arte tecnologia brasil_itaucultural

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Arte e Tecnologia no Brasil: Uma Introdução (1950-2000) Esta é uma primeira tentativa de mapear a produção artística brasileira no campo de intersecção entre arte, ciência e tecnologia, desde os seus primórdios nos anos 1950 até o final do século XX (para efeito de precisão no recorte temporal, fixou-se como limite a produção brasileira tornada pública até o dia 31 de dezembro de 2000). Esse campo bastante amplo abrange a produção genericamente enquadrada como arte eletrônica, termo mais difundido mas bastante impreciso, uma vez que nem tudo o que se inclui nessa área foi produzido com recursos eletrônicos e, por outro lado, nem toda arte produzida com recursos eletrônicos pode ser incluída na categoria arte e tecnologia (um romance, por exemplo, não necessariamente está circunscrito a esse âmbito criativo apenas porque foi escrito num computador). Evidentemente, como toda pesquisa em fase inicial, ela deve conter imprecisões e lacunas, que serão corrigidas com o tempo, com a discussão especializada e com o acréscimo da colaboração de outros pesquisadores. Para efeito de organização dos dados acumulados, distribuímos a produção desse período não exatamente em escolas ou tendências, visto que essas divisões são ainda pouco precisas, mas em torno de conceitos. Esses conceitos procuram dar conta das grandes linhas de força das poéticas tecnológicas no Brasil, em torno das quais se aglutinaram os artistas. Eles não têm validade universal (em outros países, os conceitos devem ser diferentes), mas expressam, no nosso modo de ver, o modo como se manifestou a relação entre arte e tecnologia no Brasil em seus primeiros 50 anos. Esses conceitos são: 1) Arte-comunicação 2) Arte em Meios Digitais 3) Arte Holográfica 4) Arte na Rede 5) Hibridismos/intermídias 6) Interação arte-ciência 7) Música Eletroacústica 8) Poesia e Novas Tecnologias 9) Vídeo-arte e vídeo-instalação Se é verdade que toda arte é feita com os meios de seu tempo, as artes chamadas eletrônicas representam a expressão mais avançada da criação artística atual e aquela que melhor exprime sensibilidades e saberes do homem desta virada de milênio. Bach compôs fugas para cravo, Stockhausen texturas sonoras para sintetizadores eletrônicos. O desafio

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Page 1: Arte tecnologia brasil_itaucultural

Arte e Tecnologia no Brasil: Uma Introdução (1950-2000)

Esta é uma primeira tentativa de mapear a produção artística brasileira no campo de

intersecção entre arte, ciência e tecnologia, desde os seus primórdios nos anos 1950 até o

final do século XX (para efeito de precisão no recorte temporal, fixou-se como limite a

produção brasileira tornada pública até o dia 31 de dezembro de 2000). Esse campo

bastante amplo abrange a produção genericamente enquadrada como arte eletrônica, termo

mais difundido mas bastante impreciso, uma vez que nem tudo o que se inclui nessa área

foi produzido com recursos eletrônicos e, por outro lado, nem toda arte produzida com

recursos eletrônicos pode ser incluída na categoria arte e tecnologia (um romance, por

exemplo, não necessariamente está circunscrito a esse âmbito criativo apenas porque foi

escrito num computador). Evidentemente, como toda pesquisa em fase inicial, ela deve

conter imprecisões e lacunas, que serão corrigidas com o tempo, com a discussão

especializada e com o acréscimo da colaboração de outros pesquisadores. Para efeito de

organização dos dados acumulados, distribuímos a produção desse período não

exatamente em escolas ou tendências, visto que essas divisões são ainda pouco precisas,

mas em torno de conceitos. Esses conceitos procuram dar conta das grandes linhas de

força das poéticas tecnológicas no Brasil, em torno das quais se aglutinaram os artistas.

Eles não têm validade universal (em outros países, os conceitos devem ser diferentes), mas

expressam, no nosso modo de ver, o modo como se manifestou a relação entre arte e

tecnologia no Brasil em seus primeiros 50 anos. Esses conceitos são:

1) Arte-comunicação

2) Arte em Meios Digitais

3) Arte Holográfica

4) Arte na Rede

5) Hibridismos/intermídias

6) Interação arte-ciência

7) Música Eletroacústica

8) Poesia e Novas Tecnologias

9) Vídeo-arte e vídeo-instalação

Se é verdade que toda arte é feita com os meios de seu tempo, as artes chamadas

eletrônicas representam a expressão mais avançada da criação artística atual e aquela que

melhor exprime sensibilidades e saberes do homem desta virada de milênio. Bach compôs

fugas para cravo, Stockhausen texturas sonoras para sintetizadores eletrônicos. O desafio

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enfrentado por ambos os compositores foi exatamente o mesmo: extrair o máximo das

possibilidades musicais de dois instrumentos recém-inventados e que davam forma à

sensibilidade acústica de suas respectivas épocas. Edgar Degas, que nasceu quase

simultaneamente com a invenção da fotografia, utilizou intensivamente essa tecnologia, não

apenas para estudar o comportamento da luz, que ele traduzia em técnica impressionista,

mas também em suas esculturas, para congelar corpos em movimento com o mesmo

frescor com que o fazia o rapidíssimo obturador da câmera. A série fundante de Marcel

Duchamp Nu descendant l'escalier é uma aplicação direta da cronofotografia de Étienne

Jules Marey (precursora da cinematografia), com que o artista travou contato através de seu

irmão Raymond, cronofotógrafo do Hospital da Salpêtrière, em Paris. Por que então o artista

de nosso tempo recusaria o vídeo, o computador, a Internet, os programas de modelação,

processamento e edição de imagem, a engenharia genética?

Difícil saber exatamente quando começam as artes eletrônicas ou tecnológicas. Mesmo

antes do videotape estar disponível para a intervenção artística, alguns criadores como o

alemão Wolf Vostell e o coreano Nam June Paik já produziam arte alterando os circuitos

eletrônicos de aparelhos de televisão ou distorcendo suas imagens com a ajuda de ímãs

poderosos. A vídeo-arte surge oficialmente no começo dos anos 60, com a disponibilização

comercial do Portapack (gravador portatil de videotape) e graças sobretudo ao gênio

indomesticável de Paik. Mas se a televisão puder ser incluída no âmbito das artes

eletrônicas, teremos de acrescentar à galeria de seus pioneiros nomes como o do húngaro-

americano Ernie Kovacs e do francês Jean-Christophe Averty, que introduziram na televisão

a autoria e a criação artística, além de terem sido os primeiros a explorar largamente a

linguagem do novo meio, razão porque alguns autores os consideram os verdadeiros

criadores da vídeo-arte, antes mesmo de Vostel e Paik.

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Mas a utilização de computadores na arte é mais antiga. Recursos informáticos para a

produção, manipulação e exibição de imagens já estavam disponíveis na década de 50,

graças ao surgimento de monitores capazes de exibir gráficos e de plotters para imprimi-los.

Embora esses recursos tenham sido implementados prioritariamente para a visualização

matemática e científica, muito cedo alguns artistas souberam tirar proveito deles para a

exploração de uma nova visualidade dentro das artes plásticas. Os primeiros trabalhos

artísticos produzidos com o auxílio de computadores utilizavam ainda máquinas analógicas

para gerar as imagens, osciloscópios de raios catódicos para exibi-las e películas

cinematográficas para registrá-las. Assim é que, em 1952, Ben F. Laposky, nos EUA, e

Herbert W. Franke, na Áustria, conceberam respectivamente suas Abstrações Eletrônicas e

seus Oscilogramas, consideradas as primeiras obras da computer art. Mas foi a partir de

1962, com o desenvolvimento, por Ivan Sutherland, de um completo sistema interativo de

desenho por computador, o Sketchpad, que começaram a aparecer os primeiros trabalhos

Page 3: Arte tecnologia brasil_itaucultural

artísticos produzidos inteiramente em computadores digitais. Os pioneiros dessa segunda

fase foram os alemães Georg Nees e Frieder Nake, os norte-americanos John Whitney ,

Michael Noll e K. C. Knowlton e o húngaro Bela Julesz.

É preciso considerar ainda que, embora a expressão arte eletrônica seja mais

genericamente utilizada para referir-se a trabalhos realizados no âmbito das artes visuais,

num sentido mais amplo ela poderia abarcar também a música, que foi a primeira arte a

explorar recursos eletrônicos. A musique concrète, que utilizava técnicas de edição

eletrônica, foi criada na França em 1948, por Pierre Schaeffer, enquanto a música eletrônica

surgiu na Alemanha em 1950, com Karlheinz Stockhausen. Os músicos também foram os

primeiros a utilizar computadores: o grego Iannis Xenakis, por exemplo, já os empregava

desde o início dos anos 1950 para gerar valores musicais aleatórios, criando assim a

chamada música estocástica.

No Brasil, as artes eletrônicas surgem bastante pioneiramente a partir dos anos 1950, com

as experiências ópticas de Abraham Palatinik e, já nos anos 1960, as imagens geradas em

computador por Waldemar Cordeiro. Este último, particularmente, foi uma figura de projeção

internacional no âmbito da computer art, além de ter dado uma dimensão crítica às obras

computadorizadas, com o acréscimo às imagens do comentário social. Desse tempo para

cá, o acervo brasileiro de obras eletrônicas não cessa de crescer. A música eletroacústica

surge já anos 1950, com as primeiras experiências de Reginaldo Carvalho. A vídeo-arte

aparece no começo dos anos 1970. A explosão ocorre nos anos 1980, com o aparecimento

das obras de telecomunicação (que utilizavam fax, vídeo-texto, slow scan TV e, mais tarde,

Internet), o florescimento da holografia, a generalização do uso de computadores, os

trabalhos nas áreas de multimídia, visualização matemática (fractais, por exemplo), web art,

instalações interativas, além das experiências com sky art (Wagner Garcia), telerobótica

(Eduardo Kac) e, finalmente, no final dos anos 1990, as primeiras obras de fusão da

eletrônica com a biologia (próteses corporais, vida artificial, arte transgênica).

Naturalmente, as técnicas, os artifícios, os dispositivos de que se utiliza o artista para

conceber, construir e exibir seus trabalhos não são apenas ferramentas inertes, nem

mediações inocentes, indiferentes aos resultados, que se poderia substituir por quaisquer

outras. Eles estão carregados de conceitos, eles têm uma história, eles derivam de

condições produtivas bem determinadas. As artes eletrônicas, como qualquer arte

fortemente determinada pela mediação técnica, colocam o artista diante do desafio

permanente de se contrapor ao determinismo tecnológico, de recusar o projeto industrial já

embutido nas máquinas e aparelhos, evitando assim que sua obra resulte simplesmente

num endosso dos objetivos de produtividade da sociedade tecnológica. Longe de se deixar

escravizar pelas normas de trabalho, pelos modos estandardizados de operar e de se

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Page 4: Arte tecnologia brasil_itaucultural

relacionar com as máquinas, longe ainda de se deixar seduzir pela festa de efeitos e clichês

que atualmente dominam o entretenimento de massa, o artista digno desse nome busca se

reapropriar das tecnologias eletrônicas numa perspectiva inovadora, fazendo-as trabalhar

em benefício de suas idéias estéticas.

Hoje, cada vez mais, os artistas lançam mão do computador para construir suas imagens,

suas músicas, seus textos, seus ambientes; o vídeo é agora uma presença quase inevitável

em qualquer instalação; a incorporação interativa das respostas do público se transformou

numa constante em qualquer proposta artística que se pretenda atualizada e em sintonia

com o estágio atual da cultura. De repente, nos damos conta de uma multiplicação

vertiginosa ao nosso redor de trabalhos realizados com pesada mediação tecnológica. Mais

do que nunca, chegou a hora de traçar uma diferença nítida entre o que é, de um lado, a

mera produção industrial de desenhos agradáveis para as mídias de massa e, de outro, a

busca de uma ética e uma estética para a era tecnológica.

Arlindo Machado

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Page 5: Arte tecnologia brasil_itaucultural

Arte em Meios Digitais

A utilização de computadores para a produção, manipulação e exibição de imagens

apenas se tornou possível a partir da década de 50, graças ao surgimento de

monitores capazes de exibir gráficos e de plotters para imprimi-los. Embora esses

recursos tenham sido implementados prioritariamente para a visualização

matemática e científica, muito cedo alguns artistas souberam tirar proveito deles

para a exploração de uma nova visualidade dentro das artes plásticas. Os primeiros

trabalhos artísticos produzidos com o auxílio de computadores utilizavam ainda

máquinas analógicas para gerar as imagens, osciloscópios de raios catódicos para

exibi-las e películas cinematográficas para registrá-las. Assim é que, em 1952, Ben

F. Laposky, nos Estados Unidos, e Herbert W. Franke, na Áustria, conceberam,

respectivamente, suas Abstrações Eletrônicas e seus Oscilogramas, considerados

as primeiras imagens da computer art. Mas foi a partir de 1962, com o

desenvolvimento, por Ivan Sutherland, de um completo sistema interativo de

desenho por computador, o Sketchpad, que começaram a aparecer os primeiros

trabalhos artísticos produzidos inteiramente com computadores digitais. Os pioneiros

dessa segunda fase foram os alemães Georg Nees e Frieder Nake, os norte-

americanos Michael Noll e K. C. Knowlton e o húngaro Bela Julesz, este último

também o inventor das imagens estereoscópicas produzidas por meio de padrões de

pontos randômicos.

Embora grande parte dos pioneiros da computer art, nos anos 60 e 70, tenha sido

formada por europeus e norte-americanos, pela razão óbvia de que viviam em

contextos científicos em que a pesquisa com informática estava mais desenvolvida,

um brasileiro ocupou um lugar importante entre os inventores desse campo de

criação artística. Trata-se de Waldemar Cordeiro, artista que, ao incorporar as

imagens digitais ao seu trabalho, já era reconhecido nacional e internacionalmente

sobretudo por sua produção no campo da arte concreta. Trabalhando em conjunto

com o físico italiano Giorgio Moscati, Cordeiro foi importante também por ter dado

uma dimensão crítica à computer art, acrescentando às imagens o comentário

social.

Page 6: Arte tecnologia brasil_itaucultural

De um modo geral, entende-se por computer art um conjunto bastante diversificado

de procedimentos, atitudes e estratégias da arte e do artista com relação ao

computador. Num primeiro sentido, o computador pode ser encarado como uma

ferramenta para a geração e o tratamento das imagens. Uma vez produzidas,

modeladas (no caso das imagens tridimensionais) e eventualmente animadas e

sonorizadas, as imagens são transferidas para outro suporte (papel, tela, filme,

vídeo) e exibidas nas formas tradicionais em galerias de arte ou salas de projeção.

Na verdade, são raros os casos em que o computador é utilizado estritamente como

ferramenta, como se fosse um pincel ou uma paleta mais sofisticados. Muito

freqüentemente, o trabalho do artista acaba sendo contaminado por alguns

processos formadores próprios da informática, de modo que o resultado final não

poderia jamais ser obtido de outra forma. Entre os artistas brasileiros que poderiam

ser incluídos nessa classificação, podemos citar Irene Faiguenboim, André Vallias,

Julio Plaza, Walter Silveira, Lenora de Barros, Arnaldo Antunes e alguns trabalhos

de Carlos Fadon Vicente.

Numa segunda acepção, é o computador que cria a obra, a partir de um programa

de criação previamente concebido pelo artista. Nesse caso, é possível que a forma

final de exibição seja também o circuito tradicional da arte, mas a diferença está no

fato de as decisões sobre o que fazer e como fazer serem tomadas pelo próprio

computador. O artista, nesse caso, apenas prevê um conjunto de possibilidades de

comportamento do computador, em geral utilizando conceitos de inteligência

artificial. Como não poderia deixar de ser, a maioria dos realizadores deste grupo

pertence a uma classe muito especial de artistas, aquela dotada também de

competência científica e tecnológica, acumulando talentos ao mesmo tempo nas

artes plásticas e nas ciências exatas. Emanuel Dimas de Melo Pimenta, Tânia Fraga

e Suzete Venturelli poderiam ser incluídos nessa classificação.

Numa terceira acepção, o computador, ou mais exatamente o seu monitor, é o

próprio suporte de exibição do trabalho. A presença física da máquina no espaço de

exibição é requerida porque esse tipo de trabalho utiliza os recursos interativos do

computador e incorpora criativamente a resposta do espectador. Já em 1982, Nelson

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Page 7: Arte tecnologia brasil_itaucultural

Max criou Carla's Island, uma paisagem tridimensional gerada em tempo real pelo

computador cujos parâmetros podiam ser alterados pela audiência durante a

exibição. Na década de 90, Jeffrey Shaw construiu várias instalações interativas que

podiam ser navegadas em tempo real pelo visitante. Em The Legible City (1990), por

exemplo, o visitante, sentado numa bicicleta dotada de sensores, podia viajar por

uma "cidade" construída por meio de uma arquitetura literária tridimensional e, ao

mesmo tempo, ler as frases que se formavam ao longo do deslocamento. A

evolução inevitável desse tipo de trabalho seria a incorporação de recursos de

realidade virtual aos ambientes instalativos (por exemplo, nos trabalhos de Scott

Fischer) e a utilização das redes telemáticas (Internet) como estrutura para a

concepção de obras potenciais (que possibilitam um grande número de ocorrências

diferenciadas) e capazes de incorporar a participação do espectador. Nessa última

categoria, pode-se citar o trabalho de Eduardo Kac, criador dos telerrobôs ou robôs

que podem ser dirigidos remotamente, de qualquer parte do mundo, pela World

Wide Web. Além de Kac, pode-se também citar, no Brasil, os trabalhos de André

Vallias, Emanuel Dimas de Melo Pimenta, Tânia Fraga, Suzete Venturelli e alguns

trabalhos de Carlos Fadon Vicente.

Embora a expressão computer art seja mais genericamente utilizada para referir-se

a trabalhos realizados no âmbito das artes visuais, num sentido mais amplo ela

poderia abarcar também a computer music e a literatura assistida por computador.

No primeiro caso, seria inevitável mencionar o uso de computadores pelo grego

Iannis Xenakis para gerar valores musicais aleatórios (a chamada música

estocástica) e a incorporação do computador à orquestra sinfônica, pelo francês

Pierre Boulez, em Répons (1980), além da contribuição de compositores tão

diversos, tais como Vladimir Ussachevsky, os irmãos Colin e David Matthews e Tod

Machover, este último inventor de instrumentos computadorizados, conhecidos como

hiperinstrumentos (vide bloco Música Eletroacústica). Na área da literatura, o alemão

Max Bense, o italiano Nanni Balestrine, o português Pedro Barbosa e o grupo

francês Oulipo (Ouvroir de Littérature Potencielle) obtiveram os melhores resultados

na geração automática de textos artificiais, graças ao processamento pelo

computador das regras fonêmicas, morfológicas, semânticas e sintáticas de uma

língua (vide bloco Poesia e Novas Tecnologias).

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Page 8: Arte tecnologia brasil_itaucultural

Entre os eventos relacionados com a segunda edição do megaevento Arte Cidade,

em São Paulo (1994), destaca-se a publicação de um CD-ROM com experiências

criativas no campo da multimídia. Não se trata certamente do primeiro, mas sem

dúvida esse CD-ROM está entre os primeiros no plano mundial a voltar-se

exclusivamente para questões relativas à criação artística com multimídia. Para

entender por que os computadores, de repente, começaram a ser cada vez mais

requisitados na produção de arte precisamos, em primeiro lugar, entender o modo

de operação dos sistemas digitais. As memórias de acesso aleatório dos

computadores bem como os dispositivos de armazenamento não-lineares

(disquetes, discos rígidos, CD-ROMs, CD-Is, laserdiscs), possibilitam uma

recuperação interativa dos dados armazenados, ou seja, eles permitem que o

processo de leitura seja cumprido como um percurso, definido pelo leitor-operador,

ao longo de um universo textual em que todos os elementos são dados de forma

simultânea. Com os mais recentes formatos de armazenamento das informações

computacionais, o receptor pode entrar no dispositivo audiovisual a partir de

qualquer ponto, seguir para qualquer direção e retornar a qualquer "endereço" já

percorrido.

A disponibilidade instantânea de todas as possibilidades articulatórias do texto

audiovisual favorece uma arte da combinatória, uma arte potencial, em que, ao invés

de se ter uma "obra" acabada, se tem apenas seus elementos e suas leis de

permutação definidas por um algoritmo combinatório. A "obra" agora se realiza

exclusivamente no ato de leitura e em cada um desses atos ela assume uma forma

diferente, embora, no limite, inscrita no potencial dado pelo algoritmo. Cada leitura é,

num certo sentido, a primeira e a última. O texto audiovisual já não é mais a marca

de um sujeito (visto que o sujeito que o realiza é um outro: o leitor-usuário), mas um

campo em que o sujeito enunciador apenas fornece o programa e o sujeito

atualizador realiza parte de suas possibilidades.

No CD-ROM Arte Cidade, temos várias experiências nessa direção. Ana Muylaert,

por exemplo, realiza uma pequena peça de ficção em que o usuário determina, até

certo ponto, as conexões que vão definir a trama. Já Artur Matuck coloca o usuário

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Page 9: Arte tecnologia brasil_itaucultural

como personagem principal de uma viagem cujos incidentes dependem de certa

forma das ações desse personagem no interior da trama. Em alguns casos, o

trabalho é concebido como um campo de possibilidades, no qual o espectador-

interactor deve fazer suas escolhas para visualizar algum tipo de resultado. Artur

Lescher fornece material para que o usuário construa espirais rotativas à maneira de

Marcel Duchamp, e é ele - usuário - quem determina o número de espirais, o

diâmetro e a velocidade de rotação. Regina Silveira, por sua vez, deixa que o

receptor decida o ponto de vista sob o qual serão visualizadas suas metamorfoses

de objetos domésticos. Onde termina o trabalho do autor e onde começa o do

receptor?

Uma das vias mais férteis de experimentação apontadas no CD-ROM é a da poesia

audiovisual. Trabalhos como os de Walter Silveira, Tadeu Knudsen, Lenora de

Barros e Guto Lacaz deixam patente a influência marcante da poesia concreta sobre

a produção de toda uma geração de artistas e poetas brasileiros contemporâneos.

Essa geração procura explorar textos iconizados que sejam adequados não apenas

aos novos suportes possibilitados pela eletrônica e pela informática, mas também

adequados à nova sensibilidade dos homens e mulheres do fim de século XX. Ao

desgarrar-se do papel, a poesia ganha um impacto novo e se faz moeda corrente no

fluxo de energias da paisagem urbana. No CD-ROM, pode-se encontrar, por

exemplo, um poema-jogo de Walter Silveira, que é uma espécie de atualização

eletrônica do antigo jogo da forca. O poema só se torna legível se você acerta as

letras que o compõem. O maior desafio, porém, está na proposta radical de Otavio

Donasci. Como se fosse um hacker, Donasci faz desencadear um "vírus" que

compromete os trabalhos de todos os outros artistas.

Um dos maiores desafios que se apresentam aos artistas que trabalham com

imagens digitais é saber explorar a imagem adequada ao tamanho, resolução e

características da tela do monitor. Gostaríamos de chamar a atenção para o trabalho

exemplar de Carlos Fadon Vicente nesse sentido. Explorando com extremo cuidado

a cor-luz do monitor, as possibilidades de combinação de cores na resolução

proposta, os contrastes entre fundo e frente, a tensão entre controle e acaso na

navegação e a perfeita adequação entre imagem e música, Fadon produz um

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Page 10: Arte tecnologia brasil_itaucultural

trabalho sofisticado, de muito bom gosto, que deverá servir de farol a futuras

gerações de argonautas.

Entre os artistas-inventores que se propuseram a enfrentar o desafio das mídias

digitais, José Wagner Garcia também aparece como um pioneiro no Brasil. Depois

de ter experimentado com o videodisco interativo durante vários anos, o seu primeiro

trabalho mais acabado nessa direção foi A Pele da Imagem, inicialmente

apresentado na mostra Arte Cidade 2 e depois distribuído como trabalho

independente em CD-ROM. Trata-se de uma proposta (a rigor, a primeira formulada

no Brasil) de cinema digital interativo, entendido como tal um cinema concebido

numa forma combinatória e permutacional, em que as imagens e os sons estão

ligados entre si por elos probabilísticos móveis, que podem ser configurados pelos

usuários de diferentes maneiras, de modo a compor obras instáveis em quantidades

quase infinitas. Com o auxílio de um joystick, mouse ou com as setas de direção do

teclado do computador, o espectador-usuário pode navegar dentro do mar de

possibilidades que o CD-ROM lhe oferece e construir a sua própria narrativa.

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Page 11: Arte tecnologia brasil_itaucultural

Arte-Comunicação

Uma impressionante antevisão da web art ou net art (que abordamos de modo

específico no bloco Arte na Rede) foi experimentada nas duas últimas décadas do

século XX, no terreno da chamada arte-comunicação, ou seja, naqueles trabalhos

artísticos baseados na transmissão de textos, sons e imagens de um ponto a outro

do planeta, por meio de telefone, fax, slow-scan, satélites e televisão. A Internet é

um desenvolvimento bastante recente da telemática (ela começou a se desenvolver

a partir de 1994), mas os trabalhos com arte-comunicação são bastante anteriores.

O primeiro movimento da história da arte a valorizar a comunicação transnacional foi

a arte postal, e não poderíamos deixar de citá-la como uma espécie de pré-história

da arte-comunicação. Reunindo artistas de diferentes nacionalidades para

experimentar novas possibilidades e intercambiar trabalhos numa rede livre e

paralela ao mercado oficial das artes, a mail art foi a primeira modalidade de evento

a tratar como arte a comunicação em rede e em grande escala. Mas as diferenças

que existem entre as primeiras experiências com arte postal e a posterior arte

telemática são a intermediação da eletrônica e as conseqüências advindas da

adesão a essa tecnologia: alta velocidade de comunicação a distâncias planetárias,

procedimentos instantâneos de comunicação, utilização de suportes imateriais, além

do surgimento de questões novas para a arte, como a ubiqüidade, o tempo real, a

interatividade, a dissolução da autoria, etc.

No Brasil, vários artistas trabalharam explorando as possibilidades poéticas das

redes de comunicação e aqui vamos destacar apenas as experiências e os eventos

principais. Consta que, em 31 de outubro de 1980, foi realizado o primeiro contato

via fax entre artistas brasileiros: uma comunicação entre Paulo Bruscky (no Recife) e

Roberto Sandoval (em São Paulo). No ano seguinte, a 16ª Bienal Internacional de

São Paulo apresenta o seu Núcleo I de produção artística configurada em sistemas

de expressão e comunicação que utilizavam novas mídias. Nesse contexto, a arte

postal também foi incluída. Na carta-convite assinada por Walter Zanini, curador da

Page 12: Arte tecnologia brasil_itaucultural

Bienal, essa modalidade artística foi definida como "um sistema de arte novo criado

para a intercomunicação entre artistas".

Nesse período, começa também a experiência do videotexto brasileiro. A idéia de

juntar telefone e televisor para formar um novo veículo de informações surgiu em

vários países, adaptando-se a diversas tecnologias de transmissão. O Brasil

resolveu adotar o sistema francês (minitel) em 1982 e, já na fase inicial, alguns

artistas tiveram acesso a essa tecnologia, entre eles Nelson das Neves, que nessa

época trabalhava na Companhia Telefônica de São Paulo, Telesp, empresa que

implantou o sistema em São Paulo. Em 1982, também em São Paulo, Julio Plaza

coordenou e participou do projeto artístico Arte pelo Telefone: videotexto, com

Carmela Gross, Lenora de Barros, Leon Ferrari, Mário Ramiro, Omar Khouri, Paulo

Leminski, Roberto Sandoval, entre outros. Essa exposição foi contemporânea à

primeira exibição em videotexto realizada em Nova York, sob organização de Martim

Niesenhold, com apoio da New York University.

Em 1983, foi realizada a exposição Arte e Videotexto, no projeto Novos Media da 17ª

Bienal Internacional de São Paulo, mais uma vez organizada por Julio Plaza. Essa

exposição fazia parte do projeto de mesmo nome que previa vários níveis de

participação: edição eletrônica de trabalhos de arte apresentados como tais por seus

autores; laboratório de linguagem nos códigos visual e escrito, incluindo narrativas

infantis e experiências didáticas; e edição do Bienal-informativo (jornal eletrônico da

Bienal) para veiculação de informações pertinentes à exposição e seus arquivos,

assim como para o registro dos percursos e roteiros para visitantes. A proposta foi

inovadora sob diferentes aspectos, mas especialmente porque aproveitou a

estrutura do videotexto, quer dizer, sua penetração por meio de terminais

domésticos, via cabo telefônico. Isso fez com que a mostra de videotexto penetrasse

inclusive nas casas daqueles que não têm o costume de visitar a Bienal. Essa foi a

primeira vez que a Bienal mostrou arte nas residências de São Paulo: arte on-line.

Vários foram os artistas participantes, distribuídos entre os oito tópicos: Arte Visual:

Ana Aly, Anna Carreta, Leda Catunda, Alex Flemming, Walter Garcia, Carmela

Gross, Nelson das Neves, Sérgio Romagnolo, Ana Maria Tavares; Arte Poesia:

Lenora de Barros, Samira Chalhub, Omar Khouri, Paulo Leminski, Philadelpho

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Page 13: Arte tecnologia brasil_itaucultural

Menezes, Paulo Miranda, Alice Ruiz; Arte Narrativa: Maria Inês dos Santos Duarte,

Carlos Gardin, Maria Aparecida Junqueira, Maria dos Prazeres Mendes, Maria Rosa

Duarte de Oliveira, Maria José Palo, Leon Ferrari, Paulo Garcez, Amador Ribeiro

Neto, Lucia Santaella; Arte sobre Arte: Julio Plaza, Regina Silveira; Arte sobre o

Meio: Vera Chaves Barcellos, Wagner Garcia, Nina Moraes, Mônica Nador; Interarte:

Eduardo Duar, Adriana Freire, Jac Leirner, Rozélia Medeiros, Mário Ramiro;

Tradução: Mônica Costa; e Você É Crítico: Julio Plaza. Em Você É Crítico, o usuário

podia, por intermédio de terminais de videotexto, expressar seu ponto de vista sobre

a mostra de videotexto ou sobre qualquer aspecto da 17ª Bienal Internacional de

São Paulo.

Ainda em 1983, José Wagner Garcia e Mário Ramiro criaram Clones - Uma Rede de

Rádio, Televisão e Videotexto. Esse trabalho baseava-se na simultaneidade da

transmissão e recepção das representações de um objeto em três diferentes

sistemas. Uma instalação em que terminais de videotexto, monitores de TV, rádio e

alto-falantes foram agrupados em uma sala circular no MIS, São Paulo, com a

recepção sincronizada das três transmissões. Os nove terminais de videotexto

conectados a nove diferentes linhas telefônicas apresentavam um elemento gráfico -

uma barra vermelha horizontal, que passava de um monitor a outro. A mesma barra

horizontal era recebida de uma transmissão de TV ao vivo, movendo-se na

superfície da tela do monitor de TV instalado no MIS. Uma representação acústica

desse mesmo objeto, baseada no som produzido por uma barra de aço caindo

horizontalmente e batendo no chão, era ouvida nos alto-falantes, captada por meio

de programa de rádio.

José Wagner Garcia, em 1984, apresenta o projeto Ptyx - Conexão Simultânea, um

trabalho que conectou o Centro Cultural São Paulo e a Galeria de Arte Paulo

Figueiredo. Contou com a participação de Vânia Bastos (voz) e Wilson Sukorski

(som). A partir da instalação de baffles, especialmente projetados para o evento,

com irradiação sonora de 30 graus, formando um conjunto de nove peças na forma

de semicubo-octaedral, criava-se um corredor acústico para o deslocamento, por

ressonância, do som emitido por uma taça de cristal, quebrada pelo grito agudo da

cantora Vânia Bastos, numa freqüência de 652.7 Hz. Em Ptyx, o percurso evocava a

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Page 14: Arte tecnologia brasil_itaucultural

explosão (da taça) e a construção (da imagem) na imaterialidade da informação e

discutia a formação desta informação, dependendo de dois lugares distintos.

Em 1985, houve uma grande retrospectiva dos trabalhos de arte-comunicação, da

mail art ao videotexto, na exposição Arte: Novos Meios/Multimeios - Brasil 70/80,

que aconteceu na Faap, em São Paulo. Ali foram apresentados, entre outros, os

projetos Fac-Similarte, de Paulo Bruscky e Roberto Sandoval; Caricaturas e A Arte

na Trama Eletrônica, videotexto de Rodolfo Cittadino; Arte em Videotexto, de Julio

Plaza, com participação de Alex Flemming, Alice Ruiz, Augusto de Campos,

Carmela Gross, Julio Plaza, Leon Ferrari, Lenora de Barros, Maria José Palo,

Mônica Costa, Omar Khouri, Lucia Santaella, Paulo Leminski e Paulo Miranda.

Entre os eventos importantes de 1985, deve-se acrescentar ainda o fato de a

Livraria Nobel do Rio de Janeiro ter aberto uma galeria permanente de arte em

videotexto, denominada Arte On-Line. Nela colaboraram vários artistas cariocas,

inclusive Eduardo Kac.

Em 1984, Eduardo Kac havia concebido, no Rio de Janeiro, o projeto Cyborg, que

envolvia três galerias e objetos controlados remotamente. Este projeto, infelizmente,

acabou não se realizando devido a obstáculos técnicos que o envolviam, mas Kac

não desistiu de suas pesquisas com telepresença e acabou desenvolvendo vários

projetos semelhantes depois, por ocasião de sua residência nos Estados Unidos.

Mas, ainda em 1986, Eduardo Kac projetou um robô controlado por rádio, para

participar da exposição Brasil High Tech, realizada no Centro Empresarial do Rio de

Janeiro sob curadoria do próprio Kac e de Flávio Ferraz. Kac usou um rôbo

antropomórfico com sete pés de altura como uma espécie de anfitrião, que

conversava com os visitantes da exposição. A voz do robô, transmitida via rádio, era

uma voz humana. Durante esse mesmo evento, o robô foi usado numa performance

telerrobótica realizada com Otavio Donasci, em que o robô interagia com uma

videocriatura deste artista. O robô foi construído por Cristovão Batista da Silva.

Nessa mesma exposição, com curadoria dos mesmos Eduardo Kac e Flávio Ferraz,

vários artistas participaram de uma mostra de arte em videotexto: Gino Zaniboni

4

Page 15: Arte tecnologia brasil_itaucultural

Netto, Julio Plaza, Nelson das Neves, Rodolfo Cittadino, Rose Zangirolami, além dos

próprios Eduardo Kac e Flávio Ferraz.

Outra tecnologia de transmissão de informação a longas distâncias bastante

utilizada por artistas foi a SSTV (slow-scan television). Em 14 de outubro de 1986, a

Sky Art Conference, evento conjunto entre o Center for Advanced Visual Studies,

CAVS, em Boston, coordenado por Otto Piene, e a ECA/USP, coordenada por José

Wagner Garcia, foi provavelmente a primeira transmissão com slow-scan no Brasil.

Em agosto de 1987, Eduardo Kac projetou ainda o Faxelástico, como parte da

exposição Luz Elástica, no MAM/RJ. O Faxelástico foi uma espécie de "faxfilme":

participantes foram convidados a enviar seqüências de imagens, formando um

faxfilme que se editava a si mesmo, de acordo com a ordem de recebimento das

seqüências.

O Instituto de Pesquisas em Arte e Tecnologia, Ipat, foi formado por um grupo de

artistas que pesquisavam novas mídias e seus objetivos centravam-se na relação

entre a arte e as novas tecnologias. Esse instituto (formado por Artur Matuck, Paulo

Laurentiz, Milton Sogabe, Anna Barros, Carlos Fadon Vicente, Julio Plaza, entre

outros) organizou diversos eventos de arte e comunicação, utilizando videotexto,

SSTV e fax. Em 1988, realizou-se o intercâmbio de imagens via slow-scan entre o

Ipat e o Digital Art Exchange Group, DAX, da Carnegie-Mellon University, em

Pittsburgh. O evento, chamado Intercities: SP/Pittsburgh, foi coordenado em São

Paulo por Artur Matuck e Paulo Laurentiz e em Pittsburgh por Bruce Breland. Entre

as participações, deve-se destacar o projeto Still Life/Alive, de Carlos Fadon Vicente.

Entre 1987 e 1988, Eduardo Kac elaborou "esboços para dois pequenos telerrobôs",

para serem controlados por participantes de duas cidades distantes. A idéia era

permitir a um participante de uma cidade controlar um telerrobô na outra cidade, e

vice-versa. Nesse projeto, Kac contou com a consultoria do engenheiro Wellington

Pinheiro. As idéias exploradas nesse trabalho serviram de base para o

desenvolvimento do seu próximo projeto, Ornitorrinco. Mas falaremos sobre esse

projeto no bloco Arte na Rede, pois ele se estendeu até 1996.

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Page 16: Arte tecnologia brasil_itaucultural

Em 8 de abril de 1988, realizou-se um diálogo via fax e canal de TV, ao vivo, entre

Mário Ramiro, em São Paulo, e Eduardo Kac, no Rio de Janeiro. Chamava-se

Retrato Suposto - Rosto Roto. Conectando o meio público da televisão com o meio

privado do fax, este trabalho criou um sistema de feedback baseado na troca e

transformação contínua das imagens. Mário Ramiro estava em São Paulo, nos

estúdios da TV Cultura, e se conectava com Kac, através de fax, em seu estúdio, no

Rio de Janeiro. A base desse trabalho era explorar a operação em tempo real da

utilização do fax, um meio dialógico, no contexto de um programa de televisão, um

sistema unidirecional de comunicação de massa.

Em fevereiro de 1989, no projeto Faxarte I, realizou-se um intercâmbio via fax entre

a ECA/USP e o Instituto de Artes da Unicamp, IA/Unicamp, coordenado por Artur

Matuck (da ECA) e Paulo Laurentiz (do IA/Unicamp). Alguns meses depois, os

estudantes dessas mesmas universidades participaram do Faxarte II, sob a

coordenação de Artur Matuck, Shirley Miki e Gilbertto Prado. Entre os artistas

participantes estavam Anna Barros, Artur Matuck, Gilbertto Prado, Marco do Valle,

Milton Sogabe, Paulo Laurentiz e Regina Silveira, entre outros.

Carlos Fadon e Eduardo Kac criam também em 1989 Three-City Link, utilizando a

tecnologia de slow-scan TV e conectando artistas em Boston (Dana Moser), Chicago

(Kac e Fadon) e Pittsburgh (o DAX). A experiência consistiu em conectar os

artistas por meio de um sistema de conferência telefônica three-way, de modo a

permitir trocar imagens e interagir sobre as imagens recebidas e gerar uma reflexão

visual sobre as relações entre o espaço urbano e o espaço telemático.

Ainda em 1989, entre os dias 11 e 15 de dezembro, as primeiras imagens via fax

foram intercambiadas no projeto City Portraits, concebido por Karen O’Rourke, entre

o grupo Art-Réseaux de Paris e outros artistas residentes nas cidades de Düsseldorf,

Filadélfia e Campinas. Entre os artistas brasileiros, destacam-se as participações de

Gilbertto Prado, que no período encontrava-se na base em Paris, Paulo Laurentiz,

que coordenava o pólo transmissor em Campinas, ao lado de Milton Sogabe, Renato

Hildebrand e Anna Barros, entre outros, e em Chicago encontravam-se Carlos

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Page 17: Arte tecnologia brasil_itaucultural

Fadon Vicente, Irene Faiguenboin e Eduardo Kac. Essa foi a primeira fase desse

projeto e sua proposta era: pares de imagens (fotos e outros documentos da cidade

de cada um) eram enviados e os participantes eram convidados a perfazer os

caminhos e estabelecer retratos de cidades que não conheciam. A circulação da

informação fazia com que os artistas, que enviaram informações de suas cidades, a

redescobrissem por meio da visão de outros. A proposta teve como objetivo o

aproveitamento da bidirecionalidade e da interatividade dos meios telemáticos,

procurando explorar a imaginação dos artistas de cada cidade, além de projetar

cidades imaginárias, a partir de imagens enviadas pelos outros parceiros da rede.

Em 28 de fevereiro de 1990, o projeto de Paulo Laurentiz L’Oeuvre du Louvre levou

artistas brasileiros a "invadir", durante o período de carnaval, com envio de fax, o

Museu do Louvre, em Paris. Os artistas participantes foram Anna Barros, Lúcio

Kume, Mário Ishikawa, Milton Sogabe, Paulo Laurentiz e Regina Silveira. Esse

evento tinha como princípio norteador o conceito do Museu Imaginário de André

Malraux. Apropriando-se de reproduções de obras do Museu do Louvre, artistas

brasileiros executaram trabalhos, comentando, traduzindo ou mesmo citando essas

referências. A coletânea produzida passou a compor o material transmitido.

Para celebrar o Dia da Terra, o grupo DAX, situado na Carnegie-Mellon University,

Pittsburgh, organizou o projeto Earthday 90 Global Telematic Network & Impromptu.

Foram estabelecidos contatos via slow-scan e fax entre artistas das cidades de

Viena, Lisboa, Campinas, São Paulo, Boston, Baltimore, Pittsburgh, Chicago,

Vancouver e Los Angeles. Esse evento foi realizado nos dias 21 e 22 de abril de

1990. As curadorias ficaram a cargo de Bruce Breland, do DAX Group, no pólo

principal na Carnegie-Mellon University; Carlos Fadon Vicente e Eduardo Kac, na

The School of the Art Institute of Chicago; e Paulo Laurentiz, no IA/Unicamp. Em

Campinas, com infra-estrutura que contava com três linhas exclusivas no

Departamento de Multimeios do IA/Unicamp, duas para transmissão de sinais de

SSTV e uma para fax, os artistas brasileiros se reuniram para enviar suas propostas

e interagir com as que chegavam, elaborando trabalhos com os recursos do local.

Entre os artistas brasileiros participantes podemos citar André Petry, Anna Barros,

Artemis Moroni, Artur Matuck, Carlos Bottesi, Carlos Fadon Vicente, Eduardo Kac,

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Page 18: Arte tecnologia brasil_itaucultural

Elisabeth Bento, Ernesto Mello, Eunice da Silva, Gilbertto Prado, Hermes Renato

Hildebrand, Irene Faiguenboim, Mário Ramiro, Milton Sogabe e Paulo Laurentiz.

Poéticas Instantâneas foi um projeto isolado de intercâmbio via fax entre as cidades

de Campinas e Porto Alegre, coordenado por André Petry, entre os dias 10 e 11 de

dezembro de 1990.

Na passagem do ano de 1990 para 1991, Paulo Laurentiz coordenou o projeto No

Time, teletransmissão artística entre Brasil (IA/Unicamp) e Japão (College of Arts of

Kyoto). Esse projeto consistiu em transmissão via computador/modem e fax de uma

série de trabalhos gráficos e sonoros, elaborados pelos artistas anteriormente e

durante as doze horas do evento. A proposta foi trabalhar no período de diferença

de fuso horário entre os dois países. Assim, quando o Brasil entrava no ano de

1991, o Japão já estava em pleno meio-dia desse ano. O evento começou ao meio-

dia de 31 de dezembro de 1990 e terminou à meia-noite desse mesmo dia (hora de

Brasília). Os trabalhos gráficos e sonoros eram elaborados e decodificados pelo

computador. Participaram desse evento Paulo Laurentiz e Milton Sogabe, nos

trabalhos gráficos, e José Augusto Mannis e Eiko Akiyama, nos trabalhos sonoros.

Em maio de 1991, foi realizado o fax-evento Connect, concebido por Gilbertto Prado,

que permitia a pessoas localizadas em diferentes locais do planeta realizar

simultaneamente um trabalho artístico comum em tempo real. Os participantes

trabalhavam simultaneamente sobre o papel, em movimento que circulava nas

diferentes localidades produzindo um trabalho único e partilhado numa relação/ação

direta e integrada. As primeiras ações aconteceram em maio de 1991 entre Paris

(Université de Paris I - Centre Saint-Charles) e Pittsburgh (Carnegie-Mellon

University - Studio for Creative Inquiry). E, em novembro de 1991, entre Paris (Art-

Réseaux) e São Paulo (Centro Cultural Oswald de Andrade - Workshop Projeto

Reflux - 21ª Bienal Internacional de São Paulo).

Ainda em 1991, realizou-se o projeto Telesthesi, de Artur Matuck, com a produção

de um texto interativo por rede de computador (correio eletrônico), com o apoio do

The Studio for Creative Inquiry de Pittsburgh e da Universidade de São Paulo. E, em

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Page 19: Arte tecnologia brasil_itaucultural

13 de agosto do mesmo ano, tivemos o Faxelástico, um projeto de Eduardo Kac,

como parte da exposição Luz Elástica, no MAM/RJ.

De setembro a dezembro de 1991, por ocasião da 21ª Bienal Internacional de São

Paulo, Artur Matuck concebeu e coordenou o projeto Reflux. Ele propôs ligações

telemáticas entre vários nós e convidou os participantes a interagir também com

seus projetos - os influxs. Entre os trabalhos apresentados, podemos citar Langterra

- Dymaximal Territory, de Artur Matuck e Robert Rogers, do The Studio for Creative

Inquiry, de Pittsburgh; Traces, de Gilbertto Prado, Art-Réseaux, de um grupo de

artistas de Paris; e Clothfax, uma performance-fax de Otavio Donasci.

De 22 a 25 de outubro de 1992, tivemos, no MAC/USP, o evento Proto Arte

Telemática, coordenado por Artur Matuck, com participação de vários artistas, entre

eles Madalena Bernardes e Otavio Donasci.

No Rio Grande do Sul, em maio de 1994, Diana Domingues, Ana Mery de Carli e

Fabiana de Lucena coordenaram um projeto de rede de comunicação utilizando fax.

O evento se chamou Em Contato e foi realizado na Universidade de Caxias do Sul.

Em junho de 1994, a mostra Via Fax teve a participação de diversos artistas do Rio

de Janeiro, de São Paulo, Belo Horizonte, Nova York, Porto Alegre e do Recife, no

Museu do Telephone, no Rio de Janeiro.

Entre os dias 21 de outubro e 11 de novembro de 1994, Eduardo Kac organizou o

projeto ElasticFax 2, no Center for Contemporary Art, na University of Kentucky,

Lexington (Estados Unidos). Artistas de todo o mundo foram convidados, via

Internet, a transmitir imagens seqüenciais, para formar as seqüências de um filme de

fax auto-organizado. A máquina de fax foi posicionada na altura dos olhos, para criar

a sensação de um imenso projetor, com as imagens passando. Ao mesmo tempo,

criou-se a sensação de uma "queda-d’água", com as imagens formando padrões

ondulados ao cairem no chão.

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Page 20: Arte tecnologia brasil_itaucultural

A partir desse momento, o que era a arte-comunicação se transfigura em net art ou

arte na rede (vide o bloco Arte na Rede).

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Page 21: Arte tecnologia brasil_itaucultural

Hibridismo/Intermídias

Expressões como hibridismo, mestiçagem ou poética das passagens começaram a

ser utilizadas na exposição Passages de l'Image, organizada em Paris, em 1990, por

Raymond Bellour e outros, para referir-se à dissolução das fronteiras entre os

suportes e as linguagens, bem como também à reciclagem dos materiais que

circulam nos meios de comunicação. As imagens são compostas agora a partir de

fontes as mais diversas: parte é fotografia ou cinema, parte é desenho, parte é

vídeo, parte é texto produzido em geradores de caracteres e parte é modelo gerado

em computador. Por sua vez, os sons são ora registros brutos ou processados, ora

sínteses produzidas em computador e ora o resultado de um "sampleamento"

(edição e metamorfose de amostras gravadas). Na série Connexio, de Diana

Domingues, por exemplo, cada plano é um híbrido, constituído de figuras em

migração permanente, onde já não se pode mais determinar a natureza de cada um

de seus elementos constitutivos, tamanha é a mistura, a sobreposição, o

empilhamento de procedimentos diversos, sejam eles antigos, sejam modernos,

sofisticados ou elementares, tecnológicos ou artesanais.

Segundo Ítalo Calvino, a multiplicidade exprime um modo de conhecimento do

homem contemporâneo, onde o mundo é visto e representado como uma "rede de

conexões", uma trama de relações de uma complexidade inextricável. Recursos

recentes de edição digital permitem, por exemplo, jogar para dentro da tela uma

quantidade quase infinita de imagens e sons simultâneos, para fazê-los

combinarem-se em arranjos inesperados, como que atualizando a idéia de uma

montagem "vertical" ou "polifônica", formulada por Serguei Eisenstein nos anos 40. A

técnica mais utilizada consiste em abrir "janelas" dentro do quadro para nelas inserir

novas imagens e, ao mesmo tempo, multiplicar as fontes sonoras em vários canais

de som. Toda a arte eletrônica que segue a trilha aberta por Nam June Paik e todas

as modalidades computadorizadas de multimídia apontam hoje para a possibilidade

de uma nova "gramática" dos meios audiovisuais, que consiste em superpor tudo

(múltiplas imagens, múltiplos textos, múltiplos sons), ou imbricar as fontes umas nas

outras, fazendo-as acumular infinitamente dentro do quadro. Trata-se, segundo

Page 22: Arte tecnologia brasil_itaucultural

alguns, de uma estética da saturação, do excesso (a máxima concentração de

informação num mínimo de espaço-tempo) e também da instabilidade (ausência

quase absoluta de qualquer integridade estrutural ou de qualquer sistematização

temática ou estilística), mas essa também pode ser uma maneira mais adequada de

representar a complexidade.

O universo das artes eletrônicas apresenta-se de forma múltipla, variável, instável,

complexa e ocorre numa variedade infinita de manifestações. A eletrônica pode hoje

estar presente em esculturas, instalações multimídias, ambientes, performances,

intervenções urbanas, até mesmo em peças de teatro, salas de concerto e shows

musicais, conforme se pode verificar de forma bastante enfática na obra

performática de artistas como Renato Cohen, Bia Medeiros (e seu grupo Corpos

Informáticos) e Artemis Moroni (e seu grupo *.*), ou nas instalações e performances

de Anna Barros e Josely Carvalho. As obras eletrônicas podem, portanto, existir

associadas a outras modalidades artísticas, a outros meios, a outros materiais, a

outras formas de espetáculo. Como conseqüência dessa generalização da imagem e

do som eletrônicos, os artistas que os praticam, bem como os públicos para os quais

se dirigem, tornam-se cada vez mais heterogêneos, sem qualquer referência

padronizada, perfazendo hábitos culturais em expansão, circuitos de exibição

efêmeros e experimentais, que resultam em verdadeiros quebra-cabeças para os

fanáticos da especificidade. Eis porque falar de arte eletrônica significa colocar-se

fora de qualquer território institucionalizado. Trata-se de enfrentar o desafio e a

resistência de um objeto híbrido, em expansão, fundamentalmente impuro, de

identidades múltiplas, que tende a se dissolver camaleonicamente em outros objetos

ou a incorporar seus modos de constituição.

A imagem e o som eletrônicos invadem hoje todos os setores da produção cultural,

comprometendo todas as especificidades. A tela eletrônica representa agora o local

de convergência de todos os novos saberes e das sensibilidades emergentes que

perfazem o atual panorama da visualidade. Nesse estado de coisas que agora se

configura, a imagem perde cada vez mais os seus traços materiais, a sua

corporeidade, a sua substância, para se transfigurar em alguma coisa que não existe

senão no estado virtual, desmaterializada em fluxos de corrente elétrica. Como

2

Page 23: Arte tecnologia brasil_itaucultural

acontece com nossas imagens mentais, aquelas que brotam do imaginário, as

imagens eletrônicas são fantasmas de luz que habitam um mundo sem gravidade e

que só podem ser invocadas por alguma máquina de "leitura", atualizadora de suas

potencialidades visíveis.

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Page 24: Arte tecnologia brasil_itaucultural

Arte na Rede

Nos anos 80, o artista britânico David Hockney produziu um pequeno escândalo em

São Paulo, quando a obra por ele concebida para participar de uma das edições da

Bienal foi enviada por fax, por causa de uma celeuma envolvendo as pesadas

despesas com transporte e seguro. Estávamos então apenas iniciando a discussão

da "desmaterialização da arte", ainda sob o impacto da polêmica exposição de obras

"imateriais" (Les Immatériaux) organizada por Jean-François Lyotard no Centro

Pompidou de Paris em 1985, e a idéia de uma obra "teletransportada" soava

estranha aos nossos hábitos perceptivos fortemente marcados pela presença de

objetos físicos "únicos" no espaço de exposição. No limite, se as obras se

desmaterializam e se multiplicam, não faz mais sentido pensar num espaço físico

para expô-las, ou num lugar para onde o público deveria se dirigir em períodos

preestabelecidos. Elas poderiam ser recebidas em casa pelos mais variados meios,

como o telefone, o videofone, o fax, o rádio e a televisão, ou ser "acessadas" por

meio de redes telemáticas como a Internet.

Talvez a Bienal do futuro não aconteça mais num prédio instalado no Parque

Ibirapuera, que abre as suas portas uma vez a cada dois anos para uma celebração

coletiva. A Bienal do futuro poderia ser uma rede de conexões entre artistas e

instituições que fazem trabalhos criativos, não localizada em lugar algum,

disponibilizada para o acesso público e organizada por um corpo de curadores

espalhados por todo o mundo. Organizar uma exposição poderia significar interligar

várias experiências que já acontecem no campo "desmaterializado" das redes

telemáticas, oferecendo ao visitante (agora chamado de usuário) conceitos ou

idéias-chave que permitam compreender determinados campos de acontecimentos.

Visitar a Bienal poderia significar simplesmente ligar o computador e apontar o

browser para o seu endereço eletrônico.

A web art ou net art é o setor mais recente dentro do sempre mutante campo das

artes eletrônicas. Ela representa uma fusão da arte-comunicação com a arte digital.

Historicamente, a arte-comunicação utilizou recursos predominantemente não

Page 25: Arte tecnologia brasil_itaucultural

digitais (mail art, fax, telefone, slow-scan TV, etc.) ou semidigitais (videotexto) para

estabelecer contatos de comunicação, enquanto as artes digitais não lidavam ainda

com o conceito de comunicação. A web art, num certo sentido, dá continuidade à

idéia de comunicação, mas agora dentro de um contexto nitidamente digital e

valendo-se dessa gigantesca rede mundial de computadores chamada Internet. Ela

já permite hoje experimentar uma antevisão desse futuro próximo em que a Bienal -

e também as galerias, os centros culturais - poderão existir em forma virtual.

Em junho de 1992, destacamos o projeto Moone: La Face Cachée de la Lune, de

Gilbertto Prado, construção de desenhos e imagens em tela, partilhada em direto,

via Rede Numérica de Serviços Integrados, RNSI, entre os Cafés Électroniques de

Paris e a 9ª Documenta, Kassel, Alemanha. O objetivo era construir, com parceiros

distantes (e eventualmente desconhecidos), uma imagem híbrida e composta em

tempo real. Utilizou-se o princípio de tela partilhada, que permite a construção de

imagens simultaneamente em rede, com participantes em locais distantes. Quando

se trabalha com esse dispositivo, pode-se ter a mesma imagem em diferentes

monitores para trabalhá-la a distância, da mesma forma que o movimento dos

mouses é partilhado em tempo real.

De 20 a 25 de agosto de 1994, durante o 5th International Symposium on Electronic

Art, a participação do *.* (asterisco-ponto-asterisco, grupo formado por Artemis

Moroni, José Augusto Mannis e Paulo Gomide Cohn) apresentou o projeto The

Electronic Carnival, diálogo e construção de personagens via Internet.

Em 3 de setembro do mesmo ano, aconteceu o Telage 94, um intercâmbio de

imagens e sons, via modem, projeto coordenado por Carlos Fadon Vicente, em São

Paulo, por Eduardo Kac, em Lexington (Estados Unidos), por Irene Faiguenboim, no

Recife, e por Gilbertto Prado, em Campinas. Entre os participantes, podemos

também citar Renato Hildebrand e Silvia Laurentiz. O Telage 94 fez parte do

megaevento Arte Cidade 2: a cidade e seus fluxos, organizado por Nelson Brissac

Peixoto, em 1994. A proposta foi criar uma trama eletrônica de conexões entre

diferentes cidades, que se tecia entre as diferentes imagens processadas. Uma

2

Page 26: Arte tecnologia brasil_itaucultural

imagem distinta era introduzida em cada ponto do circuito e retrabalhada pelos

demais participantes.

De 1989 até 1996, Kac desenvolveu o projeto Ornitorrinco. Em 1989, ele começou a

trabalhar com Ed Bennett em Chicago e dessa parceria foi projetado, testado e

construído o Ornitorrinco, um telerrobô que podia ser controlado a partir de longas

distâncias. A primeira experiência desse projeto aconteceu em 1990, num link entre

as cidades do Rio de Janeiro e de Chicago. Do Rio de Janeiro, Kac controlava o

Ornitorrinco em Chicago, via conexão telefônica. Depois dessa primeira experiência,

muitas outras aconteceram, utilizando o mesmo conceito desse trabalho.

Ornitorrinco ficou então o nome dado tanto aos trabalhos de arte de telepresença em

andamento quanto ao telerrobô que os realizava.

Por princípio, os eventos do Ornitorrinco envolviam duas localidades distintas,

porém, nada impedia que mais pólos estivessem conectados. Um ou mais membros

do público navegavam por instalação ou local remoto, pressionando teclas de

telefone comum ou clicando o mouse do computador. Recebiam, então, feedback

visual sob a forma de imagens fixas ou em movimento, em tela de computador ou

monitor de vídeo. Freqüentemente ocorriam encontros de comunicação via Internet,

não com trocas verbais ou orais, mas por meio de ritmos resultantes do

envolvimento dos participantes de uma experiência compartilhada no mesmo meio.

Os visitantes, nas palavras do autor, experimentavam juntos, no mesmo corpo, um

lugar longínquo e inventado sob perspectiva impessoal, que suspendia

temporariamente as noções de identidade, localização geográfica e presença física.

Entre os vários eventos envolvendo o Ornitorrinco, podemos citar os que se seguem.

Em 1992, acontece o Ornitorrinco in Copacabana: uma estação pública de

telepresença estava posicionada no McCormick Place, na Conferência Siggraph de

1992, e dali se podia controlar o Ornitorrinco em ambiente especialmente criado na

The School of the Art Institute of Chicago. Em 1993, o Ornitorrinco on the Moon foi

apresentado entre a The School of the Art Institute of Chicago e The Kunstlerhaus

(Graz, Áustria), durante a exposição austríaca Beyond Borders. Em 1994,

Ornitorrinco in Eden foi experimentado num evento de telepresença na Internet.

3

Page 27: Arte tecnologia brasil_itaucultural

Existiam duas estações públicas de telepresença, uma em Seattle e outra em

Lexington. O Ornitorrinco estava em um ambiente no Departamento de Arte e

Tecnologia na The School of the Art Institute of Chicago. Esses três pólos estavam

ligados via ligação telefônica por 3-vias, para controle de movimento em tempo real.

As cidades estavam também conectadas pela Internet via tecnologia CU-See-Me,

que retransmitia constantemente as mudanças de pontos de vista do ambiente do

robô. Usuários de várias cidades americanas e de outros países (incluindo Finlândia,

Canadá, Alemanha e Irlanda) podiam acessar e assistir ao que se passava no

espaço (registrado pelo movimento do robô) em Chicago, pelo ponto de vista do

Ornitorrinco.

Em 1996, surge o Ornitorrinco in the Sahara, um evento de telepresença dialógica

criado para a Bienal de St. Petersburg, na Rússia. A topologia desse evento estava

baseada no uso de duas linhas telefônicas separadas. Uma linha conectava o

Museu de História de St. Petersburg ao Departamento de Arte e Tecnologia da The

School of the Art Institute of Chicago. A segunda linha conectava este Departamento

em Chicago à The Aldo Castillo Gallery.

A primeira curadoria de web art no Brasil foi feita por Ricardo Ribenboim e Ricardo

Anderáos para a 24ª Bienal Internacional de São Paulo, que ocorreu em 1998. Ela

ofereceu ao público de qualquer parte do mundo a oportunidade de fazer um outro

tipo de visita à Bienal, em que nem os artistas nem o público precisavam se deslocar

fisicamente até São Paulo. Numa primeira acepção, a curadoria consistiu em propor

uma coleção de links que permitiam dar forma, consistência e acesso a um conjunto

já bastante expressivo de experiências artísticas que estavam acontecendo naquele

momento na web. Não apenas trabalhos brasileiros foram indicados, mas também

trabalhos de artistas internacionais já consagrados, com é o caso do grupo Jodi

(abreviatura de Joan Heemskerk e Dirk Paesmans), referência inevitável em

qualquer antologia de web art. Os trabalhos foram agrupados em torno de conceitos,

que permitiam distinguir diferentes perspectivas estéticas e existenciais. A interface

proposta dava a impressão de um organismo vivo em permanente mutação e se

apresentava como um work in progress, capaz de assimilar inclusive a colaboração

4

Page 28: Arte tecnologia brasil_itaucultural

dos visitantes no preenchimento dos conceitos com indicações de novos sites ou

modificação dos já existentes.

A idéia de organizar o acesso e a navegação em torno de conceitos tem a sua razão

de ser. A web é hoje uma gigantesca e caótica acumulação de sites, páginas, frames

e links, com conteúdos, formas gráficas e interfaces de toda espécie, abrangendo do

melhor ao pior, do confiável ao desconfiável, do déjà-vu ao absolutamente

imprevisível. Mais do que em qualquer outro campo de experiências, a web

necessita de bússolas e faróis, que permitam tornar produtiva a tarefa de navegação

e sobretudo atracar em porto seguro. Quando o que se busca é apenas informação,

um bom mecanismo de procura (search) pode ser suficiente. Mas quando se trata de

descobrir propostas e atitudes inventivas, é preciso que os próprios instrumentos

sejam também criativos e abertos à irrupção do improvável. Uma curadoria

adequada às experiências criativas na web deve, portanto, ter expertise suficiente

para descobrir a interface adequada, capaz de permitir a navegação num ambiente

que não é mais apenas um banco de dados. Se a web é realmente um organismo

vivo, em contínuo movimento e metamorfose, com sites surgindo, desaparecendo ou

se transformando a todo momento, não é preciso muito esforço para perceber que

os seus mecanismos de pesquisa e navegação devem ter a mesma mobilidade.

Por outro lado, a curadoria de Ribenboim e Anderáos inovou também por incorporar

trabalhos encomendados especificamente para essa seleção.

É o caso de Valetes em Slow-Motion, de Kiko Goifman e Jurandir Müller, sobre o

tema dos encarcerados, que pode ser considerada uma das experiências brasileiras

mais ousadas feitas no terreno da web art, tanto do ponto de vista da forma como do

conteúdo. Contando com a colaboração de Alberto Blumenschein (webmaster) e

Silvia Laurentiz (ambiente tridimensional interativo em formato VRML), o trabalho

permitiu uma reflexão densa sobre a vida nas prisões e a psicologia dos detentos,

abrindo a possibilidade inclusive de um contato ao vivo (através da tecnologia CU-

See-Me) entre os visitantes da Bienal "virtual" e os detentos do Presídio da Papuda,

em São Sebastião (DF), em dias e horários previamente marcados. Na verdade, o

trabalho de Goifman e Müller explora ironicamente a idéia de controle a distância (o

5

Page 29: Arte tecnologia brasil_itaucultural

conceito através do qual ele pode ser acessado é "monitoramento"), alertando para

a possibilidade de uma vigilância universal através da web.

Na 24ª Bienal Internacional de São Paulo, foi apresentado também o projeto-

instalação Colunismo, de Gilbertto Prado. A instalação consistia em um "portal", com

duas webcams conectadas à rede Internet, que eram disparadas por sensores

dispostos no espaço físico da instalação pela passagem dos visitantes. Uma vez

capturada em tempo real essa imagem local, ela era mesclada com outras (de um

banco de imagens sobre o olhar estrangeiro, sobre a antropofagia, a pop art,

cidades e outras categorias) e disponibilizada via Internet para todo o planeta.

Outros participantes, fisicamente distantes, via webcam, podiam observar o espaço

e a geração de novas imagens locais. Esse trabalho esteve exposto também na

mostra City Canibal, no Paço das Artes, em São Paulo, de 4 de setembro a 31 de

outubro de 1998.

Com o florescimento da web art, o acesso remoto à Bienal ou a qualquer outro

evento artístico está deixando de ser uma possibilidade marginal para se tornar a

própria natureza das próximas montagens. Se no futuro os parangolés se

transformarem em wearable computers (computadores de vestir) e os objetos

relacionais forem desmaterializados em ambientes de realidade virtual, a Bienal,

mesmo deslocalizada, ainda terá uma razão para existir: ela continuará

representando o esforço sempre necessário de concentrar a criatividade dispersa e

difundir no tecido social as experiências humanas de liberdade.

Ainda neste mesmo ano, Tânia Fraga organizou (e participou de) o projeto Xmantic

na Web, aceito em concurso da Unesco realizado em 1998. A proposta do projeto

era criar um link multicultural entre povos de culturas distintas. Assim, procuraram-se

analogias entre os xamãs das culturas tribais e os equivalentes em outras culturas

ocidentais contemporâneas. Xmantic na Web é o primeiro resultado do Laboratório

Virtual de Pesquisa em Arte (criado em 1996) da Universidade Federal de Brasília,

onde artistas, estudantes e pesquisadores entram em contato com o mundo para

criar um diálogo multicultural no campo da arte telemática.

6

Page 30: Arte tecnologia brasil_itaucultural

Interação Arte-Ciência

Nas últimas décadas do século XX, generalizou-se em vários campos do

conhecimento a suspeita de que as fronteiras, tão categoricamente traçadas no

século anterior, entre arte, ciência e tecnologia já não se sustentavam com o mesmo

vigor. Algumas exposições ocorridas em áreas de interseção de interesses têm

colocado em evidência o arbítrio das velhas dicotomias. É o caso de Les

Immatériaux, exposição organizada em 1985 por Jean-François Lyotard, no Centro

Pompidou de Paris, e que exibia imagens (e eventualmente também sons, objetos)

derivadas da pesquisa científica ou da atividade tecnológica como sendo objetos de

fruição estética. A idéia é que determinados aparelhos ou instrumentos usados no

diagnóstico médico, na engenharia de projetos, na simulação de processos

industriais ou no sensoriamento remoto do espaço produzem imagens insólitas, que

podem, eventualmente, apresentar interesse no plano estético, pelo seu poder de

evocação intelectual, emotiva ou sensorial. Alguns artistas particularmente sensíveis

às qualidades estéticas das imagens cientíticas, médicas ou industriais têm

procurado se aproximar dos recursos tecnológicos utilizados na ciência e na

engenharia para efetivar uma utilização intensiva desses meios, com vista a explorar

as liberdades do imaginário e as conseqüências em termos de invenção estética. As

iconografias científica, médica e tecnológica já são hoje referências constantes no

imaginário do homem contemporâneo. Nesse sentido, as intervenções da técnica e

da ciência podem ser tomadas como acontecimentos culturais de pleno direito. Mas

talvez fosse possível ir um pouco mais além, observando também o trabalho singular

de certos criadores (que nem sabemos mais se são "artistas", "engenheiros",

"cientistas" ou "homens de mídia"), que fazem emergir possibilidades insuspeitadas

ao utilizarem de forma intensiva ou transgressiva os recursos enunciadores

colocados à sua disposição pelas máquinas. Talvez estejamos caminhando rumo à

evidência de que, no fim das contas, as práticas da ciência, da técnica e da arte não

sejam assim tão diferentes entre si. Afinal, como observou Paul Caro em A Ciência e

a Imagem, um especialista moderno em química é um pouco também um escultor,

sobretudo quando deve construir as intrincadas arquiteturas das moléculas

orgânicas ou das estruturas cristalinas, assim como também há algo de ficcionista

Page 31: Arte tecnologia brasil_itaucultural

no pesquisador de física nuclear, que deve, num certo sentido, "adivinhar" a vida das

partículas e reconstruir a história íntima do comportamento dos átomos.

Sabemos que a palavra grega para designar os fenômenos artísticos era techné, de

onde deriva tecnologia. Os gregos antigos não faziam qualquer distinção de princípio

entre a arte e a técnica e esse pressuposto atravessou boa parte da história da

cultura ocidental até pelo menos o Renascimento. Para homens como Leonardo da

Vinci, Albrecht Dürer ou Piero della Francesca, pintar uma tela, estudar a anatomia

humana ou a geometria euclidiana, ou ainda projetar o esquema técnico de uma

máquina constituíam uma só e mesma atividade intelectual. E se prestarmos

atenção, a arte de nosso tempo também não deixou de refletir problemas

emergentes do universo das técnicas e das ciências. Cézanne e movimentos como o

impressionismo, o construtivismo, o serialismo, De Stijl, Bauhaus, a arte concreta, a

música eletrônica, a op art e a arte cinética se mostram afinados e coerentes com o

estágio correspondente do pensamento científico e tecnológico. Pode-se afirmar que

a arte desse século encontra-se numa relação de simetria com o saber de seu

tempo, tal como estiveram a arte clássica grega em relação à geometria euclidiana,

ou a dos séculos posteriores em relação à cosmologia medieval. O próprio

conhecimento científico parece também viver agora o seu state of the art, libertando-

se de uma "realidade objetiva" absoluta e determinista e passando a governar-se

pelas mesmas noções de caos e acaso com que trabalham os artistas. Muitos dos

trabalhos mais recentes estão demonstrando que se torna cada vez mais difícil fazer

uma distinção categórica entre objetos originários da imaginação artística, da

investigação científica e da invenção tecno-industrial. Muitos produtos derivam, aliás,

de uma interação de talentos e de investimentos das três áreas. Ademais, a

experiência tem demonstrado que os artistas que obtiveram melhores resultados

trabalhando com tecnologias são pessoas capazes de intervir na própria engenharia

das máquinas, produzindo o hardware e o software necessário para dar forma às

suas idéias estéticas.

Apesar de o Brasil ocupar uma posição apenas marginal em termos de investigação

científica e tecnológica, se compararmos com a América do Norte, Europa e alguns

países da Ásia, tivemos aqui uma geração importantíssima de criadores que

2

Page 32: Arte tecnologia brasil_itaucultural

operaram na confluência da arte/ciência/tecnologia. Essa tradição remonta a dois

pioneiros, que hoje são considerados os "pais" dessa síntese tecnopoética no Brasil:

Abraham Palatnik e Waldemar Cordeiro. O primeiro, de sólida formação técnica

(especializou-se em motores a explosão em Telaviv), introduziu na pintura e

escultura as mais sofisticadas tecnologias de seu tempo, como as chamadas

"máquinas cinecromáticas" de controlar o movimento, o magnetismo e a luz, tendo

sido considerado o introdutor da arte cinética na América Latina. O segundo,

emergido no bojo do movimento concretista dos anos 50/60, foi o primeiro, no Brasil,

a utilizar o computador como instrumento heurístico e como o elemento catalisador

de uma nova dimensão para a arte. Cordeiro foi também o responsável pela

organização da primeira exposição e conferência avançada sobre a síntese de arte,

ciência e tecnologia no Brasil, chamada Arteônica (1971). Por essa razão, ele é

considerado o introdutor desse campo de expressão artística no país e quem mais

lhe deu notoriedade e legitimidade.

Várias gerações de artistas deram continuidade à linhagem aberta por Palatnik e

Cordeiro, a partir principalmente da década de 80. Entre os nomes que se

notabilizaram nesse período, podemos citar, em primeiro lugar, Mário Ramiro, um

artista inquieto que começa produzindo intervenções na paisagem urbana, junto do

grupo 3 NÓS 3 (com Hudinilson Jr. e Rafael França), segue introduzindo a

fotocopiadora nos trabalhos artísticos (novamente junto de Hudinilson Jr.), descobre

as imensas possibilidades abertas pelas tecnologias de telecomunicação (vide bloco

Arte/Comunicação) e, finalmente, passa a aplicar em sua arte conceitos assimilados

diretamente da física, tais como a levitação de objetos por magnetismo compensado;

os campos de calor gerados ao redor dos objetos, que lhe permitiam produzir

"esculturas térmicas", impossíveis de se ver, mas fáceis de sentir por meio da

sensibilidade do corpo; e a fotografia Schlieren, que capta as ondas de calor ao

redor dos corpos quentes.

Por sua vez, José Wagner Garcia, depois de estagiar no Center for Advanced Visual

Studies, CAVS, do Massachusetts Institute of Technology, MIT, trouxe ao Brasil as

idéias relacionadas com a sky art, uma corrente artística que busca elaborar obras

efêmeras no céu, com projeções de raios laser, bombardeamento de nuvens com pó

3

Page 33: Arte tecnologia brasil_itaucultural

químico colorido ou iridescente, arco-íris artificiais, ou ainda sinais eletromagnéticos

codificados e enviados para as estrelas. A síntese do trabalho de Garcia está na

trilogia Sky: Life, Body and Mind (1988).

Eduardo Kac, um pioneiro na aplicação artística de um amplo leque de novas

tecnologias (holografia, computação gráfica, net art), dedicou-se intensamente, na

virada dos anos 80/90, à pesquisa e aplicação prática da robótica, em colaboração

com o projetista de hardware norte-americano Ed Bennett (vide o bloco Arte na

Rede). Na década de 90, o grupo que faz aplicações artísticas de conceitos

científicos cresceu bastante, com a adesão de uma nova geração de criadores, em

que se pode incluir artistas como Anna Barros, Gilbertto Prado, Renato Cohen,

Milton Sogabe, Marcelo Dantas e grupos como *.*, SCIArts e Corpos Informáticos.

Numa perspectiva um pouco diferente, mais dirigida à ironia ou à paródia, deve-se

citar ainda a contribuição insólita de dois franco-atiradores. O primeiro é Guto Lacaz,

mais intimamente conhecido como o "Professor Pardal" das artes plásticas, por

dedicar-se à invenção de máquinas inúteis ou estúpidas, aparelhos ou dispositivos

paradoxais e auto-destrutivos, além de toda sorte de engenharia primitiva e

quixotesca, cuja finalidade última é a crítica da religião da produtividade e da

eficiência, que embasa a atual civilização tecnológica. O segundo é Otavio Donasci,

uma espécie de bricoleur tupiniquim, que criou um dos híbridos de maior sucesso no

terreno das poéticas tecnológicas: a videocriatura, um monitor de TV colocado, por

meio de armações de ferro, em cima de um ator escondido sob mantos pretos. Cada

tela de monitor, ligada por cabos a um gravador de vídeo (alguns protótipos utilizam

a transmissão sem fio), nos mostra a imagem de um rosto recitando monólogos ou

dialogando ao vivo com o público ou com outras videocriaturas. O resultado é uma

espécie de Mr. Hyde ou monstro de Frankenstein, metade gente e metade vídeo,

que circula pela cena arrastando seus cabos e atormentando os espectadores. Tudo

muito low tech, feito com equipamento doméstico de vídeo e recursos artesanais,

improvisado à maneira brasileira, com os conhecimentos de eletrônica que Donasci

foi adquirindo na prática.

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Page 34: Arte tecnologia brasil_itaucultural

Uma derivação muito particular da síntese entre arte e ciência é o recente interesse

dos artistas por questões de natureza biológica. Já houve um período em que todos

nós proclamamos o advento de uma "revolução eletrônica", uma época em que os

artistas, cientistas e pensadores em sintonia com o seu tempo acreditaram que os

computadores e as redes telemáticas constituiriam certamente o próximo ambiente

das novas formas culturais, ou os motivos mais prementes para uma mudança

radical dos próprios conceitos de arte e cultura. Hoje, porém, quando tudo é, num

certo sentido, "eletrônico", quando escritores, pintores, compositores e fotógrafos se

sentam diante de um computador para criar seus trabalhos, e mais freqüentemente

para criá-los dentro de um enfoque tradicional, talvez tenha chegado a hora de

perguntar se expressões como "cultura digital" e "arte eletrônica" significam ainda

alguma coisa distintiva ou designam um específico campo de acontecimentos.

Nos últimos anos, artistas estrangeiros como Orlan e Stelarc se dedicaram à

discussão cultural e política da possibilidade de ultrapassar o humano por meio de

radicais intervenções cirúrgicas, de interfaces entre a carne e a eletrônica, ou ainda

de próteses robóticas para complementar ou expandir as potencialidades do corpo

biológico. Mais que apenas antecipar profundas mudanças em nossa percepção, em

nossa concepção de mundo e na reorganização de nossos sistemas sociopolíticos,

esses pioneiros anteciparam transformações fundamentais em nossa própria

espécie. Essas transformações poderão inclusive alterar nosso código genético e

reorientar o processo darwiniano de evolução.

Hoje, uma gama cada vez maior de artistas está reorientando seu trabalho na

direção de um novo paradigma dentro desse rótulo impreciso das "artes eletrônicas".

Entre eles, na ponta desse movimento recentíssimo, estão três artistas brasileiros:

Eduardo Kac, Diana Domingues e José Wagner Garcia. Esses criadores, que já

foram pioneiros na aplicação artística de um largo espectro de novas tecnologias,

estão explorando agora as novas dimensões de criatividade abertas pela nova

biologia. Na tentativa de redirecionar a discussão e a prática da arte, eles estão

focalizando suas obras mais recentes na direção de uma arte que incorpora

conquistas recentes da biologia, focalizando questões relacionadas com a vida

artificial, a ecologia da biotecnosfera, entre outras tantas coisas.

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Page 35: Arte tecnologia brasil_itaucultural

Um importante marco simbólico dessa tendência aconteceu no dia 11 de novembro

de 1997, na Casa das Rosas, em São Paulo. Nesse dia, Eduardo Kac implantou no

interior de seu próprio tornozelo um microchip contendo um número de identificação

de nove caracteres e o registrou num banco de dados norte-americano, utilizando a

Internet como meio. O microchip é, na verdade, um transponder utilizado na

identificação animal em substituição à antiga marcação com ferro quente. Como tal,

ele contém um capacitor e uma bobina, todos lacrados hermeticamente em vidro

biocompatível, para evitar a rejeição do organismo. O número memorizado no chip

pode ser recuperado por meio de um tracker (scanner portátil que gera um sinal de

rádio e energiza o microchip, fazendo-o transmitir de volta o seu número inalterável e

irrepetível). A implantação do chip no tornozelo do artista tem um sentido simbólico

muito preciso, pois era nesse local que os negros foram marcados a ferro, durante o

período da escravidão no Brasil. A intervenção de Kac toca em pontos difíceis e

incômodos da discussão ética, filosófica e científica a respeito do futuro da

humanidade. É possível ler o significado do implante como um alerta sobre formas

de vigilância e controle sobre o ser humano que poderão ser adotadas num futuro

próximo. Mas também se pode ler a experiência de Kac numa outra perspectiva,

como sintoma de uma mutação biológica que deverá acontecer proximamente,

quando memórias digitais forem implantadas em nossos corpos para complementar

ou substituir as nossas próprias memórias. Os demais trabalhos de Kac no campo

da interseção arte/biologia estão comentados no verbete referente ao artista.

Já Diana Domingues tira proveito do fato de viver numa familia de médicos, em

que a discussão biológica é uma constante. A obra mais recente de Domingues está,

tal como a de Kac, voltada inteiramente para a discussão das questões abertas no

novo fronte biológico. NA instalação My Body, My Blood , 1997 (da série TRANS-E),

apresentada originalmente no 8th International Symposium on Electronic Art (Isea

97), em Chicago, temos um ambiente sensorizado que permite aos corpos dos

visitantes dialogar com dispositivos eletrônicos. Imagens projetadas numa tela, sons

de batidas de coração na pista sonora e o movimento de um líquido vermelho

(significando sangue, como uma oferta em rituais xamânicos) são alterados pelas

pessoas e pelas máquinas simultaneamente. O movimento errático dos visitantes é

6

Page 36: Arte tecnologia brasil_itaucultural

capturado pelos sensores infravermelhos e enviado às máquinas. Algoritmos de

redes neurais interpretam os movimentos humanos e modificam os dados

apresentados aos visitantes. Aos poucos, comprendendo o que as máquinas estão,

num certo sentido, "comunicando", os visitantes mudam de posição ou provocam

movimentos deliberados para ver como o computador vai responder. Depois de

algum tempo de mútua "aprendizagem", ambos entram numa situação de simbiose e

comunicação. Todas as demais obras de Domingues incluídas nessa série (TRANS-

E) vão na mesma direção: uso intensivo de imagens médicas (ecografias,

termografias, raios X, ressonância magnética, tomografias computadorizadas),

ruídos de freqüência cardíaca tomados dos próprios visitantes por meio de

microfones hipersensíveis, simulação do funcionamento de órgãos humanos, uma

verdadeira viagem pelo interior das vísceras humanas, onde o visitante passa a ser

parte constitutiva da instalação. Outros trabalhos de Domingues no campo de

interseção arte/biologia estão comentados no verbete referente à artista.

Ultimanente, o trabalho de José Wagner Garcia também tem-se orientado numa

direção vizinha à de Kac e Domingues, na direção da vida artificial, envolvendo não

exatamente o corpo humano, mas a vida na sua acepção mais larga. Light Automata

(1997), por exemplo, é a recriação de uma alga bioluminescente por meio da síntese

holográfica. Os trabalhos de Garcia relacionados com a interseção arte/ciência,

inclusive arte/biologia, estão comentados no verbete do artista.

Depois da generalização dos happenings, das performances e das instalações,

depois de questionar o cubo branco dos museus e saltar para o espaço público,

depois de empregar todas as espécies de máquinas e aparatos tecnológicos, depois

ainda de discutir a tragédia da condição humana e de colocar a nu os

constrangimentos, as segregações, os interditos derivados do sexo, da raça, da

origem geográfica e da condição socioeconômica, depois de ter experimentado tudo

isso, os novos artistas parecem agora reorientar a sua arte para a discussão da

própria condição biológica da espécie.

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Page 37: Arte tecnologia brasil_itaucultural

Poesia e Novas Tecnologias

Nos países de expressão portuguesa, as primeiras idéias sobre uma poesia em

sintonia com a era das mídias e das novas tecnologias começam a ser esboçadas a

partir de meados dos anos 50, graças à intervenção do grupo brasileiro Noigandres

(Décio Pignatari, Augusto de Campos e Haroldo de Campos), criador da poesia

concreta, e nos anos 60, com o surgimento do grupo português PO.EX, que

abrangia cerca de uma dezena de poetas reunidos ao redor de Melo e Castro.

Dessa época para cá, a idéia de uma poesia de feição radicalmente contemporânea,

capaz de lançar mão dos novos recursos escriturais, não cessa de ganhar adeptos.

Um fato digno de atenção, no que diz respeito a essa poesia, é a sua particular

expansão em nosso país e a vitalidade das experiências que foram aí

desenvolvidas, a ponto de ser praticamente impossível hoje, em qualquer parte do

mundo, conceber uma mostra ou uma antologia dessa nova poesia verbo-áudio-

moto-visual sem que a presença brasileira seja considerada. Se isso pode parecer

normal, atentemos entretanto ao fato de que muitos países, mesmo entre os mais

industrializados e com maior hegemonia da mídia, ainda não despertaram para as

possibilidades de uma poesia da era da televisão e do computador.

O grande desafio agora é dar conta da mutação mais importante que está

acontecendo neste momento e que corresponde à migração do texto do papel para

a tela. Até há pouco tempo, as categorias teóricas invocadas pelos analistas ainda

se ressentiam de uma forte raiz gutenberguiana, ou seja, ainda pressupunham o

poema como um objeto materializado numa página impressa, mesmo que utilizando

fartamente os recursos de grafismo, tipologia e cromatismo dos caracteres,

espacialização do texto e colagem de materiais extraídos de fontes diversas. Mesmo

no plano da fatura poética, recursos tecnológicos como o computador eram

invocados apenas para a geração de textos, mas o destino final do poema era

mesmo a página estática do livro. Agora, no ambiente novo da tela, alguns

procedimentos antes impensáveis como parte do repertório poético passam a ser

incorporados ao poema, como é o caso do movimento da palavra (ou do texto como

Page 38: Arte tecnologia brasil_itaucultural

um todo) no seu suporte de materialização e da sincronização do texto-imagem com

o texto-som.

O movimento é o elemento retórico mais próprio aos meios cinemáticos e, a rigor, as

primeiras utilizações criativas de textos animados se dão no cinema mudo, quando

os cineastas aprenderam a tirar melhor proveito expressivo dos intertítulos

colocados entre as imagens. No panorama da língua portuguesa, a incorporação do

movimento ao texto poético seguiu um desenvolvimento próprio. Já no âmbito da

poesia concreta, a idéia de um texto-em-movimento ou de um texto cinético foi

cogitada em diversos momentos, mesmo que, na prática, essa poesia ainda

continuasse presa ao suporte fixo do livro. Alguns poemas produzidos no âmbito

dessa escola (como Velocidade, de Ronaldo Azeredo, ou Vai e Vem, de José Lino

Grünnewald) parecem querer saltar do papel, animar-se e ganhar asas no espaço

tridimensional. Quando, em 1995, Ricardo Araújo decidiu animar em computador

alguns poemas de Augusto de Campos (SOS, Poema-Bomba), Haroldo de Campos

(Parafísica), Décio Pignatari (Femme), Arnaldo Antunes (Dentro) e Julio Plaza (Arco-

Íris no Ar Curvo), a tarefa foi grandemente facilitada pelo fato de a animação já estar

praticamente "projetada" nos poemas originais, cabendo ao animador a tarefa mais

ou menos natural de fazer acontecer as possibilidades motoras a que as obras já

apontavam. E no que diz respeito à sincronização do som com a imagem, é preciso

considerar que o grupo Noigandres manteve-se o tempo todo em estreita ligação

com os compositores de vanguarda e também com criadores da área mais avançada

da música popular, e dessa aproximação nasceriam grande número de trabalhos em

parceria, fazendo dialogar a forma visual com a forma sonora da poesia. Faltava,

porém, dar o passo seguinte e partir para uma poesia midiática completa, capaz de

saltar do papel para a tela dos novos meios.

Este salto seria dado inicialmente com a utilização, por alguns poetas, de duas

tecnologias eletrônicas: o gerador de caracteres e o videotexto. O gerador de

caracteres é uma máquina inventada prioritariamente para inserir textos (com

diferentes tipologias, tamanhos e cores) sobre a imagem de vídeo e tem sido

extensivamente utilizada pela televisão para compor os créditos dos programas,

para legendar filmes ou colocar títulos e subtítulos nos trabalhos. Nos anos 80, o

2

Page 39: Arte tecnologia brasil_itaucultural

poeta Melo e Castro teve a idéia de lançar mão do gerador de caracteres para

produzir poemas animados, pensados especificamente para veiculação na televisão.

Na verdade, já em 1968, Melo e Castro havia realizado um pequeno videopoema de

pouco menos de 3 minutos de duração, denominado Roda Lume, que chegou

mesmo a ser colocado no ar, no ano seguinte, pela Rádio e Televisão Portuguesa,

RTP, num programa de informação literária. Depois, mais exatamente em 1985,

quando a Universidade Aberta de Lisboa adquiriu um dispositivo completo de

geração de caracteres e edição em vídeo, Melo e Castro foi convidado a

desenvolver ali um projeto de videopoesia denominado Signagens, que acabou por

se constituir numa das referências mais importantes da atual poesia que utiliza

recursos tecnológicos. Nos anos 90, Melo e Castro migra para o Brasil e continua a

desenvolver aqui, só que agora utilizando o computador, os seus projetos do

videopoema e do infopoema.

Paralelamente, estava sendo implantado experimentalmente em São Paulo o

sistema de videotexto (uma mistura de telefone e microcomputador, que foi uma

espécie de antecessor da telemática e da Internet), para o qual um grupo de poetas

e artistas foi convidado a propor trabalhos especificamente concebidos. A primeira

mostra de trabalhos produzidos para esse meio (organizada por Julio Plaza) foi

disponibilizada na rede paulistana de videotexto já em 1982, no mesmo ano de

implantação do sistema. Embora o videotexto permitisse também trabalhar com

imagens, a baixa definição de sua tela o tornava um meio mais adequado à redação

de textos (como, aliás, o seu próprio nome o sugere), mas esse texto podia passar

por qualquer espécie de transformação cromática ou cinética e, nesse sentido, ele

ganhava propriedades até então exclusivas da imagem videográfica. E mais: por se

tratar de um sistema de comunicação bidirecional, o videotexto permitia também

incorporar ao poema as respostas do leitor e, nesse sentido, explorar os primeiros

rascunhos de uma escrita interativa, que depois seria levada às últimas

conseqüências pelo hipertexto e pelo hiperpoema.

Atualmente, o computador e o vídeo (em geral integrados) constituem os dispositivos

mais solicitados pelos novos poetas para gerar textos animados. Existem

basicamente duas maneiras de enfocar o problema. Numa primeira, o computador é

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Page 40: Arte tecnologia brasil_itaucultural

encarado como uma ferramenta de trabalho, com a qual se pode gerar textos de

qualquer configuração visual, tanto no plano bidimensional como no espaço

tridimensional, e em seguida animá-los com qualquer sorte de coreografia que a

imaginação for capaz de conceber. A animação é gerada pelo computador quadro a

quadro e, em seguida, gravada em vídeo. Este último é, portanto, o dispositivo final

de exibição. Esse é o approach escolhido por Arnaldo Antunes (autor da coletânea

de trinta videopoemas denominada Nome, de 1993, a única lançada comercialmente

no mercado brasileiro de livros e vídeos), por Melo e Castro em sua produção mais

recente (Infografitos, Sonhos de Geometria, 1993) e também a opção do primeiro

experimento brasileiro com videopoesia: Pulsar (1984), poema de Augusto de

Campos, animado em computador por Wagner Garcia e Mário Ramiro, com música

de Caetano Veloso. A outra alternativa é utilizar como dispositivo final de exibição o

próprio computador com que se construiu o poema, de modo a poder lançar mão de

recursos que só este possibilita, como a estrutura em aberto do poema, a navegação

não-linear ao longo do texto e a participação interativa do leitor. Neste caso, o

poema deve ser distribuído diretamente através de meios digitais, como disquetes e

CD-ROMs, ou então deve ser acessado eletronicamente, pelas redes telemáticas

(Internet, por exemplo). Walter Silveira, Lenora de Barros e Tadeu Knudsen fizeram

algumas experiências interessantes nesse sentido, publicadas e distribuídas

comercialmente na antologia em CD-ROM Arte Cidade: a Cidade e Seus Fluxos,

mas a exploração mais sistemática e mais avançada dessa possibilidade está sendo

conduzida por Eduardo Kac, brasileiro que vive atualmente em Chicago (Estados

Unidos) e que concebe os seus poemas alternativamente em português e em inglês,

ou então misturando as duas línguas.

A primeira modalidade de movimento com que se pode trabalhar nos meios

eletrônicos e digitais é aquela determinada pela edição. Por estar inserido num meio

de natureza cinemática, o texto aparece ao leitor num fluxo temporal: cada uma de

suas partes começa, se desenvolve e acaba em tempos determinados pela edição.

Em geral, no meio eletrônico não se expõe o texto inteiro ao leitor de uma só vez: ele

pode ser apresentado aos poucos, frase por frase, palavra por palavra, ou mesmo

letra por letra. A tela não é um lugar confortável para ler grandes volumes de texto,

razão porque, até por adequação ao meio, a edição acaba sendo a melhor maneira

4

Page 41: Arte tecnologia brasil_itaucultural

de construir um enunciado, parte por parte, ao longo de um certo intervalo temporal.

Os cortes determinam, portanto, a duração do texto na tela e o ritmo imposto pela

sucessão dos vários planos textuais. A duração tem relação direta com a legibilidade

do texto: ela pode ser tão curta que impossibilite a própria leitura, ou tão lenta a

ponto de o texto continuar a se impor ao leitor mesmo depois de terminada a leitura.

Insect.Desperto, de Eduardo Kac, e Não Tem Que, de Arnaldo Antunes, são

exemplos de poemas em que a legibilidade é propositalmente dificultada pela

velocidade com que o texto é apresentado na tela. Neste caso, a leitura efetuada

pelo leitor é necessariamente fragmentária e evocativa, decorrendo das palavras que

este último consiga captar aleatoriamente e dos sentidos que for capaz de construir

com elas. Se o texto permanece na tela um tempo maior que o necessário para a

leitura, duas razões podem ser invocadas para explicá-lo: ou se quer dar ênfase aos

aspectos mais propriamente icônicos (textura, forma, cor) daquilo que se oferece na

tela, bem como também aos recursos musicais ou vocais que estão sendo

trabalhados na trilha sonora, ou então se espera do leitor alguma reação física para

continuar, caso típico dos hiperpoemas de Eduardo Kac (Secret, Storms, etc.), que

só evoluem à medida que o leitor interage com eles, efetuando suas escolhas de

letras, de palavras ou de direção para a qual o texto deve desdobrar-se.

Já o ritmo tem mais afinidades com a estrutura musical do que com a estrutura

métrica do modelo poético convencional e, em muitos casos, ele é realmente

determinado pela música com que o poema é em geral sincronizado. Ele pode ser

um ritmo pulsante, determinado por tambores primitivos, que fazem aparecer e

desaparecer sincronizadamente as palavras na tela (como no Objectotem, 1985, de

Melo e Castro), ou um ritmo mais irregular e frenético, como no Se Não Se, de

Arnaldo Antunes, em que as letras de vários abecedários se revezam velozmente

num painel, mas se congelam bruscamente quando formam uma palavra que

coincide com aquela cantada na trilha sonora. Os ritmos também são grandemente

incrementados pelo estilo dos cortes: em geral, ritmos mais rápidos pedem corte

seco ou passagens através de cortinas rápidas, enquanto ritmos mais lentos são

melhor obtidos por meio de fusões, superposições ou passagens através de

escurecimento (fade out) e clareamento (fade in) da tela.

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Page 42: Arte tecnologia brasil_itaucultural

Outra forma de o texto ser apresentado ao leitor é por seu rolamento na tela (no

sentido vertical ou horizontal), recurso muito usado pela televisão para a

apresentação dos créditos. Pensemos no caso de Cidade, poema concreto de

Augusto de Campos, que consiste numa única palavra quilométrica, constituída pela

imbricação dos radicais de várias palavras terminadas em -cidade. Esse poema, tão

difícil de se adequar à forma impressa (uma vez que, na concepção original do autor,

o seu único "verso" não pode ser quebrado em linhas sucessivas, mas deve ser

escrito numa única e longuíssima linha), encontra na tela o seu meio de

apresentação mais adequado, graças ao processo de rolamento horizontal,

conforme se pode verificar nas versões em filme (de Tata Amaral), em vídeo (de

Walter Silveira) e em painel eletrônico (do próprio Augusto de Campos). Pessoa, de

Arnaldo Antunes, parece ser um dos melhores exemplos de uso criativo do

rolamento horizontal: o poema, que trata do fenecimento de todas as coisas e de

todas as idéias, passa correndo na tela, numa velocidade que quase ultrapassa o

limite da legibilidade, ao mesmo tempo que vai sendo expandido por uma zoom-in,

enquanto, na direção contrária, corre um fundo manuscrito intrincado e ilegível,

evocador de todo o ruído verborrágico do homem.

Ainda no que diz respeito ao movimento do texto, é preciso considerar a imensa

gama de possibilidades de metamorfose que a(s) palavra(s) pode(m) sofrer na tela.

Uma vez que, num meio cinemático, as formas não precisam ser necessariamente

fixas, mas podem estar em permanente mutação ao longo de um intervalo de tempo,

o processo de transformação das palavras constitui um recurso precioso para o

poeta que lida com novos meios. No vídeo ou no computador, as palavras podem

sofrer transformações na sua estrutura interna (forma, cor, textura) e

podem transformar-se em outras palavras ou em imagens puras, sem referência

verbal. Processos de metamorfose podem ser obtidos com simples fusão de dois

textos diferentes, ou projetando quadro a quadro uma animação, ou ainda lançando

mão em computador de algoritmos especificamente concebidos para esse fim, como

por exemplo o Morph, utilizado por Arnaldo Antunes em vários videopoemas de sua

antologia Nome.

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Page 43: Arte tecnologia brasil_itaucultural

Entre as várias possibilidades de transformar uma palavra ou texto, as que têm

rendido os resultados mais surpreendentes nos novos processos poéticos são

aquelas em que a linguagem transita entre o sentido e o não-sentido, ou entre o

verbal e o icônico. No primeiro caso, palavras e frases bem definidas quanto ao

aspecto material ou quanto ao seu significado verbal podem se dissolver ou se

desmanchar no espaço, até se converterem em ruído puro. Em Ideovídeo (1988), de

Melo e Castro, por exemplo, as palavras que são dadas a ler na tela estão sendo

continuamente encobertas por novas camadas textuais e corroídas por anamorfoses

ou quaisquer outros processos de dissolução. As palavras surgem, se desintegram e

ressurgem novamente modificadas, num movimento que vai da pura transparência

verbal à absoluta opacidade significante. No infopoema Accident, de Eduardo Kac,

os "versos" estão sendo continuamente "sugados" por uma espécie de atrator

estranho ou buraco negro, que desintegra sua coerência verbal. Porém, no caos

gerado pelo desmembramento do texto, novas palavras podem surgir a partir do

aglutinamento aleatório das partes despregadas de outras palavras e novos sentidos

podem emergir da turbulência verbal.

A metamorfose talvez mais emblemática das novas formas poéticas é aquela que

faz a transição da palavra à imagem e vice-versa. Na verdade, um dos desafios

centrais de toda a poesia contemporânea tem sido colocar em operação uma

ambigüidade básica da palavra escrita, que é ter uma função icônica, ou seja, ser

imagem antes de mais nada, dotada de forma, textura, dimensão e cor, mas ao

mesmo tempo ter também uma função simbólica, determinada pelos seus

significados verbais. O poeta, aqui quase confundido com o artista plástico e o

cineasta, trabalha nessa zona de indiferenciação ou de reversibilidade entre o

simbólico da palavra e o icônico da imagem e pode tirar partido da transição entre

uma condição e outra. Em certos trabalhos de Eduardo Kac (por exemplo, a série

Erratum, disponível na Web), é quase impossível distinguir uma palavra da imagem

que lhe serve de "fundo", porque traços da palavra estão no fundo e traços do fundo

estão na palavra. Igualmente, em Ar, de Arnaldo Antunes, as palavras que

constituem o videopoema são recortadas da própria imagem de fundo e guardam

portanto traços da imagem de onde foram arrancadas. Quando se aproximam do

primeiro plano da tela, elas perdem sua legibilidade e as imagens que as constituem

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voltam a se impor. Por outro lado, quando se afastam em direção ao fundo, as

palavras voltam a se identificar como tais, desde que haja suficiente distinção de

formas e cores entre as letras e o fundo, o que nem sempre acontece. Nestes casos

todos, a leitura vai demandar um certo trabalho de busca, de decifração, de

descoberta das possíveis configurações verbais virtualmente presentes na imagem,

mas a animação pode auxiliar nesse processo, fazendo predominar, em instantes

diferentes, o simbólico da palavra e o icônico da imagem. Assim, ao longo da

duração do poema, pode-se passar por diferentes graus de legibilidade e diferentes

níveis de plasticidade.

Estamos falando da relação e do movimento entre palavra e imagem, mas é

evidente que, em se tratando de mídias audiovisuais, uma outra relação e um outro

movimento igualmente importantes acontecem também no plano sonoro.

Naturalmente, a mesma ambigüidade que existe entre palavra escrita e imagem

ocorre também entre a palavra falada e o seu ambiente sonoro-musical, de modo

que o poema, no plano sonoro, pode igualmente oscilar entre o sentido verbal e o

som puro (incluindo aí o ruído inarticulado), conforme se pode constatar em alguns

infopoemas de Walter Silveira (na antologia Arte Cidade). Recordemo-nos de que a

poesia concreta, malgrado considerada habitualmente uma forma visual de poesia,

já explorava, na sua época, os aspectos fônicos e musicais da palavra, a ponto de

Haroldo de Campos já ter se referido a essa poesia, em vários contextos diferentes,

como uma espécie de "partitura" para posterior sonorização, o que foi depois

confirmado pelas inúmeras versões musicais de poemas concretos e pelas edições

em CD de interpretações orais/musicais/sonoras feitas pelos próprios poetas.

Um outro aspecto importante e mais complexo da poesia midiática é a sincronização

da palavra-imagem com a palavra-som. A antologia Nome é a que mais avançou até

agora nessa direção e isso talvez se deva ao fato de seu autor ser, ao mesmo

tempo, poeta e músico, com larga experiência nas duas áreas simultaneamente.

Alguns poemas que compõem essa coletânea chegam a propor soluções bastante

ricas de relação, contraposição, movimento e metamorfose entre os sistemas

plástico e sonoro ou entre as dimensões escrita e oral das palavras. O exemplo mais

feliz é novamente Pessoa, onde o poema que rola horizontalmente na tela vai sendo

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"analisado" gramatical, sintática e semanticamente por uma voz na trilha sonora.

Mas a "análise" é tão absurda quanto a famosa classificação dos animais de Borges:

ela põe a nu tanto a arbitrariedade do saber analítico quanto a resistência do texto

poético a toda explicação. O resultado final é um confronto brutal entre dois modelos

de discurso (um representado na tela, denso e enigmático, outro representado na

pista de som, racional e taxionômico), mas um confronto em que cada um não pode

evitar uma certa taxa de contaminação pelo outro: enquanto o texto analítico acaba

por se "poetizar", em decorrência dos excessos de seu delírio classificatório, o outro

tem o seu efeito poético relativizado, como conseqüência de sua redução a objeto

do comentário científico do primeiro.

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