arte - cura em epidauro

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Cura em Epidauro A Jacques Axel, meu modelo de sapiência e de sagacidade Sozinho, esta manhã, apoiado numa arquibancada, saboreio o sol, já duas horas, no teatro de Epidauro. No solstício de inverno, o enxame de turistas, nova guerra, dá trégua. Paz no ar transparente, amarelo e azul. Silêncio. A paisagem espera os deuses, espera-os há dois mil anos. Silêncio. Os deuses vão descer, a cura advirá. As condições tácitas da exata acústica banham a imensa orelha, ponto de interrogação, visível de avião, no eixo do céu. Escuto, aguardo, no silêncio denso. Até os insetos, presentes em toda parte no mutismo do verão, dorme. O mundo diáfano ameniza o ruído turbulento do corpo. Vem a saúde, o silêncio dos órgãos. Caio doente quando os órgãos são ouvidos. Silêncio no grande teatro, na capital da cura. Já não se ouve o corpo, atirado aos deuses no pavilhão da imensa orelha. Quando o organismo não está calado, que voz ele faz ouvir? Nem voz, nem linguagem: a cenestesia emite ou recebe milhares de mensagens, comodidade, prazer, dor, mal-estar, satisfação, tensão, descontração, ruído sob a voz ou no berreiro. O dado do corpo interno geme ou canta sem a língua. Asclépio leva o sono dessas mensagens e sua lenta elisão. A saída do ruído cura, mais que o mergulho na linguagem. O silêncio no teatro e nas moitas ao redor entra na pele, banha e penetra, vibra, vazio, na cavidade da orelha nula. Dou ao mundo um lamento baixo, ele me concede sua imensa paz. Figura 1 Epidauro

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Arte - Cura Em Epidauro

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Cura em EpidauroA Jacques Axel, meu modelo de sapincia e de sagacidadeSozinho, esta manh, apoiado numa arquibancada, saboreio o sol, j duas horas, no teatro de Epidauro. No solstcio de inverno, o enxame de turistas, nova guerra, d trgua. Paz no ar transparente, amarelo e azul. Silncio. A paisagem espera os deuses, espera-os h dois mil anos. Silncio. Os deuses vo descer, a cura advir.Figura 1 Epidauro

As condies tcitas da exata acstica banham a imensa orelha, ponto de interrogao, visvel de avio, no eixo do cu. Escuto, aguardo, no silncio denso. At os insetos, presentes em toda parte no mutismo do vero, dorme. O mundo difano ameniza o rudo turbulento do corpo. Vem a sade, o silncio dos rgos. Caio doente quando os rgos so ouvidos. Silncio no grande teatro, na capital da cura. J no se ouve o corpo, atirado aos deuses no pavilho da imensa orelha. Quando o organismo no est calado, que voz ele faz ouvir? Nem voz, nem linguagem: a cenestesia emite ou recebe milhares de mensagens, comodidade, prazer, dor, mal-estar, satisfao, tenso, descontrao, rudo sob a voz ou no berreiro. O dado do corpo interno geme ou canta sem a lngua. Asclpio leva o sono dessas mensagens e sua lenta eliso. A sada do rudo cura, mais que o mergulho na linguagem.O silncio no teatro e nas moitas ao redor entra na pele, banha e penetra, vibra, vazio, na cavidade da orelha nula. Dou ao mundo um lamento baixo, ele me concede sua imensa paz.

BiografiaSERRES, Michel. OS CINCO SENTIDOS. Editora Bertrand Brasil. Rio de Janeiro, 2001