arte-política na margem

28
Terceira Margem Rio de Janeiro Número 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 15 ARTE-POLÍTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM 1 Manuel Antônio de Castro Jun Shimada Fábio Santana Pessanha André Lira Jun Shimada: A palavra poética, por ter, inevitavelmente, uma faceta semântica, nos permite a leitura da questão da verdade da obra, pertinente ou não, muitas vezes como uma verdade propositiva. Em que medida a questão se amplia quando se trata da música, linguagem sem proposição nem semântica? Antonio Jardim: Em medida nenhuma. A verdade, entendida como um movimento de desvelamento e velamento, não escolhe a melhor ma- neira de se enviar, mas está em envio constante. Talvez a única coisa que possa nos favorecer a questão da música nesse caso é que a música, na medida em que não é linguagem verbal, certamente dificulta uma abor- dagem verbal. Pelo menos não se vão cometer com a música os mesmos equívocos que se cometem, por exemplo, em relação à poesia ou à pintu- ra. A música não vai admitir e nunca admitiu, de maneira nenhuma, ser reduzida à expressão verbal. Quando se tenta fazer isso, o máximo que se tem é disponibilidade técnica, ou seja, o discurso técnico. A questão da verdade é acionada como a emergência do ser, é a questão do modo de presentificação do ser. A música não está fora disso, nem guarda para si uma especialidade nisso, se nós a olhamos desse modo. Se nós a olhásse- mos desde uma perspectiva representacional, aí talvez se tivesse como ver a ampliação que a música impõe, porque, com um olhar representacio- nal, não dá para falar de música. Música não representa; não tem como. Manuel Antônio de Castro: Como isso se dá em relação à política, pensando a música? Em relação à verdade política, em que política se pode falar? A música é arte política? Com a literatura facilmente se pode pedir engajamento político. Como isso acontece com a música?

Upload: ericooal

Post on 18-Aug-2015

216 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

revista terceira margem

TRANSCRIPT

Terceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 15ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM 1 Manuel Antnio de CastroJun ShimadaFbio Santana PessanhaAndr Lira Jun Shimada: A palavra potica, por ter, inevitavelmente, uma faceta semntica, nos permite a leitura da questo da verdade da obra, pertinente ouno,muitasvezescomoumaverdadepropositiva.Emquemedidaa questoseampliaquandosetratadamsica,linguagemsemproposio nem semntica?Antonio Jardim: Em medida nenhuma. A verdade, entendida como um movimento de desvelamento e velamento, no escolhe a melhor ma-neira de se enviar, mas est em envio constante. Talvez a nica coisa que possanosfavoreceraquestodamsicanessecasoqueamsica,na medida em que no linguagem verbal, certamente diculta uma abor-dagem verbal. Pelo menos no se vo cometer com a msica os mesmos equvocos que se cometem, por exemplo, em relao poesia ou pintu-ra. A msica no vai admitir e nunca admitiu, de maneira nenhuma, ser reduzida expresso verbal. Quando se tenta fazer isso, o mximo que se tem disponibilidade tcnica, ou seja, o discurso tcnico. A questo da verdade acionada como a emergncia do ser, a questo do modo de presenticao do ser. A msica no est fora disso, nem guarda para si uma especialidade nisso, se ns a olhamos desse modo. Se ns a olhsse-mos desde uma perspectiva representacional, a talvez se tivesse como ver a ampliao que a msica impe, porque, com um olhar representacio-nal, no d para falar de msica. Msica no representa; no tem como.Manuel Antnio de Castro: Como isso se d em relao poltica, pensando a msica? Em relao verdade poltica, em que poltica se pode falar? A msica arte poltica? Com a literatura facilmente se pode pedir engajamento poltico. Como isso acontece com a msica?ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM16 Terceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 Jardim: Sabemos que, modernamente, para o senso comum, msi-ca se converteu num eixo onde o texto ca agregado. Quando se tenta fazer qualquer abordagem representacional do sentido poltico da m-sica, voc v que a imbecilidade circundante, na verdade, vai privilegiar sempre o estudo do texto. assim que se vai dar acesso representa-o. Se quiserem exemplo disso s pensar acerca do valor que se d a determinados movimentos musicais onde nitidamente a nica coisa tomada em considerao o texto. A msica mesma, essa, ca de fora. No Brasil, tivemos muito isso na msica popular em determinados pe-rodos em que esta se tornou via de acesso de questes pseudopolticas ou mesmo pseudoestticas ou estetizantes. Quando msica msica sem estar relacionada ao texto, isso dife-rente do modo como msica msica, j que, com texto ou sem texto, a msica msica. Seu dimensionamento poltico vem de seu relacio-namento com a plis e no de uma provenincia interna sua. O fato de ter o texto no invalida a msica como msica, mas agrega msica a possibilidade de um texto que, nesse caso, e sempre ser msica. No hrepresentaoparaforadela.Ograndevciodaignorncia,que invencvel e onipotente, e, portanto, Deus, sempre tentar partir do que rumo a outro modo de ser, a um modo de ser que seja de alguma formadecodicadooupelomenosdecodicvel. Tantoquesepega literatura, se olha para ela, se identica uma possibilidade de sair da lite-ratura para entender, na verdade, o que a literatura tem de representao daquilo que real. A se abandona imediatamente o que literatura e se vai ver o que real. Esse o vcio. Por qu? Porque no se entende o que real, o que realizao, o que realidade. No se entende, so-bretudo, a diferena entre as trs instncias. Toda vez em que se fala que algum est fora da realidade... Em nove entre dez vezes, quando se fala de realidade, est se falando, de fato, de realizaes. preciso distinguir a realizao da realidade. No tem como se estar fora da realidade. Est se sempre dentro desta disponibilidade que o real conduz, pe, coloca, manifesta e onde o real , sempre, verdade. Seseentenderoquepoltica,queoquevocquerprovocar, no tem como a msica no ser poltica de alguma maneira. Porque a poltica um dos envios do real. A poltica um modo como o real se MANUEL ANTNIO DE CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E JUN SHIMADATerceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 17apresenta quando ele plis, ou seja, na dinmica de uma determinada organizao. O problema quando o real plis, quando ele travesti-do ou coberto por um invlucro que ns chamamos poltico. Na ver-dade, poltica a con-vivncia que estabelecemos em um determinado modo de organizar e ordenar o real. A poltica no a nica coisa do real. A msica uma coisa do real ao mesmo tempo em que a poltica uma coisa do real. O problema que, como acontece com a lingua-gem,porexemplo,dentretantasoutrascoisas,apolticapassouaser uma coisa de uma espessura muito pequena, ou seja, a poltica no tem densidade. Poltica , para o pensamento representativo e medocre, a participao poltica enquanto mera adeso ao lado esquerdo, ao lado direito, ao centro, ao meio, ao embaixo, ao em cima. E poltica, no meu entender, no isso. Poltica um modo de se estar na plis. O modo de se estar na plis que o denidor de poltica. A se pode dizer que o modo de estar na plis ganhou uma maneira especca que o modo poltico-partidrio.Sim,masahumareduodaplisaopoltico-partidrio. Tanto assim que se faz a distino entre esquerda e direita. Diga-se de passagem, distino esta cada dia mais difcil de ser feita. A esquerdaeadireitanosoopostas,nem,tampouco,contraditrias. Ou seja, eu no posso optar pela minha mo esquerda em detrimento da minha mo direita. Eu tenho uma mo esquerda e uma direita. No tenho que anular a esquerda para armar a direita, nem anular a direita paraarmaraesquerda.Quandoissovirapoltica,parecequesefaz na verdade uma lgica que to perversa quanto imbecil, porque a lgica adjetiva, aquela em que algum prope uma contradio que, na verdade, inveno barata. Acontradioquepoucoschegamacompreender,naverdade, aquelaquevigorosacomocondiodepossibilidadedoreal,no proposta; ela . Quando ela proposta, ela o a partir de envios com-pletamente ajuizantes, atributivos ou predicativos. Ento, se diz assim: talcoisacontratalcoisa.Est-sefazendojuzo.Quandosediz,por exemplo, que capital contra trabalho, isso uma contradio? uma contradio. uma contradio a partir do qu? A partir do momen-to em que o capital poder. No nem uma contradio a partir do momentoemquetrabalhotrabalho,porquehouvemuitotrabalho ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM18 Terceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 antesquenopdesercontraditadocomcapital,porquenohavia capitalismo.Emumapocaemquenocirculamoeda,emqueno se faz acmulo de capital, seja como moeda, seja como bem de uso ou valor de troca, no h uma tenso real entre trabalho e capital fora do capitalismo. A tenso trabalho e capital vai surgir na era do capitalismo, enquadrada em um determinado contexto histrico. Se acabar o con-textohistrico,acabaacontradio.Ora,quecontradioessaque acaba quando acaba o contexto histrico? O contexto histrico, ainda quesejarealnocapazdeesgot-lo.Essetipodecontradio,na verdade, uma falsa contradio. No uma contradio que, no meu linguajaratual,euchamariaumacontradiosubstantiva,masuma contradiocompletamenteadjetiva.Eadjetivoaclassegramatical mais vagabunda que podemos encontrar, precisamente porque admite a contradio formulada por interesses e no uma contradio advinda desde a vigncia e o vigor do real, como uma instaurao que maior que o homem. Ningum pode me dizer o contrrio de uma uva. O con-trrio da uva no a melancia nem um peido. No a melancia por-que grande, nem o peido porque gs. O contrrio da uva no existe, mas o contrrio da uva doce pode eventualmente existir: a uva amarga. Quandovocfazdapolticaisso,oquevocestfazendo?Voc est pegando a poltica e a adjetivando, ou seja, predicando, ajuizando. Ajuizando signica: o meu juzo melhor do que o seu. Para a direita, para a esquerda, para cima, para baixo, para fora. No tem jeito, porque o ajuizamento ajuizamento sempre com interesse. Mesmo que o in-teresse se coloque como o caminho, a verdade e a vida. Mesmo que ele seja a salvao. Ora, as religies fazem isso todo o tempo. Tanto que teve uma poca no Brasil em que tudo o que a esquerda fazia era bom, at que chegaram ao poder. A, se viu que a esquerda, como a direita, comoocentro,fazmerdadomesmojeito.Eatcumpreosmesmos projetospolticos,comoora,porexemplo,ameujuzo,aconteceno pas. H uma esquerda que cumpre um projeto neoliberal traado pelo governoanterior.Nadameconvencedequeessepartidoqueestno poder se elegeu para fazer outro programa que no o programa do go-verno anterior, ainda que com suaves e delicadas diferenas. O projeto no mudou. MANUEL ANTNIO DE CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E JUN SHIMADATerceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 19Pensar a poltica nesses termos pensar a poltica adjetiva, que o que se tem feito no mais das vezes. Pensar a poltica substantivamente d um pouco mais de trabalho. esse o equvoco que cometem muitas das pessoasengajadasemprojetospoltico-partidrios,aindaquetenham as melhores intenes possveis. que elas sempre acham, e pode ser o cara de direita ou de esquerda: eu sou o caminho, a verdade e a vida, eu vou trazer a soluo. No traz. Ou o famoso agora, sim, ou agora vai, sem medo de ser feliz. Sem medo de ser feliz um slogan que decepcionou muita gente. Ningum tem, nem nunca teve, medo de ser feliz.Omaisestranhodissoquenuncaningumprecisoudizerpra quem quer que seja no ter medo de ser feliz. S diz isso quem se julga muito enviado, desde uma ordem quase celestial. Voc no precisa disso para ser feliz, no precisa que algum te diga isso. Voc simplesmente feliz. Ou infeliz, como qualquer coisa que seja. Mas o slogan uma mar-ca que vocs podem procurar nos slogans partidrios de qualquer poca: nonazismo,nostalinismo,naditadurabrasileira,nasituaoatual, ou no Obama, ou no Bush, ou em qualquer um. Os slogans vo sempre dizermaisdoqueelesparecemdizereoperarmenosdoquepensam que podem. Sem medo de ser feliz quase que aconselhamento, um juzo: voc no precisa ter medo de ser feliz, vote em mim. Votaram. E agora d certo pavor. D pavor porque o projeto em curso um projeto que, se difere, difere muito residualmente do anterior. Isso dito no por mim, mas por muitos nativos do prprio projeto. Eles esto a dizendo isso o tempo todo: ai, meu Deus, e agora? A perplexidade se instalou. Ela j tinha tudo para ter se instalado antes, mas faltou sensibilidade. Sabeporqu?Porquemuitosgostamdeterosslogansparaseguir.A maioria gosta do pensamento arrumado. Ora, pensamento arrumado ordem e progresso, sistema. Talvez precisemos de um pouco mais de desordem e regresso para termos em vez de sistema para o pensamento um pouco mais de questes para pensar. por isso que quando se diz que fulano fascista, fulano nazista, fulano comunista, isso no faz diferena. Na verdade, tudo pronn-cia de juzo. E juzo vagabundo, juzo adjetivo, juzo sem-vergonha, juzo de quem no conhece aquilo que est ajuizando. Fulano isso, fulano no-sei-o-que-ano, fulano coisiano, quer dizer: o cara est ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM20 Terceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 olhando pelo ngulo errado, de baixo para cima, pelo rtulo anal. No d para fazer assim. Isso no pensamento; isso no srio. por isso quevoc,todavezquefazessetipodejuzo,estsemprenaiminn-cia de cair no ridculo. E cai. No d para fazer. Eu recuso os rtulos. No quer dizer que eu no os faa eventualmente, mas no seriamente. Colocar no papel que fulano nazista, fulano comunista, no-sei-o-qu, complicado. Para isso, seria preciso conhecer meandros, situaes e instncias polticas que, em geral, se ignoram solenemente. V-semuitoissoatortoeadireito.Temgentequegostadefa-zer esse tipo de discurso. o que eu digo: voc no pode julgar Marx porque ele comeu a empregada. Deixa o cara comer a empregada em paz. Ela teve um lho dele que o Engels teve que assumir para salvar o casamento dele. O lsofo Marx no pode estar sujeito a uma trepada mal ou bem dada. O Marx no pode ser julgado porque trepou com a empregada. Sob o ponto de vista de uma tica dessa ordem, o cara que condenalinhaspolticasvaiterquecondenaroMarxcomoumcara sem tica, sem moral, e de quem a gente no sabe o quanto se utilizou da sua prpria posio de patro para submeter uma pobre e desampa-rada empregada. D para fazer uma novela bem pegajosa com isso, mas, losocamente, seriamente, no para fazer. Isso, na verdade, boba-gem. O Marx que est vivo no o Marx que comeu a empregada, mas sim aquele que escreveu O capital e fez a anlise talvez mais profunda que se possa ter do sistema capitalista. No para jogar fora. Seno, va-mos jogar fora por moralismo. E para jogar fora por moralismo, a gente joga qualquer coisa fora.Andr Lira: uma tendncia muito comum ver as obras de arte tanto sombra de seu autor quanto dependentes de certa mensagem ou engajamento poltico.Comodeixarclaroqueissonosetrataapenasdeumaposio pessoal do Antonio Jardim ou de uma crtica losca que voc faz da lite-ratura? Como evidenciar de uma maneira terica a importncia de separar claramente essas diferentes instncias poltica, autoral, histrica, cultural? Jardim: Ningum nega a vigncia e o vigor dessas instncias todas. Noestouaquiparanegarqueocontextovaidizerdocontextopara tudoqueestnocontexto.Sevocperguntacomo,eucocomum pouco de medo de responder. Mas eu te digo certamente o seguinte: h MANUEL ANTNIO DE CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E JUN SHIMADATerceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 21um caminho possvel. H questes que preciso distinguir de forma a no se meter em determinadas confuses. Por exemplo: realizao e re-alidade. No d para confundir, porque isso decisivo em um encontro com qualquer manifestao de verdade. Signica: se se confunde reali-zao com realidade, e toda vez que se fala de realidade est se falando de realizao, faz-se um recorte da realidade que muito menor do que ela.Notemsada,nofazeressadistinofatal.Daliteratura,por exemplo,diz-sequeelaremeteparaumarealidade.Comoliteratura remete para uma determinada realidade se ela j realidade, se ela um constituidor primordial de realidade muito antes de a realidade passar pelos ltros por que passou ao longo da tradio ocidental toda? Como que literatura, ou pintura, ou poesia, ou msica, ou dana, como isso tudo pode ser representao do real se instaura uma nova modalidade de espao-temporalidade, aquela espao-temporalidade qual, aderido, voc se esquece do tempo cronolgico? voc, na frente de uma tela de cinema, sem saber mais h quanto tempo est vendo o lme. voc, comolivronamo,nosabermaishquantotempoestlendo. voc, num show ou recital de msica, parado, olhando e ouvindo aqui-lo e esquecendo que tem relgio. Voc olha para o relgio e diz: puxa, j passou tudo isso? ou no passou tudo isso? Na pea de teatro, se vocolhaparaorelgioporqueapeadeixoudeinstaurarespao-tempo. Se isso instaurao de espao-tempo, o que realidade fora de espao-tempo? Eu me pergunto isso porque no tenho como responder como que se pode pensar realidade fora de espao-tempo. No se precisa nem estu-dar muito. Basta ver o Kant, quando fala dos sintticos a priori. A priori dequalquercoisa,hespao-tempo.EmKant,jsesabiaque,forade espao e tempo, no h nada. Claro que diverge aqui ou acol o modo como se encara isso. Se a obra de arte foi sempre a instaurao de uma espao-temporalidade, ela no precisa, ela prescinde do que quer que seja de realidade externa a ela para viger e vigorar como espao-temporalidade. Se voc consegue fazer esse envio de dentro dela para fora dela, signica que voc jamais conseguiu entender o que uma obra de arte. Eu tive um colega professor na UERJ que dizia: se voc olha para um Kandinsky e no entende, porque voc j no entendeu o Da Vin-ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM22 Terceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 ci, porque est procurando no Kandinsky o que pensa que achou no Da Vinci. Assim, trabalha-se no eixo externo representacional. Pensa-se que se entende Da Vinci porque se acha que se v uma mulher que sorri e passa-se o resto da vida perguntando: ser que Monalisa sorriu, ou ser que Monalisa no sorriu? Como se isso fosse dar conta do que apintura.Ou:serqueCapitutraiuouserqueCapitunotraiu? Como se isso fosse dar conta da literatura. Esse neobobismo! essa a minha frase para isso neo, porque se atualiza todo dia. bobismo secular.acapacidadequesetemdeprocurarbobagemcomosolu-oparaumacoisaquenoumabobagem.Sobretudo,procura-se bobagem e soluciona-se com bobagem uma coisa que nem se capaz de entender como instaurao de tempo e espao. Isso acontece direto e no s na literatura. Estamos inundados por isso. Quando eu digo que no aguento mais bobagem, porque no aguento mais isto: dar umasoluosimplriaparaumacoisaqueinstauraodetempoe espao. No tenha dvida: Gabriel Garca Mrquez no levou cem anos para escrever Cem anos de solido. E ningum leva cem anos para ler (pa-rece incrvel, mas verdade). Ningum vai contar aquilo como tempo cronolgico; preciso que o leitor perceba cem anos, como ele sentiu para fazer. preciso viver cem anos, mas no os cem anos cronolgi-cos. So cem anos de tempo enico, de tempo vivido, e no de tempo medido. Se tempo fosse apenas medio... seria unidimensional e, cer-tamente, o tempo no o .No sei se te respondi, mas, primeiro, necessrio discutir realiza-o e realidade discutindo verdade, a obra de arte como instaurao de verdade. Como instaurao de verdade? a obra de arte como instaura-o de espao-tempo, ou seja, fazendo emergir uma modalidade de real que sem a obra de arte no haveria, que s pode haver com ela, e por isso ela sempre a exigncia de sua (dela) presena. Voc pode classic-la como romntica, clssica, neorromntica, neobobista, neocubista, o capeta, mas ela a presena dela em um modo de espao-tempo que ela instaura. por isso que quando voc vai a uma exposio, pode car na frente de um quadro por meia hora. Quando d tempo, porque nessas grandesexposiestemalgumatrsteempurrandoparavocandar rpido.MANUEL ANTNIO DE CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E JUN SHIMADATerceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 23Lira: Nessa questo de tentar encarar a arte (a vida?) como uma lin-guagemsubstantiva,eupensoemcomoascinciashumanasseressentem dequerersercincia,masdecertaformanopodemproduziramesma linguagemmatemtica.Oobjetoqueelasedispeaestudarnooferece ou no realiza todas essas possibilidades de representao. E h as relaes entre tcnica e poesia ou tcnica e poesis, no sentido de que a gente quer algoparamedir,agentequeralgopararepresentar,parapoderexplicar, para poder assegurar o domnio daquilo de que a gente est falando. Acho que a literatura vista como um discurso que tem que fazer meno quilo, ou conter aquilo, ou ter tal forma, enm. Tudo isso testemunha ainda um ressentimento e uma vontade de querer uma preciso, uma objetivao da-quilo com que lidamos, enquanto quando se faz arte, msica, poesia, no se assegura o potico pelo controle dos procedimentos.Jardim:Sefosseassim,vocseriapoetatododia,atsentadono vaso sanitrio. H uma coisa interessante que voc convoca na sua per-guntaequemepermitefalardeumassunto:atrocadacoisapelo suportedacoisa.Querdizer,oquepermiteamedidaeoqueenseja essa nsia de medir , na verdade, a gente ter trocado o ser pelo suporte. Por exemplo, voc no compra msica. Voc no pode comprar msi-ca. Voc compra um disco, a bolacha antigamente, agora voc compra o CD ou compra a partitura. E, toda vez que compra a partitura, ou crditos na internet, voc tem a sensao de que levou msica para casa. Vocreicaasuarelao,quenomeramentecoisal.Naverdade, ela coisal em outro sentido, mas ela no coisicante, coisicadora, unicamententica.Vocpegaumsuporteelevaparacasa,eeleest suportando o potico, que, na verdade, no potico, porque ele, em si, no pode ser potico, mas voc tem essa sensao. Tem-se a sensao de que se dono daquilo, de que se tem a propriedade daquilo. Se voc for, por exemplo, a Marx, que foi um grande pensador, ele falou disso tudo sobre o capitalismo. O capitalismo converteu tudo em mercadoria e ele percebeu isso tudo com uma sensibilidade extraordin-ria. Qual a tese fundamental disso tudo? A tese do Marx a seguinte: tudo,sobocapitalismo,caconvertidoemvalordetroca.Portanto, mercado livre. Ento, l em O capital, ele analisa a mercadoria. Quando o Marx pensa a obra de arte, que uma coisa muito fragmentria no seu ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM24 Terceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 pensamento, ele tem certo pudor, que os marxistas, infelizmente, no herdaram. Por que ele tem pudor? Como calculado o valor no capitalismo? Ele descobre: pelo tem-po de trabalho necessrio. Temos duas canetas. Se algum que fez uma levou trs horas para fazer, e quem fez essa outra levou duas, o tempo de trabalho socialmente necessrio para produo de canetas de duas horas e meia. O Marx percebe isso: voc calcula o valor do tempo, no capitalismo, e o tempo tem valor. O tempo a medida do valor econ-mico, porque em cima desse valor que se vai calcular no s o valor doobjetoproduzidocomoovalordotrabalho,quesevaiestipular mais-valia, fazer-se o lucro, e tudo isso em cima do tempo de trabalho socialmente necessrio. Isso vale? Vale. Sob o ponto de vista do processo industrial de produo, vale. Quanto mais industrial a produo, mais vale, porque mais ela est acionada como produo industrial a partir da mquina-ferramenta, que algo que o homem interpe entre ele e amatria-primacomaqualeletrabalha.Seessamquina-ferramenta tem uma rotina de produo, os donos dos meios de produo sabem calcular direitinho de quanto tempo social eles precisam para produzir 50milparesdesapato,eestabelecerovalordosparesdesapatosem nenhum problema. medida. Quando se chega obra de arte, no d, e o Marx diz que no d. Por qu? No se pode calcular o tempo de trabalho socialmente necessrio para a produo de sinfonias, ou para a produo de poemas, ou para a produo de romances; no possvel saber porque isso no calcu-lvel. O Rilke fez as Elegias de Duno em um intervalo estimado de dez anos da vida dele. Esse tempo caro se voc for calcular. No tem valor de tempo social que possa ser medido da. Mas, a, o que o capitalismo articula de forma genial? Ele no calcula mais o valor do tempo que o Rilke levou para produzir as Elegias de Duno, calcula o valor do tempo para se produzir o livro. Na verdade, se faz uma reverso, em que o valor o valor do livro, objeto, mas no o valor do que est dentro do livro, porque esse valor inestimvel, por pior que seja. Se ele for o pior livro do mundo, o valor inestimvel. Voc no pode calcular o valor desse trabalho que est aqui, por mais horroroso que voc possa achar que ele . Como no se pode calcular esse tipo de valor, o suporte vem e voc MANUEL ANTNIO DE CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E JUN SHIMADATerceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 25calcula o valor do suporte. por a que se capaz de calcular o valor do disco, o valor do CD, o valor do MP3, o valor que voc quiser, para falar de msica. Para a literatura, calcula-se o valor do livro. Calcula-se o tempo de televiso, por exemplo, que um suporte. E quanto mais essesuportefortransitvelezerdoseutrajetoumaculturamacia, maisvalordemercadotem.Em1979eupubliqueiumtextoescrito em parceria com meu amigo Nestor de Hollanda Cavalcanti, onde ns mostramos como esse processo se d na produo musical.Por que voc acha que um jogador de futebol ganha quatrocentos mil reais por ms? Porque ele d um lucro para a mdia que certamente cinquenta, cem, um milho de vezes mais do que aquilo que se paga a ele. No tenha dvida nenhuma, ele no ganha muito. Ele ganha muito quando ns nos comparamos com ele. Ele ganha pouqussimo perto do que se fatura em cima dele. E isso vira lei de mercado. Quem tem cons-cinciadissooempresrio,quecertamentenojogadinheirofora. Agora se diz que no futebol no h mais passe e o jogador livre. Livre coisa nenhuma. O jogador livre para vender a sua fora de trabalho. No livre para coisa nenhuma alm disso. Por outro lado, s vezes, pela sensibilidade, a pessoa tem intuies interessantes; por exemplo, esse jogador que veio agora do Inter de Mi-lo para o Urubu diz que preferia morar na favela a morar em Milo. Apesar de ser urubu, e, portanto, um bicho abominvel, legal ver isso. O cara no perdeu a origem. Ele sente falta de andar descalo na favela. Qualquer pessoa pode sentir falta da sua origem. Eumelembrodeoutroexemplo:humtempoeuorienteiuma dissertao de mestrado no Conservatrio Brasileiro de Msica. A mes-trandafoifazerumainvestigaoemumacidadedaBahiachamada Correntina, para falar de Folia de Reis. Ela ia para l, se metia na festa e fazia folia de reis todo ano para investigar, fazer etnograa... Um dia, ela vem para uma dessas sesses espritas de orientao que eu algumas vezes promovo e diz assim: Antonio, eu descobri uma coisa interessan-tssima em Correntina nessa vez que eu fui. Voc sabe que o palhao da folia de reis sempre o mesmo? E sabe quem ele? Ele um camarada que mora em So Paulo, um yuppie, um testa de ferro de multinacio-nal, um cara bem-sucedido, tem uma grana. Ele devia ganhar na poca ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM26 Terceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 o que seriam hoje por volta de cem mil reais, me disse ela ento. Ele saiu de Correntina, foi para So Paulo, virou gerente de uma multina-cional. Agora, todo ano ele vem para a Folia de Reis para virar palhao, que um negcio extraordinrio. Ele vem representar, ela disse para mim, o palhao. Eu digo: No! Ele vai a So Paulo representar. Ele opalhao.NadajusticaavoltadeleaCorrentinaquenosejao fato de ele ser aquilo, ou seja, de ele sentir falta de sua prpria origem. Ele representa quando gerente da multinacional; l ele representa um papel para poder se manter vivo em um jogo de comodidades como a gente vive no nosso tempo. Mas ele , efetivamente, o palhao da Folia de Reis. Ele tem um prprio. Isso se chama a densidade do prprio. Tanto que isso foi para o ttulo da dissertao dela: A densidade do pr-prio na Folia de Reis de Correntina, da Andra Lusa de Oliveira Teixeira. Mudou completamente a dissertao e a partir da ela comeou a falar de densidade do prprio, que exatamente o que eu estou falando em relao ao jogador de futebol, quando este descobre sua relao com sua origem, o que cada dia mais difcil. Sealgumolhaparansedizquensvamosmoraramanhem Como,nabeiradoLagodeComo,emumcasaro,comquinhentos serviais que vo te servir na hora que voc quiser... Quando voc esta-lar os dedos, uma mulher vem e voc come se estiver com vontade. Se no estiver com vontade, come frango mesmo, que tambm serve. Mos-traessequadroparaohomemmdionoBrasil:Vocquerissopara voc?Qualquerumdiz:Eusonhocomissoaminhavidainteira. Todo mundo sonha com isso. Todo mundo, no, porque eu no sonho. Atraente, portanto, sob o ponto de vista do que seja ser bem-sucedido nessamodalidadedearticulaosocial.Ojogadorchegaedizassim: Estouentediadocomisso,querovoltarfavelaCruzeiroparaandar descalo e conversar com meus amigos. Acho legal. Porque o que fala a densidade do prprio. Pode acontecer. difcil, mas pode acontecer. a mesma coisa que voc est me perguntando. Esse emaranhado da tcnica, na verdade, pe as coisas de cabea para baixo. Porque parece que a realizao, no caso do cara l de Correntina, est em trabalhar na multinacional. No; a realizao se d para o camarada no dia em que vira palhao da Folia de Reis. A mesma coisa se d com a obra de arte. A MANUEL ANTNIO DE CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E JUN SHIMADATerceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 27realizao no a realizao do livro, mas a realizao da obra. O livro suporte da obra. A obra que importante, no o livro. Algum vende um livro para voc, mas na verdade voc quer a obra. Se a obra chegar daquiaalgumtempoemoutrosuporte,quenosejaumlivro,voc teraobra. Tantoquehojenosecompramlivros.Sevocpuder, voc vai a um instrumento de busca desses, baixa o livro e l. Porque o importante a obra, no o suporte dela. Amanh ela vem em DVD, ou ela vem por transmisso mental, sei l. Mas ela vem. A obra no , de qualquer forma, apenas um objeto.Lira: Voltando questo do suporte, isso tambm se aplicaria ques-todaacademia,dafaculdade.Cadaumtemumpercursoacadmicoe cotidianamente voc busca determinados suportes tericos para orientar o trabalho, que geralmente o modus operandi das cincias sociais e huma-nas em geral. Como que voc resgata ou tenta buscar uma dimenso po-tica em que voc tenha uma valorizao desse tempo kairtico de criao, em que no fundo voc est sempre se ensaiando? Como que voc v isso e a questo que normalmente se coloca de que voc tem que seguir determina-dos autores, ter uma determinada linha de pensamento, embasar seu traba-lho com determinadas pesquisas? Como seria essa tenso entre a criao e as informaes, o aglomerado de dados e coisas assim? Jardim: Ns vivemos no tempo da informao exatamente porque a gente vive no tempo da otimizao do suporte. Voc tem uma internet que tem tudo. Tem aquele ser que como o Manuel Antnio de Castro j disse: o maior erudito do mundo em todas as lnguas, o Google. Eu tenho repetido isso. Por isso acontece como na histria que algum me contou. Perguntaram na prova: Como era o Brasil no perodo de Jnio Quadros?Aresposta:Nosei,professor,novivinessapoca,mas prometo pesquisar. A resposta to idiota quanto verdadeira. Porque, num eixo de informao que circula como circula no Google, uma so-luo dessas perfeitamente aceitvel, de alguma maneira. O cara no viveunapocadoJnioQuadroseestdizendoaverdade.Como quevocquerqueeusaibadisso?EssaaparteGoogledahistria. Mas tambm tem legitimidade a pessoa dizer isso. No obstante, desde aquela j mencionada invencvel ignorncia, claro, mas desde tambm umasacrossantaingenuidade,porqueanooqueumapessoadessas ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM28 Terceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 tem de que, quando ela vai ao Google e recolhe a informao, ela est vivendo atualmente aquilo, de que aquilo faz o Japo chegar aqui agora. O cara abre o site do museu do Louvre e acha que entrou no museu do Louvre. Sobretudo se ele estiver desavisado como quase todos ns esta-mos sempre. Entrar no museu do Louvre virou entrar no site do museu do Louvre, porque muito mais fcil e mais barato. Mais uma vez, h a reverso do suporte em relao prpria coisa. A questo do suporte acadmico a mesma coisa. No meu modo de entender, suporte acadmico no existe. Sabe o que existe? O afeto, nosentidomenosbanaldotermo.Afetopordeterminadasquestes eporquemtrabalhoudeterminadasquestesemumsentidoemque voc pensa: eu podia ter feito isso, ou eu gostaria de ter feito isso, ou isso alguma coisa que no seria problemtico, para mim, dizer. claro que eu no vou dizer como o outro disse, seja quem for. Pode ser o maior pensador do mundo, pode ser um idiota qualquer. Esse mito da racionalidade de que voc olha para o espectro todo e escolhe quais so as suas fundamentaes no existe. Na verdade, h gente que trabalha assim, mas essa no verdade. A verdade a seguinte: puxa, isso, ou, num dizer menos ps-moderno e mais pr-antigo, eureka!. E a, algum pode ver esse lampejo em qualquer um, ou em qualquer coisa. Atemalgumacoisaoualgumcomoqueouquemvocestcerto de que no concordaria em primeira instncia. Porque o pensamento generoso, eu acho. Ele no tem matriz e pode fazer voc pensar a partir daquilo que voc acha que jamais vai fazer voc pensar. Durante muito tempo, eu no li o Heidegger. Eu estava certo de ser comunista. Durante muito tempo, eu evitei ler o Heidegger porque ele era nazista. Na verdade, o tempo todo em que eu pensei isso na mi-nha vida foi antes da leitura do Heidegger. Foi por isso que me causou surpresa quando li. Eu pensei: se nazismo isso, eu gosto! Fiquei um pouco eticamente abalado com isso, me deu caganeira e tudo. Porque eu no posso me armar nazista assim com essa simplicidade. A gen-te ca sempre nessa situao de puxa, fui pego na esquina. Mas eu gosto disso. Esse pensamento (o do Heidegger) tem mobilidade. E eleeranazista?! Temgentequecarepetindoisso.oneobobismo. OneobobismovaicarrepetindoqueHeideggereranazista.Existe MANUEL ANTNIO DE CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E JUN SHIMADATerceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 29idiotice suciente para car repetindo isso todo dia, e capaz de no ter lido uma linha do Heidegger. Se leu, viu que no era. Pelo menos, nocomopensador.Selumpoucomais,eadquireumpoucomais deinformao,conheceahistriatodinhadaadesoedadesadeso. A, se continua fazendo esse jogo, m-f, ou mau-caratismo, ou, em ltimainstncia,devemosdizer,lha-da-puticeporinteressesmuitas vezesinconfessveis.Senoentendeu,noalcanou,agenteperdoa. Se no entendeu, nada se pode fazer. Se entendeu e continua repetindo como um psitacdeo, a no est pensando! Essa a questo. Voc no pode no ver e no gostar! A no ser que seja uma coisa muito patente, muito evidente. E que seja muito evidente por si s, em qualquer marca de pensamento que venha. Isso difcil porque os pensadores pensam muito mais do que so. Se voc fosse entrar pela vida de todo mundo que pensou ou de todo mundo que criou, descobriria coisas escabrosas. Os grandes criadores so guras muitas vezes intragveis no seu aspecto pessoal, so pessoas com quem voc no quereria ter cinco segundos de conversa, voc caria enojado, porm isso no retira o valor da obra. O maior mito, em sentido estreito, que a gente inventou o mito da coerncia. Esse mito extraordinrio porque faz uma pessoa, uma vez dado um passo no caminho, nunca mais ser capaz de voltar atrs. E um mito. O tempo todo voc est discutindo com voc mesmo. Se voc no discute consigo, no discute com o pensamento, porque o tempo todo voc est pensando aquilo que voc disse e est redizendo de outra maneira. Com muita coragem, s vezes, est dizendo o contrrio. O que no desdouro nenhum e signica que o pensamento segue seu curso. por isso que os malucos da losoa tm essa maldita mania: o primei-ro Wittgenstein, o segundo Wittgenstein, o terceiro Wittgenstein... So vinte e cinco Wittgensteins, noventa e trs Heideggers, quarenta e dois Plates, e assim por diante. O cara est pensando, no est preo-cupado se o dilogo seguinte vai dizer o contrrio do dilogo anterior, se a linha seguinte vai dizer o contrrio da linha anterior. O pensador, assim como o poeta, tambm no pensa nessa coerncia. Se pensar nela, no faz poesia. Coerncia uma coisa moralista e que, portanto, no tica. Ento, ca esse discurso meio hipcrita que exige uma tica do outro, mas no tem nenhuma tica quando l o outro e pronuncia o ju-ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM30 Terceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 zo do outro. Isso bonito, isso d certo, costuma ser bom. Eu exijo tica de voc, mas quando fao o juzo de voc eu posso no ser tico, ou seja, eu posso no ter nem lido voc e posso emitir juzo a seu respeito. Eu posso no conhecer voc e posso emitir juzo a seu respeito.Fbio Santana Pessanha: Voc falando desse percurso dos noventa e trs Heideggers e quarenta e dois Plates me levou a pensar num tipo de historicismo de ordenao cronolgica, enm, ao que chamam de evoluo. No entanto, a falta de coerncia a que voc se referiu se d em funo da vigncia do pensamento. Ento, com essa mobilidade do pensamento, como que a gente poderia pensar o amadurecimento? Porque, no mbito dessa evoluo, uma obra que veio depois seria melhor porque evoluiu o que no adequado se dizer. Em Potica, neste sentido, no teria amadureci-mento.Semprealgoquenico.Comoqueca,porexemplo,seum historiador zer uma pesquisa potica? O que ele poderia fazer?Jardim: E nem sempre houve evoluo. A primeira coisa seria ele se perguntar o que histria. Da para frente, eu entendo, o percurso j melhoraria. Coisa que ele no faz porque historiador, ou seja, ele, an-tes de qualquer coisa, assinou um pacto com a cronologia e com a evo-luo. Esse pacto, ele tem que romper para fazer histria efetivamente. Quero dizer, para fazer histria do modo da presena, no fazer histria de um modo em que uma presena anula a outra, como , sobretudo, ahistriadaarte.AlgumdizqueporquehouvePollockumdia,ele acabou com o Delacroix. Isso no existe! Eu posso olhar para o Pollock e posso olhar para o Delacroix. No posso fechar os olhos quando vejo um para poder ver o outro. Eu me lembro da minha poca de professor de msica, uma vez uma pessoa veio e disse: Vamos fazer uma modicao na disciplina Histria da Msica. Quando eu disse para acabarmos com os pr-re-quisitos, a imediata resposta foi: No pode! Ento, perguntei: Mas como no pode? E a pessoa: No, no pode! Como que um aluno vai poder ouvir Stravinsky sem ter ouvido Gesualdo?! Eu disse: Com osouvidos!OcarapeoouvidoeouveStravinsky.Depois,como mesmoouvidodele,ouveGesualdo!Aomeujuzo,quandosepe Stravinsky para tocar, ningum vai dizer: No! Fecha os meus ouvidos rpido porque no ouvi Gesualdo! Se fosse assim, a gente no poderia MANUEL ANTNIO DE CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E JUN SHIMADATerceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 31ouvir rock, a gente ouviria rock daqui a trezentos anos porque teramos que ouvir a histria da msica inteira e entender porque o rock surgiu umdia.Noprecisamosdissoparaouvir!Vocouveegostaouno gosta. Vocouveeachapobreouacharico,bomouruim.Ento,a primeira coisa seria, nesse sentido, rever o conceito de histria. Rever, inclusive, o conceito de temporalidade que sustenta essa histria, por-que se teria que se fazer uma histria no da cronologia, mas de um tempo enico, ou seja, dos modos de presena e de insistncia. Umaobranodopassado.Seeununcaviumquadroeelese apresentapelaprimeiraveznaminhavida,eupasseiaveroquadro agora. Com isso, poderiam me dizer, por exemplo: Ah, mas voc est completamente defasado, esse quadro tem quinhentos anos. No, para mimeletemabsolutamenteumsegundo,euacabeidev-lo!Euno estava l quando o cara fez o quadro, lamentavelmente. Eu gostaria de acompanhar todo o seu processo de construo, mas eu no estava l. Quinhentos anos o tempo cronolgico que se mede do dia que o pin-tor o fez. Ele tem quinhentos anos de vida, ou seja, ele tem quinhentos anosdepresena.Elenotemquinhentosanosdepassado,eletem quinhentos anos de insistncia como presena. Ns temos uma relao com o tempo muito estranha. Voc diz, eu digo, ele diz, ns dizemos: eu tinha trs anos, eu tinha dez anos. Eu no tinha dez anos, eu tenho dez anos! No adianta eu dizer que eu tinha dez anos, eu continuo ten-do: os dez esto dentro dos cinquenta e cinco. No sei se isso que voc gostaria que eu respondesse, no sentido de que o historiador, para fazer histria, tem que rever o seu sentido de tempo. a primeira coisa que ele precisa pensar. Ele, na verdade, preci-sa pensar o tempo como aquilo que consolida um espao-tempo de pre-sena, mesmo que seja como insistncia do que foi feito h quinhentos ou mil anos. por isso que as obras no sofrem o processo de dissoluo perverso que a histria da arte determinou para elas. Dostoievski no nasceu ontem, ns sabemos. Dostoievski o autor que faz voc emular umgostopelaliteratura. VocnoprecisateraidadedeDostoievski para l-lo, felizmente. Dostoievski , para voc, para mim, para quem gosta e quem no gosta, presena. Desde o momento em que ele con-solidousuapresenacomaobraquefez,estpresente.Certamente, ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM32 Terceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 uma presena de longa durao. Tem que mexer na questo espao-tempo, tem que mexer na questo histrica, necessariamente.Shimada: Dado que a poltica inegavelmente existente, como que a gente poderia liberar ou pensar uma poltica independentemente dos pa-dres que se zeram normativos para se pensar poltica?Jardim:diclimo,masachoquetemalgunsindciosde,pelo menos, como no se deve fazer. Talvez revendo muitos dos juzos que ns colocamos com tanta facilidade a respeito da questo poltica, co-meando pelos nossos. Revendo o que poltica, ou seja, pensando-a, coisa que nem poltico ou militante algum est disposto a fazer. No se perguntam o que poltica. Essas pessoas se sentem salvadoras do mun-doporqueestoengajadasnumprojetopolticoquedecidirampara eles e no sabem nem como. E sobre o que poltica, necessariamente, esquerda e direita esto de acordo, porque quanto menos voc pensar, menostrabalhod.Oproblemaqueviraumaconsideraoquase gentica no sentido de que se voc est comigo, voc est certo, e a quase como uma bem-aventurana, isso quase religioso. Quero dizer, concorre-se para uma mesma perspectiva no s perversa como perver-tida, porque assim: voc est com o bem de qualquer maneira. Plato mais forte do que a esquerda e a direita porque ele disse queaideiasupremaeraaideiadobem,edessa,meuamigo,todos acham que esto absolutamente certos, seja na direita, seja na esquerda. A primeira coisa a ser feita rever o princpio de constituio da po-ltica desde que ela se constituiu no ocidente. Quero dizer, desde que se montou um caminho de ordenao. Tem-se que estudar a Repblica direitinho, e as repblicas todas que se zeram depois, tem-se que ver de que forma o Marx republicano no sentido da repblica platnica, porque , e to ideal quanto. Isso no uma crtica s ao Marx, isso , na verdade, uma forma de salvar o Marx de boa parte do marxismo, porqueoMarxpensamentoeumpensamentoforteenecessrio athoje.Oproblemadeleque,adespeitodelemesmo,virouuma espcie de catlogo bblico onde voc vai buscar o caminho, a verdade e a vida. E a no diferente de Jesus Cristo, de budismo, de islamis-mo. Poltica virou uma religio, s que com um nome diferente. Ela se salva porque chamada com um diferente, ou seja, voc da seita dos MANUEL ANTNIO DE CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E JUN SHIMADATerceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 33bem-aventurados,vocdaseitadosmal-aventurados. Todomundo acha isso: o cristo acha isso de si, o islmico acha isso de si, o budista tambm acha... Enm, tudo o caminho, a verdade e a vida. E a tica a tica do amor ao prximo como a si mesmo, ou seja, o eu me amo. fcil amar ao prximo como a si mesmo, o difcil amar ao prximo como o prximo. Castro: Quando o pensamento poltico?Jardim:Semprequeelevemdaplis,isto,hoje,sempre!Ele sempre poltico, ele poltico se est na dimenso da plis. O pensa-mento,sepensamentoepensamento,sobretudo,cuidado, poltico desde a plis. Mas tem uma coisa que preciso ser ressaltada: no a rubrica que diz. No a rubrica que diz o que poltico. Se vocpensarempensamentopoltico,pensamentoreligioso,pensa-mento losco, pensamento potico, com o predicado, voc reduz o pensamento. Na verdade, a diculdade que a plis impe hoje pensar a plis. Tem-se que pensar a plis e isto signica pensar o poltico, mas pensar o poltico no como uma forma exclusiva em que o poltico se separa da dimenso do pensamento. O esteretipo do poltico que ele tem pavor do pensamento, pa-rece aquele negcio: poltica prtica, que que voc faz de prtico com isso? Ento, se algum faz um estudo poltico da questo da es-cravido no Brasil e diz-se que ele no fez nada porque se acredita que fezapenasteoria,cadifcil;hquempareaacharquequemestuda escravido precisava ter sido escravo. Mas, se ele fosse escravo, ele teria morrido, no iria fazer um estudo sobre escravido. como se s fosse capaz de entender de escravido quem foi escravo, quase isso. aquele negcio que tambm acontece com futebol: o treinador terico, nun-ca chutou uma bola. Primeiro que mentira, todo mundo chutou uma bola na vida; segundo, ningum precisa ter jogado bola para pensar o futebol.Meuamigoquerido,RonaldesdeMeloeSouza,dizsempre assim: preciso devolver a palavra ao poeta. Eu, mesmo que concor-de, tenho, no fundo, certo receio disso, pois depende do poeta. Se voc devolver para o poeta errado, est encrencado! Ele vai causar mais danos do que os crticos literrios causam, porque ele vai virar crtico rapidinho, ele vira crtico dele mesmo. Essa a tentativa de totalizao, eu sou o ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM34 Terceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 poeta e tenho o juzo acerca de mim mesmo, e ai de quem discorde. Esse o pior dos poetas, o poeta que tem poder de argumentao crtica e faz do seu poder de argumentao crtica justicativa da sua poesia. Ele reverteu completamente o caminho. A poesia no precisa de defesa crtica, ela . Seno, ela no . Sobretudo, ela no precisa de defesa cr-tica do prprio poeta. Porque assim ele assume o lado de crtico, mas assume a seu favor, o que eticamente condenvel, moralismo puro. A poesia no precisa disso, ela se arma como poesia. Se ela depender da crtica favorvel de um crtico externo, j ruim. Se ela depender da crtica favorvel do prprio poeta, a poesia no se sustenta, ela precisa de uma bengala.Castro:Nessesentido,adensidadedeumpensamentosemedepela densidade poltica?Jardim: No e sim. Se eu aceito a primeira coisa que eu disse, que todopensamento,comocuidadocomoreal,poltico,areposta sim. Mas no poltico como esteretipo. Sua pergunta tem dois lados: quando voc pergunta se ele se mede pelo poltico, pode-se dizer que opensamentossejusticaporqueeletemumadimensopoltica. Mas qual pensamento no tem? E onde a poltica no a reduo do pensamento? Essa a grande diculdade. difcil ela, tal como pra-ticada, no ser a reduo do pensamento, j que a gente separou essas instncias. Por exemplo, um aluno meu tinha uma curiosidade danada porque eu dizia que o maior pensador poltico que conheo o Hei-degger.Eelesempreaceitouessedesaoetentavaentenderoqueeu estava dizendo. Mas se passa algum com m vontade, pode ouvir isso e dizer que sou nazista, porque parece que o Heidegger o nico nazista que existiu no mundo. Nem o Hitler foi to nazista. Ele no padeceu da crtica de nazista como o Heidegger padeceu e padece, at hoje. NingumdizdoHitler,comoumrtulo,queelenazista.Agente olharia para o sujeito que diz isso com piedade, n? Agora, o Heidegger, sim, pode ser nazista. Ento, o problema do Heidegger o seguinte: ele o grande pensa-dor da poltica. Mas toda vez que se fala isso, se entende a poltica do nazismo. No, ele o grande pensador da possibilidade de renovao. Ele no separa; o poltico nele est to dentro do pensamento, que o po-MANUEL ANTNIO DE CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E JUN SHIMADATerceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 35ltico no precisa ser separado a ferros. Voc vai ver que em seu pensa-mento h alternativa para se pensar o momento poltico de hoje. Hou-veehalternativaparapensarqualquermomentopoltico,desdeo momento em que Heidegger produz seu pensamento, porque ele mexe na linguagem! Se ele mexeu na linguagem, mexeu em tudo, mexeu no modo de presena do real. Ele est olhando para o real, no est fazendo outra coisa seno nos dando a possibilidade de aprofundar nossa relao com o real. Nada mais poltico do que isso. O esteretipo de poltica no d conta disso. Voc pega esses modernos pensadores europeus da poltica,comoNorbertoBobbio,JrgenHabermas,issobobagem perto do pensamento do Heidegger. No porque estou fazendo juzo que bobagem: leia. Leia, porque eles esto tentando solucionar o inso-lvel. Eles querem salvar as partes boas de algo todo arrebentado. No d para salvar a parte boa do que est atumorado, ruim.Castro:Comoquesepodepensaropolticosempensarohomem? Como que se pode pensar a plis sem pensar o homem?Jardim: A plis no se pode. A plis construda pelo homem, orde-nada pelo homem, no. Mas acho que o fundamento do poltico no est no homem, de qualquer forma. Est no real. No est no pensa-mento, mas no real, no modo de se presenticar da linguagem, no real queenquantolinguagem.Opensamento,comoocuidadoquese tem com a linguagem, humano. Mas o fundamento no humano. O poltico em sentido amplo esse cuidado. Falar de poltica falar do homem, entender o homem e suas formas de ordenao de real, no necessariamente apenas da plis. Por isso, estou dizendo que o funda-mento no o homem, mas entender o real como aquilo que se mani-festa como linguagem.Lira:OqueoHeideggerteriaavercomaquestodaarte,como que ele teria a contribuir? Porque h uma crtica que pode ser feita sobre Heideggerserumlsofo,eissoserusadopararotularseupensamentoe afast-lo dessa reexo da arte. No sentido dessa separao disciplinar, o que voc acha dos Estudos Culturais e a proposta de quebrar as barreiras entre as disciplinas para pensar o mundo de uma maneira mais global? Queria saber se esse procedimento consegue resolver algumas das questes que esta-mos discutindo. ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM36 Terceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 Jardim: Eu acho que o problema pensar o homem. No o ho-mem o problema. Toda vez que a gente colocar o homem nisso, vai dar num desvio como os Estudos Culturais. O que eu gosto do Heidegger talvez, mais do que aquilo que eu entendo, aquilo que eu no entendo. O Heidegger no um pensador do homem no e no vai ser nun-ca, para mim, mas um pensador do real. Ele nos d ou nos aponta uma possibilidade de relao com o real que a gente perdeu. Ele aponta para o homem, claro, porque no aponta para a barata. Mas a grandeza do Heidegger como pensador est num profundo anti-humanismo. Ele talvez o pensador da histria da losoa posterior a Plato, Descartes e Kant que pe o homem no seu lugar. E, para isso, no faz uso de instn-cias aparentemente to dogmticas quanto fez o pensamento medieval inteiro. Retorna a uma possibilidade em que o homem, de alguma for-ma, se conjuga mais com a phsis, no sentido daquilo que surge por si, sendo essa a possibilidade de o homem ser homem. A contribuio que o Heidegger d para a arte que ele refaz uma unio perdida, ou pelo menosesquecida,entreaobradearteeaverdadedoreal,entendida aexpressoverdadedorealcomoumprocessodepresenticaoe ausenticao. Isso muito mais interessante do que pensar o homem. O homem s presta, efetivamente, quando pensa, ou seja, quando exerce algum cuidado,sobretudocomcoisasquenosodohomem.Quandoele exerce o cuidado com o homem, ele acaba exercendo o cuidado com ele mesmo, e voc tem um desvio da questo poltica: quando voc est comigo, voc bom, quando voc est sem migo, voc ruim. Toda vez que voc coloca a questo em cima do homem, o homem sobre o real, e o homem no est sobre o real, ele est no real: ele no pode esco-lher a hora em que est no real. O real a instaurao de um movimen-to que se chama realidade. O homem no est fora disso. Quando o ho-mem cria, analogiza ou faz emergir em si uma espao-temporalidade, que no exatamente apenas a criao dele, mas um movimento, a percepo do movimento que o real faz enquanto tempo e espao. a vigncia de um tempo e de um espao, instaurao de alguma coisa que ainda no foi vista ou percebida de uma forma. Mas se eu uso vista e percebida, estou no mbito do homem. Sim: no posso ser uma lagarta, at gosta-MANUEL ANTNIO DE CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E JUN SHIMADATerceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 37ria, para fazer a experincia. No sou uma lagarta, sou um ser humano. Vejo, portanto, como ser humano, mas entendo que o ser humano no e nem poder ser nunca o centro desse processo, porque, toda vez que ele for a poltica, por exemplo, vai ser o pensamento degenerado. Assim, o fundamento do pensamento poltico no est no homem. O que est em jogo o potico como cuidado com tudo o que real. Ele maior, innitamente maior que o homem. E a vamos salvar, por exemplo, a ecologia do esteretipo. Essa postura poltica, quase Hay que endurecer, pero sin perder la ternura jams, o potico na citao do Guevara. Quer dizer, para no perder a ternura, no pode ser o homem no centro, uma vez que a ternura no ternura apenas quando se dirige ao homem. Voc tem que se deixar enternecer pelo movimento de uma folha, de uma rvore, isso o potico: o movimento da folha da rvore ali pode enternecer e encantar, do mesmo modo como esse enterneci-mento pode se dar com o ser humano, por que no? a que o potico se instaura, e isso o Heidegger vai nos chamar para ver. A importncia do Heidegger para a arte , exatamente, a de nos devolver a experincia de nos enternecer com o movimento da folha, do passarinho, sem neo-bobismo.Enternecermesmo,comoapessoacapazdeveroriacho passar, ver a catedral de Braslia, abrir um livro e no conseguir largar, ouvir uma msica. Nesses momentos que o homem grande, quan-do o homem capaz de fazer no outro esse tipo de apelo. Por isso, o Heidegger um grande pensador. No porque ele escreveu trezentos ecinquentamilensaios,formuloutantosmilconceitos.Masporque ele capaz de fazer da losoa uma coisa encantadora, no sentido de que voc pode se emocionar com ela. difcil voc se emocionar com pensadoresdeoutraordem,aindaquesejaminnitamenterespeit-veis, porque so grandes pensadores, como Kant, Hegel, Plato. Mas claroquealgunstambmsocapazesdeemocionarcomopensa-mento, o que mais difcil na losoa, porque ela deu as costas para o potico. E o Heidegger, de alguma maneira, pe a losoa de frente para o potico. O que digno de ser olhado esse momento de enternecimento, esse afeto produzido. No exatamente uma tese que, racionalmente, articula tudo que est presente. voc perceber que quando ele fala de ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM38 Terceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 linguagem, ele est falando de uma coisa simples, mas diclima para se voltar a entender. A folha vai, faz um movimento, ela balana. Mas olha, aquela folha no igual quela outra, ento o conceito genrico defolhanodconta.A,temosquepensaraexperincia,comoela realmentefazenternecer. Vocolhaparaumapaisagemenoprecisa fazeraanlisedapaisagem,recortaremquadrantesedizerdesse ponto aqui que emana o enternecimento; no, o jogo de cor, luz que nos enternece. Ah,eoqueestrepresentado?Ora,oqueestrepresentadopo-dia no estar l. Algum pega a cor e te faz enternecer com a cor. Por isso, quando algum pensa que entendeu o Da Vinci e no entendeu o Kandinsky,efetivamentenoentendeuoDa Vinci,porqueolhapara aquilocomorepresentao.EoHeideggernoumpensadordare-presentao. Ele o pensador que procura o isto. Esse isto no , na verdade, uma fuga do real. o real posto, a res-posta. Esse isto ele nos convida a tentar encontrar. Mas claro que voc no precisa encontrar isto, necessariamente, no caminho do Heidegger. Voc tem o Rosa, semdvida,oKant,comasdevidasdiferenas,oManoeldeBarros, Ceclia Meireles. No Brasil, difcil voc achar isto na losoa. Voc vaiencontraristonaliteratura.Porqu?Porquesomoslsofosde segunda,mascriadoresdeprimeira.Nsnonosenternecemoscom nosso pensamento, no sabemos onde ele est. Castro: O Emmanuel Carneiro Leo seria uma referncia?Jardim: Seria, seria. O Emmanuel , sem dvida, a grande refern-ciadalosoabrasileira.Paramim,alosoabrasileirasedivideem antes e depois dele. Claro que h outras guras importantes e imponen-tes, como um Gerd Bornheim, um Jos Amrico Pessanha, um sujeito extraordinrio, mas o Emmanuel antes e depois, para mim. Como ns somosumtantotoscosdepensamento,nosevalorizaoEmmanuel como essa joia rara por causa de questes menores, questes poltico-acadmicas, de ignorncia profunda...Castro: Certamente, no o mais celebrado.Jardim: Sem dvida, no . Mas no acho que haja uma contradi-o necessria entre ser um grande pensador e no ser o mais celebrado. Se fosse o mais celebrado, acho que talvez devssemos car um pouco MANUEL ANTNIO DE CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E JUN SHIMADATerceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 39com o p atrs, alguma coisa estaria errada. Na literatura, o mais cele-brado no o Rosa. Talvez seja dentro das academias, mas no como celebridade, como um Paulo Coelho. No estou nem discutindo o va-lor, nem conheo [Paulo Coelho], nunca li, no tenho vontade. Pode ter coisas maravilhosas, estou falando da minha ignorncia, qual tambm tenho direito, anal, a ignorncia tanta que tambm tenho direito minha. Enm, tomara que o Emmanuel no seja o mais celebrado; de al-guma maneira, se preserva o Emmanuel de certas exposies. Mesmo sem ser o mais celebrado, ele incomoda uma grandeza, tem gente que perde um tempo danado falando mal... Se fosse o mais celebrado, coita-do dele! Quem puder ler e souber ler, e quem puder entender e souber entender, vai entender.Lira: Voc tambm professor da Faculdade de Educao. A pergun-ta:comopolticaeeducaosepemcomoumdesaoparavoc,como professor? Qual o desao para um ensino dos jovens, seja dos tempos de hoje ou de sempre? O que cabe ao professor conduzir para fora, pensando na etimologia de educar? a questo do humano, tambm: o que cabe ao professor realizar no aluno, para o aluno?Jardim:Euadquiricomotempoumcertocinismoeumacerta tica. Esse cinismo e essa tica so cinismos e ticas um tanto simples, devo dizer. Tento ser uma pessoa muito simples, na minha maneira de pensar. Minha simplicidade, ou mesmo, para alguns, simploriedade, se traduz da seguinte maneira: sob o ponto de vista do professor, como voc perguntou, eu, Antonio Jardim, no salvo nada. A educao no um processo de salvao. A j jogamos metade da educao pelo ralo, porque a maior parte dos educadores acha que so salvadores, que vo salvarooutrodaignorncia,daincincia;novejoassim.Noacho que seja responsabilidade minha, nem de nenhum professor, operar esse processodesalvao.Noutrodia,estavadandoaulanaFaculdadede EducaoeumameninadeHistriadisseparamim:Professor,eu vou estudar grego, porque percebi que, se eu estudar grego, a Histria vai melhorar, vou conseguir entender melhor coisas que no entendo. E esse testemunho me comovente, no porque eu acho que produzi isso, no essa a minha questo. porque, de um modo ou de outro, ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM40 Terceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 a gente fez, s vezes sem saber e, quando sem saber, melhor , o outro sair do lugar cmodo e sentar em outro lugar. a melhor maneira de ser professor. Primeiro, h um sentido tico profundo. O que um sentido tico profundo? saber que voc faz um trabalho no qual voc acredita. Isso precisa ser o ponto de partida. Se voc est fazendo um trabalho em que voc no acredita, mas voc acha que faz porque faz bem ao outro, no vaidarcerto,porquevocnovaioperarnada. Vocvaisedirigirao outro sem saber o que o outro. L na UERJ eu tenho cada sala com sessenta alunos, tenho trezentos alunos esse perodo, e no sei que efeito umacoisaquefaloproduz.Podeproduzirtodososefeitos.Noseie no quero saber, no tenho a necessidade de saber qual o efeito produ-zido.Achocomoventenosentidoetimolgicodapalavramovente com. Eu me movo com esse tipo de depoimento tanto quanto eu acho que essa aluna se move quando diz para mim que vai fazer grego. No acho que a salvao est em fazer grego, mas se isso se produziu nela e com ela, est legal para mim, no preciso de muito mais para car con-tente com a minha prtica docente. Se tivesse um desses por semestre, eu caria bem feliz. No elogios do tipo voc timo, uma maravilha, isso apenas juzo. Mas o que ela disse no me fez elogio nenhum, mas to somente disse como foi legal, para ela, assistir aula. No acho que haja projeto educacional renovador, nem hoje e nem nunca. Toda vez que se tenta renovar, piora. Com mais duas reformas, acabou a universidade. Ela no resiste, j que no adianta reformar se voc vai otimizar o mesmo sistema. O processo educacional melhor quando no sabe que est agindo. um thos que me agrada. Quando tenho dvidas do que estou produzindo, co feliz. Se estou muito certo do que ando produzindo, s vezes, pode ser que esteja errado, e devo estar.Achoquenosoucapazdefazernadagrandioso,talvezacoisa que mais seja capaz de fazer, e no to grandiosa assim, a msica que fao, mais que a aula que dou. No tenho muita expectativa de uma reforma pela educao, nem umasalvaopelaeducao,masaEducaoprecisapensaroque educao, e vale para a Educao tudo aquilo que falei com referncia Histria. Ela no parou para pensar o que ela , porque ca o tempo MANUEL ANTNIO DE CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E JUN SHIMADATerceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 41todocomprocessosdeatualizaodemtodosemtodosdeinvesti-gao.OmtodoprincipaldaEducaoumpoucodiferentedoda Histria: parece que ela existe para se perguntar como o professor pode sair vivo de uma sala de aula. O professor tem medo da turma. Ele no v o aluno como parceiro; v o aluno como adversrio. Ele no pode ter medo do aluno, o aluno o nico parceiro em que ele pode conar para brigar contra o modelo institucionalizado. O aluno tambm esperneia e se bate contra o modelo. O aluno seu aliado, voc no pode jogar o aluno fora. Claro que nem sempre, porque os seus interesses tambm podem ser diferentes dos de seus alunos, no podemos paternalistica-mente dizer que o aluno tem sempre razo. O aluno outra coisa: ele meu aluno, no no sentido de sem luz, mas est em outro percurso ain-da, que no inferior ao meu, mas outro jeito que ele est buscando de lidar com a questo do conhecimento. Nem sempre a nossa posio coincidente com a dos alunos. Voc no pode faltar com o respeito ao aluno, nem ser desrespeitado por ele. O aluno tem que entender que o seu processo com o conhecimento o seu, e o dele o dele. H convivncia possvel? Perfeitamente. H desinteligncia nisso? Pode haver, e h desinteligncias serissimas. Mas o processo um cami-nho rduo, no acho que haja uma soluo genrica. Tambm no acho que haja uma ao individual, como eu fao o meu e que se dane. uma questo a ser discutida, mas a Educao no discute essa questo comoprecisavadiscutir.AEducaoquercriarummodeloquevai salvar a educao. Enquanto ela quiser isso, ela vai ser a pior coisa do mundo. Ela vai destroar ainda muita gente nesse caminho. No um privilgio de faculdades de Educao, mas pode ocorrer tambm aqui [na Faculdade de Letras] e em outros lugares.ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM42 Terceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 Resumo EntrevistaconcedidapelomsicoAntonio Jardim, professor adjunto do Depto. de Cin-ciadaLiteraturadaUFRJ.Comnuances, modulaesedissonncias,aconversaver-sousobretemascomo:arelaoentrem-sicaepoltica,adistinoentrerealidadee realizaesnombitodaverdade,aquesto dossuportesemmsicaeemliteratura,o re-pensamentodahistriacomopresena,a educao, o pensamento de Marx, as relaes de Heidegger com o nazismo.Palavras-chave Poltica; msica; potica.Recebido para publicao em30/11/2009AbstractInterview with the musician and professor of Teory of Literature Antonio Jardim (UFRJ). Mostimportanttopics:relationsbetween music and politics; distinctions between real-ity and realizations in the scope of truth; dif-ferent medias, be them in music or literature; the re-thinking of History as presence; educa-tion;Marxsthought;relationsofHeidegger with Nazism.Keywords Politics; music; poetic.Aceito em25/01/2010