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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
ARQUITETURA CORPO-A-CORPO: NOTAS A PARTIR DE LINA BO BARDI
Diego Pontes1
Resumo: Partindo do reconhecimento dos impactos suscitados pelas intervenções e rupturas estéticas promovidas pelo
feminismo em sua pontual crítica aos ideais artísticos burgueses e masculinos, onde por meio da desconstrução de
discursos e práticas naturalizadas e contadas pela “história oficial” da arte, podemos então passar a apreendê-la pela
imbricação de diversas relações, pressões e limites, fazendo evocar as dinâmicas de criação, parcerias, produção,
recepção, consumo cultural, regimes de representações e significados (Pollock, 2003). Desse modo, este trabalho
propõe a tessitura de um olhar que elucide as mulheres na produção artística modernista no Brasil a partir da crítica
feminista à história da arte (Couto, 2008), entendendo-a enquanto prática política e também como forma de construção
de conhecimento epistemológico que possibilita que sejam repensadas as representações assimétricas das relações de
gênero nos panteões das artes. Para tanto, quando pensamos os nomes de destaque da arquitetura modernista no Brasil,
nos remetemos a renomados homens como Oscar Niemeyer, Lucio Costa e Afonso Reidy. Com isso, pela história da
arte recriada pelo feminismo e pela denúncia ao sexismo que envolve o “mundo das artes”, abre-se espaço a reflexões a
respeito da trajetória pessoal, política e metodológica da arquiteta Lina Bo Bardi por um caminho que considere as
questões de gênero e as parcerias e relações sociais em que a arquiteta estava inserida no decurso de sua carreira.
Palavras-chave: Arquitetura. Gênero. Lina Bo Bardi.
“No fundo, vejo a arquitetura como
serviço coletivo e como poesia”
Lina Bo Bardi
Renomada pela projeção de destacadas obras arquitetônicas como o Museu de Arte de São
Paulo (MASP), o SESC Pompéia, a Casa de Vidro do Morumbi-SP e o Museu de Arte Moderna da
Bahia (MAMB), a arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi (Acchilina di Enrico Bo) consolidou-se
como um importante nome da arquitetura moderna no Brasil, para onde se mudou com seu marido,
Pietro Maria Bardi, em 1946.
Nascida em 1914, em Roma, e naturalizada brasileira em 1951, a trajetória profissional e
intelectual de Lina Bo Bardi, marcada por momentos de exclusão e prestígio em sua carreira,
especificamente no que diz respeito à produção do espaço político da arquitetura pela
experimentação de novas formas, tem sido vastamente pesquisada por estudos no campo da
Arquitetura e do Urbanismo, sobretudo os que têm se inclinado aos debates sobre modernismo no
Brasil e na América Latina. (OLIVEIRA, 2008).
Ademais, as lacunas presentes na produção acadêmica pela ausência de um aprofundamento
de questões que tragam a dimensão política, pessoal e subjetiva de sua trajetória, marcada pela
experiência da Segunda Guerra Mundial e resistência ao fascismo de Mussolini, e também pelo seu
1 Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais (UFSC). Mestre em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade
(PGAU/UFSC). Mestrando em Antropologia (UFPR). Curitiba/PR, Brasil.
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contato e convívio com figuras centrais do Modernismo italiano e brasileiro, assim como
pontualmente por sua atuação profissional em um cenário pouco aberto às mulheres como o campo
da arquitetura (Grinover, 2010; Rubino, 2010), mostram-se caminhos interessantes a serem
explorados, uma vez que as abordagens sobre Lina Bo Bardi acabam muitas vezes restritas às
análises de suas obras arquitetônicas.
A antropóloga Silvana Rubino (2010), ao trazer fragmentos da trajetória de Lina Bo Bardi,
elucida acerca das relações entre gênero e produção cultural discorrendo sobre momentos onde as
marcas de gênero destacam-se como marcadores sociais da diferença e colidem em um espaço
majoritariamente ocupado por homens e pelas formas que os representavam, tornando, dessa
maneira, possível a abertura de uma reflexão considerando as demarcações de gênero em sua
trajetória profissional notável pela experimentação e criação de novas formas e maneiras de pensar
a função social da arquitetura e do espaço urbano, assim como a atenção aos corpos, à convivência
urbana, e seus contornos históricos e culturais. Ao discorrer sobre sua trajetória, a autora nos conta
que,
Para se formar em arquitetura em Roma, Lina Bo apresentou como trabalho final de curso, um
hospital-maternidade de arquitetura moderna. Além da nota relativamente baixa, foi desqualificada
pelo diretor da escola, Marcello Piacentini, que teria dito que uma bella ragazza como ela
terminaria se casando, e portanto estaria fora do exercício da arquitetura. (RUBINO, 2010, p. 348)
A eminente violência pela desqualificação de seu trabalho e direta afronta misógina a seu
lugar de mulher, sinaliza a norma de gênero imperativa no “mundo” da arte/arquitetura/academia,
assim como as assimetrias políticas entre homens e mulheres na constituição destes espaços, o que
permite a abertura de um olhar onde os percalços de uma trajetória “bem-sucedida” e de
visibilidade possam, então, ser pensadas por um caminho que considere o resgate das histórias de
mulheres, que comumente têm o acesso negado a certos espaços de prestígio, como meio para
sugestão de novos pontos de partida, novas posições de olhares, de lugares de fala, e do
estranhamento de narrativas produzidas sobre as mulheres pela ótica modernista masculina tal como
se apresentava.
Os trabalhos de Lina Bo Bardi como pintora, artista plástica e cenógrafa, “ofuscados” por
pesquisas que destacam meramente seu reconhecimento por sua obra arquitetônica, são ainda pouco
pesquisados, como nos conta Oliveira (2008) pontuando que as parcerias com seu marido,
prestigiado jornalista e crítico de arte, “ainda não foram suficientemente avaliadas” e merecem
maior investimento analítico, podendo, desse modo, fazer emergir frutíferas reflexões e
preenchimentos de lacunas que argumentem sobre outras dimensões de sua carreira e dos lugares
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desiguais, “centrais” e prestigiados ocupados por homens e mulheres no Modernismo, e que
entendam ainda que, como nos conta Rubino (2010):
mais do que mulheres que ficaram à margem, aquelas que freqüentaram o centro de seus
respectivos campos podem dizer algo de novo a respeito da silenciosa divisão de trabalho por
gênero no interior da prática arquitetônica do século XX, assim como revelar um modernismo no
feminino. (RUBINO, 2010, p. 333)
Na pista destas considerações, outros possíveis olhares para a obra de Lina Bo Bardi, que
não especificamente focado à forma arquitetônica, podem ser pensados a partir de questionamentos
a respeito de sua trajetória, como destaca Rubino ao discorrer a partir da fotografia em que Lina
posa “anônima” sentada apresentando seu corpo como medida ergométrica para uma cadeira
projetada por ela mesma, em um contexto em que cadeiras eram produzidas para escritórios aos
moldes do “novo” homem moderno. (RUBINO, 2010)
Com as devidas ressalvas contextuais, a autora pontua ainda aproximações entre as
trajetórias diversificadas de Lina Bo Bardi e da designer francesa Charlotte Perriand, que em 1929
também havia, “anonimamente”, posado em uma cadeira projetada por ela própria, onde a autora,
na esteira dessa discussão, narra episódios que nos mostram as marcas de gênero colidindo com um
cenário dominado por homens e onde mulheres não eram bem-vindas: o episódio citado acima
vivenciado por Lina Bo Bardi em sua defesa monográfica de graduação, e o que Perriand ouvira de
Le Corbusier quando foi até seu ateliê, em Paris, em busca de trabalho: “aqui não bordamos
almofadas”. (RUBINO, 2010, p. 334)
Charlotte Perriand – 1929 – Fonte: RUBINO, 2010
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Cadeira Bowl Lina Bo Bardi – 1951 – Fonte: Internet
Lina, “anônima”, posando em sua cadeira. – 1951 – Fonte: Internet
Em diálogo com Mary McLeod e Vania Carneiro de Carvalho, Rubino (2010) chama
particular atenção para a ideia de “corpo como medida” pelas posições “atípicas” de Bardi e
Perriand a partir das regras encontradas em manuais de etiqueta um pouco anteriores à fotografia da
designer francesa. Como discutido por Carvalho, os manuais davam especial atenção às posições
dos pés e pernas femininas, e na medida em que as fotografias apontam para um embaralhar de
lugares e gestos generificados, desdobram-se, assim, em um apontamento para a própria presença
do corpo em desenhos técnicos e industriais sobre arquitetura, em croquis e interiores, “onde o
elemento humano é totalmente ausente”, nos mostrando, com isso, um cenário de (re)desenhos da
casa e do espaço doméstico, dos interiores, e da própria escrita sobre a modernidade, o modernismo,
e a arquitetura e pintura das relações de gênero.
Segundo o diálogo travado por Rubino (2010), especificamente a respeito das fotografias
destacadas acima, as pernas cruzadas, os pés, o livro, o ato de sentar, o “anonimato”, as formas e
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posições confortáveis e em repouso, se apresentam como elementos “socialmente significativos”
capazes de “borrar as fronteiras entre gêneros”. (RUBINO, 2010, p. 360)
Dificilmente as fotos de arquitetura desse período mostram pessoas nos projetos construídos,
mostram usos. Mesmo nos espaços domésticos, salas e cozinhas parecem passíveis de ocupação,
ainda que dificilmente uma figura humana apareça sugerindo como fazê-lo. Nos desenhos
técnicos, o elemento humano é totalmente ausente, e nos croquis aparecem para dar sentido de
proporção, a conhecida “escala humana”. [...] Elas usaram corpos, seus corpos, como medida para
um móvel que elas redesenharam e que até então era classificado como um móvel masculino. A
cadeira Surrepos que pode ter servido de modelo para a chaise-longue tinha seu uso demonstrado
por um homem e suas primeiras cadeiras, como já foi dito, foram inspiradas em cadeiras de
escritório. Vania Carneiro de Carvalho mostra como poltronas são parte dos espaços masculinos
da casa, em oposição aos sofás, exatamente porque as primeiras permitiam apenas uma pessoa
sentada, o homem da casa, compenetrado ou se recuperando do trabalho no ambiente exterior, em
oposição ao sofá, cujas qualidades eram mostradas com uma mulher ali sentada com sua prole.
Lina Bo Bardi jamais desenhou um sofá e não havia um na Casa de Vidro, embora um croqui
mostrasse um móvel ou um degrau na sala onde estão sentados ela – de calças compridas –, Bardi,
uma terceira figura masculina e um gato. Estariam nessas fotos, Lina e Charlotte tomando posse do
móvel destinado ao homem, o repouso que remete ao trabalho no espaço público, revertendo a
teatralidade do espaço doméstico, propondo uma nova? [...] Elas se deixaram fotografar entregues
ao conforto repousante de suas cadeiras, ou ao enredo de um livro em uma foto onde não temos
sequer o rosto das leitoras. Não há rigidez muscular nas pernas de Lina e Charlotte, como
convinha (convém?) às mulheres. (RUBINO, 2010, p. 357-358)
Dito isso, os lugares percorridos por mulheres por estes espaços e a retomada de suas
histórias, “nos convida a observar as obras, a procurar nelas as tensões de gênero que marcaram
suas trajetórias, que, tudo parece indicar, conferiu às mulheres um lugar no menos valorizado
espaço doméstico e no âmbito das chamadas artes menores” (Rubino, 2010, p. 360), permitindo,
assim, a possibilidade de (re)escrita de uma historiografia sobre culturas urbanas modernas por
meio do olhar de uma mulher que, no caso de Lina, além de produzir uma reflexão crítica sobre o
papel político da arquitetura e da convivência urbana, nos revela ainda os percalços por uma “cena
intelectual que mostra, pouco a pouco, que houve vários modernismos”. (RUBINO, 2010, p. 360)
A respeito da produção de Lina Bo Bardi, que muitas vezes encontra-se esparsa ou mesmo
inacessível, segundo Rubino e Grinover (2011), pelos textos escolhidos de Lina Bo Bardi, torna-se
possível notar que seus escritos falam da convivência e das interações, de memórias e cultura
popular, de utopias e “homens livres”, assim como da possibilidade de uma arquitetura corpo-a-
corpo, onde no segundo pós-guerra passara, então, a manifestar “mais interesse pela madeira [e pelo
vernacular] do que pela industrialização e por cadeiras de metal.”. (RUBINO, 2010, p. 359)
Uma trajetória que percorria o design industrial, a arte popular/vernacular, a museografia, o
patrimônio, e também o teatro, o cinema e a edição de revistas, construindo, com isso, uma opinião
pública crítica na formação e reflexão sobre a cultura urbana nacional, tocando em pontos relativos
à modernidade e a convivência em espaços públicos, e contribuindo, dessa forma, para qualificar e
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também divulgar a arte e a arquitetura no Brasil, assim como com a discussão no campo da
arquitetura sobre o espaço urbano para além das formas. (RUBINO; GRINOVER, 2011)
Desse modo, o caráter metodológico do exercício da arquitetura e das formas de Lina Bo
Bardi, fortemente marcado pela ideia de “presente histórico” e pela “prática social intrínseca ao
projeto”, se orienta por um método que vai além da dimensão meramente morfológica, inclina-se ao
popular e vernacular, apresentando-se, assim, como um diferencial em sua maneira de projeção e
criação de novas formas e olhares para patrimônio, a cidade, os corpos e os usos da arquitetura, nos
fornecendo pistas para pensar as peculiaridades e (des)continuidades de contextos sociais e
históricos específicos de distintas culturas urbanas e de uma ideia universalizada de “modernidade”.
Josep Maria Montaner (1997), refletindo sobre La modernidade superada: arquitetura, arte
y pensamiento del siglo XX, narra as transformações ocorridas em finais do século XIX e início do
XX que refletiram a diluição de tradicionais representações da realidade e buscas por novas formas
de expressão no “mundo das máquinas” e das formas geométricas à la Bauhaus, e destaca Lina Bo
Bardi como importante nome na construção de uma crítica a noção “oficial” de modernidade e de
uma arquitetura positivista.
Inserida em um contexto de estímulos a uma produção artística e arquitetônica voltada ao
progresso, aos avanços tecnológicos, e a produção do espaço métrico, e ainda assim pontuando
críticas a tais preceitos, Lina Bo Bardi que, ainda sem romper com os princípios básicos de
objetividade, racionalidade e funcionalidade, propunha uma experimentação corpo-a-corpo com a
realidade, superando as imposições lógicas e os limites da arte/arquitetura moderna, acrescentado,
com isso, toques poéticos, irracionais e irrepetíveis às novas formas. (MONTANER, 1997)
Lina Bo Bardi, por meio da proposta de um envolvimento corpo-a-corpo com o entorno e o
“presente histórico”, oferecia alternativa às regras vanguardistas repensando a ideia de modernidade
universal e indo de encontro à noção de arquitetura vernacular, que, aliás, expressa um caminho
específico na constituição da arquitetura latino-americana, como também descreveu Marina
Waisman (2013) ao analisar as conexões entre modernidade e arte popular e tradicional na América
Latina pela sua historiografia arquitetônica.
Com isso, os efeitos produzidos por reflexões que abordem outras dimensões de Lina Bo
Bardi, sobretudo a respeito do contexto social e político no qual estava inserida, podem fazer
emergir novos caminhos, olhares, questionamentos e percepções a seu respeito e à historiografia da
arte e da arquitetura, assim como às narrativas produzidas a respeito das mulheres, onde pela
atenção à questão de gênero como um marcador social da diferença em seus panteões, podemos, por
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este caminho, pensar sobre as ambivalentes relações das mulheres com a Modernidade e o
modernismo brasileiro e latino-americano em seus distintos e específicos contextos culturais.
Por este caminho, podemos então pensar e estranhar que quando nos perguntamos sobre os
“grandes nomes” da arquitetura modernista no Brasil, nos remetemos a prestigiados homens como
Oscar Niemeyer, Lucio Costa e Afonso Reidy, e, pela história da arte recriada pelo feminismo e
pela denuncia ao sexismo que envolve o “mundo das artes”, mostra-se necessária à retomada de
lacunas e abordagens rasas a respeito da trajetória pessoal e intelectual de Lina Bo Bardi (e de
outras mulheres “esquecidas”), abrindo, assim, espaço a uma olhar interseccional como
possibilidade de exercício de uma prática científica que dê voz aos sujeitos invisibilizados, e que
permita a escrita de histórias outras, onde se reconheça que a constituição da ciência e da arte vai
além do glamour da história positivista e modernista. (SPIVAK, 2010)
Casa de Vidro do Morumbi, São Paulo – Lina Bo Bardi – Fonte: Internet
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Equipe do Concurso do Anhangabaú - Francisco Fanucci, André Vainer, Lina Bo Bardi, Marcelo Ferraz, Paulo
Fecarotta, Guilherme Paoliello, Bel Paoliello, Marcelo Suzuki e Ucho Carvalho. Fonte: FERRAZ, Marcelo Carvalho.
Lina Bo Bardi. Instituto Lina Bo e P. M Bardi.
Atravessamentos sob a ótica de gênero
A tessitura de um olhar que reconheça e resgate as mulheres na produção artística
modernista no Brasil a partir da crítica feminista à história “oficial” da arte, implica na consideração
desta enquanto prática social e política, assim como forma de construção de conhecimento
epistemológico que possibilita que sejam repensados os processos de criação, representação,
produção, recepção e consumo cultural, contados pela historiografia “legítima” da arte.
(POLLOCK, 2003; COUTO, 2008)
O reconhecimento dos impactos suscitados pelas intervenções e rupturas estéticas
promovidas pelo feminismo e pela crítica aos ideais artísticos burgueses e masculinos, fazendo com
que por meio da desconstrução de discursos e práticas naturalizadas e essencializadas sobre as
mulheres e os corpos, passando, com isso, a serem apreendidas em seu contexto e pela constituição
de diversas relações, determinações, pressões, limites e resistências, fazendo, então, evocar as
dinâmicas de produção, crítica, mecenato, influências, parcerias, mercado, regimes de
representações e significados.
As relações entre modernismo, modernidade e espaços de feminilidade, discutidas por
Pollock (2013), recompõem uma crítica a uma história da arte que vai celebrar uma gama de
práticas generificadas e, ao passo que pinta as formas de recreação burguesa sob uma ótima
pontualmente situada, narra as assimetrias históricas e sociais entre homens e mulheres
questionando, pela crítica feminista, como estas podiam então experimentar a modernidade tal
como ela se definia.
Podemos, a partir disso, perceber que ao recuperar histórias e dados de mulheres artistas
abafadas pela historiografia “oficial”, permite-se que os meios de acesso diferenciados ao espaço
público e à profissionalização artística, assim como a forma pela qual as mulheres eram pintadas
por homens, possam ser apreendidas não mais de maneira essencializada, mas sim pela
contextualização de uma estrutura social que coloca homens e mulheres em posições desiguais.
(CLARK, 2007)
Desse modo, distendendo estas ideias em dobras reflexivas a respeito do modernismo e das
relações de gênero no contexto brasileiro, Maria de Fátima Morethy Couto (2008) ao refletir sobre o
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“confronto” entre Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, mulheres que ficaram consagradas como
importantes nomes da arte modernista no Brasil, pontua que:
Seu caso [o de Anita Malfatti] contrasta com o de dezenas de mulheres que expuseram suas obras
nos salões oficiais ao longo do século XIX e XX e durante as primeiras décadas do século XX.
Tais artistas parecem jamais ter existido, não possuem e não pertencem à história: seus nomes e
trajetórias são desconhecidos: suas obras são ignoradas e apenas muito esporadicamente
encontram-se presentes em exposições e em acervos de museus, os estudos sobre elas são exíguos.
Donas de um talento rapidamente reconhecido como ‘forte e original’, que violava os padrões
estabelecidos da chamada ‘produção feminina’ - “obra de moças prendadas que se dedicam à
pintura por passatempo ou para aplicá-la às almofadas de seda e aos vasos de barro” - Anita,
primeiramente, e Tarsila, em seguida, atraíram para si a atenção e o apoio de um grupo de críticos
e homens de letras que lançou as bases do debate em torno da arte moderna no Brasil. (COUTO,
2008, p. 126)
Como nos mostra a autora, as parcerias e relações que essas artistas estavam envolvidas
podem ser entendidas pelas condições que possibilitaram que esses nomes se estabelecessem como
símbolos do modernismo no Brasil. Claro que isso não implica questionar a “validade” e
legitimidade de suas obras, mas nos permite pensar a respeito das condições sociais as quais
algumas mulheres estavam inseridas e as relações que traçavam a partir do contato que dispunham
com a academia, com a Europa e também com o movimento modernista.
A autora acentua que, no caso de Tarsila do Amaral, casada com Oswald de Andrade e
próxima aos influentes Paulo Prado e Olívia Guedes Penteado, destacados nomes da difusão do
movimento modernista em São Paulo, possibilitando o entendimento de que estes “foram fatores
igualmente decisivos para que ela estabelecesse as bases de seu novo vocabulário plástico,
incorporando preceitos da vanguarda cubista”. (COUTO, 2009)
Segundo Couto (2009), o retorno de Anita Malfatti à Europa em 1923, em virtude à bolsa de
estudos concedida pelo Pensionato do Estado de São Paulo e por intermédio de influentes nomes da
arte paulista como Mário de Andrade e o senador Freitas Valle, assim como o convívio de Tarsila
do Amaral com prestigiados nomes do “mundo das artes” parisienses podem, então, ser analisados
pelas condições que estas artistas dispunham e estavam inseridas a partir dos percalços de suas
trajetórias profissionais.
Os estigmas atribuídos à Anita Malfatti por suas “fragilidades afetivas” e a crítica que
recebera de Monteiro Lobato são questionados por Couto (2008) que, em diálogo com outr@s
historiador@s da arte, apontam para as discussões acerca do possível abalado de sua “vitalidade
nervosa” que, intimidada, teria recuado com suas formas e pretensões artísticas. Nas tramas desse
debate, em diálogo com Tadeu Chiarelli, Couto abre caminho a uma reflexão a respeito da
“polêmica” entre as artistas (Anita e Tarsila) pelo ponto de vista da desmistificação da figura de
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Anita Malfatti relacionada a uma suposta fraqueza emocional, insegurança e retraimento frente à
ascensão “da bela e aristocrática Tarsila”. Assim, Maria Couto (2008) questiona:
Mas estaríamos nós, mulheres, fadadas, por questões de gênero, a rivalidades em tais termos e a
misturar o campo pessoal e o profissional de forma tão emotiva? Dito de outro modo, poderíamos
utilizar esses mesmos parâmetros de análise para estudar a obra de pintores representativos de
nosso movimento modernista? Estabelecer, por exemplo, um confronto entre o “filho e neto de
modestos imigrantes italianos recém-instalados no interior paulista, coxo e de pequena estatura”
que foi Portinari e o boêmio Di Cavalcanti, confronto esse que explicasse suas idas e vindas no
campo artístico? Ou ainda entre o disciplinado e recatado Mário de Andrade e o irreverente
Oswald? (COUTO, 2008, p. 145- 146)
Cada uma a seu modo, a busca pela inserção dessas artistas no circuito artístico parisiense
nos anos de 1920, “valendo-se dos recursos (desiguais, de fato) de que dispunham”, permite, então,
um olhar sobre a relação de Anita com os postulados vanguardas do início do século, frisando, por
meio dessa discussão, a ideia da artista “como protagonista de sua própria vida, optando
conscientemente pelos rumos de sua trajetória artística, (…) e não como uma sensitiva
influenciável, sem vontade própria, incapaz de arbitrar sobre os caminhos de sua arte” (Couto, 2008
apud Chiarelli, 1995).
À guisa dessa discussão, Ana Paula C. Simioni (2008) pontua o “silêncio e esquecimento”
de mulheres artistas que tiveram ativa produção cultural e participação em exposições artísticas no
Brasil entre 1884 e 1922, e que foram invisibilizadas pela estética modernista masculina e “oficial”
que se impunha, visando, pelas elucidações destacadas, a retirada dessas mulheres do
“esquecimento coletivo” e sublinhar a importância do registro de suas histórias para a construção de
um outro olhar para a historiografia da arte brasileira.
O destaque à noção de “genialidade e excepcionalidade” atribuída às artistas por críticos e
historiadores da arte é elucidada por Simioni (2008) por meio das condições sociais, políticas e
sociais as quais estavam inseridas, possibilitando uma reflexão a respeito da exclusão de mulheres
pela “história oficial” da arte no Brasil e a atribuição da categoria de “amadoras” às que não
alcançariam o reconhecimento, os meios para “profissionalização”, e o prestígio.
O domínio masculino, imperativo no campo das artes e expresso na inferiorização das
mulheres pela sua classificação como “amadoras”, reflete, segundo a Simioni, marcas de valores
sociais e científicos que, por meio da crítica a ideia de arte feminina universal, abre espaço a um
olhar sobre “a feminilidade” na produção artística, passando a encará-la como “um discurso, uma
fala produzida histórica e socialmente que, em alguns momentos, serve para julgar, para classificar
e mesmo subjugar a produção feminina” (SIMIONI, 2008, p. 27).
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Simioni (2008) demonstra ainda que a classificação dessas mulheres enquanto artistas,
amadoras ou profissionais estariam, então, em intersecção e imbricada em outros marcadores
sociais da diferença, como “o nível educacional, a habilidade técnica, o capital social, as parcerias
afetivas, a sagacidade pessoal” (Simioni, 2008, p.26). Percebe-se, desse modo, que a visibilidade de
poucas, e, de maneira geral, invisibilidade, “esquecimento” e “inexistência” de mulheres
reconhecidas pela história oficial da arte, não estaria, dessa maneira, relacionada aos “talentos”,
“dons”, e “capacidades naturais”, mas às condições desiguais de acesso à educação artística, à
profissionalização, e às relações e diferenciações sociais que indelevelmente marcavam suas
trajetórias.
Assim, ao pensar os “espaços possíveis” no campo das artes plásticas no Brasil pré-
modernismo, Simioni nos leva a refletir acerca das condições de existência, mesmo que mínimas,
do exercício de ofícios profissionais de mulheres, questionando, no entanto, a respeito do restrito
acesso à educação artística e a exclusão das mulheres dos panteões das artes, mostrando, com isso, a
necessidade que sejam realizados estudos que tragam especificidades da realidade brasileira e das
hitórias de mulheres artistas pelas suas produções, biografias, e também pela conjuntura política e
parcerias travadas em suas carreiras, que seriam, então, fundamentais para maior entendimento
sobre suas trajetórias artísticas marcadas por condições desiguais de produção, acesso,
reconhecimento, visibilidade e profissionalização.
Referências
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Paulo: Editora Cosac Naify, 2011.
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americanos. São Paulo: Perspectiva, 2013
Hand-to-hand architectura: notes from Lina Bo Bardi
Abstract: Starting from the recognition of the interventions and aesthetic ruptures promoted by
feminism in punctual criticism of bourgeois and masculine artistic ideals, where through the
deconstruction of discourses and practices naturalized and told by the “official history” of art we
can apprehend it by imbrications (Pollock, 2003). In this paper, we will analyze the dynamics os
creation, partnerships, production, reception, cultural consumption, regimes of representations and
meanings. Thus, this article proposes the tessitura of a view that elucidates the women in the
modernist artistic production in Brazil from the feminist critique to the history of the art (Couto,
2008), understanding it as a political practice and also as a form of construction of epistemological
knowledge that makes it possible to rethink the asymmetrical representations of gender relations in
the pantheons of the arts. To do so, when we think os the prominent names of modernist
architecture in Brazil, we refer to men like Oscar Niemeyer, Lucio Costa and Afonso Reidy. Thus,
through the history of art recreated by feminism and the denunciation of sexism involving the
“world of the arts”, there is room for reflections on the personal, political and methodological
trajectory of architect Lina Bo Bardi on a path that considers the gender issues and the partnerships
and social relationships in which the architect was inserted in the course of her career.
Keywords: Architecture. Gender. Lina Bo Bardi