpntica e levou distintas caractersticas culturais para

    a Europa. Uma vez que as antigas sociedades europeias

    foram desestabilizadas e amalgamadas com elementos

    Kurgan ou Kurganizados, mudanas sociais, ideolgicas,

    econmicas e materiais se espalharam atravs de dinmicas

    internas e externas, resultando na intensificao e

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    entrincheiramento de padres patriarcais. Definindo a

    antiga Europa como a fundao da civilizao europeia, e

    lanando a hiptese do incio do patriarcado como um

    fenmeno mais antigo, simultneo com a indo-europeizao

    do continente, a teoria kurgan de Gimbutas desafia a

    doutrina universal da dominncia masculina que tem

    funcionado como a histria da origem da civilizao ocidental

    (MARLER, 2006. p. 10).

    Estas ideias foram absorvidas de diferentes maneiras por diferentes

    grupos sociais com propsitos bem distintos. Se por um lado, como j foi dito

    anteriormente, uma parte da comunidade acadmica aceitou estas

    concepes e, a partir disso, muitos outros estudos deram prosseguimento ao

    trabalho de Gimbutas, gerando o que hoje conhecido como

    arqueomitologia, por outro lado, grupos feministas absorveram estas

    mesmas ideias e as transformaram em instrumentos de lutas polticas e

    emancipatrias (RIGOGLIOSO, 2007). No se pode esquecer tambm que

    houve at mesmo grupos religiosos que, ao entrarem em contato com tais

    concepes, elaboraram novas mitologias centradas em divindades

    femininas. Como exemplo desta ressignificao do trabalho de Gimbutas

    encontramos a vertente religiosa conhecida como wicca e que se caracteriza

    como um conjunto de cultos que possuem mitologias matrifocais. As

    pesquisas de Gimbutas ajudaram a criar o que veio a ser chamado de

    tealogia, isto , uma teologia da deusa ancestral presente em muitos

    cultos neopagos.

    Dentro do mbito da comunidade arqueolgica as ideias de Gimbutas

    frutificaram no Institute of Archaeomythology, criado por Joan Marler,

    bigrafa de Marija Gimbutas, com o intuito de inspirar e dar suporte

    pesquisa arqueomitolgica. O Institute of Archaeomythology congrega

    pesquisadores de vrias nacionalidades e promove eventos sobre temas

    relacionados arqueomitologia, assim como publica trabalhos de autores

    ligados ao tema. No site do instituto (www.instituteofarchaeomythology.org)

    h uma definio bastante interessante do que seria a arqueomitologia, o

    que nos interessa muito pois apresenta alguns elementos de grande

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    significado terico-metodolgico que apresentaremos em itlico no trecho

    que segue e, em seguida, examinaremos estes mesmos elementos de

    maneira individualizada e com mais pormenores a fim de iniciarmos uma

    discusso que assume um carter terico-metodolgico mostrando as

    diferenas entre a arqueomitologia e outras formas do fazer arqueolgico

    tais como o processualismo e o ps-processualismo:

    A arqueomitologia uma abordagem interdisciplinar

    formulada pela arqueloga Marija Gimbutas com o propsito

    de expandir os parmetros do estudo e entendimento da

    trama multidimensional das culturas humanas. nfase

    especial colocada sobre as crenas, rituais, simbolismo,

    estrutura social e sistemas de comunicao de sociedades pr-

    histricas. [...] Essa metodologia combina um amplo leque de

    disciplinas incluindo, mas se limitando, arqueologia,

    antropologia, mitologia, etnologia, folclore, lingustica,

    religio comparada, gentica, ecologia e histria. Essa

    abordagem interdisciplinar prov uma norma: se uma

    interpretao formulada atravs das lentes de uma ou mais

    disciplinas considerada falsa atravs das lentes de outra

    disciplina, a interpretao original deve ser reexaminada. [...]

    A arqueomitologia assume que possvel que alguns padres

    culturais arcaicos subsistam como elementos do substrato de

    fases culturais posteriores que podem ser identificados e

    estudados como camadas de uma estratigrafia viva. A

    arqueomitologia pode tambm ser usada como uma metfora

    para um questionamento complexo ou escavao dentro das camadas mitolgicas, psicolgicas e espirituais de qualquer

    perodo cultural, incluindo o presente (INSTITUTE OF

    ARCHAEOMYTHOLOGY, 2013, n. p., grifos dos autores).

    A seguir faremos uma anlise dos pontos em itlico na citao acima a

    fim de termos uma melhor compreenso da proposta terico-metodolgica da

    arqueomitolgia.

    1. nfase especial colocada sobre as crenas, rituais, simbolismo,

    estrutura social e sistemas de comunicao de sociedades pr-

    histricas.

    A nfase dada a estes elementos aproxima a arqueomitologia das

    correntes ps-processuais, que tambm possuem interesse em questes

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    ideolgicas, ao mesmo tempo que a afasta das correntes processuais-

    funcionalistas, mais preocupadas em entender padres relacionados com a

    subsistncia e a adaptao dos grupos humanos ao ambiente que ocupavam,

    embora estas discusses tenham tambm adentrado no processualismo

    atravs da arqueologia cognitiva. Discusses concernentes a crenas, rituais

    e simbolismo e, obviamente, mitologia (elementos ideolgicos considerados

    como de difcil interpretao atravs do registro arqueolgico) geralmente

    so evitadas por arquelogos processual-funcionalistas que consideram estes

    temas como uma forma de paleopsicologia sem fundamento cientfico.

    2. Se uma interpretao formulada atravs das lentes de uma ou

    mais disciplinas considerada falsa atravs das lentes de outra

    disciplina, a interpretao original deve ser reexaminada.

    Como a arqueomitologia tem como centro de sua proposta o estudo

    interdisciplinar do registro arqueolgico, poder-se-ia pensar que existiria

    uma pirmide hierrquica de disciplinas onde a arqueologia se sobreporia s

    demais. Entretanto, tal hierarquizao no existe. Tal situao favorece o

    dilogo entre as vrias disciplinas relacionadas na busca do entendimento

    do passado humano. Embora todas as abordagens tericas dentro da

    arqueologia tenham forte dose de interdisciplinaridade, a arqueomitologia,

    ao estabelecer ligaes tambm com cincias pouco procuradas pelas outras

    vertentes da arqueologia, como a mitologia comparada, a psicologia

    analtica, etc., assume o papel de ser um dos ramos mais interdisciplinares

    da arqueologia.

    3. A arqueomitologia assume que seja possvel que alguns padres

    culturais arcaicos subsistam como elementos do substrato de fases

    culturais posteriores que podem ser identificados e estudados como

    camadas de uma estratigrafia viva. A arqueomitologia pode tambm

    ser usada como uma metfora para um questionamento complexo

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    ou escavao dentro das camadas mitolgicas, psicolgicas e

    espirituais de qualquer perodo cultural, incluindo o presente.

    Esta a principal caracterstica da arqueomitologia e a que mais a

    separa das outras vertentes do fazer arqueolgico, pois engloba na

    categoria registro arqueolgico, geralmente entendido como sendo

    composto por elementos materiais tais como artefatos, ecofatos, solos

    antropognicos, estruturas, biofatos, etc., tambm elementos que no fazem

    parte da cultura material, mas que constituem aspectos importantes tanto

    de culturas antigas quanto atuais. Tais elementos imateriais, tambm como

    j foi dito anteriormente, so constitudos de mitos, contos folclricos, ritos

    agrcolas, etc., e so considerados pela pesquisa arqueomitolgica como

    sendo to importantes para o entendimento do passado quanto os registros

    arqueolgicos materiais. Desta forma, atravs da interpretao de mitos

    atuais, aliada pesquisa arqueolgica tradicional apoiada em dados

    materiais, pode-se construir modelos interpretativos de grande serventia

    para a contextualizao tanto de stios arqueolgicos pertencentes ao

    passado quanto de aspectos atuais de culturas ainda vivas. Assim, longe de

    apresentar um interesse unicamente voltado para o passado das sociedades

    estudadas, tem a arqueomitologia um grande interesse para questes atuais

    das sociedades que contenham significado espiritual, psicolgico, mitolgico,

    poltico, etc.

    Sendo o presente um produto de aes que se produziram no passado,

    ele tambm pode ser entendido como sendo constitudo por camadas de

    maneira similar a um perfil geolgico. Estas camadas, no entender da

    arqueomitologia, se expressam atravs de substratos culturais que podem

    ser muitssimo antigos em alguns casos. Estes substratos culturais de

    grande antiguidade so mais fceis de serem identificados nas mitologias,

    que so capazes de reter formas de pensamento, preceitos morais,

    conhecimentos, preconceitos, frmulas literrias e muitos outros aspectos

    culturais por milnios. Como um exemplo prximo a ns podemos citar a

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    mitologia crist que, embora j tenha cerca de dois mil anos, guarda

    elementos ainda mais antigos e que so frutos de mitologias diferentes como

    o judasmo, o mitrasmo, entre outras que, por sua vez, guardam em suas

    respectivas mitologias elementos que retrocedem ainda mais no tempo,

    formando um conjunto de camadas sobrepostas.

    Em termos psicolgicos, tais camadas estariam relacionadas aos

    arqutipos tais como entendidos por Carl Gustav Jung e pela psicologia

    analtica. Segundo Jung (2000), algumas sociedades so dominadas por

    arqutipos em determinadas fases de suas trajetrias histricas. Estes

    arqutipos podem ser expressos atravs de diferentes marcas na cultura

    material. Assim, sociedades dominadas por arqutipos diferentes tendem a

    produzir culturas materiais diferenciadas. Um exemplo disso pode ser

    encontrado na prpria pesquisa de Marija Gimbutas a respeito de

    populaes neolticas do sudeste europeu onde, a partir de dados materiais,

    constatou-se a atuao de um arqutipo materno que deixou suas marcas na

    cultura material atravs da produo de um grande nmero de estatuetas

    femininas. Em perodos posteriores, outros povos trouxeram arqutipos

    diferentes que so caracterizados a partir de um aumento exponencial na

    produo blica.

    grande a colaborao entre arqueomitlogos e psiclogos de perfil

    junguiano. Isso se deve ao fato de ambos estarem interessados no papel que

    a mitologia exerce na vida humana e como este papel variou no tempo.

    Embora j tenhamos tratado brevemente sobre a questo dos arqutipos

    anteriormente, vale a pena nos aprofundarmos um pouco mais na questo,

    apresentando uma definio de arqutipo para que possamos ter uma

    melhor conscincia da importncia do mesmo para o funcionamento da

    mente humana e, consequentemente, de seu papel social.

    Os arqutipos so estruturas ou matrizes inatas que habitam

    o inconsciente coletivo, presente em cada ser humano como

    depositrio das experincias humanas atravs de sua

    existncia e do seu desenvolvimento na terra. Esses

    conhecimentos herdados e transmitidos durante longa

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    jornada tm como base as necessidades do soma e as

    necessidades instintivas que impulsionam para a vida. Os

    arqutipos so estruturas poderosas que influenciam a

    experincia pessoal para determinados padres, comuns a

    nossa espcie (...). Os arqutipos esto presentes nos sonhos,

    nas fantasias interiores, nos mitos, nas lendas e na cultura

    popular. Carregam grande carga emocional, atualizando-se e

    estruturando as diferentes culturas (CALLIA e OLIVEIRA,

    2006. p. 9).

    Na citao acima, podemos verificar o importante papel dos arqutipos

    no s num nvel individual, mas tambm no nvel social, onde so

    entendidos, pelos psiclogos junguianos, como sendo elementos

    estruturantes de individualidades e culturas. Podemos entender que os

    mitos so expresses narrativas de arqutipos. Nesta perspectiva, o aspecto

    narrativo do mito seria apenas a sua roupagem, sua capa exterior que pode

    ser comunicada mais ou menos maneira de um sonho. Por trs desta capa

    exterior, envolto na roupagem narrativa, est o arqutipo, ou arqutipos, em

    si mesmos incomunicveis sem o auxlio da narrativa. A cultura material

    envolvida no mito, isto , smbolos religiosos, objetos rituais, etc., parte da

    mesma dinmica, sendo tambm entendida como se de uma narrativa se

    tratasse. Deste modo, do objetivo da arqueomitologia proceder leitura

    hermenutica destes dois nveis narrativos, primeiramente o do registro

    arqueolgico material, e depois o das narrativas mticas relacionadas a este

    registro. Neste sentido, destacamos alguns pontos onde a pesquisa

    arqueomitolgica e a psicolgica se utilizaram de metodologias semelhantes

    assim como chegaram a resultados igualmente semelhantes:

    Las neojunguianas Silvia Brinton Perera, Marion Woodman,

    Jean Shinoda Bolen y Clarissa Pinkola Ests, realizaron una

    tarea similar a la arqueolgica a fin de desenterrar el

    arquetipo de la Gran Diosa de las profundidades del

    inconsciente personal y colectivo de las mujeres adonde la

    cultura y el ego patriarcal lo haban recluido, reprimindolo

    para que las diosas no otorgaran poder espiritual, emocional

    y cultural al cuerpo, la sexualidad, la libertad y la conciencia

    de las mujeres. Para las junguianas, los mitos tardos como

    el de Atenea naciendo de la cabeza de Zeus se hicieron carne

    en las mujeres que fueron educadas segn el ideario

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    femenino de la mentalidad patriarcal, teniendo que adoptar

    en los ltimos tiempos modos patriarcales a fin de ser

    reconocidas como Hijas del Padre y tener xito profesional o intelectual (BERNARDO, s.d., p. 3).

    Apesar de toda sua interdisciplinaridade e de seu grande interesse pela

    trajetria humana no planeta, a arqueomitologia no goza de ampla

    aceitao no meio acadmico. Collin Renfrew e Paul Bahn, no famoso livro

    Archaeology: Theories, Methods and Practice (na edio de 1991), livro por

    muitos considerado como um dos mais importantes manuais de arqueologia

    j publicados, nem ao menos menciona a arqueomitologia. Ao trabalho de

    Marija Gimbutas so dedicados apenas um pargrafo (nas pginas 207 e

    208). E mesmo este pargrafo dividido com Ian Hodder que, ao analisar a

    mesma questo de Gimbutas, lana uma interpretao completamente

    diferente que chega a ser, at certo sentido, antagnica. Segundo Hodder, o

    grande nmero de estatuetas femininas demonstra que as mulheres

    estavam passando por um perodo de objetificao e subordinao a um

    poder masculino crescente.

    Discusso: a materialidade do mito

    Antes de adentrarmos numa discusso sobre a possibilidade ou a

    validade de uma pesquisa arqueomitolgica, necessrio discutirmos qual

    o papel exercido pelas narrativas mticas nas sociedades por ns estudadas e

    em nossa prpria sociedade. Nossa inteno neste artigo no a tecer um

    longo debate sobre este tema, mas apenas levantar a questo e introduzir

    algumas consideraes importantes.

    A primeira questo sobre a existncia de uma relao entre mito e

    cultura material. Defendemos que h uma materialidade dos mitos assim

    como uma miticidade da cultura material que pode ser constatada atravs

    da pesquisa arqueolgica e que se expressa por elementos tais como templos,

    artefatos rituais, arte rupestre, enxoval funerrio, etc.

    A segunda questo relacionada existncia de fontes escritas.

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    Quando h fontes escritas disponveis, a tarefa de correlacionar a cultura

    material com mitos se torna mais fcil. Entretanto, como fazer o mesmo tipo

    de correlao em pesquisas de arqueologia pr-histrica? Esta a principal

    questo a ser debatida. Como compreender a mitologia de populaes pr-

    histricas?

    importante esclarecer que no h a menor possibilidade de se

    compreender a totalidade das mitologias de populaes pr-histricas e nem

    mesmo conhecer as narrativas mticas dos povos da pr-histria atravs do

    registro arqueolgico. A pesquisa arqueomitolgica tem por finalidade

    compreender alguns aspectos das mitologias da pr-histria atravs da

    cultura material aliada a outras fontes de cunho imaterial. E so estas

    fontes de cunho imaterial que funcionam como um eixo norteador para a

    pesquisa arqueomitolgica. Parte-se do princpio de que os mitos so

    expresses narrativas de contedos inconscientes e que guardam profunda

    relao com os sonhos. Mito e sonho esto intrinsecamente unidos porque

    ambos provm de uma mesma origem: as profundezas da psique humana.

    Desta forma, concordamos com os psiclogos junguianos para os quais

    muitos sonhos guardam grandes semelhanas com mitos, pois ambos

    representam elementos de algo que a psicologia analtica chama de

    inconsciente coletivo, que pode ser entendido como:

    O inconsciente coletivo uma parte da psique que pode

    distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que no

    deve sua existncia experincia individual, no sendo,

    portanto, uma aquisio pessoal. Enquanto o inconsciente

    pessoal constitudo essencialmente de contedos que j

    foram conscientes e, no entanto, desapareceram da

    conscincia por terem sido esquecidos ou reprimidos, os

    contedos do inconsciente coletivo nunca estiveram na

    conscincia e portanto no foram adquiridos

    individualmente, mas devem sua existncia apenas

    hereditariedade. Enquanto o inconsciente pessoal consiste

    em sua maior parte de complexos, o contedo do inconsciente

    coletivo constitudo essencialmente de arqutipos. [...] O

    conceito de arqutipo, que constitui um correlato

    indispensvel da ideia do inconsciente coletivo, indica a

    existncia de determinadas formas na psique, que esto

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    Tessituras

    MEGA, Orestes J.; MATOS, Lennon O.; MACHADO E SILVA , Antnio C. R. A. Arqueomitologia: uma breve introduo. Tessituras, Pelotas, v. 1, n. 1, p. 101-122, jul./dez. 2013.

    presentes em todo o tempo e em todo lugar (JUNG, 2000. p.

    53).

    Um autor de destaque nos estudos da mitologia o estadunidense

    Joseph Campbell, autor de livros de enorme importncia para a questo

    como a coletnea intitulada The Masks of God (1959) e muitos outros.

    Campbell tambm parte da premissa de que as similaridades entre vrios

    mitos de diversos povos muito distanciados no espao e no tempo so frutos

    de alguma caracterstica psicolgica compartilhada por toda a humanidade.

    Assim, Campbell afirma que:

    O estudo comparativo das mitologias do mundo nos compele

    a ver a histria cultural da humanidade como uma unidade;

    Nela ns encontramos alguns temas como o roubo do fogo,

    dilvio, terra dos mortos, mes virgens e heris ressurretos

    que tm uma ampla distribuio pelo mundo aparecendo em todo lugar em novas combinaes enquanto permanecem,

    como os elementos de um caleidoscpio, somente uns poucos

    e sempre os mesmos. Alm disso, enquanto em contos

    narrados para entretenimento estes temas mticos aparecem

    superficialmente num esprito, obviamente, no to srio os mesmos temas aparecem tambm em contextos religiosos

    onde so aceitos no somente como fatos reais mas tambm

    como revelaes das verdades sobre as quais toda a cultura

    uma testemunha viva e das quais deriva sua autoridade

    espiritual assim como seu poder temporal (CAMPBELL,

    1959. p. 9).

    Um ramo mais recente dos estudos em mitologia comparada tem

    buscado uma maior cientificidade, almejando desenvolver modelos

    explicativos que possam ser testados. Alm do grande aporte arqueolgico,

    psicolgico e inclusive zoolgico destes novos estudos, tem-se usado

    conhecimentos provenientes da neurologia e da neurobiologia a fim de se

    alcanar um maior embasamento cientfico para as concluses propostas.

    Examinaremos a seguir um dos autores que tem trabalhado desta forma.

    Steve Farmer, no artigo intitulado The neurobiological origins of

    primitive religions: Implications for comparative mythology (2009), descreve

    um modelo neurobiolgico testvel das origens tanto dos mitos quanto das

    religies primitivas. Segundo Farmer, tal modelo necessrio para poder

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    Tessituras

    MEGA, Orestes J.; MATOS, Lennon O.; MACHADO E SILVA , Antnio C. R. A. Arqueomitologia: uma breve introduo. Tessituras, Pelotas, v. 1, n. 1, p. 101-122, jul./dez. 2013.

    distinguir as similaridades entre mitos surgidos atravs de ancestralidade

    compartilhada ou transmisso cultural daqueles surgidos atravs de

    inveno paralela. Outra necessidade nos estudos de mitologia comparada

    suprida por tal modelo a de estabelecer a profundidade temporal mxima

    alcanvel na reconstruo de mitos antigos, datando as mais antigas

    manifestaes do pensamento mtico que, ainda segundo Farmer, dados

    neurobiolgicos sugerem ter ocorrido h aproximadamente 200.000 anos

    A.P., sendo assim muito mais antigos do que supunham outros

    pesquisadores. Outras necessidades supridas pelo modelo neurobiolgico so

    as de explicar como os mitos foram transformados nos ltimos 5.000 anos de

    tradio literria e porque eles persistem em continuar vivos at os dias

    atuais (FARMER, 2009).

    O modelo apresentado por Farmer baseia-se nas recentes descobertas a

    respeito do neurodesenvolvimento que mostram que modelos de mundo so

    construdos atravs da confuso entre processos de informao social e

    processos de percepo do mundo natural. Desta forma, as pessoas tendem a

    perceber o mundo natural que as cerca atravs de processos cognitivos mais

    adaptados informao social. Ainda segundo Farmer, esta forma de

    percepo do mundo natural pode ser traada desde a infncia at a idade

    adulta e acionada pelos sistemas corticais e subcorticais do assim chamado

    crebro social, que tende a antropomorfizar o mundo natural, dando ao

    mesmo caractersticas humanas.

    Um ponto polmico das ideias de Farmer que ele v a mitologia e a

    religio como subprodutos da evoluo humana. A mitologia entendida

    como um transbordamento das capacidades dos processos mentais

    responsveis pela socializao. Assim, os mitos so entendidos como efeitos

    colaterais ou no-adaptativos destes sistemas cerebrais ligados

    sociabilidade, essenciais para a sobrevivncia de nossos ancestrais. Desta

    forma, Farmer entende que a mitologia (e consequentemente a religio)

    ultrapassa a necessidade de sobrevivncia, passando a ser, em alguns casos,

    um fator contrrio mesma.

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    Tessituras

    MEGA, Orestes J.; MATOS, Lennon O.; MACHADO E SILVA , Antnio C. R. A. Arqueomitologia: uma breve introduo. Tessituras, Pelotas, v. 1, n. 1, p. 101-122, jul./dez. 2013.

    Uma das ideias de Farmer que pode ter uma grande importncia para

    a arqueologia a expressa pela citao a seguir:

    Seria uma estranha sociedade de agricultores onde faltassem

    mitos cclicos de plantio e colheita e at certo ponto deuses

    mortos e ressuscitados. Moradores das margens de rios que

    no tivessem mitos sobre dilvios; e raras religies dos

    oprimidos que em algum ponto no inventassem (ou

    adotassem de outras culturas) salvadores csmicos

    (FARMER, 2009. p. 7).

    Tal ideia apresenta ligaes interessantes entre economia-mitologia,

    paisagem natural-mitologia e histria-mitologia. Tais ligaes podem ser

    estudadas com maior profundidade para se verificar em que grau

    constituem uma generalizao aplicvel arqueologia.

    Existem muitos outros autores cujos estudos so importantes para o

    entendimento da questo da influncia dos mitos sobre as culturas tanto

    antigas quanto atuais. Entretanto, no da inteno deste trabalho, que

    to somente introdutrio, se aprofundar neste tema.

    Como os arquelogos tm trabalhado com temas mitolgicos

    As pesquisas que visam entender aspectos de mitologias de povos

    pretritos atravs do registro arqueolgico no so muitas e costumam ser

    recebidas com uma certa dosagem de desconfiana pela comunidade

    acadmica. A citao abaixo um bom exemplo desta situao:

    Em 1954 o arquelogo britnico Cristopher Hawkes

    apresentou seus quatro degraus da escada de confiabilidade em inferncia arqueolgica nos quais argumenta que os primeiros dois passos, concernentes s tcnicas de produo

    e economias de subsistncia, eram muito fceis para determinar, enquanto as instituies sociopolticas eram

    consideravelmente mais difceis para entender. As inferncias sobre as instituies religiosas e a vida espiritual

    eram as mais difceis de todas (HAWKES, 1954, p. 61, apud

    MARLER, 2006, p. 7).

    Tal pensamento permeou a prtica arqueolgica e constitui, ainda hoje,

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    um forte argumento contrrio a qualquer tentativa de se fazer

    interpretaes a respeito de aspectos ideolgicos de populaes pretritas.

    Assim, houve uma restrio das interpretaes em arqueologia a ponto de

    fazer com que os dados quantitativos superassem os qualitativos e se

    tornassem os argumentos mais poderosos das pesquisas arqueolgicas. Tal

    ponto pode ser expresso no trecho abaixo:

    Assim, Hawkes criou uma hierarquia na qual estudos sobre

    prticas religiosas e espirituais do passado esto fora do

    alcance para todos exceto os arquelogos mais experientes.

    Esta noo (e implicitamente a escada de confiabilidade)

    tornou-se arraigada na prtica e no pensamento arqueolgico

    (BERTEMES e BIEHL, 2001, apud MARLER, 2006, p. 8).

    Entretanto, outros arquelogos pensam de maneira diferente,

    argumentando que no s possvel alcanar aspectos das mitologias de

    povos pretritos como tambm necessrio se obter um maior entendimento

    destes aspectos para poder realizar uma melhor interpretao do registro

    arqueolgico. Faremos breves anlises de alguns trabalhos onde aspectos de

    mitologias pretritas foram pesquisados atravs do registro arqueolgico.

    Tais trabalhos, pertencentes a pesquisadores brasileiros, abrem

    possibilidades de estudos mais aprofundados a respeito de mitologias

    pretritas.

    Comearemos pelo trabalho de Flavio Silva Faria e Maria da Conceio

    Beltro (2002), que analisam a arte rupestre da regio do municpio de

    Central, na Bahia e encontram alguns elementos que, segundo eles,

    referem-se a imagens de metamorfoses entre homem e animal. Tais imagens

    constituem os assim chamados Teriantropos, homens-fera que, no por

    acaso, so tambm encontrados em diversas mitologias de todo o mundo.

    No artigo intitulado A Transformao em Animal e a Representao do

    Felino no Registro Rupestre no Mdio So Francisco, publicado no nmero

    15 da revista CLIO (2002), os autores se utilizam de um aporte terico

    interdisciplinar que congrega elementos da neurologia, da psicologia, da

    antropologia e da arqueologia para explicar as imagens de teriantropos

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    MEGA, Orestes J.; MATOS, Lennon O.; MACHADO E SILVA , Antnio C. R. A. Arqueomitologia: uma breve introduo. Tessituras, Pelotas, v. 1, n. 1, p. 101-122, jul./dez. 2013.

    (classe de imagem rupestre onde aparecem traos antropomrficos e

    zoomrficos na mesma figura). Segundo os autores, tal tipo de imagem

    sugere a ocorrncia de estados alterados de conscincia, prtica comum nas

    culturas que possuem o xamanismo como fundamento. Tal tipo de

    abordagem bastante semelhante do arquelogo sul-africano Lewis-

    Williams. Entretanto, Faria e Beltro argumentam que se faz necessria

    uma maior contextualizao de tais imagens ao continente americano, pois,

    embora o xamanismo possa ser entendido como um fenmeno universal,

    existem variaes regionais e temporais no mesmo que permitem

    estabelecer um certo grau de regionalizao e periodizao. Assim, os

    diferentes tipos de xamanismos praticados no continente americano teriam

    caractersticas especficas que deveriam ser levadas em conta quando

    analisados. Desta forma, no artigo acima mencionado, procura-se entender

    os teriantropos da regio pesquisada (o mdio So Francisco, mais

    precisamente a regio de Serra Azul, prximo ao municpio de Central, na

    Bahia).

    Tendo como base uma crtica da assim chamada ponte neurobiolgica

    para o passado, meta das pesquisas de Lewis-Williams, Faria e Beltro

    argumentam que, apesar desta busca ter gerado uma abordagem valiosa

    para o entendimento de fenmenos mentais de populaes pretritas,

    principalmente por gerar uma: explicao da recorrncia de um certo

    padro grfico em diferentes provncias rupestres (FARIA e BELTRO,

    2002. p. 110), a mesma abordagem erra ao estabelecer uma ligao por

    demais direta, sem mediaes entre reao fisiolgica, imagstica e

    manifestao cultural (FARIA e BELTRO, 2002. p. 110). Assim, pode-se

    observar que h um intenso debate sobre como cada cultura humana

    interpreta um tipo de experincia de carter universal. A universalidade

    desta experincia defendida por autores como Jean Clottes e Lewis-

    Willians como sendo proveniente de uma necessidade compartilhada por

    toda a humanidade.

    Portanto, o trabalho de Faria e Beltro (2002) lana um novo olhar

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    MEGA, Orestes J.; MATOS, Lennon O.; MACHADO E SILVA , Antnio C. R. A. Arqueomitologia: uma breve introduo. Tessituras, Pelotas, v. 1, n. 1, p. 101-122, jul./dez. 2013.

    sobre a questo ao pensar esta tendncia universal do sistema nervoso

    humano como sendo passvel de uma interferncia cultural mais forte do

    que a pensada por Lewis-Williams e Jean Clottes. Desta forma, Faria e

    Beltro chamam a ateno para as especificidades do continente americano

    no que concerne ao papel desempenhado pelo jaguar nas diversas mitologias

    indgenas.

    Com este propsito, os autores apresentam uma longa lista de estudos

    etnogrficos relacionados s vises extticas envolvendo a transformao em

    animal. Tal lista engloba povos como os Tukno e os Siona, que habitam a

    Amaznia ocidental (FARIA e BELTRO, 2002. p. 114). Esta lista tem como

    objetivo demonstrar o quanto culturas diferentes, mas que compartilham de

    um mesmo ambiente, principalmente que contenham a mesma fauna ou

    fauna similar, elegem certos elementos deste ambiente como expresses

    simblicas de suas vises extticas. Nestes casos, o jaguar, grande felino que

    habita a Amrica do Sul, e que est no topo da cadeia alimentar, possui

    fortes atrativos simblicos que transcendem diferenas culturais. O jaguar

    um animal muito presente nas mitologias de diversos povos indgenas

    brasileiros (como os do Xingu), onde exerce papel importante.

    Portanto, na viso de Faria e Beltro (2002), povos de outros

    ambientes, relacionados com outras faunas, elegeriam elementos de seus

    respectivos ambientes como expresso simblica de contedos inconscientes.

    Desta forma, os autores salientam a importncia de contextualizao de

    toda pesquisa que tenha o imaginrio mtico como tema central.

    Ainda no cenrio do continente americano se encontra o trabalho de

    Denise Schaan intitulado O Imaginrio Coletivo na Cultura Marajoara

    (2006), que, por sua vez, faz parte de uma coletnea de artigos denominada

    Terra Brasilis: Pr-Histria e arqueologia da Psique (2006), organizada

    pelos psiclogos junguianos Marcos Callia e Marcos Fleury de Oliveira.

    Neste artigo a autora faz uma anlise simblica da iconografia da cermica

    marajoara. A este respeito, a autora afirma que a utilidade da cermica

    marajoara: residia justamente em seu contedo simblico, na sua

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    capacidade de materializar cosmologias e mitologias, tornando permanentes

    e visveis as ideias e conceitos compartilhados pelo grupo (SCHAAN, 2006.

    p. 39).

    Este trecho destaca a possibilidade de se alcanar aspectos da

    mitologia de populaes pretritas atravs do registro arqueolgico mesmo

    sem a contribuio de registros escritos.

    No mesmo artigo, a autora afirma que: tanto a forma de alguns objetos

    de cermica como sua decorao mostram que a inspirao que os produziu

    tinha origem em estados onricos ou de transes alucingenos (SCHAAN,

    2006. p. 39). Tal afirmao de grande importncia pois demonstra a

    possibilidade de se alcanar aspectos imateriais de culturas pretritas de

    grande profundidade psicolgica, como os sonhos e estados alucingenos,

    atravs de artefatos arqueolgicos. Tal possibilidade se baseia numa

    concepo terica, defendida pelos organizadores da coletnea onde o artigo

    de Schann foi publicado, de que toda a humanidade compartilha de padres

    inconscientes comuns, sendo possvel reconhecer estes padres de diversas

    formas, sendo uma delas a materializao que povos pretritos realizaram

    destes padres mesmo no passado distante. J mencionamos anteriormente

    a teoria de Carl Gustav Jung sobre os arqutipos e aqui ela reaparece, pois a

    coletnea Terra Brasilis organizada por psiclogos defensores de tal

    abordagem.

    Tambm trabalhando no cenrio amaznico, a arqueloga Denise

    Gomes, no artigo, A Cermica Santarm e seus Smbolos (2006), artigo este

    tambm publicado na coletnea Terra Brasilis: Pr-Histria e arqueologia

    da Psique, pesquisa o registro arqueolgico da Amaznia atravs de uma

    abordagem que contempla aspectos mitolgicos das populaes pretritas.

    Neste artigo a autora traa um panorama das pesquisas arqueolgicas

    realizadas na regio de Santarm, estado do Par. Em Santarm foram

    encontrados muitos stios contendo vestgios cermicos que carregavam

    indcios de uma antiga mitologia. Segundo Denise Gomes:

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    Tessituras

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    Diferentemente de outras culturas amaznicas, que

    privilegiam a decorao geomtrica e os crescentes processos

    de estilizao, a cermica Santarm destaca-se pela

    composio de formas elaboradas e representaes bastante

    naturalistas, tridimensionais de seres humanos, animais,

    figuras antropomorfizadas, alm de seres mticos, ainda hoje

    presentes nas cosmologias amerndias de grupos atuais

    (GOMES, 2006. p. 52).

    No mesmo artigo, a autora destaca que outros pesquisadores,

    trabalhando na mesma regio, tambm se aprofundaram na relao entre

    cultura material e mitologia.

    Autores como Earle (1997, apud GOMES, 2006) acreditam que a

    ideologia entre os cacicados seja caracterizada por sua materializao ou

    transformao de ideias, valores e mitos numa realidade fsica. Algumas

    anlises iconogrficas sobre as expresses simblicas das sociedades

    complexas amaznicas parecem partilhar dessa concepo. Uma variedade

    de representaes iconogrficas tem sido interpretada como forma de

    legitimao do poder de ancestrais, no caso das urnas e grandes estatuetas

    antropomorfas, ou ainda, quanto s representaes zoomorfas que dominam

    a maior parte dos estilos cermicos, como a materializao de mitos e

    crenas utilizados num contexto de intensificao de atividades cerimoniais

    durante o surgimento dos cacicados (GUAPINDAIA e SCHAAN, apud

    GOMES, 2006. p. 59).

    Os autores e autoras tratados acima no so os nicos a estudarem as

    relaes entre a cultura material e a mitologia de povos do passado.

    Contudo, esta mesma questo continua sendo extremamente delicada e

    pouco explorada.

    Consideraes Finais

    Um aspecto importante a ser lembrado e que constitui um elemento

    essencial para o entendimento do que vem a ser arqueomitologia que a

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    arqueologia sempre enfatizou o ser humano como um produtor de cultura

    material. Assim, os arquelogos foram treinados a ver as pessoas que

    viveram no passado como sendo produtores de ferramentas, construtores de

    edifcios, agricultores, caadores, etc. Com isso, relegou-se para segundo

    plano (e em alguns casos parece ter sido completamente esquecido) o fato de

    que os seres humanos foram, desde longa data, contadores de histrias. No

    podemos reduzir a humanidade a uma de suas dimenses, nos esquecendo

    das outras que so, no mnimo, igualmente importantes. dimenso do

    homo faber, isto , do homem fabricante de instrumentos, produtor de

    cultura material, objeto privilegiado da arqueologia tal como entendida pela

    maioria de seus praticantes, temos que unir a dimenso do homo mythicus,

    isto , o homem produtor (e produto) de mitos. E estas duas dimenses,

    embora possam parecer distantes uma da outra, possuem diversas pontes

    entre si, pontos de encontro entre o material e o imaterial. Toda vez que um

    mito recebe alguma forma material, seja ela sob a forma de arte rupestre,

    objetos rituais, sepultamentos, templos, etc., se d a unio destas duas

    dimenses da vida humana. A pesquisa arqueomitolgica tem por principal

    objetivo estabelecer estas pontes entre o homo faber e o homo mythicus.

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