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Horizonte Perdido

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HorizontePerdido

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James Hilton

HorizontePerdido

Tradução deFrancisco Machado Vila e

Leonel Vallandro

Digitalização: Argo, o glorioso

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PRÓLOGO

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Tinham-se apagado os charutos e começava a apontar em nós aquela espécie de desilusão que de ordinário per-turba antigos condiscípulos ao se encontrarem de novo, ho-mens feitos, e descobrirem que já não existe entre eles a mesma afinidade.

Rutherford escrevia novelas. Wyland era secretário de embaixada e convidara-nos a jantar em Tempelhaf. Não mostrara lá muita alegria, mas mantinha aquela equanimidade que o diplomata deve ter sempre à mão para semelhantes ocasiões.

Dir-se-ia que o único ponto de união que nos ligava uns aos outros era o fato de sermos ingleses celibatários, reunidos numa capital estrangeira; quanto a mim, chegara já â conclusão de que nem o tempo nem a Ordem de Vitória tinham apagado em Wyland "Tertius " o leve toque de presunção que lhe conhecera.

Simpatizava mais com Rutherford: era uma bela evo-lução do menino frágil e precoce que noutro tempo eu mal-tratava ou protegia alternativamente. E a única emoção que Wyland e eu sentíamos em comum — uma pontinha de inveja — nascia da idéia de que ele ganhava provavel-mente muito mais e devia ter um gênero de vida muito mais interessante do que nós.

Ainda assim, a tarde nada teve de aborrecida. Víamos dali quando aterravam os aparelhos da Lufthansa, vindos de todos os cantos da Europa Central; e no escurecer, à luz

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dos arcos voltaicos, a cena tinha um magnífico esplendor de teatro. Um dos aviões era inglês e o piloto, passando pela nossa mesa com o seu traje completo de aviador, cumprimentou Wyland, que a principio não o reconheceu. Depois vieram as apresentações, porém, e o estranho foi convidado para a nossa roda.

Era um moço jovial, de agradável presença, chamado Sanders. Wyland desculpou-se: era difícil identificar as pessoas sob o traje e o capacete de aviador. Ao que San-ders, respondeu, rindo:

— Sei muito bem disso. Não esqueça que eu estava em Baskul.

Riu também Wyland, mas não tão espontaneamente; e a conversa mudou de rumo.

Sanders revelou-se um bom contingente para o nosso pequeno grupo e ajudou-nos a tomar muita cerveja. Pelas dez horas, Wyland deixou-nos durante alguns minutos, para falar com alguém que se achava numa mesa próxima, e Rutherford, aproveitando o repentino hiato que se abrira na palestra, observou, dirigindo-se a Sanders:

— Falou em Baskul. Conheço um pouco o lugar. Que aconteceu lá?

Sanders sorriu, meio contrafeito:— Oh! referia-me apenas a um fato que provocou al-

guma excitação, quando eu me achava no serviço.Era, porém, aquele moço dos que não podem guardar

segredos, e continuou:— Foi o caso que um afegane, afridi ou o que quer

que seja, fugiu com um de nossos aviões. Meteu-nos em maus lençóis, como pode imaginar. Também, nunca vi tamanha desfaçatez! O diabo emboscou-se no caminho do piloto, derrubou-o, tirou-lhe o uniforme e subiu para a dire-ção, sem que ninguém notasse. Deu ao mecânico as ordens

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certas, decolou e lá se foi voando em grande estilo. Mas o pior é que nunca voltou.

Rutherford parecia interessado.— Quando foi isso?— Oh! haverá, talvez, um ano. . . em maio de trinta e

um. Estávamos fazendo evacuar a população civil de Baskul para Peshawar, por causa da revolução. . . Lem-bra-se, não? Estava tudo em polvorosa; do contrário, penso que isso não poderia ter acontecido. E contudo, aconteceu! Isto prova, até certo ponto, que o hábito faz o monge, não acha?

Ainda com o mesmo interesse, Rutherford observou:— Supunha que nessas ocasiões haveria mais de um

homem encarregado de um avião.— E assim é, com todos os transportes comuns de

tropas; mas aquele era um aparelho todo especial, cons-truído primitivamente para certo marajá, e tinha um equi-pamento muito aperfeiçoado. O pessoal do Serviço Topo-gráfico Indiano se servira dele para vôos de grande altura em Caxemira.

— E diz o senhor que nunca chegou a Peshawar?— Nunca! E também não desceu em parte alguma, que

se saiba. E é isto o mais estranho do caso. Está claro que se o sujeito pertencia a uma tribo nativa, poderia ter voado para as montanhas, com a mira no resgate dos passageiros. Suponho, entretanto, que morreram todos. Há por essa fronteira muitos sítios em que um avião pode despedaçar-se sem que ninguém ouça. . .

— Sim, é isso mesmo. Quantos passageiros eram?— Quatro, se não me engano. Três homens e uma

espécie de missionária.— Um deles não se chamava, por acaso, Conway? Sanders respondeu, surpreso:

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— Mas sim, era um deles. "Glória" Conway. . . Conhecia-o?

— Andamos na mesma escola — tornou Rutherford, meio embaraçado. Porque, embora dissesse a verdade, sen-tia que não lhe ficava bem fazer esta observação.

— Era, a julgar pelo que fez em Baskul, um grande tipo.

— Era, sim — concordou Rutherford. — Indubita-velmente. Mas que coisa extraordinária. . . Sim, extraordi-nária. . .

Pareceu sair de um devaneio e disse:— Os jornais não deram a notícia, senão eu a teria

lido. . . Como foi isso?Sanders não se sentia agora muito a gosto. Pareceu-

me até que corava.— Para dizer a verdade — replicou enfim —, creio

que fui mais longe do que devia. . . Bem, isso talvez já não tenha tanta importância. . . Será novidade velha, sabida em todos os cassinos de oficiais, para não falar nos bazares. A história foi abafada, já se vê. . . quero dizer, a maneira como se deu o fato. Não era notícia para ser bem recebida, não! O governo apenas anunciou a perda de um aparelho, mencionando os nomes. Uma dessas notícias que não chamam muita atenção fora do círculo interessado.

Naquele momento voltava Wyland e Sanders foi-lhe dizendo, a modo de desculpa:

— Estes amigos estavam falando de "Glória " Con-way, Wyland. E, não sei como, contei-lhes a história de Baskul. . . Mas acho que não há mal nisso, não é mesmo?

Por um momento guardou Wyland um silêncio austero. Era evidente que procurava conciliar os deveres da cor-tesia com a retidão oficial. Por fim disse:

— Lamento que se faça desse caso uma mera

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anedota. Sempre pensei que vocês, homens do ar, faziam ponto de honra de não espalhar histórias fora da escola.

Depois desta censura ao moço, voltou-se mais amável para Rutherford e continuou:

— Certamente, não houve mal nenhum no seu caso. Mas não há negar que às vezes é necessário cercar de certo mistério os fatos ocorridos na fronteira.

— E por outro lado — replicou Rutherford secamente — é natural que se sinta curiosidade de saber a verdade.

— A verdade não foi escondida a ninguém que tivesse motivo sério para averiguá-la. Achava-me em Peshawar nessa época, e posso afirmar-lhe isso. Conheceu bem Con-way . . . quero dizer, desde os tempos de escola ?

— Estivemos pouco tempo juntos em Oxford, e raras vezes o encontrei depois. E você, esteve com ele muitas vezes?

— Uma ou duas apenas, quando estava de serviço em Angorá.

— Gostava dele?— Achei-o inteligente, mas um tanto desleixado. Sorriu Rutherford à observação e replicou:— Era inteligente, sim. Fez um curso triunfal na

universidade, até rebentar a guerra. Fez parte de uma guarnição de remo e foi figura importante na União — e prêmio disto e daquilo, e não sei que mais. Também o con-sidero o melhor pianista amador que conheço. Assombrosamente versátil, é daqueles tipos que Jowett teria apontado para futuro primeiro-ministro. E contudo, o fato é que não se ouviu mais falar nele depois que saiu de Oxford. Certamente a guerra lhe veio cercear a carreira. Era muito novo, e ouvi dizer que tomou parte ativa nela.

— Foi ferido, creio que numa explosão — respondeu

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Wyland; — mas nada de grave. Fez boa figura. Obteve uma condecoração na França. Creio que voltou depois a Oxford, por pouco tempo. . . como uma espécie de explicador. Sei que foi para o Oriente em vinte e um. Seus estudos de línguas orientais lhe valeram o lugar com isenção das formalidades preliminares habituais. Desempenhou diversos cargos.

O sorriso de Rutherford acentuou-se.— Isto explica tudo, então. E a história jamais reve-

lará quanto esplendor foi desperdiçado em decifrar notas do Foreign Office e em servir chá nas recepções da Legação.

— Ele pertencia ao corpo consular, não ao diplomá-tico — disse Wyland com ar altivo.

Era evidente que não lhe agradavam os motejos. E quando, após outras pilhérias semelhantes, Rutherford ergueu-se para sair, ele não protestou.

Na verdade ia ficando tarde, e eu declarei que também me retirava. A atitude de Wyland, ao nos despedirmos, era ainda a do decoro oficial ofendido, mas sofrendo em silên-cio. Sanders, porém, mostrou-se muito cordial e declarou que esperava tornar a encontrar-se conosco.

Eu ia tomar um trem transcontinental na manhã seguinte, muito cedo, e, enquanto esperávamos um táxi, Rutherford perguntou-me se queria passar a noite no seu hotel. Tinha lá um gabinete e poderíamos conversar. Aquiesci à excelente idéia e ele acrescentou:

— Assim poderemos falar de Conway, se você qui-ser... a não ser que este assunto o aborreça.

Afirmei-lhe que não, ainda que pouco o conhecesse.— Ele terminou o curso no fim do meu primeiro tri-

mestre e não tornei a vê-lo. Mas foi extraordinariamente bondoso comigo certa ocasião. .. eu era um calouro, e não

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havia razão alguma para fazer o que fez. Foi uma coisa trivial, mas que nunca esqueci.

— Sim, também o apreciava muito, e no entanto conheci-o durante muito pouco tempo.

Ficamos alguns minutos calados. Não deixava de ser um tanto estranho aquele silêncio. Pensávamos ambos em alguém que nos interessava muito mais do que seria de esperar, dado o pouco contato que tivéramos com ele. Tenho aliás observado que outros, que mal conheceram Conway, encontrando-o somente por acaso e falando-lhe por um momento, guardavam dele viva recordação.

Era um moço notável, certamente; e para mim, vista a idade em que o conheci — a idade do culto do herói —, sua lembrança conservou uma nitidez romântica. Era alto e extremamente bem-parecido, e não só se distinguiu nos jogos como arrebatava toda sorte de prêmios escolares. Um reitor sentimental, falando um dia dos seus feitos, classificou-os de "gloriosos" e daí se originou a alcunha. Nenhum outro, talvez, poderia sobreviver a ela.

Lembro-me de que certa ocasião fez um discurso em grego. Era extraordinariamente dotado para as representa-ções teatrais. Havia nele algo da época de Isabel — a natu-ral versatilidade e bela figura, aquela efervescente combi-nação de atividade mental e física. Qualquer coisa, enfim, de um Philip Sidney. Nossa civilização atual não gera mui-tos tipos assim. E, por ter feito esta observação, ouvi de Rutherford:

— Sim, é verdade, e temos para essas criaturas um nome especial e desdenhoso: diletantes. É possível que algumas pessoas tenham dado esse nome a Conway. . . gente como Wyland, por exemplo. Não dou muita atenção a Wyland. Não posso suportar tal tipo de homem, toda aquela vaidade, aquela colossal presunção. E essa

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mentalidade de prefeito de colégio. . . não notou? Certas expressões como "apelar para o sentimento de honra "e "espalhar histórias fora da escola"— como se todo o império fosse a quinta classe de um liceu! Por isso mesmo é que vivo a questionar com esses senhores diplomatas.

Atravessamos algumas ruas em silêncio, mas ao cabo ele recomeçou:

— Seja como for, não desejaria perder esta reunião. Foi para mim uma coisa singular ouvir Sanders contar aquele caso de Baskul. Veja você; eu tinha ouvido falar nisso e não dera muito crédito. Era parte de uma história muito mais fantástica, em que eu não via razão alguma para acreditar — ou antes, havia apenas uma razão muito insignificante. Agora há duas razões muito insignificantes. Você deve ter adivinhado que eu não sou muito crédulo. Passei grande parte da vida viajando e sei que há coisas muito esquisitas por esse mundo afora. . . quando a gente as vê pessoalmente, é claro; mas não tanto assim, se ouvir-mos o conto em segunda mão. E no entanto. . .

Dir-se-ia ter-lhe ocorrido de repente que aquilo não me interessava muito. Interrompeu-se e depois continuou, rindo:

— Bem, uma coisa é certa: não vou revelar o segredo a Wyland. Seria o mesmo que procurar vender um poema épico ao Tit-Bits. Não; prefiro tentar a sorte com você.

— Talvez eu não mereça. . .— A leitura do seu livro não me deu essa impressão.Eu não tinha mencionado minha autoria daquele tra-

balho técnico (afinal, a neurologia não interessa a todo o mundo) e fiquei agradavelmente surpreendido por saber que Rutherford ouvira falar do livro. Disse-lho, e ele respondeu:

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— Pois bem, eu me interessei porque foi justamente a amnésia o mal de Conway. . . em certa ocasião.

Chegáramos ao hotel e ele foi buscar sua chave no escritório. Enquanto subíamos para o quinto andar, disse:

— Tudo isto não passa de rodeios. O fato é que Con-way não morreu. Pelo menos, estava vivo há alguns meses.

Não era possível comentar isto no exíguo espaço e tempo de uma ascensão em elevador. Alguns segundos mais tarde, já no corredor, perguntei-lhe:

— Tem certeza disso? E como o sabe? Abrindo a porta, respondeu-me:— Porque em novembro passado viajei com ele de

Xangai a Honolulu, num navio de carreira japonês.Não tornou a falar senão depois de estarmos instala-

dos nas nossas poltronas, servidos de bebidas e charutos.— Estive na China no outono, em férias. Ando sempre

correndo mundo. Havia muitos anos que não via Conway; nunca nos correspondemos e não posso dizer que pensasse muito nele, posto que sua fisionomia fosse uma das poucas que eu tinha bem presentes na memória. Fora a Hankow visitar um amigo e voltava pelo expresso de Pequim. Travei conhecimento no trem com uma madre superiora de irmãs de caridade francesas, por sinal que uma pessoa encantadora. Viajava para Chung-Kiang, onde estava situado o seu convento, e, como eu falava um pouco o francês, parece que gostou de conversar comigo a respeito de seu trabalho e outros assuntos gerais. Não sinto lá muita simpatia pelas obras missionárias comuns, mas não me custa admitir, como aliás fazem muitos outros, que os católicos formam categoria à parte, pois que ao menos tra-balham rijo e não se colocam na posição de oficiais de patente num mundo governado por hierarquia. Isto, porém,

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não vem ao caso. O fato é que essa senhora, falando sobre o hospital da missão em Chung-Kiang, mencionou um caso de febre que aparecera lá algumas semanas antes — um homem que supunham europeu, posto que não soubesse explicar de onde vinha nem trouxesse papéis consigo. Vestia um traje nativo, das classes mais pobres, e quando as irmãs o recolheram estava muito mal. Falava o chinês correntemente, o francês com a maior correção, e minha companheira de trem afirmou que, antes de saber qual a nacionalidade das freiras, também se dirigira a elas em inglês, com pronúncia puríssima. Disse-lhe que não me entrava na cabeça semelhante fenômeno e caçoei amavelmente com ela, pelo fato de ter descoberto uma pronúncia puríssima em língua que não conhecia. Pilheriamos sobre isto e outras coisas, e a conversa acabou por um convite que ela me fez para visitar a missão, se algum dia aparecesse por ali. Ora, naquele momento isso me parecia tão improvável como subir ao Everest, e quando o trem chegou a Chung-Kiang despedi-me com sincero pesar por ver terminar aquele encontro casual. E no entanto, voltei a Chung-Kiang poucas horas depois. É que o trem teve um desarranjo alguns quilômetros adiante, e foi com muita dificuldade que pôde voltar à estação, onde nos informaram de que não poderia chegar outra máquina antes de doze horas. É comum isso nos caminhos de ferro chineses. De modo que me vi constrangido a passar meio dia em Chung-Kiang e resolvi pegar na palavra a boa freira, fazendo uma visita à missão.

"Fui recebido cordialmente, ainda que não sem certa estranheza. A meu ver, uma das coisas mais difíceis para quem não é católico é compreender a facilidade com que um adepto dessa religião combina a rigidez oficial com

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uma largueza pessoal de vistas. Não é complicado isto? Seja como for, aquela gente da missão era muito amável. Ainda não fazia uma hora que estava lá e já me ofereciam uma refeição preparada para mim. Um jovem médico chinês — era cristão — sentou-se à mesa comigo para conversar, numa divertida mescla de francês e inglês. Mais tarde a madre superiora levou-me a ver o hospital, orgulho de todos ali. Mencionara-lhes a minha profissão de escritor, e eram tão ingênuos que ficaram alvoroçados à idéia de que eu podia incluí-los a todos num livro. Ao passo que eu percorria as camas, ia-me o doutor explicando os casos. Era tudo imaculado no hospital, que parecia muito bem dirigido. Já nem me lembrava do misterioso doente e sua refinada pronúncia inglesa, quando a madre mo apontou. Eu só via a parte posterior da cabeça do homem, que parecia adormecido. Alguém sugeriu a idéia de falar-lhe eu em inglês, e assim fiz, dizendo-lhe 'boa tarde'; foi a primeira palavra, não muito original, na verdade, que me veio à lembrança. O homem ergueu repentinamente a cabeça e respondeu: 'boa tarde'. De fato, falava com inflexão educada. Mas não tive tempo de me surpreender com isso, porque já o reconhecera — apesar da barba, da aparência completamente mudada e do longo tempo que passara sem o ver. Era Conway. Tinha certeza de que era ele, e contudo, se tivesse refletido um momento, chegaria talvez à conclusão de que não podia ser. Felizmente, obedeci ao primeiro impulso. Chamei-o pelo nome, dizendo o meu, e, posto que me olhasse sem sinal algum de reconhecimento, convenci-me de que não me enganara. Vi-lhe aquela estranha e quase imperceptível contração dos músculos faciais, tão minha conhecida, e os mesmos olhos que, como costumávamos dizer em Balliol, eram mais do azul de Cambridge que do

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de Oxford. Além disso, ninguém podia enganar-se com aquele homem: quem o via uma vez ficava com as suas feições gravadas para sempre na memória. É claro que o médico e a madre superiora se mostraram muito interessados. Disse-lhes que o conhecia, que era inglês e meu amigo e que só atribuía o fato de não me ter reconhecido à perda absoluta da memória. Concordaram com a minha hipótese, não sem assombro, e tivemos então uma longa conferência a respeito do caso. Nenhum deles tinha idéia alguma da maneira como Conway pudera chegar a Chung-Kiang naquele estado.

"Para encurtar a história, fiquei ali mais de quinze dias na esperança de poder fazê-lo, de um modo ou de outro, lembrar-se de alguma coisa. Não obtive resultado, mas foi recuperando a saúde e conversávamos muito. Quando lhe disse francamente quem eu era e quem era ele, mostrou-se bastante dócil e não discutiu. Estava mesmo alegre, sem motivo especial, e parecia gostar de minha companhia. Quando lembrei que poderia reconduzi-lo à pátria, disse apenas que isso não lhe interessava. Não dei-xava de ser desanimadora aquela aparente falta de vontade própria. Assim que me foi possível, fixei a data da partida. Confiei o caso a um conhecido que era funcionário do con-sulado de Hankow, e deste modo consegui que o passaporte e outros papéis necessários fossem preparados sem os embaraços que, a não ser assim, teriam surgido. Parecia-me, no interesse de Conway, ser melhor que toda aquela história escapasse à publicidade e espalhafato dos jornais. E folgo em dizer que consegui o que desejava. Seria, realmente, um bom bocado para a imprensa!

"Pois bem, saímos da China de maneira normal. Des-cemos o Yang-tsé até Nanquim, e ali tomamos o trem para Xangai. Nessa noite partia um vapor japonês para São

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Francisco e corremos a tomar passagem nele." — Prestou-lhe você um serviço imenso — observei.Não o negou Rutherford:— Creio que não teria feito tanto se fosse por outra

pessoa. Mas havia não sei o que naquele rapaz. . . é difícil explicar, mas sempre fora assim. . . a gente sentia-se feliz em fazer por ele tudo que pudesse.

— Sim — concordei. — Ele possui um encanto particular, um como dom de conquistar as pessoas, que até agora é agradável recordar — posto que eu o veja ainda colegial, em traje de etiquete.

— É pena que você não o tivesse conhecido em Oxford. Era brilhante — não há outra palavra. Dizem que depois da guerra ficou diferente, e creio mesmo que assim foi. Mas não posso deixar de lamentar que, sendo tão bem dotado, não tivesse ocupação mais importante — porque não considero grande carreira para um homem isso de ser esteio da majestade britânica. E Conway era, ou devia ter sido, grande. Nós ambos o conhecemos e não estou exage-rando, certamente, quando digo que nunca nos esquece-remos disso. E, até lá na China, ele, cujo espírito estava perturbado, cujo passado era um mistério, conservava ainda aquele poder de atração.

Calou-se um momento, cismando, depois continuou:— Como bem pode imaginar, reatamos a velha ami-

zade durante a viagem. Disse-lhe tudo que sabia a seu res-peito e ele ouviu-me com uma atenção concentrada que quase tocava as raias do absurdo. Lembrava-se de tudo perfeitamente, desde a sua chegada a Chung-Kiang; e outro ponto que lhe pode interessar é que não esquecera as línguas. Disse-me, por exemplo, que sabia ter tido algo que ver com a índia, pois que conhecia a língua hindustani. Em Yokohama encheu-se o vapor e entre os novos passageiros

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estava Sieveking, o pianista, a caminho dos Estados Uni-dos, onde ia dar concertos. Era da nossa mesa e falava às vezes com Conway, em alemão. Isto prova que, no exterior, ele parecia perfeitamente normal. A não ser a perda de memória, que não se notava no trato comum, sua aparência geral era a de um homem são. Alguns dias depois de partirmos do Japão, Sieveking aquiesceu em dar um con-certo a bordo e eu e Conway fomos ouvi-lo. Tocou bem, é claro — alguns trechos de Brahms e Scarlatti e muita coisa de Chopin. Uma ou duas vezes olhei para Conway e pare-ceu-me que ele estava apreciando aquilo, o que seria muito natural, visto ter sido músico.

"Terminado o programa prolongou-se o recital numa série de repetições, que Sieveking concedeu — muito amavelmente, pareceu-me — a alguns entusiastas agrupa-dos em redor do piano. Também desta vez, tocou principal-mente Chopin. Você sabe que é a sua especialidade. Afinal deixou o piano e dirigiu-se para a porta, ainda acompa-nhado de admiradores; mas, evidentemente, achava que de-viam dar-se por satisfeitos. Nesse ínterim, tinha início um fato estranho. Conway sentara-se ao piano e estava tocan-do uma música rápida e viva, que eu não reconheci, mas que fez com que Sieveking voltasse, muito excitado, a inda-gar o que era. Após um longo silêncio, estranho na verda-de, Conway pôde apenas dizer que não sabia. Sieveking, ainda mais alvoroçado, exclamou que era incrível. Fazen-do, na aparência, um tremendo esforço fÍsico e mental para se lembrar, Conway disse afinal que era um estudo de Cho-pin. Não me pareceu que fosse, e não me surpreendi ao ouvir Sieveking negá-lo peremptoriamente. Conway, entre-tanto, mostrou-se de repente indignado, o que me espantou, porque até aquele dia revelara tão pouca emoção em todas as coisas! Sieveking, do seu lado, objetava:

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" 'Meu caro amigo, conheço tudo quanto existe de Chopin e afirmo-lhe que ele jamais escreveu isso que o senhor acaba de tocar. Podia perfeitamente ter escrito o trecho, pois é o seu estilo, mas sucede apenas que não o escreveu. Desafio-o a mostrar-me em qualquer edição'.

"Ao que Conway replicou afinal:" 'Oh! sim. . . lembro-me agora. . . isso nunca foi

impresso. Conheço o trecho porque o ouvi de um antigo aluno de Chopin. . . Aprendi também com ele outra peça inédita'."

Olhando-me firmemente, Rutherford continuou:— Não sei se você conhece música; mas, ainda que

não conheça, creio que poderá imaginar a excitação de Sie-veking, e também a minha, quando Conway continuou a tocar. Para mim, certamente, aquilo foi um repentino e assombroso vislumbre do seu passado — a primeira reve-lação que lhe escapava. Sieveking achava-se, naturalmente, todo absorto no problema musical — um quebra-cabeça, se atendermos à época da morte de Chopin: 1849.

"Todo esse incidente foi tão inexplicável, em certo sentido, que talvez não seja demais acrescentar que havia ali pelo menos uma dúzia de testemunhas, inclusive um professor da Universidade da Califórnia, homem de certa nomeada. Seria muito fácil, está visto, declarar que a expli-cação de Conway era cronologicamente impossível, ou pouco menos que impossível; mas havia, ainda assim, os trechos musicais a pedir explicação. Se não era como ele dizia, o que era então? Sieveking afirmou-me que, se aque-las duas peças fossem publicadas, estariam no repertório de todos os concertistas dentro de seis meses. Pode ser exa-gero, mas serve para mostrar a opinião que Sieveking fazia delas. Depois de muito argumentar não conseguimos assentar uma explicação satisfatória, pois que Conway

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insistia na sua história e, como já me parecia que ia fican-do fatigado, estava ansioso por afastá-lo dali e levá-lo para a cama. O último episódio foi uma combinação para gravar o trecho em disco. Sieveking declarou que se encarregaria de todos os arranjos assim que chegasse à América, e Conway prometeu tocar diante do microfone. Muitas vezes tenho lamentado, por várias razões, que ele não chegasse a cumprir a promessa."

Consultando o relógio, disse-me Rutherford que eu tinha tempo suficiente para apanhar o trem, pois sua histó-ria estava quase terminada.

— Porque naquela noite — continuou ele —, a noite do recital, voltou-lhe a memória. Tínhamos ambos ido dei-tar-nos e eu me conservava acordado quando ele entrou no meu camarote e disse-mo. Tinha o rosto rígido e a única definição que encontro para a sua expressão é a de uma tristeza esmagadora, uma espécie de tristeza universal — alguma coisa remota e impessoal, isso a que os alemães chamam Wehmut, Weltschmerz, ou coisa que o valha. Dis-se-me que podia recordar tudo agora, que a memória começara a voltar-lhe aos poucos enquanto Sieveking toca-va. Sentou-se à beira da minha cama e ali ficou calado; deixei-o à vontade, para que falasse quando e como quisesse. Disse-lhe que me alegrava por lhe ter voltado a memória, mas que me entristecia, ao mesmo tempo, por ver que ele preferia que não houvesse voltado. Ergueu então a cabeça e ouvi de sua boca o que hei de sempre considerar um grande cumprimento:

" 'Graças a Deus, Rutherford, você tem imagina-ção...'

"Persuadi-o depois a vestir-se enquanto eu fazia o mesmo, e começamos a andar no convés de um lado para

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outro. Era uma noite serena, estrelada e quente, e o mar tinha um aspecto viscoso e pálido: parecia leite condensado. Se não fosse a vibração das máquinas, diríamos que estávamos passeando numa esplanada. Abandonei-o apropria iniciativa, sem lhe fazer a princípio pergunta alguma. Quase ao romper da madrugada começou a falar; fê-lo sem interrupções, e, quando acabou, a manhã ia em meio e o sol escaldava. Quando digo 'acabou', não quero dizer que nada mais ficasse por acrescentar àquela primeira confissão. Ele ainda preencheu muitas lacunas importantes durante as vinte e quatro horas que se seguiram. Sentia uma tristeza profunda e não podia dormir, de sorte que conversamos quase constantemente. Pelo meio da noite seguinte o vapor devia chegar a Honolulu. Estivemos bebendo no meu camarote ao escurecer; deixou-me às dez horas, mais ou menos, e nunca mais o vi."

— Você quererá dizer?...Já me surgia no espírito a lembrança de um suicídio

calmo e deliberado que presenciara uma vez, no paquete de Holyhead para Kingstown.

— Oh! não — respondeu Rutherford, rindo. — Conway não era desse tipo. Fugiu-me apenas. E era muito fácil desembarcar, mas ele deve ter tido dificuldade em subtrair-se às buscas a que, naturalmente, não deixei de proceder. Soube depois que conseguira reunir-se à tripulação de um bote carregado de bananas, que se dirigia para Fidji.

— E como veio a saber disso?— Da maneira mais simples: escreveu-me de Bancoc,

três meses mais tarde, remetendo um cheque para pagar as despesas que eu tivera com ele. Agradecia-me, ajuntando

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que se achava muito bem. E que ia empreender uma longa viagem — para o noroeste. Mais nada.

— Que queria dizer com isso?— Sim, é muito vago, não é? Há muitos lugares que

ficam a noroeste de Bancoc. Até Berlim, afinal, fica nessa direção.

Calou-se e encheu os copos.Era uma história estranha aquela; ou seria ele que lhe

dava essa feição? Eu não saberia dizer qual fosse o mais exato. O episódio da música, por mais assombroso que fosse, não me interessava tanto como o mistério da chegada de Conway àquele hospital da missão chinesa. Fiz este comentário, e Rutherford respondeu que eram ambos par-tes do mesmo problema.

— Pois sim; mas como foi que ele foi ter a Chung-Kiang? Certamente há de lhe ter contado tudo isso aquela noite, no vapor.

— Falou-me nisso, sim, e seria absurdo, depois de lhe contar tanta coisa, guardar segredo sobre o resto. Mas é uma história comprida e não haveria tempo sequer para delineá-la antes de você tomar o trem. Além disso, há uma maneira mais conveniente de satisfazê-lo. Não gosto muito de revelar as manhas da minha desacreditada profissão, mas a verdade é que, quanto mais pensava na história de Conway, mais atração sentia por ela. Principiara por tomar simples notas, depois de nossas diversas conversa-ções no navio, a fim de não esquecer os detalhes. Mais tarde, como certos aspectos dela começaram a me empol-gar, vi-me constrangido a aumentar aquelas notas — a dar forma aos fragmentos, a encadeá-los numa narrativa única. Não quero dizer com isto que tenha inventado ou alterado alguma coisa. Há no que ele me contou material de sobra.

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Conway conversava com muita fluência e tinha o dom natural de comunicar um ambiente. Creio também que eu, por minha parte, começava a compreender o homem.

Foi buscar uma maleta e tirou de dentro um maço de originais datilografados.

— Aqui tem você a história. Faça dela o que quiser.— Pelo que vejo, você acha que não vou acreditar

nela.— Oh! Minha opinião não é tão definitiva.. . Mas

olhe, se você acreditar, será pela famosa razão de Tertuliano, lembra-se? Quia impossibile est. Talvez não seja mau o argumento. Seja como for, diga-me depois o que pensa disto.

Levei comigo os papéis. Li a maior parte da história no expresso do Oriente. Pretendia devolvê-la com uma longa carta, assim que chegasse à Inglaterra; mas não o fiz logo, e antes de fazer a remessa recebi um bilhetinho de Rutherford, dizendo-me que ia recomeçar a andejar e que por alguns meses não teria endereço fixo. Ia para Caxemi-ra, e dali "para leste ".

E isto não me surpreendeu.

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CAPÍTULO 1

Piorara consideravelmente a situação em Baskul naquela terceira semana de maio, e no dia 20 chegaram de Peshawar aparelhos da Air Force, mediante arranjo feito para evacuar os residentes brancos. Eram estes mais ou menos oitenta e a maior parte foi conduzida sem novidade, atravessando as montanhas em aviões de transporte de tropa. Empregaram-se também nesse mister alguns aparelhos de várias espécies, entre eles um avião de cabina, cedido pelo marajá de Chandapor. E foi nesse avião que embarcaram, pelas dez horas da manhã, quatro passageiros: Miss Roberta Brinklow. da Missão do Oriente; Henry D. Barnard, cidadão americano; Hugh Conway, cônsul de S. M. Britânica; e o capitão Charles Mallinson, vice-cônsul.

Estão aí os nomes, conforme apareceram mais tarde nos jornais indianos e ingleses.

Contava Conway trinta e um anos. Havia dois que es-tava em Baskul, desempenhando uma tarefa que, vista agora à luz dos acontecimentos, poderia ser considerada como a defesa teimosa de uma causa perdida.

Encerrava-se ali uma fase de sua vida. Dentro de algumas semanas, talvez uns poucos meses de licença, seria enviado para outra parte. Tóquio ou Teerã, Manilha ou Mascate: na sua profissão nunca se sabe o que vai acontecer.

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Estava já há dez anos no serviço consular — tempo suficiente para avaliar as suas possibilidades com a mesma agudeza com que observava as aldeias. Sabia que nunca teria muito com que comprar melões; mas já era consola-ção bastante pensar que não gostava mesmo de melão. E, para usarmos outra imagem botânica, não se tratava de "uvas verdes". Preferia as ocupações menos cerimoniosas e mais pitorescas que se lhe ofereciam, e, como nem sem-pre eram as melhores, muita gente achava que ele "fazia mau jogo". Entretanto, e segundo o seu gosto, parecia-lhe que jogara muito bem; tivera um decênio moderadamente agradável.

Era alto, muito bronzeado, cabelos castanhos apara-dos curtos e olhos de um azul quase negro. Parecia severo e preocupado, enquanto sério; quando ria — o que era raro — tinha aparência de menino. Observava-se-lhe, junto ao olho esquerdo, uma leve contração nervosa que aparecia nitidamente quando trabalhava em excesso ou bebia demais; e, como passara todo o dia e toda a noite que pre-cederam a evacuação a reunir e destruir documentos, era essa contração muito acentuada quando entrou no avião. Achava-se fatigadíssimo e infinitamente satisfeito por ter arranjado as coisas de sorte a viajar no luxuoso aparelho do marajá, em vez de ir num dos apinhados aeroplanos da tropa. Refestelou-se gostosamente no confortável assento de vime quando o avião se elevou nos ares. Era daquela espécie de homens que, estando habituados aos trabalhos mais duros, esperam ter em recompensa os pequenos con-fortos da vida. Podia suportar alegremente os rigores da estrada de Samarcande, mas, para viajar de Londres a Paris, gastaria a última nota de dez libras tomando uma passagem no "Seta de Ouro".

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Já fazia mais de uma hora que estavam voando quan-do Mallinson, que ia sentado logo à frente de Conway, observou que, a seu ver, o piloto não seguia o caminho direito.

Era Mallinson um moço de vinte e poucos anos, corado, inteligente sem ser intelectual, encerrado nas limitações do ensino público, cujas vantagens também soubera aproveitar. A reprovação num exame era a causa principal de ter sido mandado para Baskul, onde estivera seis meses em companhia de Conway, que já começava a gostar dele.

Mas Conway não queria fazer o esforço que exige uma conversação em aeroplano. Abriu os olhos sonolentos e replicou que, fosse qual fosse o caminho tomado, era de supor que o piloto o conhecesse melhor do que eles.

Dali a meia hora, rendido pelo cansaço e embalado pelo zumbido do motor, ia já a adormecer quando Mallin-son tornou a perturbá-lo:

— Escute, Conway, pensei que era Fenner quem nos levava!

— E então, não é ele?— O sujeito voltou a cabeça agora mesmo, e sou

capaz de jurar que não é ele.— É difícil de dizer, através daquele vidro.— Eu conheceria o rosto de Fenner em qualquer

parte.— Pois bem, se não é ele é algum outro. Não tem

importância.— Mas é que Fenner me disse positivamente que iria

conduzir este aparelho.— Sem dúvida mudaram de idéia e deram-lhe um dos

outros.

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— Bem, neste caso, quem é aquele homem?— Meu caro rapaz, como vou saber disso? Não julga

certamente que aprendi de cor a fisionomia de todos os tenentes-aviadores da Air Force, não é?

— Pois eu conheço muitos, e não me lembro daquele sujeito.

— Deve pertencer então à minoria que você não conhece — replicou Conway, sorrindo.

E acrescentou:— Quando chegarmos a Peshawar, daqui a pouco,

você poderá travar conhecimento com ele e indagar tudo quanto quiser.

— Neste andar não chegaremos nunca a Peshawar. O homem está completamente fora de rumo. E não me admira. . . Voando a tamanha altura ele não pode ver onde está.

Conway não se inquietou. Estava habituado às via-gens aéreas e confiava nos pilotos. Além disto, não tinha motivo algum para desejar chegar depressa a Peshawar. Nada tinha de particular a fazer ali e não se sentia ansioso por ver ninguém. Era-lhe, pois, de todo indiferente que a viagem durasse quatro ou seis horas. Não era casado; não o aguardava uma terna recepção ao desembarcar. Tinha amigos na cidade e provavelmente alguns deles o levariam ao clube, onde beberiam juntos; era uma perspectiva agra-dável, mas não de molde a causar-lhe grande alvoroço.

Também não encarava com saudades a década trans-corrida. Fora um período igualmente agradável, ainda que não o tivesse satisfeito inteiramente. Instável, bom por intervalos, tendendo a perturbar-se; tal era o sumário meteorológico daquela época de sua vida, bem como da história mundial.

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Passaram-lhe pela memória Baskul, Pequim, Macau e outros lugares. A cena mais remota na sua lembrança era Oxford, onde, depois da guerra, passara dois anos fazendo preleções sobre história oriental, respirando o pó em bibliotecas cheias de sol, descendo a High Street de bicicleta. A visão era atraente, mas não o comovia; parecia-lhe, em certo sentido, que ele era apenas uma parte de todas as coisas que pudera ter sido.

Uma sensação gástrica muito sua conhecida advertiu-o de que o avião começava a descer. Teve a tentação de admoestar Mallinson pelo seu nervosismo, e tê-lo-ia feito sem dúvida se o moço não se houvesse levantado subita-mente, batendo com a cabeça no teto e acordando Barnard, o americano, que estava a cochilar no seu canto, do outro lado do estreito corredor.

— Meu Deus! — exclamou Mallinson, espiando pela janela. — Olhem para baixo!

Conway olhou. Não era aquela, certamente, a vista que esperava — se é que esperava alguma coisa. Em vez dos acantonamentos em elegante disposição geométrica e dos retângulos mais compridos dos hangares, só se avis-tava um nevoeiro opaco que velava uma imensa desolação. O avião, que ia descendo rapidamente, achava-se ainda a uma altura extraordinária para um vôo comum. Avistava-se, cerca de uma milha aquém da névoa mais sombria dos vales, o espinhaço rugoso de uma longa fila de montanhas. Era o cenário típico da fronteira, se bem que Conway jamais o tivesse visto de tamanha altura. Não era — e isto lhe causou estranheza — sítio algum próximo de Pesha-war.

— Não reconheço esta parte do mundo! — observou.Depois, e mais discretamente, por não querer assustar

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os outros, acrescentou ao ouvido de Mallinson:— Parece que você tinha razão... O homem errou

mesmo o caminho!O avião descia com espantosa rapidez e o ar ia fican-

do cada vez mais quente. Dir-se-ia que a terra adusta que se avistava lá embaixo era um forno, cuja porta se abrira de repente. Acima do horizonte erguiam-se picos de montanhas, um após outro, recortando no ar a silhueta escarpada. Já o vôo seguia a curva de um vale, cuja base estava toda semeada de rochedos e vestígios de cursos de água ressequidos; pareciam cascas de nozes espalhadas pelo chão. O avião se debatia e agitava entre golfadas de ar, tão violentamente como um bote de remo nas ondas encrespadas. Os quatro passageiros mal se podiam manter sentados.

— Parece que ele vai aterrar! — gritou o americano com voz rouca.

— Mas não pode! — retorquiu Mallinson. — Só se for louco tentará semelhante coisa! Vai despedaçar-se, e então.. .

Mas o piloto aterrou. Abria-se um pequeno espaço livre à beira de um barranco e o aparelho, com muita perí-cia, depois de alguns baques e solavancos, pousou sereno.

O que veio depois, contudo, foi mais espantoso e menos tranqüilizador.

Apareceram nativos barbudos, de turbante à cabeça, que acorriam de todos os lados cercando o avião e impe-dindo que alguém saísse dele, a não ser o piloto. Este sal-tou em terra, mantendo com eles animada palestra, durante a qual se verificou que não somente não era Fenner como até não era inglês, e quiçá nem europeu. Enquanto falavam iam carregando latas de petróleo de um depósito próximo e

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despejando-as nos tanques, de capacidade excepcional. Os gritos dos quatro passageiros aprisionados eram recebidos com arreganhos de dentes e desdenhoso silêncio. E à mais leve tentativa de desembarque correspondia logo um movi-mento ameaçador de vinte rifles.

Conway, que conhecia um pouco o idioma afegane, arengou com os homens conforme pôde, naquela língua, mas sem resultado. Quanto ao piloto, a única resposta a qualquer pergunta, em qualquer língua, era um significa-tivo aceno com o revólver.

O sol do meio-dia, chamejando sobre o teto da cabina, aquecia o ar inteiro a tal ponto que os ocupantes dela estavam quase a desmaiar, com o calor e o esforço dispendido em protestos. Viam-se absolutamente impotentes; era condição da evacuação que viajariam sem armas.

Quando afinal os tanques foram fechados, passou-se uma lata de petróleo cheia de água morna por uma das janelas da cabina. Ninguém respondeu a pergunta alguma, ainda que os homens não parecessem pessoalmente hostis. Depois de outra conferência voltou o piloto para o seu posto; desajeitadamente, um dos afeganes pôs a hélice em movimento, e recomeçou o vôo. A partida, naquele espaço confinado e com a carga suplementar de combustível, foi ainda mais magistral do que a aterragem. O avião ergueu-se por entre o nevoeiro, depois voltou-se para o oriente, como a assentar um rumo.

Ia em meio a tarde.

Que caso extraordinário! Era para desorientar! Já retemperados pelo ar mais fresco, mal podiam crer os

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passageiros que tudo aquilo de fato acontecera. Era um ultraje sem precedente e sem igual, mesmo nos anais turbulentos da fronteira. E, se não fossem eles mesmos as vítimas, certo o reputariam incrível. Era a coisa mais natural do mundo que a esse primeiro momento de incredulidade se seguisse uma explosão de indignação e, dissipada esta, uma ansiosa curiosidade.

Apresentou Mallinson uma teoria que foi aceita, à falta de outra melhor: tinham-nos raptado para serem pos-tos a resgate. Se o processo não era novo, a técnica não carecia de originalidade. Já era consoladora a idéia de que não tomavam parte num fato inteiramente virgem na histó-ria mundial; afinal, já tinha havido muito rapto no mundo e boa parte deles acabara bem. Os homens os reteriam em algum covil das montanhas até que o governo pagasse, e então lhes dariam a liberdade. Seriam tratados com toda a consideração, e, como o dinheiro do resgate não lhes sairia do próprio bolso, aquilo só seria desagradável enquanto estivessem prisioneiros.

Mais tarde, certamente, a Air Force enviaria um avião de bombardeio, e ficava-se com uma boa história para contar durante o resto da vida. Foi Mallinson que, um tantinho nervoso, enunciou esta conclusão.

O americano, porém, entendeu de fazer espírito barato:

— Pois, meus senhores, parece-me que é uma bela idéia, seja lá de quem for, mas não posso dizer que a sua Air Force se cobriu hoje de glória. Vocês, ingleses, fazem chacota dos assaltos de Chicago e outras coisas, mas não me lembra nenhum caso de um bandido ter fugido assim sem saber o que fez este sujeito do verdadeiro piloto. Aposto que o derrubou com uma paulada na cabeça.

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E acabou num bocejo.Era Barnard um homem alto e corpulento: no rosto

duro, os vincos pessimistas não apagavam por completo a expressão de bom humor. Pouco se sabia dele em Baskul; viera da Pérsia, onde, ao parecer, se entregava ao comércio de petróleo.

Conway, por seu lado, ocupava-se numa tarefa práti-ca: reunia todos os pedacinhos de papel que seus compa-nheiros traziam e neles escrevia mensagens em várias lín-guas nativas para, de espaço a espaço, deixar cair uma delas. Em região de tão escassa população era magra a esperança, mas valia a pena tentá-la.

O quarto passageiro era uma mulher, Miss Brinklow. Toda tesa no assento, com os lábios apertados, poucos comentários emitia — e nenhuma queixa. Era de baixa estatura e aparência coriácea. Dir-se-ia, ao observá-la, que assistia constrangida a uma reunião onde sucediam coisas contrárias aos seus princípios.

Conway falava menos que os outros dois, pois trans-mitir mensagens em vários dialetos é um exercício mental que exige concentração. Respondia, ainda assim, às per-guntas que lhe dirigiam e concordara, a título de ensaio, com a teoria de rapto apresentada por Mallinson. Aquiescera também, até certo ponto, nas observações de Barnard sobre a Air Force.

— . . . ainda que se compreenda facilmente como se deu o fato. Na inquietação e tumulto do momento era muito fácil tomar um homem, com o uniforme de aviador, por outro aviador. Ninguém vai lembrar-se de pôr em dúvida a boa fé de uma pessoa que se apresenta com o traje apropriado e parece conhecer a sua obrigação. E o sujeito devia conhecê-la — sinais e tudo

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mais. É evidente, além disso, que ele sabe voar. . . Todavia, não nego que seja uma dessas coisas que sempre metem alguém em complicações — posto que, a meu ver, ninguém teve culpa neste caso.

— Muito bem, cavalheiro — replicou Barnard; — admiro a maneira como procura ver ambos os lados da questão. É essa a atitude correta, não há dúvida, mesmo quando a gente está sendo seqüestrado.

Lá consigo pensava Conway que os americanos ti-nham o dom de dizer as coisas com ar protetor, sem ofen-der. Sorriu, tolerante, mas deixou cair a conversação. Sen-tia-se tão fatigado que perigo algum poderia abalá-lo.

Já no fim da tarde, quando Barnard e Mallinson, que discutiam, apelaram para a sua opinião sobre um ponto, verificou-se que adormecera. E Mallinson comentou:

— Prostrado. E não me admira, depois de tudo o que fez nestas últimas semanas.

— É seu amigo? — indagou Barnard.— Trabalhava com ele no consulado. E por isso sei

que há duas noites que não se deita. O certo é que tivemos muita sorte em tê-lo conosco neste aperto! Além de conhecer línguas, tem uma espécie de jeito especial para lidar com as pessoas. Se há algo que possa tirar-nos desta entaladela, ele o fará. E é muito calmo, além de tudo.

— Pois bem, deixemo-lo dormir, então.E Miss Brinklow fez nesse momento uma de suas

raras observações:— Ele parece ser um homem muito valente.

Quanto a Conway, não tinha tanta certeza de ser de fato um homem muito valente. Fechara os olhos de pura

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fadiga física, mas não dormia. Ouvia e sentia todos os movimentos do avião, e ouvira também, com uma sensação indefinida, o elogio de Mallinson. E foi então que teve suas dúvidas, reconhecendo em certa contração do estômago a reação física a um exame mental não muito tranqüilizador. Não era — e sabia-o por experiência própria — daquelas pessoas que amam o perigo pela sensação do perigo. Havia neste certo aspecto que apreciava, na verdade, uma excitação, uma espécie de efeito catártico sobre as emoções ociosas, mas estava muito longe de sentir prazer em arriscar a vida. Doze anos antes começara a detestar os perigos da guerra de trincheira na França, e algumas vezes evitara a morte eximindo-se de tentar valentias impossíveis. Até sua condecoração devia-a menos à coragem física do que a uma técnica de resistência não muito fácil de conseguir. E desde a guerra, onde quer que surgisse outra vez o perigo, encarava-o com crescente aversão, a não ser que prometesse uma quota extraordinária de emoção.

Continuava de olhos cerrados. Sentia-se tocado, e um tanto consternado também, pelo que ouvira de Mallinson. Era destino dele ver sempre sua equanimidade confundida com bravura — quando era, de fato, uma coisa muito menos apaixonada e menos viril.

Achavam-se todos numa situação terrivelmente ad-versa, segundo lhe parecia, e longe de se sentir cheio de ardor, ao encará-la, desgostava-o profundamente a idéia das dificuldades que poderiam surgir. Veja-se Miss Brink-low, por exemplo. Previa que, em determinadas circunstâncias, suas ações teriam de ser subordinadas ao critério de que ela sozinha tinha mais direito a consideração do que eles todos juntos, por ser mulher. E

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tremia já, à perspectiva de uma situação em que seria inevitável semelhante falta de eqüidade.

Entretanto, quando deu sinal de despertar, foi com ela que primeiro falou. Via que não era jovem nem bonita — virtudes negativas, mas utilíssimas em transes como os que teriam talvez de enfrentar dentro em pouco. Sentia pena dela, porque desconfiava que nem o americano nem Mallinson gostavam de missionários, especialmente do sexo feminino. Quanto a ele próprio, não tinha preconceitos nesse sentido, mas receava que para ela representasse o seu espírito aberto um fenômeno pouco familiar e quiçá ainda um pouco desconcertante.

Aproximando o rosto dela para lhe falar, disse:— Parece que estamos numa situação esquisita, mas

folgo de ver que a senhora encara o caso com serenidade. Realmente, creio que não nos acontecerá nada de terrível.

— Estou certa de que não, se o senhor puder evitá-lo. Não lhe pareceu muito consoladora a resposta.— A senhora me avisará se eu puder fazer alguma

coisa para seu conforto.Barnard apanhou a palavra e repetiu em voz rouca,

como um eco:— Conforto? Mas não há dúvida de que temos

conforto. . . Estamos gozando a viagem. Lástima é que não tenhamos um baralho. .. poderíamos até jogar bridge.

Ainda que não gostasse do jogo, Conway apreciou o espírito da observação.

— Não creio que Miss Brinklow jogue — disse, sorrindo.

A missionária, porém, voltou-se vivamente e replicou:— Pois jogo, e não vejo mal nenhum nisso. Nada há

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contra as cartas na Bíblia.Riram todos, parecendo gratos à dama por lhes

proporcionar uma escusa para tal. E lá consigo pensava Conway:

"Seja como for, ela não é muito nervosa".

Toda a tarde voara o avião a grande altura, por entre o esgarçado nevoeiro da atmosfera superior — muito alto para que se pudesse ter uma visão clara do que ficava embaixo. De vez em quando, com longos intervalos, rasga-va-se por um momento o véu, deixando ver a silhueta denteada de um pico ou a claridade de um rio desconhecido. Pelo sol era possível determinar mais ou menos a direção; seguiam ainda para leste, com algumas guinadas para o norte, de tempos a tempos; mas, quanto à região em que se achavam, era coisa que dependia da velocidade do vôo, e esta não a podia Conway avaliar com segurança. Parecia provável, entretanto, que já tivessem gasto boa porção de petróleo — o que, aliás, também dependia de certos fatores. Conway não possuía conhecimentos técnicos de aviação, mas estava certo de que o piloto, quem quer que fosse, era de uma perícia incontestável. Provara-o aquela descida no vale eriçado de penhascos, além de outros incidentes posteriores. E Conway não podia sopitar um sentimento natural nele, sempre que se via em presença de uma competência soberba e indiscutível. Estava tão habituado a receber pedidos de auxílio que só o fato de saber que ia ali alguém que não o pedia, nem necessitava dele, era levemente tranqüilizador, mesmo em meio às incertezas do futuro.

Não esperava, contudo, que seus companheiros

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compartilhassem tão sutis emoções. Reconhecia que po-diam ter muito mais razões pessoais do que ele para estarem ansiosos. Mallinson, por exemplo, tinha noiva na Inglaterra; Barnard talvez fosse casado; Miss Brinklow tinha seu trabalho, vocação, ou como quer que ela o consi-derasse. Era Mallinson, aliás, o mais desassossegado de todos; à proporção que iam passando as horas mostrava-se cada vez mais agitado — pronto, também, a lançar em rosto a Conway aquela mesma frieza que louvara às escon-didas dele. E chegou um momento em que se levantou uma tempestade de questões, dominando o ronco do motor.

— Escutem! — gritava Mallinson, furioso. — Iremos nós ficar aqui a olhar as moscas, enquanto esse maluco faz o que bem entende? Que é que nos impede de despedaçar aquele vidro e tirá-lo dali?

— Nada — replicou Conway — a não ser que ele es-teja armado e nós não, e que em todo caso nenhum de nós saberia levar o aparelho para terra.

— Isso não há de ser muito difícil, com certeza. Não duvido que você possa fazê-lo.

— Oh! Mas meu caro Mallinson, por que é que você há de esperar sempre de mim semelhantes milagres?

— Bem, o certo é que este negócio me está atacando infernalmente os nervos! Não poderemos obrigá-lo a descer?

— E de que maneira acha você que poderemos fazê-lo?

Cresceu de ponto a agitação de Mallinson, que retrucou:

— Escute, ele está ali, não é? Mais ou menos a dois metros de nós, e somos três contra um! Vamos ficar eter-namente a olhar para aquelas costas malditas? Ao menos

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poderemos obrigá-lo a dar explicações!— Muito bem, vamos ver isso.E Conway deu alguns passos para a frente, rumo à

divisão entre a cabina e o assento do piloto, situado na frente e um pouco acima. Havia uma lâmina quadrada de vidro, de cerca de quinze centímetros, que se podia correr para um lado, e pela qual o piloto, voltando a cabeça e curvando-se levemente, podia comunicar-se com os passageiros. Conway bateu nela com os nós dos dedos. A resposta veio, como ele esperava, de modo quase cômico. O quadrado de vidro deslizou para um lado e o cano de um revólver surgiu na abertura. Nem uma palavra: só isso. Conway retirou-se sem discutir e a janelinha tornou a fechar-se.

Mallinson, que observara o incidente, ficou apenas parcialmente satisfeito e comentou:

— Não creio que ele ouse atirar. É só fanfarronada.— Isso mesmo — concordou Conway; — mas deixo

a você o cuidado de averiguá-lo.— Pois me parece que devíamos lutar antes de nos

deixarmos derrotar assim.Conway olhou-o com simpatia. Não ignorava a con-

venção que, com todo o seu cortejo de soldados de túnica vermelha e livros de leitura escolar, declara que o inglês não tem medo de nada, nunca se entrega, jamais é vencido. E disse:

— Provocar um combate sem probabilidade de ven-cer é mau jogo, e eu não quero ser essa espécie de herói.

— Muito bem, cavalheiro! — acudiu Barnard calorosamente. — Quando alguém nos segura pelo cango-te, é melhor a gente entregar-se de boa vontade e aceitar o fato. Pela minha parte, vou gozar a vida enquanto ela dura e fumar um charuto. Creio que um pouquinho mais de

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perigo não faz diferença, hem?— Não, pelo que me toca; mas pode aborrecer Miss

Brinklow.Barnard desfez-se em desculpas:— Perdão, madama. A senhora não se incomodará

muito se eu acender um charuto?— Não, não — respondeu ela amavelmente; — eu

não fumo, mas gosto do cheiro de charuto.E Conway refletiu que, entre todas as mulheres de

quem se poderia esperar semelhante declaração, era aquela a mais típica.

Acalmara-se, entretanto, um pouco a excitação de Mallinson, e, querendo demonstrar-lhe simpatia, Conway ofereceu-lhe um cigarro, posto que ele próprio não acen-desse nenhum. E disse amavelmente:

— Compreendo o seu estado de ânimo, Mallinson. A situação não é rósea, e o pior, em certo sentido, é que não podemos fazer grande coisa para sair dela.

E lá consigo acrescentava:"E o melhor, também, em outros sentidos".Porque ainda sentia uma fadiga extrema. Havia tam-

bém na sua natureza um traço a que talvez algumas pes-soas chamassem preguiça, dado que não fosse o termo pró-prio. Ninguém era capaz de trabalhar mais rijo, quando necessário, e poucos sabiam arcar com responsabilidades melhor do que ele. Isto não tira, contudo, que não morresse de amores pela atividade, e também que não sentisse muito prazer na responsabilidade. Achavam-se ambas as coisas incluídas na sua obrigação, que ele executava o melhor que podia; mas estava sempre pronto a ceder o passo a quem a pudesse executar tão bem quanto ele, ou melhor. E isto contribuirá, sem dúvida nenhuma, para atenuar consideravelmente o brilho do seu sucesso no

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serviço consular. Não era bastante ambicioso para abrir caminho à custa de outrem, nem para fazer parada de abstenção quando não havia realmente nada que fazer.

Seus despachos eram amiúde tão lacônicos que chega-vam a ser deficientes; e a serenidade que mostrava em emergências difíceis, conquanto admirada por todos, foi mais de uma vez atribuída à frieza natural; as autoridades gostam dos homens que se dominam, ainda que com algum esforço, e cuja indiferença aparente não passa de disfarce, encobrindo um mundo de emoções disciplinadas. Quanto a Conway, muita gente suspeitava que sua tranqüilidade não era só aparente, e que não dava importância a coisa alguma.

E contudo, era isto também, como a acusação de pre-guiça, interpretação errônea. É que a muitos observadores passava despercebida uma coisa tão simples que frustrava a percepção: o amor ao sossego, à contemplação e ao isolamento.

Neste momento, visto que se sentia tão inclinado a isso e não havia outra coisa a fazer senão isso mesmo, reclinou-se no assento e resolveu adormecer definitiva-mente. Ao acordar notou que os outros, a despeito de suas preocupações, tinham igualmente sucumbido. Miss Brinklow, direita como uma seta, de olhos fechados, parecia um ídolo desbotado e fora de moda. Mallinson, inclinado para diante, apoiava o queixo na palma da mão. O americano até ressonava. Todos muito razoáveis, pensou Conway; não valia a pena estarem a gastar energia em gritos.

No mesmo instante, porém, tomou consciência de cer-tas sensações físicas — uma leve vertigem, o coração aos pulos e a respiração difícil. Lembrou-se de ter sentido uma vez sintomas semelhantes, na Suíça.

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Voltou-se para a janela e olhou para fora. O céu esta-va muito claro, e à luz da tarde agonizante a visão que se descortinou aos seus olhos arrebatou, por um instante, o resto de alento que ainda tinha nos pulmões. Porque lá longe, no limite do firmamento, enfileiravam-se picos enevoados, festoados de geleiras e flutuando, ao que parecia, sobre vastas planícies de nuvens. Abrangiam todo o arco de círculo e para o ocidente fundiam-se num horizonte de colorido intenso, quase espalhafatoso, como um pano de fundo impressionista pintado por um gênio meio louco.

E enquanto isso o avião, naquele palco estupendo, ia zunindo por sobre um abismo, em frente de um paredão branco que parecia fazer parte do próprio céu — até o ins-tante em que o sol o atingiu. Então, como uma dúzia de Jungfraus empilhados, vistos de Mürren, ele chamejou numa incandescência soberba e deslumbrante.

Não era Conway facilmente impressionável e por via de regra não se preocupava com "vistas" — principalmente com as mais afamadas, para as quais as municipalidades solícitas proporcionam cadeiras de jardim. Tendo ido um dia à colina do Tigre, perto de Darjeeling, para ver o sol nascer sobre o Everest, achara a montanha mais alta do mundo uma verdadeira decepção. Mas aquele espetáculo belíssimo que contemplava pela janela era de caráter diferente; não parecia exibir-se à admiração. Havia algo de cru e monstruoso naqueles rochedos de gelo, longínquos e impassíveis, e não faltava certa impertinência sublime a quem assim se aproximava deles.

Ia Conway fazendo considerações, recordando mapas, calculando distâncias, estimando tempos e velocidades. E só então notou que Mallinson também despertara. Tocou

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no braço do moço.

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CAPÍTULO II

Uma atitude que caracterizava Conway era a de dei-xar que os outros fossem acordando por si mesmos. Quan-do o fizeram, deu respostas breves às suas breves exclama-ções de assombro. Entretanto, quando mais tarde Barnard lhe pediu opinião, ele a expôs com certa fluência desinte-ressada, como um professor de universidade que elucida um problema. Achava provável — disse — que ainda esti-vessem na índia; tinham voado para o Oriente durante algumas horas, a tão grande altura que não se podia ver muita coisa, mas parecia que seguiam o vale de algum rio — um rio que devia correr mais ou menos de leste para oeste. E concluiu:

— Oxalá tivesse outros meios para determiná-lo, além da simples memória; mas parece-me que isto coincide mais ou menos com o vale do Indo Superior. A ser verdadeira a hipótese, devíamos estar a esta hora numa região espetacular do mundo — e bem vê que assim é.

— Reconhece, então, o lugar onde estamos? — inda-gou Barnard.

— Oh, não. . . nunca estive sequer perto daqui, mas não me surpreenderia se aquela montanha fosse o Nanga Parbat, onde Mummery perdeu a vida. A estrutura e a apa-rência geral parecem concordar com todas as descrições que tenho lido.

— É também alpinista?

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— Fui, e entusiasta, na mocidade. Mas apenas fiz as escaladas comuns na Suíça, é claro.

Mallinson interveio, impaciente:— Seria mais acertado procurarmos descobrir para

onde vamos. Quem dera que alguém no-lo pudesse dizer!— Pois bem, parece-me que vamos direto àquela

cordilheira — disse Barnard. — Não acha, Conway? Desculpe-me se o chamo assim; mas, se vamos tomar parte numa aventura comum, não vale a pena perder tempo com cerimônias, não é mesmo?

Conway achava muito natural que o chamassem pelo nome simplesmente, e pareceu-lhe que aquelas desculpas de Barnard eram um tanto fora de propósito.

— Certamente — concordou. E acrescentou: — Creio que aquela cadeia deve ser a de Caracorum. Há lá muitos desfiladeiros, para o caso de o nosso homem querer atravessá-la.

— Nosso homem! — exclamou Mallinson. — Você quer dizer nosso maluco! Acho que já é tempo de abando-nar a teoria do rapto. Já passamos a região da fronteira, e por aqui não vivem tribos. A única explicação que me ocorre é que o sujeito é um louco furioso. A não ser um louco, quem poderia voar em semelhante país?

— O que sei é que ninguém poderia fazê-lo, exceto um aviador exímio — retorquiu Barnard. — Não entendo muito de geografia, mas ouvi dizer que estas montanhas são consideradas as mais altas do mundo, e, se assim é, atravessá-las será um recorde estupendo.

— Também será a vontade de Deus — encaixou inesperadamente Miss Brinklow.

Conway não deu opinião. Vontade de Deus ou loucu-ra do homem — parecia-lhe que cada um podia escolher o

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que quisesse, caso achasse necessário encontrar uma razão para todas as coisas. Ou, inversamente (continuou a refle-tir, enquanto contemplava a boa ordem da pequena cabina, contra o fundo recortado pela janela naquele cenário descomunal), a vontade do homem e a loucura de Deus. Devia ser coisa muito consoladora ter opinião assente.

E foi então, enquanto assim olhava e refletia, que ocorreu uma estranha transformação. A luz tomara uma cor azulada sobre toda a montanha, cujos socalcos mais baixos escureciam e se faziam violáceos. Sentiu brotar na sua alma alguma coisa mais profunda do que a habitual indiferença. Não era propriamente excitação, menos ainda temor, mas uma expectação aguda e intensa. E disse:

— Tem razão, Barnard. Este caso está ficando cada vez mais notável.

— Notável ou não — insistiu Mallinson —, não me sinto inclinado a propor um voto de agradecimento. Não pedimos que nos trouxessem aqui, e Deus sabe o que have-mos de fazer quando estivermos lá — onde quer que seja esse lá. E não acho menor a afronta por ser o sujeito um grande aviador. Isso não impede que seja maluco. Já ouvi contar o caso de um piloto que enlouqueceu no ar. Este sujeito já devia estar louco quando começou. Aí está a minha teoria, Conway.

Conway ficou silencioso. Enfastiava-se de estar conti-nuamente a gritar entre o ruído do motor, e, além disto, não adiantava nada discutir sobre conjeturas. Entretanto, como Mallinson insistisse por uma opinião, disse:

— Loucura muito bem organizada, como vê. Não esqueça aquela aterragem para tomar gasolina, e lembre-se também de que este aparelho era o único que podia subir a tamanha altura.

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— Não prova que ele não seja louco. Podia ser bas-tante louco para arranjar tudo isso.

— Sim, é possível, certamente.— Pois bem, vamos então assentar um plano de ação.

Que faremos quando o homem aterrar? Se não se chocar nos rochedos matando a nós todos, bem entendido... Que faremos? Correr para ele e felicitá-lo pelo seu vôo maravilhoso, não?

— Comigo não! exclamou Barnard. — Corra para ele quem quiser, menos eu.

Não sentia Conway nenhum desejo de prolongar a discussão, tanto mais que o americano, com os seus grace-jos ponderados, parecia perfeitamente capaz de sustentá-lo. Conway estava já a pensar que o grupo poderia ser muito menos bem constituído. Somente Mallinson tinha tendência para aborrecer os outros; e isto podia dever-se, em parte, à altitude. O ar rarefeito produz efeitos diversos sobre as pessoas; nele, por exemplo, o resultado era uma clareza de idéias combinada com uma apatia física, estado não de todo desagradável. O certo é que aspirava o ar frio e límpido com verdadeira delícia. A situação, sem dúvida, era aterradora. Mas, por enquanto, não podia indignar-se contra uma coisa que se desenrolava de maneira tão metó-dica e despertava tão cativante interesse.

E ao contemplar aquelas montanhas soberbas sentiu também uma ardente satisfação, por ver que ainda havia na terra lugares assim — distantes, inacessíveis, ainda virgens do contato humano.

A muralha de gelo dos montes Caracorum aparecia, agora, mais nítida ainda contra o céu do norte, que tomara um matiz ruço e sinistro. Os picos tinham um brilho géli-do, tão profundamente majestosos e remotos que até o seu

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anonimato se revestia de dignidade. Aquelas centenas de metros que lhes faltavam para alcançar os gigantes conhe-cidos podia livrá-los eternamente das escaladas: eram menos tentadores aos recordistas. Era Conway a antítese deste tipo; inclinava-se a ver certa vulgaridade no ideal ocidental dos superlativos. Não o tentava o esforço excessivo, e as proezas sem finalidade aborreciam-no.

Enquanto ele continuava a contemplar o cenário caiu o crepúsculo, mergulhando as profundidades num negror aveludado que se estendia para cima, como uma tinta que se esbate. Então toda a cordilheira, muito mais próxima agora, empalideceu e revestiu-se de novo esplendor. Surgi-ra a lua cheia, ferindo os picos um a um, como um celestial acendedor de lampiões. Por fim, toda a extensão do horizonte cintilava contra o céu azul-ferrete. O ar esfriou e saltou um vento, sacudindo incomodamente o aparelho.

A estes novos aborrecimentos começaram os passa-geiros a desanimar; não contavam com a prolongação do vôo pela noite adentro, e agora só lhes restava a esperança de esgotar-se o combustível, o que, aliás, não devia tardar muito a suceder. Começou Mallinson a discutir este assun-to e Conway, meio relutante, pois de fato não sabia, deu o seu parecer. A distância máxima que podiam percorrer devia orçar por umas mil milhas, a maior parte das quais já teria ficado para trás.

— Pois sim. E aonde nos pode isso levar? — indagou o moço, desalentado.

— Não é fácil de julgar, mas provavelmente a algum ponto do Tibete. Se estes são os montes Caracorum, o Ti-bete fica além deles. Um desses cumes, por sinal, deve ser o K2, que é geralmente considerado a segunda montanha

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do mundo em altura.— O primeiro na lista, depois do Everest — comen-

tou Barnard. — Apre! Isto é que é panorama!— E, para um alpinista, muito pior do que o Everest.

O Duque de Abruzos renunciou a ele, considerando-o absolutamente inacessível.

— Oh! meu Deus! — murmurou Mallinson. de muito mau humor.

Barnard, porém, riu:— Vejo que você será o nosso guia oficial durante a

viagem, Conway. Declaro que, se eu tivesse à mão um frasco de café-conhaque pouco se me daria que isto fosse o Tibete ou Tennessee!

— Mas que havemos de fazer? — insistia Mallinson. — Por que estamos aqui? Qual será o propósito de tudo isto? Não compreendo como podem caçoar de uma coisa assim!

— Ora essa! Vale tanto como fazer cenas, jovem. Além disso, se o homem é mesmo louco, como você quer, provavelmente não terá propósito algum.

— Ele tem de ser louco. Não posso achar outra expli-cação. E você, Conway?

Este sacudiu a cabeça.Miss Brinklow voltou-se para trás, como poderia ter

feito durante um intervalo no teatro, e disse com esganiçada modéstia:

— Como não pediram minha opinião, talvez não deva dá-la. Mas desejo dizer que sou do parecer de Mr. Mallinson. Tenho certeza de que o pobre homem não pode estar regulando bem do juízo. Refiro-me ao piloto, é claro. Não haveria desculpa alguma para o seu procedimento,

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senão a loucura. E acrescentou, erguendo a voz acima do barulho

ensurdecedor:— E sabem? Esta é a minha primeira viagem de

avião! Absolutamente a primeira! Nunca me tinha resol-vido a voar, embora uma amiga tivesse feito o possível para me persuadir a tomar o avião de Londres a Paris.

— E agora, vai a senhora voando da índia para o Ti-bete — disse Barnard. — Assim é o mundo.

— Conheci um missionário que esteve no Tibete —continuou ela. — Dizia que os tibetanos eram muito esqui-sitos. Acreditam que descendemos dos macacos.

— Dão prova de notável penetração!— Oh! não, não quero dizer no sentido moderno.

Essa crença lhes vem de séculos atrás. Nada mais que uma de suas superstições. Claro que sou contrária a tudo isso, e para mim Darwin era muito pior que qualquer tibetano. Eu me baseio na Bíblia.

— "Fundamentalista", então?Mas parece que Miss Brinklow não compreendeu o

termo, porque gritou:— Eu pertencia à L. M. S., mas discordei deles na

questão do batismo das crianças.Muito depois de atinar com a significação das iniciais

— London Missionary Society —, Conway ainda conti-nuava a achar cômica a observação de Miss Brinklow. Ponderando sempre os inconvenientes de uma discussão teológica no recinto da sociedade missionária, começou a parecer-lhe que Miss Brinklow não era destituída de certa fascinação. Pensou até em lhe oferecer alguma peça do seu vestuário para agasalhá-la durante a noite, mas afinal disse

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consigo que ela tinha uma constituição provavelmente mais rija do que a sua. Portanto, aconchegou-se no assento de vime, cerrou os olhos e adormeceu docemente.

E o vôo prosseguia.

De repente despertaram todos, sacudidos por uma guinada do aparelho. Conway bateu com a cabeça na jane-la, e por um momento sentiu-se atordoado. Nova guinada em sentido contrário atirou-o aos encontrões entre as duas filas de assentos.

O frio aumentara bastante. A primeira coisa que fez Conway foi olhar maquinalmente para o seu relógio. Era uma e meia. Devia ter dormido algum tempo. Enchia-lhe os ouvidos um som de bater de asas, que a princípio julgou imaginário; logo percebeu, porém, que o motor não funcionava e que o avião estava lutando com uma ventania contrária. Olhou então pela janela e viu a terra, muito pró-xima, vaga e acinzentada, que fugia ali embaixo.

— Ele vai aterrar! — bradou Mallinson.E Barnard, que também fora arrojado do assento, res-

pondeu com um soturno: "Se tiver sorte!"Miss Brinklow, que parecia a menos perturbada do

grupo, ajustava o chapéu com tanta calma como se esti-vesse à vista o porto de Dover.

Pouco depois o avião tocou em terra. Desta vez, porém, foi má a aterragem.

— Oh ! meu Deus! Que horror! Que horror! — gri-tava Mallinson, durante os dez segundos de baques e solavancos.

Ouviu-se o som de alguma coisa que se retesava e rebentava, e um dos pneumáticos explodiu.

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— Pronto! — acrescentou ele, aflito. — Quebrou-se um dos patins da cauda. Vamos ter de ficar aqui, não há dúvida!

Conway, que falava pouco nos momentos críticos, esticou as pernas emperradas e apalpou a cabeça no lugar da pancada. Uma pequena escoriação, nada mais. Cum-pria-lhe fazer alguma coisa por aquela gente. Contudo, quando o avião estacou definitivamente, foi o último pas-sageiro que se levantou.

— Prudência! — recomendou, vendo que Mallinson puxava com violência a porta da cabina, dispondo-se a sal-tar para terra. E, naquele silêncio relativo, a voz do moço repercutiu de maneira esquisita:

— Não é preciso. . . Isto parece o fim do mundo. . . Não se vê vivalma.

Um momento depois, tiritando no intenso frio, verifi-caram os outros que assim era. Não ouviam som algum, a não ser os uivos da ventania e o eco dos próprios passos. Sentiam-se à mercê de qualquer coisa implacável e sinistramente melancólica — e esse espírito parecia saturar igualmente terra e ar. A lua parecia ter desaparecido atrás de umas nuvens, e só as estrelas iluminavam a vastidão espantosamente vazia, agitada apenas pelo vento. Mesmo sem conhecer o lugar, ter-se-ia adivinhado que aquele mundo gelado era o topo de uma montanha, e que as montanhas que ali se erguiam eram montanhas acumuladas sobre montanhas. No horizonte longínquo alvejava uma cadeia delas, qual fila de dentes de cão.

Mallinson, entregue a uma atividade febril, dirigia-se já para a cabina de comando.

— Em terra não tenho medo desse sujeito, seja ele quem for! — gritava. — Vai entender-se comigo, e é para

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já!...Os outros observavam-no, hipnotizados pelo

espetáculo daquela energia, embora também um pouco apreensivos. Conway correu empós dele, mas demasiado tarde para impedir a tentativa. Volvidos alguns segundos, todavia, o moço tornava a descer, segurando-lhe o braço e murmurando em frases destacadas, com voz grave e rouca:

— Escute, Conway, é esquisito. . . Creio que o sujei-to está doente, morto, ou coisa parecida. . . Não pude arrancar-lhe uma palavra. Venha ver. . . Em todo caso, tirei-lhe o revólver.

— É melhor que mo dê, então.E Conway, embora estivesse ainda um pouco tonto

com a recente pancada na cabeça, aprestou-se para agir. De todas as situações imagináveis, esta lhe parecia combi-nar as circunstâncias mais horrivelmente adversas. Encarapitou-se com dificuldade numa posição de onde podia ver — não muito bem — o interior do recinto fechado. Como sentisse um forte cheiro de petróleo, não se arriscou a acender um fósforo. Apenas pôde notar que o piloto, com o corpo caído para a frente, tinha a cabeça em cima do quadro de instrumentos. Sacudiu-o, afrouxou-lhe o elmo, desabotoou-lhe a gola e o colarinho. Um momento depois voltou-se para dizer aos outros:

— É exato; aconteceu-lhe alguma coisa. Precisamos tirá-lo daí.

Mas um observador poderia acrescentar que alguma coisa sucedera a Conway, também. Sua voz era mais forte, mais incisiva. Já não parecia pairar à beira de um abismo de dúvida. A ocasião, o lugar, o frio, a fadiga — nada disso tinha já tanta importância. Havia alguma coisa que fazer, e a parte convencional do seu ser, agora desperta, preparava-se para executá-la.

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Com o auxílio de Mallinson e Barnard, o piloto foi tirado do assento e deitado no chão. Não estava morto, mas desfalecido. Conway não possuía conhecimentos especiais de medicina, mas, como à maioria dos homens que viveram em terras estrangeiras, eram-lhe familiares os fenômenos da doença.

— Talvez um ataque cardíaco, provocado pela alti-tude — diagnosticou, curvando-se sobre o desconhecido. — Não podemos fazer grande coisa por ele aqui. . . Não há meio de abrigá-lo contra este vento infernal. É melhor irmos com ele para dentro da cabina. Não sabemos onde estamos, e não há esperança de nos podermos orientar ames da alvorada.

Tanto a sugestão como o veredicto foram aceitos sem discussão. Até Mallinson ajudou. Transportaram o homem para a cabina e o estenderam no corredor entre os assentos. Não era o interior mais quente que lá fora, mas oferecia proteção contra as rajadas de vento. E dentro em pouco era ele, o vento, a principal preocupação de todos — como que o leitmotiv do drama daquela noite. Não era um vento comum, um simples vento muito forte ou muito frio. Era uma espécie de fúria desencadeada em torno deles, um amo que vociferava e batia o pé no seu domínio. Inclinava o aparelho com a sua carga, sacudindo-o raivosamente, e, quando Conway olhava pelas janelas, parecia-lhe que o mesmo vento arrancava centelhas das estrelas e as fazia redemoinhar.

Jazia inerte o desconhecido, enquanto Conway, não sem dificuldade naquele espaço exíguo, procurava exami-ná-lo. O exame, porém, não revelou muita coisa.

— O coração está fraco — declarou afinal.Foi então que Miss Brinklow, remexendo na sua

bolsa, disse em tom condescendente, provocando alguma

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sensação nos outros:— Quem sabe se isto faria bem ao homem? Nunca

pus uma gota na boca, mas sempre trago uma garrafa comigo, para casos de acidente. E isto é uma espécie de acidente, não acham?

— Creio que sim — respondeu Conway com gravi-dade. Retirou a tampa do frasco, cheirou-o e derramou um pouco de conhaque na boca do homem.

— É justamente do que ele precisava. Obrigado.Daí a pouco percebeu-se, à luz de um fósforo, levís-

simo estremecimento das pálpebras. De súbito, Mallinson teve um acesso de nervos.

— Não posso mais! — dizia, rindo como um doido. — Parecemos uma turma de idiotas, riscando fósforos sobre um cadáver... E ele não é nada bonito, hem? Creio que é chinês, se é que tem alguma nacionalidade!

— É possível — tornou Conway, cuja voz era seca e severa. — Mas o homem ainda não é cadáver. Com um pouco de sorte, talvez possamos chamá-lo à vida.

— Sorte? Será sorte para ele, não para nós.— Não se fie muito nisso. E, por enquanto, fique

calado!Embora mal se dominasse, Mallinson ainda tinha

muito de menino de escola e obedeceu à ordem lacônica de seu superior. E Conway, por muita pena que tivesse dele, estava mais preocupado com o problema imediato que representava o piloto, pois só este poderia dar alguma explicação naquele apuro. Não se sentia inclinado a levar adiante a discussão no terreno puramente especulativo. Já se haviam fartado disso durante a viagem. Sua inquietação ia além da simples curiosidade intelectual, pois percebia que a situação deixara de ser excitantemente perigosa para se transformar numa prova de resistência, que acabaria em

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catástrofe. Mantendo-se em vigília durante aquela noite tormentosa, não encarou os fatos menos francamente por não os enunciar aos outros. Adivinhava que o vôo se esten-dera muito além da cordilheira ocidental dos Himalaias, para as alturas menos conhecidas do Kuen-Lun. A ser assim, teriam já alcançado a parte mais elevada e mais inóspita da superfície da Terra — o planalto do Tibete, cujos vales mais baixos ficavam a mais de três mil metros de altitude. Uma vasta região montanhosa, desabitada, inexplorada em sua maior parte, varrida pelos ventos. Estavam perdidos ali, num ponto qualquer daquele país, com menos recursos do que no comum das ilhas desertas. E foi então que, como uma resposta que vinha aumentar ainda a sua curiosidade, sobreveio abruptamente uma tre-menda transformação. A lua, que lhe parecera oculta pelas nuvens, vinha topetando com a cumeada de alguma emi-nência sombria e, posto que ainda não se mostrasse direta-mente, descerrava o véu da escuridão. Conway divisou os contornos de um extenso vale, limitado de um lado e outro por outeiros arredondados, melancólicos, de pouca altura, e negros de azeviche contra o céu noturno, de um azul elé-trico. Era, porém, a cabeceira do vale que lhe atraía irresistivelmente os olhares, pois que ali, erguendo-se na abertura, magnificente ao fulgor do luar, surgia uma montanha que lhe pareceu ser a mais bela do mundo. Era um cone de neve quase perfeito, de perfil tão simples como se o tivesse desenhado uma criança, e impossível de classificar quanto à altura, tamanho ou distância. Era tão radiante, tão serenamente equilibrado, que Conway perguntava consigo se seria real. Então, enquanto ele o contemplava, um pequenino tufo branco velou a borda da pirâmide, dando vida à visão antes que viesse confirmá-lo o rumor longínquo da avalancha.

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Ia acordar os outros para que participassem do espetáculo, mas, pensando melhor, achou que o efeito poderia não ser lá muito tranqüilizador. E de fato não o era, do ponto de vista do senso comum; aqueles esplendores virgens só podiam aumentar a sensação de isolamento e de perigo. Era bem provável que a mais próxima habitação humana ficasse a centenas de milhas dali. E não tinham alimento; como armas, apenas possuíam um revólver. O avião estava danificado e quase sem combustível — além de ninguém saber dirigi-lo. Faltavam-lhes roupas apropriadas àquele frio e àquele vento terrível. Tanto a capa de couro de Mallinson como o seu impermeável eram insuficientes, e a própria Miss Brinklow, toda envolvida em lãs e abafada em mantas como para uma expedição polar — o que lhe parecera ridículo a princípio —, não podia sentir-se muito a gosto. Além disto, achavam-se todos, salvo ele próprio, abalados pela altitude. Até Barnard sucumbira à melancolia. Mallinson resmungava consigo; era evidente o que lhe sucederia se aquelas atribulações se prolongassem por muito tempo. Diante de tão angustiosa perspectiva, não se conteve Conway de lançar um olhar de admiração a Miss Brinklow. Não era — disse ele consigo — uma pessoa normal; nem se podia considerar normal uma mulher que ensinava os afeganes a cantar hinos. Mas o fato é que ela-se mostrava, depois de cada calamidade, normalmente anormal, e Conway lhe era profundamente grato por isso.

— Espero que a senhora não se esteja sentindo muito mal — disse-lhe, com simpatia, quando os olhares de ambos se cruzaram.

— Os soldados durante a guerra suportaram coisas piores — replicou ela.

Não lhe pareceu muito acertada a comparação. Na

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verdade, ele nunca passara nas trincheiras uma noite tão completamente desagradável como esta, conquanto isso houvesse acontecido, sem dúvida alguma, a outros. Con-centrou a atenção no piloto, que agora respirava espasmodicamente e de vez em quando fazia um leve movimento. Com certeza Mallinson não errara supondo o homem chinês. Tinha o nariz e os malares típicos dos mongóis, apesar de seu feliz disfarce de tenente-aviador britânico. Mallinson chamara-lhe feio, mas Conway, que tinha morado na China, achava-o um espécime passável, se bem que agora, à luz do fósforo que ele acendera, aquela pele descorada e a boca escancarada não parecessem nada belas.

Ia a noite arrastando-se, como se cada minuto fosse alguma coisa pesada e tangível, que necessitasse de um empurrão para ceder lugar ao seguinte. Passado algum tempo desapareceu o luar, e com ele o espectro distante da montanha. E a tríplice inclemência da escuridão, do frio e da ventania foi aumentando até o raiar da manhã. Ao aceno desta calou-se o vento, deixando o mundo imerso numa compassiva quietação. Emoldurada no pálido triân-gulo que tinham à frente, tornou a aparecer a montanha, cinzenta a princípio, depois prateada e afinal rósea, quando os primeiros raios do sol lhe feriram o vértice. À pro-porção que ia esmaecendo a obscuridade, o próprio vale tomava forma, revelando um fundo de rochedos e cascalho que subia em encosta inclinada. Não era uma cena hospita-leira aquela, mas assumiu aos olhos de Conway, enquanto a contemplava, um toque esquisito de beleza — alguma coisa que, sem nenhum fascínio romântico, tinha no entan-to uma qualidade rígida, quase intelectual. A pirâmide branca, lá longe, impunha-se ao espírito tão desapaixonadamente como um teorema euclidiano; e

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quando, afinal, o sol surgiu num céu profundamente azul, ele quase tornou a sentir um certo bem-estar.

Já o ar estava mais tépido quando os outros acordaram, e Conway lembrou que se levasse o piloto para fora, onde a luz do sol e o ar seco e vivo poderiam ajudá-lo a voltar a si. Assim fizeram, e começaram uma segunda vigia, desta vez mais agradável. Por fim o homem abriu os olhos e pôs-se a falar convulsivamente. Seus quatro passa-geiros curvaram-se para ele, prestando atenção àqueles sons ininteligíveis para todos, exceto para Conway, que respondia de vez em quando. Depois de algum tempo o homem foi ficando mais fraco, falando cada vez com mais dificuldade, e afinal expirou. Foi isso, mais ou menos, às nove horas.

Voltou-se então Conway para os companheiros:— Sinto comunicar-lhes que ele disse muito pouco

— isto é, pouco relativamente ao que desejaríamos saber. Apenas que estamos no Tibete, o que é evidente. Não deu nenhuma explicação coerente do motivo por que nos trou-xe aqui, mas parecia conhecer o lugar. Falou um chinês que eu não compreendo muito bem, mas creio que se refe-riu a um mosteiro de lamas, próximo daqui (na costa do vale, parece), onde encontraríamos alimento e abrigo. Shangri-Lá foi o nome que ele disse. Lá, em tibetano, quer dizer desfiladeiro. Insistiu muito para que fôssemos ao mosteiro.

— O que não me parece ser uma razão para irmos — acudiu Mallinson. — Afinal, ele sem dúvida estava fora de si, não estava?

— A este respeito, sei tanto quanto você. Mas, se não formos a esse lugar, aonde mais havemos de ir?

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— Onde você quiser, isso não me importa. O que é certo é que esse Shangri-Lá, se fica naquela direção, deve estar mais algumas milhas afastado da civilização, e eu preferiria que fossemos encurtando, não aumentando a distância. Com mil diabos, homem! Você não nos vai levar de volta?

Conway respondeu com paciência:— Creio que você não compreende devidamente a

situação, Mallinson. Achamo-nos numa parte do mundo sobre a qual pouco se sabe, a não ser que é difícil e perigo-sa, mesmo para uma expedição perfeitamente aparelhada. Considerando que provavelmente nos cercam por todos os lados centenas de milhas de território nas mesmas condi-ções, a idéia de voltar a Peshawar não me parece muito praticável.

— Não acho que eu seja capaz de caminhar tanto assim — disse Miss Brinklow com grande seriedade.

Barnard concordou:— O que me parece é que teríamos muita sorte se de

fato esse convento ficasse ali na esquina.— Relativa sorte, talvez — tornou Conway. — Afi-

nal, não temos o que comer e a região não é daquelas em que a vida é fácil. Dentro de algumas horas estaremos todos esfomeados. E esta noite, se ficarmos aqui, teremos de sofrer de novo o vento e o frio. A perspectiva não é agradável. Parece-me, pois, que a nossa única salvação seria encontrarmos outros seres humanos; e onde mais havemos de procurá-los, a não ser onde nos disseram que existem?

— E se for uma ratoeira? — perguntou Mallinson.— Uma ratoeira bem quentinha — respondeu Bar-

nard — com um pedaço de queijo dentro me encheria as

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medidas.Riram todos, menos Mallinson, que parecia agitado e

nervoso. Finalmente Conway prosseguiu:— Estamos todos mais ou menos de acordo, então? O

caminho lógico é pelo vale. Não me parece muito escarpado, contudo teremos de andar devagar. Seja como for, não podemos ficar aqui. Não nos seria possível sequer enterrar este homem, sem dinamite. Além disto, os monges do convento talvez nos forneçam carregadores para a volta. Vamos precisar de carregadores. Opino, portanto, que devemos ir imediatamente, porque, se não locali-zarmos o ponto até a tardinha, teremos tempo de voltar para passar a noite no avião.

— E no caso de localizarmos o ponto? — indagou Mallinson, ainda intransigente. — Quem nos garante que não seremos assassinados?

— Ninguém. Mas creio que o risco é menor que o de morrer de frio ou de fome, e talvez seja preferível.

E, como sentisse que esta lógica desalentadora não era muito apropriada à ocasião, acrescentou:

— Na verdade, um assassinato é a coisa mais impro-vável do mundo num mosteiro budista. Mais improvável, mesmo, do que ser morto numa catedral inglesa.

— Como São Tomás Becket — acudiu Miss Brinklow, concordando com um gesto enfático de cabeça e anulando, sem dar por isso, o argumento de Conway.

Mallinson encolheu os ombros e replicou, melancó-lico e irritado:

— Pois bem, então vamos para Shangri-Lá. Seja o que for, e esteja onde estiver, tentemos a aventura. Mas esperemos que não fique a meia encosta daquela monta-nha.

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A esta observação fixaram todos o olhar no cone resplandecente que assomava na abertura do vale. Em plena luz do dia, era uma visão magnífica e puríssima. Daí a um momento exprimiam esses olhares o maior pasmo: tinham avistado ao longe, descendo a encosta na direção deles, algumas figuras de homens.

— A Providência! — murmurou Miss Brinklow.

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CAPÍTULO III

Com uma parte do seu ser, Conway era sempre um espectador, por mais ativas que estivessem as outras facul-dades. Agora mesmo, enquanto esperava que os desconhe-cidos se aproximassem, não se deixou induzir a tomar uma decisão sobre o que cumpria fazer ou deixar de fazer nesta ou naquela eventualidade. E isto não era bravura, nem frie-za, nem uma alta confiança na própria capacidade de tomar resoluções sob o estímulo do momento. Era, se considerarmos a atitude sob o seu pior aspecto, uma forma de indolência — uma relutância a abrir mão do seu inte-resse de mero espectador no que ia acontecer.

Quando as figuras chegaram mais perto, eles puderam distinguir um grupo de doze ou mais homens, acompa-nhando uma liteira de capota. Dentro desta, um pouco mais tarde, divisaram uma pessoa vestida de azul. Conway não podia imaginar aonde iriam, mas parecia certamente providencial, como dissera Miss Brinklow, que essa comi-tiva viesse passar justamente por ali e naquela ocasião. Assim que chegaram ao alcance da voz, adiantou-se a pas-sos vagarosos, pois sabia que os orientais apreciam muito o ritual das saudações e gostam que elas sejam demoradas. Fazendo alto a alguns metros de distância, curvou-se com a devida cortesia. Com grande surpresa, viu o homem ves-tido de azul descer da liteira, adiantar-se com uma resolu-ção cheia de dignidade e estender-lhe a mão. Enquanto a apertava, notou que era um chinês velho, ou pelo menos de

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idade madura, já grisalho, de rosto escanhoado, e palidamente decorativo na sua túnica de seda bordada. Por sua vez, o outro também parecia estar submetendo-o a um rápido exame. Então, num inglês preciso e quiçá demasiado gramatical, disse:

— Pertenço ao convento lamaísta de Shangri-Lá. Curvou-se de novo Conway, e depois de uma pausa

conveniente pôs-se a explicar, em breves palavras, as circunstâncias que o tinham trazido, com seus três compa-nheiros, àquela parte pouco freqüentada do mundo. Ao fim da explicação o chinês fez um gesto de compreensão e disse, olhando pensativamente para o aeroplano avariado:

— É na verdade notável! E acrescentou:— Chamo-me Tchang. Quer ter a bondade de me

apresentar aos seus amigos?Conway tratou de sorrir com polidez. Estava assom-

brado com esse fenômeno: um chinês que falava perfeita-mente o inglês e observava as formalidades sociais de Bond Street nas montanhas bravias do Tibete. Voltou-se para os outros, que se haviam aproximado e observavam o encontro com maior ou menor espanto.

— Miss Brinklow. . . Mr. Barnard, que é americano... Mr. Mallinson... e eu chamo-me Conway. Todos sentimos prazer em vê-lo, embora este encontro seja quase tão extraordinário quanto o fato de estarmos aqui. Na verdade, íamos justamente partir a caminho do seu mosteiro, de sorte que o encontro é duplamente afortunado. Se o senhor puder fornecer-nos indicações para a viagem. . .

— Não é preciso. Dar-me-ei por feliz em lhes servir de guia.

— Mas não posso permitir que se dê a tamanho

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incômodo. É extremamente gentil, mas se não fica muito longe. . .

— Não fica longe, mas também o caminho não é fácil. Considero uma honra acompanhá-lo, e aos seus amigos.

— Mas realmente nós. — Devo insistir. Achou Conway que a discussão, naquele lugar e em

tais circunstâncias, corria algum perigo de se tornar ridícu-la. E respondeu:

— Pois seja. Todos nós lhe ficamos agradecidíssimos.

Mallinson, que suportara com ar sombrio essas deli-cadezas, interveio então, no tom agudo e acerbo das casernas:

— Não ficaremos muito tempo — anunciou laconicamente. — Pagaremos tudo que gastarmos, e desejamos alugar alguns dos seus homens para nos auxiliarem na viagem de volta. Queremos tornar o mais depressa possível à civilização.

— E tem tanta certeza de que está longe dela?A pergunta, formulada com a maior suavidade, exa-

cerbou ainda mais o moço:— Tenho toda a certeza de que estou muito longe de

onde desejo estar, e não só eu, como todos nós. Ficar-lhe-emos gratos por nos albergar temporariamente, mas a nossa gratidão será ainda maior se o senhor nos fornecer meios para voltar. Quanto tempo julga que tomará a via-gem para a Índia?

— Na verdade, não sei dizer.— Não importa; espero que não encontremos dificul-

dade nisso. Tenho alguma experiência de alugar

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carregadores nativos, e esperamos que o senhor faça valer a sua influência para que sejamos bem servidos.

Parecendo-lhe tudo aquilo truculência desnecessária, ia Conway intervir quando veio a réplica, assentada sobre imensa dignidade:

— Só lhe posso assegurar, Mr. Mallinson, que será tratado com toda a consideração, e em última análise não terá de que se arrepender.

— Em última análise? — exclamou Mallinson, arremetendo com a expressão. Não foi difícil, entretanto, evitar uma cena, pois que os tibetanos ofereciam já vinho e frutas, que tinham trazido. Eram homens sólidos, vestidos de couro de ovelha, com gorros de pele e botas de couro de iaque. O vinho tinha um agradável aroma, semelhando o de um bom vinho branco do Reno; entre as frutas havia mangas perfeitamente amadurecidas, quase pungentes de tão saborosas, após tantas horas de jejum. Mallinson comeu e bebeu satisfeito, mas sem curiosidade. Conway, porém, livre de inquietações imediatas e não desejando buscar as mais distantes, perguntava consigo como seria possível cultivar mangas naquela altitude. Interessava-o também a montanha que ficava além do vale; era, a todos os respeitos, um pico sensacional, e admirava-se de que nenhum viajante fizesse menção dele num desses livros que toda expedição ao Tibete faz invariavelmente surgir. Enquanto o contemplava ia escalando-o mentalmente, escolhendo caminho por gargantas e ravinas, quando uma exclamação de Mallinson o fez voltar à terra. Olhou em redor e viu que o chinês o encarava atentamente.

— Estava contemplando a montanha, Mr. Conway?— Sim. É um belo espetáculo. Tem nome, com

certeza.— Chama-se Karakal.

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— Não creio que o tenha ouvido. E é muito alta?— Mais de vinte e oito mil pés.1 — Sim? Não sabia que houvesse altura semelhante,

fora do Himalaia. Teria sido medida com exatidão? Quem fez os cálculos?

— Quem havia de ser, meu caro senhor? Há alguma incompatibilidade entre a vida monástica e a trigonometria?

Conway saboreou a frase e replicou:— Oh! não, absolutamente nenhuma!Riu, polidamente. O gracejo parecia-lhe fraco, mas

talvez valesse a pena guardá-lo.Pouco depois iniciava a viagem para Shangri-Lá.Durou a ascensão toda a manhã; foi lenta e seguia

declives suaves, mas a tal altura o esforço físico era consi-derável, e a ninguém sobrava energia para falar. O chinês viajava comodamente na sua liteira; isto poderia parecer pouco cavalheiresco, se não fosse absurdo imaginar Miss Brinklow em tão regia postura. Conway, o menos incomo-dado pela rarefação do ar, esforçava-se por apanhar as fra-ses que trocavam de vez em quando os carregadores. Entendia alguma coisa da língua tibetana, o bastante para compreender que os homens estavam contentes por voltar ao mosteiro. Não poderia, mesmo que o quisesse, conti-nuar a conversar com o chefe, que, de olhos fechados e com o rosto meio oculto atrás das cortinas, parecia mergu-lhado num sono exigente e muito oportuno.

Entretanto, ia o sol aquecendo. A fome e a sede ti-nham sido apaziguadas, se não satisfeitas; e o ar, límpido como se viesse de outro planeta, tornava-se mais precioso

1 8 400 metros. O Everest mede 29 141 pés, ou 8 889 metros. (N. do T.)

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a cada inalação. Era necessário respirar conscienciosamente, refletidamente; e isto, que a princípio parecia atrapalhador, ao fim de certo tempo produzia uma tranqüilidade de espírito quase extática. Todo o corpo se movia no ritmo único da respiração, do andar e do pensamento. Os pulmões, deixando de funcionar automáticos e ignorados, disciplinavam-se de maneira a harmonizar com o espírito e as pernas. Conway, em quem certa tendência mística se casava de maneira curiosa com o ceticismo, estava agradavelmente intrigado com a sensação. Em uma ou duas ocasiões disse palavras joviais a Mallinson, mas o jovem achava-se oprimido pela ascensão. Também Barnard resfolegava asmaticamente, enquanto que Miss Brinklow sustentava uma terrível luta pulmonar, que por alguma razão tratava de ocultar.

— Já estamos perto do cimo — disse Conway para animá-la.

— Uma vez corri para apanhar o trem — respondeu ela — e senti a mesma coisa.

E ele pôs-se a refletir que também há gente que consi-dera a sidra a mesma coisa que o champanha. Questão de paladar.

Surpreendia-se de verificar que, além do assombro, tinha poucas apreensões, e nenhuma por si. Há momentos na vida em que a gente abre a alma inteira, exatamente como desataria os cordões da bolsa ao perceber que um divertimento sai mais caro do que se espera, mas também possui algo de inédito. E foi assim que Conway, nessa fadigosa manhã à vista do Karakal, respondeu com alívio e presteza, mas sem excitação, à oferta de uma experiência nova. Após dez anos de residência em vários países da Ásia, tornara-se um tanto exigente na apreciação de sítios

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e acontecimentos; e esta aventura, tinha de admiti-lo, pro-metia ser fora do comum.

Após cerca de duas milhas de caminho costeando o vale, a subida tornou-se mais abrupta; mas já então o tempo se enuviara e uma bruma prateada obscurecia a pai-sagem. Dos campos de neve, lá em cima, vinham sons de trovões e avalanchas; o ar esfriou e, com a violenta mutabilidade das regiões montanhosas, o frio tornou-se intensíssimo. Rajadas de vento, acompanhadas de chuva e neve, encharcaram os viajantes, aumentando-lhes enormemente o desconforto. O próprio Conway sentiu, em dado momento, que seria impossível ir muito mais longe. Contudo, pouco depois lhe pareceu que deviam ter atingido o cume da serrania, pois os liteiros fizeram alto para reajustar a carga. O estado de Barnard e Mallinson, que padeciam grandemente, requeria maior repouso; mas os tibetanos, evidentemente ansiosos por prosseguir, indicaram por sinais que o resto da viagem seria menos fatigante.

Depois disto, foi decepcionador vê-los desenrolar cor-das. E Barnard conseguiu exclamar, numa desesperada tentativa para fazer espírito:

— O quê! Já nos vão enforcar? Mas os guias demonstraram logo que a sua intenção,

muito menos sinistra, era apenas ligar o grupo todo, como se costuma fazer nas escaladas. E quando viram que o ma-nejo das cordas era familiar a Conway, mostraram-se muito mais respeitosos, permitindo-lhe que ligasse os companheiros como bem entendesse.

Colocou-se ele logo atrás de Mallinson, com tibetanos à frente e atrás; vinham depois Barnard e Miss Brinklow, e mais alguns tibetanos para fechar a

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retaguarda. Não tardara a notar que os homens, durante o sono de seu chefe, estavam inclinados a entregar-lhe a direção. Sentiu a conhecida excitação do comando; se houvesse qualquer dificuldade daria o que tinha para dar: confiança e autoridade. Fora, em tempo, um alpinista de primeira ordem, e achava-se ainda, sem dúvida alguma, em muito boas condições.

— A senhora deve olhar por Barnard — disse a Miss Brinklow, meio jocoso, meio sério.

Ao que ela respondeu, com a modéstia de uma águia:— Farei o que puder; mas o senhor sabe — nunca

tinha sido amarrada.A etapa seguinte, ainda que excitante por vezes, foi

menos árdua do que esperava, e livre do suplício que a su-bida representara para os pulmões. O caminho era por um corte oblíquo na parede de rocha, cujo cimo o nevoeiro ocultava. Talvez devessem agradecer a esse nevoeiro o esconder igualmente o abismo do lado oposto, mas Conway, que tinha boa vista para altitudes, bem gostaria de ver onde estava. Em certos sítios a trilha media uns escassos dois pés de largura, e o modo por que os carregadores conduziam a liteira nesses lugares despertou nele quase tanta admiração quanto os nervos do passageiro, que dormindo conseguia fazer tal jornada. Eram os tibetanos bastante destros, mas pareciam mais satisfeitos quando o caminho se alargava e oferecia leve declive. Começavam então a cantar toadas vivas e bárbaras, que Conway imaginava orquestradas por Massenet para algum balé tibetano.

Cessou a chuva e o ar aqueceu um pouco.— O fato é que nunca teríamos encontrado o cami-

nho sozinhos — observou Conway com ar alegre.

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Mallinson, porém, não achou na observação consolo algum. Estava, na verdade, terrificado, e corria mais perigo de se trair, agora que já passara o pior. Foi com amargura que retorquiu:

— Perderíamos muito com isso?O caminho descia agora com maior inclinação, e num

sítio encontrou Conway alguns edelvais; era o primeiro sinal — e bem-vindo! — de altitudes mais hospitaleiras. Ao ser anunciado, porém, isto trouxe ainda menos consolação ao seu jovem amigo.

— Justos céus, Conway! Você pensa que anda fla-nando pelos Alpes? O que eu queria saber era para que inferno nos dirigimos. E qual será o nosso plano de ação, quando lá estivermos? Que faremos nós?

— Se você tivesse a minha experiência — replicou Conway serenamente —, saberia que há ocasiões na vida em que o melhor é não fazer nada. Deixam-se correr as coisas. Assim foi a guerra. E a gente ainda tem sorte quando, como agora, um sabor de novidade vem temperar o que há de desagradável.

— Você está se tornando filosófico demais para mim. Não era esta a sua atitude durante as comoções em Baskul!

— Certamente que não, porque então havia alguma possibilidade de alterar os acontecimentos pela minha ação pessoal. Agora, porém, ao menos de momento, não vejo semelhante possibilidade. Estamos aqui porque estamos aqui, visto como quer uma razão. Tem-me parecido sempre uma razão tranqüilizadora.

— Suponho que você faça uma idéia do trabalho espantoso que teremos para voltar. Há uma hora que vamos resvalando pela encosta de uma montanha perpen-

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dicular — bem o notei!— Também eu.— Ah! você também viu isso? — expectorou

Mallinson, agitado. — Bem vejo que me estou tornando aborrecido, mas não está em mim evitá-lo. Desconfio muito de tudo isto. . . Estamos fazendo tudo o que esses sujeitos querem de nós. Eles nos vão meter numa ratoeira!

— Ainda que assim fosse, morreríamos se não entrássemos nela!

— Sei que isso é lógico, mas não adianta nada. Re-ceio muito que não me acomode tão facilmente como você à situação. Não posso esquecer que anteontem ainda está-vamos no consulado de Baskul. . . E pensar em tudo o que aconteceu desde então me acabrunha! Desculpe-me, mas estou exausto. Compreendo quão afortunado fui em ter escapado à guerra — creio que ficaria maluco. Parece-me que todo o mundo, ao redor de mim, enlouqueceu. . . Mas é preciso que eu mesmo esteja fora de mim para lhe dizer estas coisas. . .

— Não, meu caro rapaz — respondeu Conway, sacudindo a cabeça —, não. Você tem vinte e quatro anos e se acha a uns quatro mil metros de altitude — razões suficientes para explicar o que pode estar sentindo no momento. E acho até que se está saindo extraordina-riamente bem de uma prova difícil — melhor do que eu o faria na sua idade.

— Mas você não vê como tudo isto é louco? Aquele vôo por cima das montanhas, aquela horrível espera no meio da ventania, enquanto morria o piloto, e depois o encontro destes sujeitos. . . Quando recorda tudo isso, não lhe parece um pesadelo inacreditável?

— Certamente que sim.— Pois então eu desejava saber como consegue man-

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ter-se tão frio diante de tudo!— Deseja realmente? Pois vou dizer-lhe, ainda que

me arrisque a parecer cínico. É porque tenho na memória muitas outras coisas que também parecem pesadelos. Não é este o único lugar louco no mundo, Mallinson. Afinal, visto que não quer deixar de pensar em Baskul. . . lembra-se do modo como os revolucionários torturavam os prisioneiros antes da nossa partida, para arrancar informa-ções? Uma simples prensa de lavar roupa. . . muito eficaz, não há dúvida, mas creio que nunca vi coisa tão cômica e horrível ao mesmo tempo. E lembra-se do último telegrama que recebemos, antes que fossem cortadas as comunicações? Era uma circular de uma fábrica de tecidos de Manchester, indagando se havia em Baskul mercado para espartilhos! Pois isso não lhe parece loucura bastante? Acredite-me, ao virmos para cá o pior que nos pode ter acontecido é trocarmos uma loucura por outra. E quanto à guerra, se você houvesse estado lá teria feito o mesmo que eu — teria aprendido a esconder o medo sob uma aparência de bravura.

Ainda conversavam quando uma escarpada mas breve subida lhes tirou o alento, concentrando em poucos passos todo o esforço anterior. Logo se aplainou o solo, e saíram do nevoeiro para uma atmosfera clara e cheia de sol. Em frente deles, a pouca distância, erguia-se o mosteiro de Shangri-Lá.

Para Conway, o primeiro que o avistou, poderia pare-cer uma visão nascida daquele ritmo solitário em que a falta de oxigênio submergira todas as suas faculdades. Era, na verdade, um espetáculo estranho, quase inacreditável. Um grupo de pavilhões coloridos pendurava-se à encosta

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da montanha, sem aquela sombria resolução dos castelos do Reno, antes com a delicadeza aventurosa de pétalas de flor encravadas num penhasco. Era soberbo e encantador. Uma emoção austera arrebatava o olhar dos tetos azuis leitosos para o bastião de rocha cinzenta lá no alto, formi-dável como o Wetterhorn acima de Grindelwald. Mais além, numa pirâmide deslumbrante, pairavam as encostas nevadas do Karakal. E Conway pensava consigo que bem podia ser aquela a mais terrífica paisagem montanhosa do mundo inteiro; imaginava já a mole imensa de neve e gelo contra a qual o rochedo servia de gigantesca barreira. Talvez um dia a montanha inteira desabasse, e metade do esplendor gelado do Karakal iria abater-se no vale. E perguntava consigo se um risco tão remoto, aliado ao receio que inspirava, poderia proporcionar alguma excitação agradável.

Quase não menos sedutora era a perspectiva de baixo, pois a muralha rochosa continuava a descer quase perpen-dicularmente, numa enorme fenda que só podia ter resul-tado de algum antigo cataclismo. O fundo do vale, distante e brumoso, alegrava os olhos com a sua verdura; abrigado dos ventos, mais vigiado que dominado pelo mosteiro, afigurou-se a Conway um lugar delicioso. Contudo, se era habitado, sua população devia ficar completamente isolada pelas cordilheiras altíssimas e absolutamente inacessível do outro lado. A única subida viável parecia ser para o mosteiro. O viajante sentiu ligeira apreensão enquanto observava a cena; talvez não fossem destituídos de razão os receios de Mallinson. Foi, porém, um sentimento momentâneo, logo diluído na sensação mais profunda, meio mística, meio visual, de ter afinal atingido uma meta, um termo qualquer.

Jamais conseguiu recordar exatamente de que maneira

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ele e os outros chegaram ao convento, nem as formali-dades com que ali foram recebidos, desamarrados e introduzidos no recinto. Aquele ar tão fino tinha uma textura de sonho, casando-se com o azul porcelana do céu. Bebia, a cada sorvo de ar, a cada olhar, uma tranqüilidade profunda e anestesiante, que o tornava igualmente impenetrável à inquietação de Mallinson, às piadas de Barnard, ao ar modesto de Miss Brinklow, a personificar uma dama preparada para as piores conjunturas. Lembrava-se vagamente da sua surpresa ao encontrar um interior espaçoso, aquecido e perfeitamente asseado; mas apenas teve tempo de notar essas coisas, porque o chinês deixara a liteira e os ia guiando através de várias antecâmaras. Mostrava-se agora muito afável:

— Devo pedir desculpas de tê-los abandonado a si próprios durante o trajeto, mas é que essas viagens não me fazem bem, e preciso ter cuidado comigo. Espero que não estejam muito fatigados.

— Fizemos o possível. . . — respondeu Conway, com um sorriso de través.

— Excelente! E agora, se quiserem acompanhar-me, eu lhes mostrarei os seus aposentos. Com certeza hão de querer um banho. Nossa instalação é simples, mas espero que nada lhes falte.

Neste ponto Barnard, ainda arquejante, soltou uma ri-sada asmática.

— Não posso dizer, por enquanto, que gosto do seu clima... o ar parece grudar-se um pouco aos pulmões. . . mas a verdade é que os senhores têm uma esplêndida vista das janelas da frente. Teremos de fazer fila diante do quar-to de banho, ou isto aqui é um hotel americano?

— Creio que o senhor achará tudo a seu contento, Mr. Barnard.

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E Miss Brinklow concordou, com afetação:— Assim o creio, realmente.— E depois — continuou o chinês — sentir-me-ei

muito honrado se me fizerem companhia ao jantar.Conway respondeu polidamente. Só Mallinson não

dera sinal de vida diante dessas comodidades inesperadas. Como Barnard, sofria com a influência da altitude; mas enfim, fazendo algum esforço, achou fôlego para replicar:

— E depois, se isso não o incomoda, faremos nossos planos para a volta. No que me toca, quanto mais cedo, melhor!

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CAPÍTULO IV

— Como vêem — dizia Tchang —, somos menos bárbaros do que esperavam. ..

E, ao cabo de algumas horas, Conway sentiu-se dis-posto a concordar com ele. Gozava aquela agradável mis-tura de bem-estar físico e agilidade mental — sensação que lhe parecia, entre todas, a mais genuinamente civilizada. Tudo o que vira até então em Shangri-Lá enchia-lhe a medida dos desejos. Iam as instalações muito além do que esperara. Não era, talvez, de causar muita admiração que um mosteiro tibetano possuísse calefação interna, numa época em que até Lassa era provida de telefones; mas o que lhe parecia singularíssimo era aquela combinação do aparelhamento da higiene ocidental com tudo mais que era tradicionalmente oriental. A banheira em que acabava de se regalar, por exemplo, uma banheira de delicada porcelana verde, era, conforme dizia a marca da fábrica, produto de Akron, estado de Ohio. E contudo o criado nativo que lhe servira de camareiro tratara-o à moda chinesa, limpando-lhe as orelhas e narinas e passando-lhe um pequeno esfregão de seda sob as pálpebras. Conway perguntara nessa ocasião a si mesmo se os seus companheiros estariam recebendo os mesmos cuidados — e como os receberiam.

Vivera quase dez anos na China, nem sempre nas maiores cidades, e, tudo bem considerado, parecia-lhe aquele o período mais feliz da sua vida. Gostava dos

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chineses e dava-se bem com o seu sistema. Apreciava particularmente a cozinha chinesa, com suas sutis gradações de gosto. Por isso, a primeira refeição em Shangri-Lá dera-lhe a grata impressão de uma coisa com que estava familiarizado. Suspeitava, aliás, que contivesse alguma erva ou droga para aliviar a respiração, porque não só ele sentiu diferença, mas notou que seus companheiros estavam mais à vontade. Tchang, que apenas comeu pequena quantidade de salada crua, sem tomar vinho, explicara a princípio:

— Os senhores me desculparão, mas a minha dieta é muito rigorosa. . . Vejo-me obrigado a cuidar da minha saúde.

Já dera antes aquela mesma razão. Conway pergun-tava a si mesmo qual seria a enfermidade que o afligia. Examinando-o agora mais detidamente, viu que era difícil determinar-lhe a idade; as feições miúdas e por assim dizer imprecisas, aliadas à tez de argila úmida, davam-lhe uma aparência indefinida que tanto podia ser a de um moço envelhecido antes do tempo como a de um velho admiravelmente conservado. Não lhe faltava, contudo, certo atrativo; uma como aura de cortesia formalista o rodeava, qual perfume tão delicado que mal chama a atenção e é depressa esquecido. A vestimenta de seda azul bordada, com a costumeira saia aberta ao lado e as calças apertadas no tornozelo — toda a gama do azul-celeste —, dava-lhe um encanto metálico e frio que Conway achava agradável, posto que soubesse não ser este o gosto dos outros.

Era, na verdade, a atmosfera antes chinesa do que especificamente tibetana; e isto, em si, já lhe dava uma aprazível sensação de estar em casa — outra coisa que não podia esperar fosse compartilhada pelos companheiros. A

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sala também lhe agradava; de admiráveis proporções, era sobriamente adornada com tapeçarias e uma ou duas bonitas peças de laca. A luz vinha de lanternas de papel, imóveis no ar parado. Sentia Conway um suave conforto de corpo e espírito, e não se pode dizer que ficasse apreensivo ao pensar de novo na possibilidade de ter ingerido alguma droga. Fosse ela o que fosse (se é que houvera droga), aliviara a falta de ar de Barnard, abrandara a truculência de Mallinson. Ambos haviam jantado bem, preferindo comer a falar. Ele também se sentia faminto, e não lhe desagradava que a etiqueta exigisse a protelação dos assuntos importantes. Como jamais gostara de dar fim a uma situação em si mesma agradável, aquela técnica lhe convinha maravilhosamente. Foi só ao acender o cigarro que fez uma leve concessão à curiosidade, observando a Tchang:

— Sua comunidade me parece muito feliz e muito hospitaleira com os estrangeiros. Não creio, contudo, que os recebam muito a miúdo.

— Raramente, na verdade — replicou o chinês num tom comedidamente majestoso. — Esta parte do mundo não é muito freqüentada.

Isto provocou um sorriso em Conway.— O senhor usa de um eufemismo. Pareceu-me,

quando aqui cheguei, o lugar mais isolado em que já pus os olhos. Aqui poderia florescer uma cultura original, sem contaminação alguma do mundo exterior.

— Contaminação, diz o senhor?— Refiro-me ao jazz, cinemas, sinais luminosos, etc.

A sua rede de encanamento é tão moderna quanto possível — a única dádiva que, ao meu ver, o Ocidente tem para oferecer ao Oriente. Tenho pensado muitas vezes que os romanos foram afortunados. Sua civilização chegou a

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conhecer os banhos quentes, sem contudo alcançar o fatal conhecimento da máquina.

Calou-se. Falara com uma fluência improvisada que, posto não fosse insincera, era destinada sobretudo a criar um ambiente e controlá-lo. E era exímio nesse jogo. Só o desejo de corresponder àquela polidez refinada o impedia de se mostrar mais francamente curioso.

Miss Brinklow é que não tinha tais escrúpulos. Disse logo, começando com uma palavra de pedido que, todavia, nada tinha de submissa:

— Por obséquio, fale-nos do mosteiro, sim? Ergueu Tchang os supercílios em gentilíssimo pro-

testo contra esta entrada súbita na matéria.— Terei imenso prazer, minha senhora, desde que es-

teja em mim. Que é exatamente o que deseja saber?— Em primeiro lugar, quantos lamas vivem aqui, e a

que nacionalidade pertencem?Via-se que o seu espírito metódico funcionava não

menos profissionalmente do que na missão de Baskul. Tchang respondeu:

— Os que se acham perfeitamente integrados na ordem são cinqüenta. Há mais alguns, porém, que ainda não atingiram a completa iniciação — como eu. Espera-mos lá chegar no devido tempo. Até então, somos semilamas. . . aspirantes, digamos. Quanto às origens raciais, há representantes de muitas nações entre nós, ainda que a maioria seja, como é natural, composta de tibetanos e chineses.

Miss Brinklow não se furtava nunca a uma conclusão, ainda que fosse errada:

— Compreendo. É então um verdadeiro convento nativo. Seu chefe é tibetano ou chinês?

— Não.

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— Há ingleses aqui?— Diversos.— Meu Deus!. . . É notável, na verdade! Calou-se, apenas para respirar, e continuou:— E agora, diga-me em que crêem os senhores.Conway recostou-se na cadeira, numa expectativa que

tinha o seu tanto de divertida. Sempre achara prazer em observar o choque de duas mentalidades opostas. E prome-tia ser interessante aquela retidão de mentora de meninas aplicada à filosofia lamaísta. Mas, como não desejava que seu hospedeiro se assustasse, disse com ar conciliador:

— É uma pergunta muito importante.Miss Brinklow, porém, não estava para

contemporizações. O vinho, que tornara os outros mais tranqüilos, parecia ter-lhe dado nova vivacidade. E disse, com um gesto magnânimo:

— Eu, é claro, sou uma crente da verdadeira religião, mas tenho bastante largueza de vistas para admitir que ou-tras pessoas — isto é, estrangeiros — sejam absolutamente sinceras no seu modo de ver. E é natural que num mosteiro eu não espere aprovação.

Esta concessão suscitou uma cerimoniosa reverência de Tchang, que replicou no seu inglês preciso e elegante:

— Mas por que não, minha senhora? Então porque uma religião é verdadeira, devemos sustentar que todas as outras são forçosamente falsas?

— Mas certamente! Isso é óbvio, pois não é? De novo interpôs-se Conway:— Na verdade, parece-me que seria melhor não

discutirmos. Mas Miss Brinklow compartilha a minha curiosidade quanto à razão de ser deste estabelecimento único.

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Foi quase num murmúrio, e muito lentamente, que Tchang respondeu:

— Para me exprimir em poucas palavras, meu caro senhor, direi que nosso principal artigo de fé é a modera-ção. Preconizamos a virtude de evitar excessos de toda sorte — incluindo, com perdão do paradoxo, o próprio excesso de virtude. Verificamos que este princípio concorre em grau considerável para a felicidade dos habitantes do vale que viram lá embaixo, e onde vivem alguns milhares de pessoas, sob o controle da nossa ordem. Governamos com moderado rigor e nos satisfazemos, em troca, com uma obediência moderada. E creio poder afirmar que nossa gente é moderadamente sóbria, moderadamente casta e moderadamente honesta.

Conway sorriu, achando bem expostas aquelas idéias, que aliás agradavam ao seu temperamento.

— Creio que compreendo. Com certeza, os homens que foram ao nosso encontro esta manhã pertencem ao povo do vale, não?

— Sim. Espero que não tenham cometido falta algu-ma durante a viagem. . .

— Oh! não, nenhuma. Alegro-me, entretanto, de ver que eles têm os pés mais que moderadamente firmes. Segundo notei, o senhor teve o cuidado de dizer que a moderação se aplicava a eles; devo inferir que ela não se aplica também aos sacerdotes?.

A esta pergunta, porém, Tchang sacudiu a cabeça, declarando:

— Lamento, senhor, que tenha tocado agora num assunto que não posso discutir. Só me é permitido acres-centar que a nossa comunidade tem várias crenças e usos, mas a maioria de nós somos moderadamente heréticos no tocante aos mesmos. Muito lastimo não poder dizer mais

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no momento.— Por favor, não se incomode. O senhor me deixa

entregue às mais agradáveis conjeturas.Qualquer coisa na própria voz, tanto como nas sensa-

ções corporais, reavivou no espírito de Conway a impressão de que se achava submetido à ação benigna de alguma droga. Mallinson parecia estar sob uma influência semelhante; contudo, aproveitou a ocasião para observar:

— Tudo isto é muito interessante, mas me parece que é tempo de tratarmos dos planos de partida. Queremos vol-tar à Índia o mais depressa possível. Quantos carregadores podem fornecer-nos os senhores?

Esta pergunta prática e inflexível, rompendo a crosta de suavidade, não encontrou, entretanto, fundo em que tomar pé. E foi somente após um intervalo um tanto longo que Tchang replicou:

— Infelizmente, Mr. Mallinson, não é a mim que o senhor deve dirigir-se neste caso. Como quer que seja, creio que o assunto não poderá ser resolvido imediata-mente.

— Entretanto, precisamos assentar alguma coisa! Todos nós temos algum trabalho a atender, e nossos ami-gos e parentes devem estar inquietos por nossa causa... temos positivamente de voltar! Estamos muito agradecidos pelo acolhimento que nos dispensou, mas não podemos ficar aqui sem fazer nada. Se for possível, desejamos partir amanhã, ao mais tardar. Não há de faltar entre os seus ho-mens quem nos queira escoltar — trabalho que será bem remunerado, é claro.

As últimas palavras de Mallinson foram ditas com nervosismo, como se ele esperasse uma réplica mesmo antes de terminar. Não conseguiu, porém, arrancar a

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Tchang senão esta frase calma, que quase encerrava uma censura:

— Mas tudo isso — sabe — não está na minha alçada.

— Não? Pois seja; mas ainda assim, talvez o senhor possa fazer alguma coisa. Se nos arranjasse um mapa grande da região prestar-nos-ia serviço. Ao que parece, teremos de fazer uma viagem longa, razão de sobra para partir mais cedo. Os senhores têm mapas, suponho.

— Sim, temos muitos.— Então, se não é incômodo, pediremos alguns

emprestados. Depois lhos devolveremos.. . porque supo-nho que hão de ter comunicação com o resto do mundo, de vez em quando. E seria uma boa idéia mandar notícias, para tranqüilizar os nossos amigos. A que distância fica a estação telegráfica mais próxima?

O rosto enrugado de Tchang parecia ter-se revestido de infinita paciência — mas ele não respondeu. Após um momento de espera, o moço continuou:

— Bem, para onde recorrem os senhores quando pre-cisam de alguma coisa. . . quero dizer, alguma coisa da civilização?

Assomava-lhe já ao olhar e à voz um toque de terror. De repente repeliu a cadeira e ergueu-se. Estava pálido; passava a mão pela fronte, fatigado. E, correndo um olhar circular pela sala, gaguejou:

— Estou tão cansado! Parece que ninguém me quer ajudar. . . Fiz apenas uma pergunta simples. É claro que o senhor há de poder responder-me. Quando instalaram todos esses banheiros modernos. . . como vieram eles ter aqui?

Seguiu-se novo silêncio.

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— Então não quer responder? Certamente isto faz parte do mistério que cerca todas as coisas aqui. Conway, devo dizer que o considero um grande moleirão. . . Por que é que você não descobre a verdade? Por agora. . . não posso mais comigo. . . mas. . . amanhã, não esqueça. . . temos de ir embora amanhã. . . é indispensável. . .

Não o tivesse Conway segurado, fazendo-o sentar, teria escorregado para o chão. Reanimou-se um pouco, mas não falou.

— Amanhã ele estará muito melhor — disse Tchang suavemente. — O ar aqui abala os forasteiros no começo; mas logo se aclimatam.

O próprio Conway tinha a sensação de despertar de uma hipnose.

— A prova foi muito rude para ele — comentou com uma indulgência melancólica. E acrescentou, com mais vivacidade: — Creio que nós todos sentimos mais ou menos a mesma coisa. . . Será melhor adiarmos esta dis-cussão e irmos dormir. Barnard, quer encarregar-se de Mallinson? Tenho certeza de que também precisa dormir, Miss Brinklow.

Sem dúvida fora dado algum sinal, porque imediata-mente apareceu um criado. E Conway continuou:

— Sim, sim, vamos todos. . . boa noite. . . boa noite... eu já os sigo.

Quase os empurrava para fora da sala. Depois, com uma sem-cerimônia que contrastava abertamente com suas maneiras anteriores, voltou-se para o anfitrião. Sentira-se esporeado pela censura de Mallinson.

— Bem, meu senhor, não desejo retê-lo muito tempo, e por isso vou direto ao ponto. Meu amigo é impetuoso, mas eu não o censuro. . . Está no direito de querer as coi-sas bem claras. Temos de preparar o nosso regresso, e não

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podemos fazê-lo sem seu auxílio, ou de alguém mais. Compreendo, naturalmente, que é impossível partir ama-nhã, e por minha parte creio que acharei muito interessante o tempo de espera — um mínimo de tempo. Mas não será essa, talvez, a opinião de meus companheiros. Assim, se é verdade que o senhor por si mesmo nada pode fazer, será favor pôr-nos em contato com alguém que o possa.

— O senhor é mais inteligente que os seus amigos, meu caro senhor, e por isso menos impaciente — o que me alegra.

— Isto não é resposta.Tchang pôs-se a rir — um riso agudo e sacudido e

tão evidentemente forçado que Conway reconheceu nele essa simulação polida de perceber um gracejo imaginário, com a qual o chinês salva as aparências nos momentos de aperto.

— Estou certo de que o senhor não terá motivo de queixa — respondeu ele. — Não há dúvida de que no devi-do tempo poderemos prestar-lhes todo o auxílio de que necessitam. Há dificuldades, como bem pode imaginar, mas se todos encararmos o problema razoavelmente e sem pressa desnecessária...

— Não exigi pressa. Peço apenas informações sobre os carregadores.

— Pois bem, meu caro senhor, isto levanta outra questão. Duvido muito que o senhor encontre facilmente homens dispostos a empreender tal viagem. Eles têm seus lares no vale e não sentem inclinação para deixar esses lares e fazer longas e penosas excursões.

— Podem ser persuadidos a fazê-lo, talvez; se-não... por que e aonde iam eles escoltando-o esta manhã?

— Esta manhã? Oh! isso era coisa muito diversa.— Em que sentido? Não ia o senhor de viagem,

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quando meus amigos e eu o encontramos?Não tendo obtido resposta, prosseguiu Conway com

voz mais tranqüila:— Compreendo. Não foi, pois, um encontro casual.

Na verdade, era o que eu pensava. Então é certo que o se-nhor foi até lá com o fim deliberado de interceptar-nos. Isto faz crer que tenham sido avisados com antecedência da nossa chegada. E a questão mais interessante é — como?

Suas palavras punham uma nota de veemência na per-feita quietude da cena. A luz da lanterna fazia ressaltar o tosto do chinês, sereno como o de uma estátua. Repentina-mente, com um pequeno gesto, Tchang desfez a tensão. Desviando um reposteiro de seda, descobriu uma janela que deitava para um balcão. Tocando então no braço de Conway, levou-o para o ar frio e cristalino.

— O senhor é sagaz — disse com ar sonhador —, mas não acertou inteiramente. Por isso eu o aconselharia a não afligir os seus amigos com estas discussões abstratas. Acredite-me, nem o senhor nem eles correm perigo algum em Shangri-Lá.

— Não é o perigo o que nos inquieta: é a demora.— Compreendo. E é claro que poderá haver certa

demora. . . É absolutamente inevitável.— Se é apenas por pouco tempo, e de fato inevitável,

então naturalmente havemos de suportá-la o melhor que pudermos.

— Isso será muito acertado, porque nada mais dese-jamos senão que o senhor e seus companheiros achem agradáveis todos os momentos que aqui passarem.

— Está muito bem então; e, no que me toca, já lhe disse — não posso dizer que isso me aborreça muito. É uma experiência nova e interessante, e, afinal, nós precisa-

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mos de repouso.Olhava para cima, contemplando a pirâmide brilhante

do Karakal. Naquele momento, iluminada pelo luar, dava a impressão de que se poderia tocá-la com a mão — tão frágil parecia, assim recortada contra a azul imensidade.

— Amanhã — disse Tchang — o senhor poderá achá-la ainda mais interessante. E quanto ao repouso, se está fatigado, não há no mundo inteiro muitos sítios mais apropriados do que este.

Na verdade, à medida que Conway continuava a olhar ia-se apoderando dele uma profunda sensação de repouso, como se o espetáculo se dirigisse não menos ao espírito do que aos olhos. Em contraste com o furacão da noite anterior, não havia agora o menor sopro de vento; o vale inteiro, ele o percebia, era um porto terrestre, fechado, tendo a vigiá-lo, como um farol, o Karakal. Aumentou ainda a semelhança quando viu iluminar-se o vértice — um clarão azulado de gelo, igualando o esplendor que refletia.

Alguma coisa lhe inspirou então o desejo de indagar qual a interpretação literal do nome, e a resposta murmu-rada de Tchang foi como um eco da sua própria meditação:

— Karakal, no dialeto do vale, significa "Lua Azul".

Não comunicou Conway aos outros a conclusão a que chegara, de que sua vinda a Shangri-Lá era de alguma forma esperada pelos habitantes do mosteiro. Parecia-lhe que o devia fazer, e percebia tratar-se de um caso impor-tante; no dia seguinte, contudo, essa certeza tão pouco o preocupava, a não ser teoricamente, que procurou evitar

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maior inquietação aos outros. Uma parte do seu ser insistia em ver algo de muito estranho naquele lugar; a atitude de Tchang, na véspera, estava longe de ser tranqüilizadora e o grupo achava-se virtualmente prisioneiro, pelo menos até que as autoridades se resolvessem a vir-lhe em socorro. E era seu dever evidente incitá-los à ação. Afinal, era um representante do governo britânico, quando mais não fosse, e era iníquo que os habitantes de um mosteiro tibetano se recusassem a atender a um pedido justo que fazia. . . Tal, sem dúvida alguma, a maneira normal e oficial por que se encararia a questão; e aquela parte do seu ser era tão normal como oficial. Ninguém melhor do que ele sabia fazer-se de homem forte quando a ocasião o requeria. Durante os dias difíceis que precederam a evacuação, seu procedimento fora de molde a granjear-lhe (e pensava nisto meio contrariado) nada menos que a dignidade de cavaleiro e uma novela no estilo de Henty,2

destinada a ser dada em prêmio nas escolas e intitulada Acompanhando Conway em Baskul. De fato, tomar sobre os ombros a direção de várias dezenas de civis de todas as classes, incluindo mulheres e crianças; albergá-los todos num pequeno consulado durante uma revolução violenta, chefiada por agitadores hostis a toda sorte de estrangeiros; ameaçar e adular os revolucionários, até conseguir a permissão, para todos, de deixarem a cidade em aviões — não fora, bem o compreendia, pequena façanha. Talvez que, manejando os cordões e escrevendo relatórios intermináveis, conseguisse abiscoitar alguma coisa nas condecorações do Ano Bom. De qualquer forma, isso lhe valera a fervorosa admiração de Mallinson. Infelizmente,

2 Jornalista inglês e autor de livros para meninos (1832-1902). (N. do T.)

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àquela hora devia o moço sentir-se bem desiludido. Era pena, sim; mas Conway já se habituara a ver pessoas gostarem dele só porque se enganavam a seu respeito. Não era verdadeiramente um desses construtores de império resolutos, vigorosos e violentos; a amostra que dava disso era apenas uma pequenina peça de um só ato, repetida de tempos em tempos, por arranjo especial com o destino e o Ministério das Relações Exteriores — e em troca de um salário que qualquer um podia verificar nas páginas do anuário Whitaker.

O fato é que o enigma de Shangri-Lá e de sua pre-sença ali começava a exercer sobre o seu espírito uma fascinação não despida de encanto. Em todo caso, não sen-tia nenhum receio pessoal. Exposto pela própria profissão a andar por estranhos sítios do mundo, quanto mais estra-nhos eram, em via de regra, menos se aborrecia neles; por que, pois, havia de se queixar por ter ido parar no mais estranho de todos os lugares, em virtude de um acidente, em vez de ser ali enviado por uma ordem do Ministério?

E na verdade estava muito longe de se queixar. Ao sair da cama, de manhã, avistando pela janela o lápis-lazúli do céu, convenceu-se de que não desejaria estar em nenhum outro ponto da terra — fosse Peshawar ou Picca-dilly. Alegrou-se de ver que a noite de repouso também produzira efeito tonificante nos outros. Barnard pilheriava alegremente a propósito de camas, banhos, almoços e ou-tras doçuras da hospitalidade. Miss Brinklow confessava que a mais tenaz pesquisa no seu aposento não lograra revelar uma só das falhas que estava certa de encontrar. O próprio Mallinson mostrava um pouco de complacência um tanto soturna.

— Afinal, creio que não poderemos partir amanhã —

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resmungava —, a menos que alguém se resolva a deitar energias. . . Que estes sujeitos são tipicamente orientais. . . Não se consegue que façam coisa alguma depressa nem com eficiência.

Conway aceitou a observação. Não havia ainda um ano que Mallinson se encontrava fora da Inglaterra — tempo suficiente, sem dúvida, para justificar uma generali-zação que provavelmente havia de repetir quando tivesse vivido vinte anos no estrangeiro. E até certo ponto era verdade; não considerava, contudo, as raças orientais tão extraordinariamente dilatórias — seriam, antes, os ingleses e americanos que galopavam ao redor do globo sob a ação de uma febre contínua e um tanto absurda. Dificilmente esperaria que outro ocidental compartilhasse aquele ponto de vista, mas quanto mais crescia em anos e experiência mais se apegava a ele. Por outro lado, não podia negar que Tchang fosse um contemporizador sutil, e que a impaciência de Mallinson era bem justificada. Sentia um leve desejo de poder ser também impaciente; teria sido muito melhor para o rapaz.

— Creio — disse ele — que conviria esperarmos para ver o que nos traz o dia de hoje. Era talvez otimismo exagerado supor que eles fizessem alguma coisa já ontem à noite.

Mallinson relanceou vivamente os olhos para ele.— Acha, então, que eu fiz papel ridículo com a

minha insistência? Não pude conter-me! Aquele chinês me parecia suspeitíssimo... e ainda penso assim. Conseguiu arrancar-lhe alguma coisa razoável depois que fui para a cama?

— Não ficamos muito tempo a conversar. Ele falou em termos vagos e não comprometedores sobre quase tudo

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que nos interessava.— Nós hoje havemos de obrigá-lo a pôr os pontos

nos ii!— Sem dúvida — concordou Conway, sem grande

entusiasmo. — Entrementes, este breakfast está excelente!Consistia a refeição, muito bem preparada e ainda

melhor servida, em pomelos, chá e bolos de farinha sem lêvedo. Quando ia terminar entrou Tchang e, fazendo uma pequena reverência, começou aquela troca de cumprimentos polidos e convencionais que, em língua inglesa, pareciam um tudo-nada pesado. Conway teria preferido falar chinês, mas até então não dera a perceber que conhecia algum idioma oriental. Seria útil guardar um trunfo. Escutou com ar sério as cortesias de Tchang e assegurou-lhe que dormira bem e sentia-se muito melhor. Exprimindo sua alegria ao ouvir isto, o chinês acrescentou:

— É bem verdade o que diz o seu poeta nacional: "O sono desata a meada das preocupações".

Não foi muito bem acolhida esta mostra de erudição. Mallinson retrucou com aquele toque de desprezo que todo jovem inglês de espírito são deve sentir à simples menção da poesia:

— Suponho que o senhor se refira a Shakespeare, ainda que não reconheça a citação. Mas sei de outra que diz: "Não esperes a ordem de partida, mas segue imediata-mente". Não quero ser descortês, mas é o que todos nós desejaríamos fazer. E eu pretendo ir em procura desses carregadores. . . esta manhã mesmo, se o senhor não tem objeções a fazer.

Recebeu o chinês este ultimato com ar impassível e afinal respondeu:

— Lamento dizer-lhe que isso de pouco serviria. Re-ceio que não tenhamos homens em condições e que este-

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jam dispostos a acompanhá-los tão longe dos seus lares.— Mas, homem de Deus! Pensará, porventura, que

nos vamos conformar com esta resposta?— Estou sinceramente pesaroso, mas não posso dar

outra.— Parece que o senhor assentou tudo isso durante a

noite — interpôs Barnard. — Ontem, não parecia tão seguro do caso.

— Não queria desanimá-los, visto que estavam tão fatigados da viagem. Agora, após uma noite de descanso, espero que vejam a questão sob uma luz mais razoável.

— Escute — acudiu Conway com vivacidade. — Este sistema de confusão de palavras vagas não adianta nada. O senhor sabe que não podemos ficar aqui indefini-damente. Também é claro que não podemos sair daqui sozinhos. Sendo assim, que é que propõe?

Teve Tchang um sorriso luminoso, que era, evidente-mente, só para Conway.

— Meu caro senhor, é um prazer apresentar a suges-tão que tenho em mente. Para a atitude do seu amigo não havia resposta, mas para a pergunta do homem avisado sempre há uma. Deve estar lembrado de que ontem alguém observou — creio ter sido este mesmo seu amigo — que não podemos deixar de ter comunicações eventuais com o exterior. Isto é exato. De quando em quando necessitamos de certos artigos de entrepostos distantes, e é nosso costu-me obtê-los no devido tempo. . . Não preciso importuná-los descrevendo os métodos e formalidades que empregamos. O ponto capital é que uma dessas encomendas está por chegar em breve, e como os homens que fazem a entrega voltam depois para o lugar de onde vieram, acho que o senhor poderá entender-se com eles. Realmente, não posso

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imaginar plano melhor, e espero que, quando chegarem. . .— E quando chegarão? — perguntou Mallinson

abruptamente.— Seria impossível, é claro, prever a data exata. Os

senhores mesmos têm experiência das dificuldades de locomoção nesta parte do mundo. Podem surgir cem moti-vos de atraso. . . a incerteza do tempo. . .

De novo interveio Conway.— Vamos tirar isto a limpo. O senhor sugere que

podemos empregar como carregadores uns homens que deverão estar aqui dentro de pouco tempo, com encomen-das. Não é má idéia, em si; mas nós precisamos saber mais alguma coisa. Primeiro, e conforme já lhe foi perguntado: quando esperam esses homens? Segundo: aonde nos leva-rão eles?

— Esta pergunta deve ser feita a eles mesmos.— Quererão conduzir-nos à Índia?— É-me difícil dizê-lo.— Bem, vejamos então a resposta à outra pergunta.

Quando estarão aqui? Não peço uma data, apenas quero ter uma idéia — se poderá ser na semana próxima, ou para o ano.

— Talvez daqui a um mês. Provavelmente, não mais que dois meses.

— Ou três, quatro, cinco meses — interrompeu Mallinson com calor. — E pensa que nós vamos esperar aqui por esse comboio ou caravana, ou o que quer que seja, para nos levar sabe Deus aonde, numa época completamente vaga do distante futuro?

— Penso, senhor, que a expressão "distante futuro" não é muito apropriada. A não ser que sobrevenha algum contratempo inesperado, a espera não será mais longa do

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que apontei.— Mas dois meses! Dois meses neste lugar! É

absurdo! Conway, você com certeza não pode conceber isso! Duas semanas devia ser o limite!

Cingindo as roupas ao corpo, num gesto de quem punha termo à discussão, disse Tchang:

— Sinto muito. Não tinha intenção de ofender. O mosteiro continua a oferecer a todos os senhores o melhor de sua hospitalidade, por todo o tempo em que tiverem o infortúnio de permanecer aqui. É só o que posso dizer.

— Nem é preciso mais — retorquiu Mallinson, furioso. — E se pensa que é senhor da situação, vai ver que está muito enganado! Havemos de arranjar quantos carregadores quisermos, não se aflija! Pode fazer quantas mesuras, quantos rapapés quiser, pode dizer tudo o que lhe aprouver. . .

Conway pousou-lhe a mão no braço, para contê-lo. Mallinson num acesso de ira parecia uma criança; era capaz de dizer tudo o que lhe viesse à cabeça, sem guardar conveniências nem decoro. Achava Conway que era perdoável aquilo, numa pessoa da sua constituição e em tais circunstâncias; mas receava que as palavras do rapaz ferissem a suscetibilidade mais delicada de um chinês. Por fortuna, Tchang retirara-se, com um tato admirável, em tempo de escapar ao pior.

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CAPÍTULO V

Discutiram o assunto toda a manhã. Sem dúvida, era um choque para quatro pessoas que, a seguir a vida o seu curso ordinário, deviam estar àquela hora expandindo-se nos clubes e missões de Peshawar, verem-se assim ameaçadas de passar dois meses num mosteiro tibetano. Mas estava na natureza das coisas que o choque inicial da chegada lhes deixasse escassas reservas de indignação ou de assombro; o próprio Mallinson, passada a primeira explosão, mergulhara numa espécie de perplexidade fatalista. E nervoso, irritadiço, tirando baforadas do cigarro, dizia:

— Já não tenho forças para discutir, Conway. Você sabe o que eu penso. Tenho sempre dito que há algo de estranho nisto tudo. Aqui há marosca. Quem me dera ver-me longe disto já, já!

— Não o censuro por isso. Infelizmente, não se trata de saber se gostamos ou não, mas sim do que teremos de suportar. Francamente, se esta gente diz que não pode ou não quer fornecer-nos carregadores, nada nos resta senão esperar até que venham os outros. Custa-me admitir que estejamos de mãos atadas, mas parece ser a verdade.

— Quer dizer que teremos de ficar dois meses aqui?— Não vejo outro recurso. Mallinson sacudiu a cinza do cigarro com um gesto de

indiferença forçada e disse:— Muito bem, então. Sejam dois meses. E agora,

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vamos todos dar vivas! — Não sei por que haveria de ser pior que dois meses

em qualquer outra parte isolada do mundo — prosseguiu Conway. — As pessoas de nosso ofício estão habituadas a andar por lugares esquisitos — creio que posso dizê-lo de nós todos, não é? Certamente, não é agradável para os que têm parentes e amigos. Por mim, sou feliz nesse ponto. Não sei de ninguém que se inquiete muito por minha causa; quanto ao meu trabalho, seja qual for, poderá ser executado por outra pessoa.

Voltou-se para os outros, como a convidá-los a expor sua situação. Mallinson não disse nada, mas Conway sabia que ele tinha os pais e a noiva na Inglaterra. Era bastante duro.

Barnard, por seu lado, aceitava aquela conjuntura com o bom humor habitual.

— Enfim, reconheço que tenho sorte; passar dois meses num presídio não dá para matar. Quanto à minha gente, não estranhará, porque sempre tive preguiça de escrever cartas.

— Esquece que nossos nomes vão aparecer nos jor-nais — lembrou Conway. — Todos nós seremos dados como desaparecidos, e naturalmente as suposições serão as piores.

Por um momento, pareceu que o americano se sobres-saltara; depois replicou, com uma leve careta:

— Ah! sim, é exato. Mas isso não me preocupa, acredite.

Alegrou-se Conway de que assim fosse, ainda que o ponto permanecesse um tanto duvidoso. Voltou-se para Miss Brinklow, que até então observava um silêncio notá-vel. Não emitira opinião alguma durante a conferência com Tchang. Imaginou Conway que as suas inquietações

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pessoais também fossem pequenas.— Como disse Mr. Barnard — começou ela alegre-

mente —, dois meses aqui não é coisa para a gente se inco-modar. Para quem está a serviço do Senhor, pouco impor-tam os lugares. A Providência me enviou aqui e considero isso como um chamado.

Achou Conway que, naquelas circunstâncias, era uma atitude muito conveniente. E disse, em tom animador:

— Estou certo de que a sua sociedade missionária vai ficar muito satisfeita com a senhora, quando voltar. Poderá prestar informações muito úteis. O fato é que todos nós levaremos daqui alguma experiência. Já é uma pequena consolação.

Generalizou-se então a conversa. Conway estava admirado da facilidade com que Barnard e Miss Brinklow se acomodavam à nova perspectiva. Isso lhe trazia também certo alívio, pois o deixava apenas com um desgosto para aturar. Mesmo assim, após o esforço despendido em tantas discussões, experimentava Mallinson certa reação. Ainda perturbado, mostrava-se contudo mais disposto a encarar as coisas pelo lado melhor.

— Só Deus sabe o que encontraremos para nos ocu-par aqui!

Entretanto, o mero fato de fazer tal observação reve-lava que já ia procurando reconciliar-se com a situação.

— A primeira coisa que temos a fazer — disse Con-way — é evitar de aborrecermos uns aos outros. Feliz-mente parece haver aqui muito espaço, e o lugar não está de modo algum superlotado. A não ser os criados, até agora vimos somente um dos habitantes.

Barnard encontrava outro motivo de otimismo:— E não havemos certamente de morrer de fome, a

julgar pelas amostras de refeições que tivemos até agora.

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Sabe, Conway? Não é com pouca despesa que se dirige um lugar assim. Aqueles banheiros, por exemplo — aquilo custa muito dinheiro. E, pelo que tenho visto, ninguém ganha nada aqui, a não ser que aqueles tipos lá do vale te-nham algum trabalho; e mesmo assim, não podem produzir bastante para exportar. Eu queria saber é se eles extraem algum minério.

— Tudo aqui é misterioso, que o diabo os leve! — replicou Mallinson. — Calculo que eles tenham panelas de dinheiro enterradas, como os jesuítas. Quanto aos banhei-ros, devem ter sido presente de algum protetor milionário. Enfim, é assunto que não me há de preocupar, uma vez que me veja longe daqui. Devo dizer, contudo, que a vista é bonita, a seu modo. Daria um belo centro de esportes de inverno, se fosse bem situado. Será que se pode andar de esqui em alguma daquelas ladeiras?

Deitando-lhe um olhar perscrutador e levemente divertido, respondeu Conway:

— Ontem, quando encontrei alguns edelvais, você me lembrou que não estávamos nos Alpes. Agora, chegou-me a vez de dizer o mesmo. Não o aconselharia a experi-mentar nenhuma de suas proezas de Wengen-Scheidegg nesta parte do mundo.

— Não creio que alguém aqui já tenha visto um salto de esqui.

— Nem sequer uma partida de hóquei no gelo — replicou Conway, gracejando. — Você podia ver se orga-nizava alguns quadros. . . Que diz de "Cavalheiros versus Lamas"?

— Isso certamente lhes ensinaria o jogo — disse Miss Brinklow com cintilante seriedade.

Seria difícil aduzir algum comentário acertado; não foi, porém, necessário, pois que já ia ser servido o almoço,

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cuja natureza e oportunidade se combinavam para produzir excelente impressão. Mais tarde, quando apareceu Tchang, não os encontrou dispostos a reencetar a discus-são. Com muito tato, o chinês fez de conta que ainda se achava em bons termos com todos, e os quatro exilados aceitaram o convênio. Na verdade, quando lembrou que talvez desejassem ver mais alguma coisa do mosteiro, e que a ser assim teria prazer em guiá-los, o oferecimento foi muito bem acolhido.

— Mas claro! — disse Barnard. — Podemos perfei-tamente dar uma vista d'olhos enquanto estamos aqui. Imagino que há de se passar muito tempo antes que algum de nós faça outra visita.

Miss Brinklow fez uma observação digna de nota. Ao saírem todos em seguimento de Tchang, murmurou:

— Quando partimos de Baskul naquele avião, certa-mente eu nem sonhava que viríamos ter a um lugar como este.

— E até agora não sabemos por que viemos — acrescentou Mallinson, inexorável.

Não tinha Conway preconceitos de raça nem de cor, e era por pura afetação que fingia às vezes, quando estava em algum clube ou viajava em carro de primeira classe, dar especial valor à "brancura" de uma cara cor de lagosta tendo ao alto um chapéu de cortiça. Esta maneira de proce-der livrava de muito incômodo, principalmente na Índia, e Conway era exímio em se furtar a aborrecimentos. Na China, porém, era menos necessária; tivera muitos amigos chineses e jamais lhe ocorrera idéia de tratá-los como a inferiores. Portanto, ao conversar com Tchang, fazia-o com bastante isenção de ânimo para ver nele um velho cavalheiro maneiroso, que talvez não fosse digno de

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inteiro crédito, mas que era, sem dúvida, dotado de grande inteligência. Quanto a Mallinson, inclinava-se a ver o chinês através das grades de uma prisão imaginária; Miss Brinklow mostrava-se viva e alegre, como sempre fazia ao tratar com os pagãos na sua cegueira, ao passo que a bonomia mordaz de Barnard era da espécie que ele teria usado com um mordomo.

Entrementes, aquele giro pelos domínios de Shangri-Lá era bastante interessante para sobrepor-se a todas estas atitudes. Não era sem duvida a mais vasta e, independen-temente da sua situação, a mais notável. Só aquele passeio por salas e pátios tomavam uma tarde inteira, embora ele tivesse notado que muitos aposentos iam ficando sem exame — edifícios inteiros, mesmo, em que Tchang não se ofereceu para entrar com eles. Viram, entretanto, o sufi-ciente para confirmar as impressões já formadas. Barnard estava mais certo que nunca de que os lamas eram ricos; Miss Brinklow descobriu abundantes evidências de imora-lidade. Mallinson, passada a primeira impressão de novi-dade, não se sentia menos fatigado do que em outras excursões de turismo, em altitudes mais baixas; e lá consigo achava que, muito provavelmente, não escolheria os lamas para seus heróis.

Somente Conway se abandonava a um encantamento profundo e sempre crescente. Não era tanto alguma coisa particular que o atraía, como a gradual revelação de elegância, de gosto sóbrio e impecável, de uma harmonia tão delicada que parecia satisfazer o olhar sem o prender. Precisou fazer um esforço consciente para trocar a atitude do artista pela do conhecedor, reconhecendo então tesou-ros que museus e milionários teriam cobiçado: deliciosas cerâmicas de Sung azul pérola, pinturas em cores esbatidas, conservadas por mais de mil anos, laças em que

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a fria e adorável minuciosidade de país de fadas era antes orquestrada do que pintada. Um mundo de incomparáveis refinamentos ainda a tremular indeciso em porcelana e verniz, proporcionando um instante de emoção antes de se diluir no mais puro pensamento. Não havia ali ostentação, não havia busca de efeito nem assalto concentrado aos sentimentos do espectador. Aquelas delicadas perfeições tinham o ar de surgir no mundo a flutuar como pétalas caí-das de uma flor. Teriam enlouquecido um colecionador. Mas Conway não era colecionador; faltavam-lhe o dinheiro e o instinto aquisitivo. Seu gosto pela arte chinesa era puramente espiritual; num mundo em que aumentam incessantemente o ruído e a vastidão das coisas, ele volta-va-se, no íntimo, para os objetos delicados, precisos e miniaturais. E enquanto ia passando de sala em sala teve uma remota sensação de mágoa à idéia da imensidade do Karakal, pairando sobre tão frágeis encantos.

Tinha o mosteiro, contudo, mais o que mostrar do que uma coleção de chinesices. Salientava-se ali, por exemplo, uma agradável biblioteca, alta e espaçosa, contendo uma multidão de livros tão discretamente agasalhados nos des-vãos e reentrâncias das paredes, que todo o ambiente era mais de critério que de erudição, mais de distinção que de seriedade. Um rápido olhar deitado a algumas prateleiras revelou a Conway muita coisa que admirar; ali se encon-trava, segundo parecia, a melhor literatura do mundo, assim como muita matéria curiosa e abstrusa, que ele não podia avaliar. Abundavam os volumes em inglês, francês, alemão e russo, e era imensa a quantidade de escritos em chinês e outras línguas orientais.

Uma seção que o interessou particularmente era dedi-cada a assuntos tibetanos; notou diversas raridades, entre as quais o Novo Descobrimento do Grão Cathayo ou dos

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Reinos de Tibet, pelo Padre Antônio de Andrade (Lisboa, 1626); China, de Athanasius Kircher (Antuérpia, 1667); a Voyage à la Chine des Pères Grueber et d'Orville, de The-venot; e a Relazione Inédita di un Viaggio al Tibet, de Beligatto. Examinava este último quando notou o olhar de Tchang fixo nele, com expressão de suave curiosidade.

— É talvez um erudito?Achou difícil responder. Aqueles dois anos de magis-

tério em Oxford conferiam-lhe certo direito ao título; sabia, porém, que o termo — o mais altamente lisonjeiro na boca de um chinês — tinha, para ouvidos ingleses, uma leve nota de pedantismo. E, mais em consideração aos seus companheiros do que por outra razão, tergiversou:

— Gosto de ler, sem dúvida, mas meu trabalho nestes últimos anos não me tem deixado muitos vagares para uma vida de estudos.

— Contudo, deseja-a?— Oh! não direi tanto, mas certamente reconheço os

seus atrativos.Mallinson, que pegara num livro, interrompeu o

diálogo:— Aqui está alguma coisa para a sua vida de estu-

dioso, Conway. É um mapa do país.— Nossa coleção contém várias centenas — disse

Tchang. — Estão todos à disposição dos senhores, mas tal-vez possa poupar-lhes algum trabalho. Não encontrarão Shangri-Lá assinalado em nenhum deles.

— É curioso — comentou Conway. — Eu gostaria de saber por quê.

— Há para isso uma boa razão. Mas, infortunada-mente, é tudo que posso dizer.

Conway sorriu; Mallinson, porém, mostrou-se de

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novo impertinente. — Aumenta o mistério. Até agora não vimos por aqui

nada que fosse necessário ocultar.De repente Miss Brinklow saiu do mudo estupor em

que a mergulhara o passeio processional.— O senhor não nos vai mostrar os lamas traba-

lhando? — perguntou, naquela voz aflautada que devia ter intimidado muito guia da agência Cook. Estava fora de dú-vida, além disto, que tinha o espírito cheio de visões nebu-losas de ofícios nativos — tecedura de tapetes de oração, ou alguma coisa pitorescamente primitiva, de que pudesse dar notícia quando tornasse à pátria. Tinha o extraordi-nário vezo de nunca se mostrar muito surpreendida, mas de parecer sempre um tanto ou quanto indignada — um complexo que a resposta de Tchang em nada perturbou:

— Sinto dizer que é impossível. Os lamas nunca — ou, diria melhor, somente raras vezes — são vistos por gente estranha ao mosteiro.

— Vejo então que teremos de passar sem eles — concordou Barnard. — Mas é uma pena. Eu gostaria tanto de apertar a mão do seu chefe!

Tchang recebeu a observação com benévola serieda-de. Miss Brinklow, porém, ainda não se dava por vencida. E continuou:

— Que é que os lamas fazem?— Devotam-se à contemplação, minha senhora, e à

pesquisa da sabedoria. — Mas isso não é fazer alguma coisa! — Então, minha senhora, não fazem nada. — Era o que eu pensava.Depois desta resposta, encontrou ensejo para

sumariar

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— Pois, Mr. Tchang, é um prazer, sem dúvida, ver todas estas coisas; mas o senhor não me convence de que um estabelecimento como este faça algum bem verdadeiro. Eu preferiria alguma coisa mais prática.

— Quem sabe se gostaria de tomar chá?A princípio Conway ficou em dúvida sobre se havia

nisto uma intenção irônica. Mas logo viu que se enganara; a tarde se escoara rapidamente e Tchang, a despeito da sua frugalidade, possuía aquele gosto típico dos chineses pelo chá, que costumam tomar com freqüentes intervalos. Miss Brinklow, por seu lado, confessou que as visitas a museus e galerias de arte sempre lhe causavam alguma dor de cabeça. Todo o grupo concordou com a sugestão e foi seguindo Tchang por vários pátios, até darem com uma cena inesperada, de beleza sem igual. Partindo de uma colunata, descia uma escadaria para um jardim, onde se encravava um lagozinho, alimentado por algum artifício delicado de irrigação. Abrigava ele tamanha quantidade de lotos que as folhas, unidas na superfície, davam a impres-são de um pavimento de tijolos verdes e úmidos. Ao redor do lago, como uma franja, pousava uma coleção de leões, dragões e unicórnios de bronze — cada um apresentando uma ferocidade estilizada que não só não perturbava, senão que antes acentuava a paz ambiente. Tão perfeitas eram as proporções de todo o quadro que o olhar se movia sem pressa de um lado para outro; não havia ali emulação nem vaidade, e até o vértice do Karakal, que se elevava, incomparável, acima dos telhados azuis, parecia ter-se encaixado, submissamente, naquela moldura de arte consumada.

— Lindo recanto! — observou Barnard, enquanto Tchang os conduzia a um pavilhão aberto, onde, para

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maior alegria de Conway, havia um cravo e um piano moderno, de cauda.

Na sua opinião, era em certo sentido a surpresa cul-minante de uma tarde assombrosa. Respondeu Tchang a todas as suas perguntas com perfeita lisura, até certo limi-te. Os lamas, explicou ele, tinham em alta estima a música do Ocidente, em particular a de Mozart. Possuíam uma coleção de todas as grandes composições européias e al-guns deles eram hábeis executantes em vários instrumen-tos.

Foi o problema do transporte que mais impressionou Barnard.

— O senhor quer dizer que este piano veio dar aqui pelo mesmo caminho que seguimos ontem?

— Não há outro.— Apre! Isto agora é o mais extraordinário! Com um

gramofone e um rádio, ficava tudo completo! E daí, quem sabe se ainda não conhecem a música moderna?

— Oh! sim. Temos tido notícias, mas também nos informaram que as montanhas impossibilitam a recepção radiofônica; e, quanto ao gramofone, já foi apresentada a sugestão às autoridades, mas não têm pressa de ultimar o assunto.

— Isto eu acreditaria, mesmo que o senhor não me dissesse — replicou Barnard. — Calculo que o lema da sua sociedade seja: "Não há pressa!"

Riu alto, e continuou:— Bem, descendo aos detalhes, suponhamos que os

seus chefes resolvam no devido tempo adquirir o gramofo-ne; como fazem então? Os fabricantes não hão de fazer a entrega aqui, isso é claro. Imagino que tenham um agente em Pequim, Xangai, ou noutra parte qualquer; e aposto

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que tudo isso, quando lhes chega às mãos, já está custando um montão de dinheiro!

Mas Tchang, como das outras vezes, não se deixou apanhar:

— Suas conjeturas são muito argutas, Mr. Barnard, mas lamento não poder discuti-las.

E assim achavam-se de novo, refletia Conway, bei-rando o limite invisível entre o que podia e o que não podia ser revelado. Julgava poder dentro em breve começar a delinear mentalmente essa fronteira, mas surgiu uma nova surpresa que veio adiar o assunto. Já traziam os criados as taças de chá rescendente e, ao mesmo tempo que os tibetanos ágeis, de membros flexíveis, entrara quase sem ser notada uma jovem vestida de chinesa. Foi direto ao cravo e pôs-se a tocar uma gavota de Rameau. A fascinação das primeiras notas despertou em Conway um prazer que suplantava o assombro; aquelas argentinas árias francesas do século dezoito pareciam refletir a elegância dos vasos de Sung, das lacas delicadas e do lago dos lotos. Envolvia-as aquela mesma fragrância que desafiava a morte, conferindo a imortalidade através de uma época alheia ao seu espírito. Foi só então que reparou na clavecinista. Tinha o nariz longo e delgado, as maçãs do rosto salientes, o palor de casca de ovo dos manchus; o cabelo negro, muito puxado para trás e trançado; parecia uma miniatura bem acabada. A boca era como um pequeno convólvulo rosado e sua dona mantinha-se perfeitamente imóvel — menos as mãos de longos dedos. Terminada a gavota, fez uma pequena reverência e retirou-se.

Acompanhou-a Tchang com o olhar, sorrindo; depois, com certo ar de triunfo pessoal, voltou-se para Conway:

— O senhor gostou?

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— Quem é ela? — indagou Mallinson, antes que Conway pudesse responder.

— Chama-se Lo-Tsen. Toca com muita habilidade as músicas ocidentais para instrumentos de teclado. Como eu, ainda não atingiu a iniciação completa.

— Suponho que não, com efeito! — exclamou Miss Brinklow. — Não parece mais que uma criança. . . Então há também mulheres lamas aqui?

— Entre nós não há distinção de sexo.— Que coisa extraordinária este seu monastério —

observou Mallinson altaneiramente, ao cabo de uma pausa.Continuaram a tomar o chá sem mais conversar.

Parecia que ainda vibravam no ar os ecos do cravo, exer-cendo um estranho encantamento.

Momentos depois, guiando-os à saída do pavilhão, ousava Tchang supor que o passeio os tivesse divertido. Respondendo pelos demais, Conway reciprocou com ele as cortesias de costume. O chinês disse da sua própria satisfa-ção e pediu-lhes que considerassem os recursos da biblio-teca e da sala de música inteiramente à sua disposição, enquanto ali estivessem. Agradeceu-lhe de novo Conway, com alguma sinceridade, e disse:

— Mas e os lamas? Não se utilizam nunca dessas salas?

— Eles cedem o passo, e com muita alegria, aos seus distintos hóspedes.

— Oh! aí está o que eu chamo verdadeira gentileza — acudiu Barnard. — E demais, isso prova que os lamas sabem realmente que nós existimos. Já é um progresso, afinal ! Faz com que eu me sinta muito mais à vontade. O certo é que têm aqui uma bela instalação, Tchang, e aquela menina toca muito bem piano. Que idade terá ela, eis o que

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eu queria saber.— Infelizmente, não lho posso dizer.— Não quer revelar o segredo da idade de uma

senhora, hem? — disse Barnard, rindo.— Exatamente — respondeu Tchang, com a remota

sombra de um sorriso.

Naquela noite, depois do jantar, achou Conway um meio de se apartar dos outros e saiu a passear pelos pátios tranqüilos, lavados de luar. Shangri-Lá estava lindo então, tocado pelo mistério que jaz no âmago de tudo que é belo. No ar frio e sereno, a imponente pirâmide do Karakal parecia mais próxima, muito mais próxima do que vista à luz do sol. Conway experimentava grande bem-estar físico, sentia os nervos repousados e o espírito tranqüilo, mas mordia-lhe a inteligência — o que não é a mesma coisa — boa dose de inquietude. Estava intrigado. A fronteira do mistério, que ele começara a delinear, fazia-se mais definida, mas revelava agora um fundo inescrutável. Como que se focalizava diante dos seus olhos a série de estranhas aventuras em que ele e seus companheiros casuais se viram envolvidos; não conseguia explicá-las por enquanto, embora estivesse certo de que tinham explicação.

Caminhando ao longo de um dos claustros, atingiu o terraço que se debruçava sobre o vale. Assaltou-o um aroma de angélicas, despertando delicadas associações; na China, chamavam-lhe o "aroma do luar". Se o luar tivesse também uma voz, fantasiou ele, bem poderia ser a gavota de Rameau que ouvira naquela tarde; e esta idéia lhe guiou o pensamento para a jovem manchu. Não lhe ocorrera a possibilidade de existirem mulheres em Shangri-Lá. Não se

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costuma associar a presença destas à prática do monasticismo. Entretanto, refletiu, talvez não fosse uma inovação desagradável; mais ainda, uma clavecinista podia constituir elemento valioso numa comunidade que se permitia ser, na expressão de Tchang, "moderadamente herética".

Inclinou-se sobre a borda para contemplar o vazio negro-azulado. A profundidade era fantástica; nada menos de uma milha, talvez. Ser-lhe-ia permitido visitar o vale e observar a civilização de que lhe haviam falado? Como estudioso de história, interessava-o esse singular núcleo de cultura, encravado entre montanhas desconhecidas e governado por um vago sistema teocrático, sem esquecer os segredos curiosos, mal talvez com ele aparentados, do convento lamaico.

De súbito, trazidos pela brisa, chegaram-lhe sons lá de baixo. Prestando atenção pôde distinguir gongos e trombetas e também (ou seria apenas imaginação?) o lamento confuso de muitas vozes. Os sons vinham e se iam ao sabor dos caprichos do vento. Mas os sinais de vida e de agitação naqueles velados abismos só serviam para realçar a austera serenidade de Shangri-Lá. Seus claustros desertos e seus pálidos pavilhões mergulhavam num repouso do qual parecia ter fugido toda vibração de existência, deixando após si um silêncio que parecia deter a própria marcha dos instantes. Percebeu então, numa janela muito acima do terraço, a luz rosada de uma lanterna; seria ali que os lamas se entregavam à contemplação e à busca da sabedoria? Estariam nesse momento praticando as suas devoções? O problema parecia ter solução bem simples: era entrar pela primeira porta e explorar galerias e corredores até descobrir a ver-dade. Sabia, porém, que tal liberdade era ilusória e que

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todos os seus movimentos estavam sendo vigiados. Dois tibetanos tinham atravessado silenciosamente o terraço, aproximando-se do parapeito. Davam a impressão de indi-víduos bem-humorados, cobrindo negligentemente os om-bros nus com as capas coloridas. Elevou-se de novo o rumor de gongos e trombetas, e Conway ouviu um dos ho-mens interrogar o companheiro. A resposta foi:

— Eles sepultaram Talu.Conway, cujos conhecimentos de tibetano eram muito

superficiais, esperou que a conversa continuasse; aquelas palavras soltas não lhe revelavam quase nada. Depois de uma pausa, o interrogador, cuja voz era inaudível, reatou a conversação, recebendo respostas que Conway apanhou e. interpretou aproximadamente, como segue:

— Morreu fora do vale. — Obedeceu às autoridades de Shangri-Lá. — Veio pelo ar, por sobre as altas montanhas,

carregado por um grande pássaro. — Também trouxe forasteiros consigo. — Talu não temia o vento nem o frio dos espaços. — Embora tenha partido há muito tempo, o vale da

Lua Azul lembra-se dele ainda.Nada mais foi dito que Conway pudesse entender, e

após alguns minutos de espera voltou para o seu aposento. Ouvira, contudo, o suficiente para encontrar mais uma chave do mistério, e esta chave ajustava-se tão bem que se admirou de não a haver obtido por suas próprias deduções. Na verdade, isso lhe tinha passado pelo espírito, mas acha-ra-o tão absurdo e fantástico que não lhe dera acolhida. Agora via bem que o que lhe parecera fantástico e absurdo tinha de ser aceito. Aquele vôo de Baskul para as monta-nhas não fora a façanha gratuita de um louco. Tinha sido planejado, preparado e posto em execução por ordem de

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Shangri-Lá. Os habitantes do vale conheciam pelo nome o piloto morto; tinha sido um deles, e lamentavam-lhe a morte. Tudo indicava a existência de uma mentalidade superior e dirigente, empenhada em realizar os seus pró-prios desígnios. Havia, por assim dizer, como que um único arco de intenção abarcando todas as inexplicáveis horas e distâncias. Qual era, porém, essa intenção? Por que razão concebível quatro passageiros quaisquer tinham sido transportados, num avião do governo britânico, para estas solidões de além-Himalaia?

O problema causava leve terror a Conway, mas de modo algum o aborrecia. Era um desafio e tomava a única forma sob a qual ele era sensível a desafios: apelando para certa lucidez de raciocínio que só pede uma tarefa digna de si. Uma coisa decidiu desde logo: a emoção da descoberta não devia ser ainda comunicada, nem aos seus companhei-ros, que em nada o poderiam ajudar, nem aos seus hospe-deiros, os quais seguramente não desejariam prestar-lhe auxílio.

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CAPÍTULO VI

— Há gente que tem se acostumado com lugares pio-res do que este — observava Barnard no fim da primeira semana passada em Shangri-Lá; era, sem dúvida, uma das muitas lições que estavam aprendendo. Já se haviam afeito a certa rotina cotidiana e graças a Tchang o tédio não era maior do que em muita temporada de férias. Todos esta-vam aclimatados à altitude e sentiam-lhe a ação revigorante, uma vez que evitassem todo exercício demasiado. Aprenderam que os dias eram tépidos e as noites frias, que o mosteiro era quase completamente resguardado dos ventos, que as avalanchas do Karakal se tornavam mais freqüentes por volta do meio-dia, que o vale produzia excelente fumo, que certos alimentos e bebidas eram mais saborosos do que outros, e que cada um deles mesmos tinha os seus gostos e idiossincrasias. De fato, haviam descoberto muita coisa acerca uns dos outros, qual se fossem quatro novos alunos duma escola, de onde todos os demais houvessem desaparecido misteriosamente. Tchang era incansável nos seus esforços para aplainar dificuldades. Organizava excursões, sugeria quefazeres, recomendava livros, falava com aquela sua fluência lenta e cuidadosa sempre que se produzia um silêncio constrangedor durante as refeições e era sempre benévolo, cortês e fértil em recursos. Era tão bem demarcado o limite entre as informações prestadas de boa vontade e as que ele recusava polidamente, que a recusa já não causava

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ressentimento — salvo, por vezes, em Mallinson. Conway contentava-se em tomar nota, acrescentando mais um elemento à série de observações que ia constantemente acumulando. Barnard até caçoava com Tchang, de acordo com as maneiras e tradições rotarianas do Middle-West.

— Fique sabendo, Tchang, que isto aqui é um pés-simo hotel. Nunca recebem jornal algum! Eu trocaria todos os livros da sua biblioteca pelo Herald-Tribune de hoje.

As respostas de Tchang eram sempre sérias, con-quanto isto não fosse prova de que ele levasse a sério todas as perguntas:

— Temos a coleção do Times, Mr. Barnard, até al-guns anos atrás. Mas, sinto dizê-lo, somente o Times de Londres.

Alegrou-se Conway por saber que o vale não lhes era interdito, se bem que as dificuldades da descida tornassem impossíveis as visitas sem escolta. Acompanhados por Tchang, passaram quase todo um dia percorrendo a pradaria verde, tão encantadora vista do alto do penhasco, e para Conway, ao menos, a excursão foi de absorvente interesse. Viajavam em cadeirinhas de bambu, balançando-se perigosamente por cima de precipícios, enquanto os carregadores, à frente e atrás, iam descuidosamente pelo íngreme caminho. Não era um caminho para pessoas de nervos delicados, mas, quando afinal alcançaram os planos mais baixos das florestas e colinas basilares, patenteou-se por toda parte a suprema boa fortuna dos lamas do mostei-ro. Era o vale nada menos que um paraíso fechado, de assombrosa fertilidade, onde a diferença de nível de algu-mas centenas de metros abrangia toda a distância que se-para o clima temperado do tropical. Plantações extraordi-nariamente variadas cresciam em profusão, umas ao pé das

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outras, sem que ficasse inaproveitada sequer uma polegada de terra. A área cultivada media talvez umas doze milhas, variando a largura de uma a cinco milhas, e, embora estrei-ta, tinha a ventura de receber sol durante as horas mais quentes do dia. A atmosfera, aliás, era agradavelmente tépida mesmo à sombra, mas eram frigidíssimos os cursos de água que desciam das neves da montanha. Conway sentiu de novo, ao contemplar o portentoso paredão de rocha, que um soberbo e sutil perigo envolvia a paisagem; não fosse alguma barreira fortuita, e o vale inteiro seria evidentemente um lago, alimentado pelas elevações glaciais que o cercavam. Ao invés disto, sulcavam o solo umas poucas torrentes, enchendo reservatórios e irrigando prados e culturas com disciplinada regularidade, como se fossem obra de um engenheiro hidráulico. Toda essa rede tinha uma disposição incrivelmente feliz — contanto que a estrutura que a emoldurava não desmoronasse por força de algum tremor de terra ou desabamento!

Mas essas vagas ameaças de cataclismo futuro só conseguiam dar maior realce à beleza do presente. Mais uma vez Conway sentia-se cativado pelas mesmas qualida-des de engenho e graça que haviam feito dos anos vividos na China os mais ditosos de sua existência. O vasto maci-ço, em torno, formava perfeito contraste com os pequeni-nos relvados e jardins expurgados de ervas, com as colori-das casas de chá à beira do regato e com as habitações tão leves que pareciam de brinquedo. Afiguraram-se-lhe os habitantes uma mescla feliz das raças chinesa e tibetana; eram mais claros e tinham mais belas feições do que o comum de um e outro povo, e pareciam ter sofrido pouco com os efeitos da endogamia inevitável numa sociedade tão limitada. Riam ou sorriam para os estrangeiros que passavam nas cadeirinhas e diziam uma palavra amiga a

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Tchang. Eram bem-humorados e levemente curiosos, corteses e despreocupados, ocupados em inúmeros misteres, mas sem nenhum sinal de pressa. De um modo geral, Conway achou-os uma das mais felizes comunidades que já vira, e até Miss Brinklow, sempre de olho atento a qualquer sintoma de degradação paga, teve de reconhecer que tudo tinha muito boa aparência, "na superfície". Sentiu alívio ao constatar que os nativos estavam "completamente" vestidos, muito embora as mulheres usassem calças chinesas, justas no tornozelo, e o exame meticuloso a que submeteu um templo budista apenas revelou uns poucos objetos de duvidosa significação fálica. Explicou Tchang que o templo tinha sacerdotes próprios, submetidos à fiscalização pouco exigente de Shangri-Lá, conquanto não pertencessem à mesma ordem. Disse que havia ainda na extremidade do vale um templo taoísta e outro dedicado a Confúcio.

— O brilhante tem numerosas facetas — acrescentou — e é possível que muitas religiões sejam moderadamente verdadeiras.

— Concordo consigo neste ponto — disse Barnard, com convicção. — Nunca aprovei rivalidades sectárias. Tchang, você é um filósofo. Hei de guardar na lembrança essa sua frase: "Muitas religiões são moderadamente verdadeiras". Imagino que vocês lá em cima devam ser uns grandes sábios, para terem descoberto tal coisa. E têm razão, disto estou absolutamente certo.

— Mas nós — respondeu Tchang com ar sonhador — estamos apenas moderadamente certos.

Miss Brinklow não deu importância a estas coisas, que lhe pareciam ser apenas sinais de indolência. Preocu-pava-se, todavia, com uma idéia que lhe viera ao espírito.

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— Quando regressar — articulou com os lábios apertados —, pedirei à minha sociedade que mande um missionário aqui. E se alegarem as despesas, teimarei com eles até que concordem.

Isto, sem dúvida, revelava um espírito muito mais são, e até Mallinson, que simpatizava pouco com as missões estrangeiras, não pode conter a sua admiração.

— Deviam enviar a senhora. Isto é, se um lugar assim lhe agradasse, naturalmente.

— Não se trata de saber se agrada ou não — retorquiu Miss Brinklow. — Como poderia alguém gostar disto aqui? Mas trata-se de um dever a cumprir.

— Creio — disse Conway — que, se eu fosse missio-nário e tivesse de escolher, preferiria este lugar a muitos.

— Neste caso — atalhou Miss Brinklow —, é evi-dente que não haveria mérito algum.

— Mas eu não estava pensando no mérito.— Maior lástima, então. Não há virtude em fazermos

uma coisa porque nos agrada. Veja este povo aqui!— Parecem ser muito felizes.— Exatamente — respondeu ela, com certa violência.

E continuou: — Em todo caso, não vejo razão para que não comece desde já por aprender a língua. Pode emprestar-me algum livro de estudo, Mr. Tchang?

Tchang assumiu o seu ar mais melífluo.— Mas certamente, minha senhora, com o maior

prazer. E se me permite dizê-lo, acho a idéia excelente.Nessa mesma tarde, quando subiram para Shangri-Lá,

tratou o assunto como sendo de importância imediata. A princípio, Miss Brinklow intimidou-se um pouco diante do maciço volume compilado por um laborioso alemão do século XIX — imaginara, provavelmente, uma obra mais

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leve, uma espécie de O Tibetano sem Mestre —, mas, com o auxílio do chinês e encorajada por Conway, atacou reso-lutamente a tarefa e não tardou a tomar-lhe gosto.

Conway, por seu lado, encontrava muita coisa em que se interessar, afora o avassalante problema que impusera a si mesmo. Durante os dias tépidos de sol dedicou-se à biblioteca e à sala de música, confirmando-se nele a impressão de que a cultura dos lamas era deveras excepcional. Em todo caso, o seu gosto em matéria de livros era universal; Platão em grego vizinhava com Ornar Khayyam em inglês; Nietzsche era companheiro de Newton; encontravam-se ali Thomas Moore, bem como Hannah Moore, George Moore e até o velho John Moore. Calculou o número total de volumes entre vinte ou trinta mil; e era interessante fazer conjeturas sobre o sistema de seleção e aquisição. Procurou também descobrir de quando datavam as últimas aquisições; nada achou, contudo, mais recente que uma edição barata de Im Westen nichi Neues. Todavia, durante uma visita subseqüente, disse-lhe Tchang que haviam chegado outros livros publicados até meados de 1930, e estes a seu tempo viriam para as estantes.

— Como vê, estamos razoavelmente em dia — acrescentou.

— Certas pessoas dificilmente concordariam com o senhor — respondeu Conway sorrindo. — Como sabe, de um ano para cá ocorreu muita coisa no mundo.

— Nada de importância, meu caro senhor, que não pudesse ter sido previsto em 1920 ou que não possa ser melhor compreendido em 1940.

— Não lhe interessam então os aspectos mais recentes da crise mundial?

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— Interessar-me-ão profundamente. . . no devido tempo.

— Sabe, Tchang, que estou começando a compreen-dê-los? São constituídos de maneira diferente, aí está; para os senhores, o tempo tem muito menos importância do que para a maioria das pessoas. Se eu estivesse em Londres, nem sempre me interessaria um jornal da hora, assim como aqui, em Shangri-Lá, não têm grande ansiedade de ler um jornal do mesmo ano. Ambas as atitudes me parecem perfeitamente assisadas. Por falar nisso, há quanto tempo não aparecem visitantes aqui?

— Infelizmente, Mr. Conway, não lho posso dizer. Era o costumeiro ponto final na conversa, e Conway o

achava menos irritante do que o fenômeno oposto, que muito o fizera sofrer no seu tempo — a conversa que, por mais que a gente deseje, parece nunca ter fim. Começou a afeiçoar-se a Tchang, à medida que os seus colóquios se multiplicavam, embora estranhasse encontrar tão poucas pessoas no convento; mesmo na suposição de que os lamas fossem inacessíveis, não haveria outros aspirantes além de Tchang?

Havia, sem dúvida, a jovem manchu. Via-a de vez em quando na sala de música; ela, porém, não sabia inglês e Conway até então não quisera revelar os seus conheci-mentos de chinês. Não poderia dizer se ela tocava unica-mente por prazer ou se de fato estudava. Sua música, como aliás todo o seu procedimento, era refinadamente conven-cional, e escolhia sempre peças já consagradas — as composições de Bach, Corelli, Scarlatti e por vezes Mozart. Preferia o cravo ao piano, mas quando Conway se sentava ao piano escutava-o com atenção séria e quase obediente. Era impossível saber o que tinha na mente; difí-cil adivinhar-lhe a idade. Duvidava que tivesse mais de

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trinta ou menos de treze anos; e contudo — coisa curiosa — nenhuma dessas improbabilidades manifestas podia ser eliminada como totalmente impossível.

Mallinson, que vinha às vezes ouvir música na falta de ocupação melhor, via nela um desnorteante problema.

— Não posso saber o que essa pequena faz aqui — disse a Conway mais de uma vez. — Esta vida de mosteiro pode ser muito boa para um velho como Tchang; mas que atrativo oferece a uma moça? Quisera saber há quanto tempo está aqui.

— Esta mesma pergunta tenho feito a mim mesmo, mas é uma coisa que jamais saberemos, decerto.

— Você acredita que lhe agrade isto aqui?— Sou forçado a dizer que ao menos não parece

desagradar-lhe.— Dá a impressão de "não ter sentimentos de espécie

alguma, se formos a isso. Mais parece uma boneca de mar-fim do que um ser humano.

— Uma encantadora semelhança, em todo caso.— Sim, até certo ponto.Conway sorriu.— E pensando bem, Mallinson, é o quanto basta.

Afinal de contas, a boneca de marfim tem boas maneiras, bom gosto no vestir, aspecto atraente, toca cravo com mãos de fada e não anda numa sala como se estivesse jogando hóquei. Na Europa ocidental, se bem me lembro, não é comum encontrar essas virtudes reunidas numa mulher.

— Você é terrivelmente cínico no que toca às mulhe-res, Conway.

Conway estava habituado à acusação. Na realidade tivera muito pouco contato com o outro sexo, e durante as ocasionais licenças nos postos de montanha, na Índia, a

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reputação de cínico era tão fácil de manter como qualquer outra. É verdade que havia mantido algumas deleitosas amizades com mulheres, que de bom grado casariam com ele se as tivesse pedido em casamento — mas não as pedi-da. Certa vez, foi quase ao ponto de anunciar no Morning Post, mas a moça não queria viver em Pequim, nem ele em Tunbridge Wells, mútuas relutâncias que foi impossível vencer. Sua experiência com as mulheres tinha sido fortuita, intermitente e de certo modo inconclusiva. Mas, com tudo isso, não era cínico a respeito delas.

— Eu tenho trinta e sete anos — disse rindo — e você tem vinte e quatro. Nisso consiste toda a diferença.

Houve uma pausa e Mallinson perguntou de repente:— A propósito, que idade você dá a Tchang?— Qualquer — respondeu Conway sem hesitar —

entre quarenta e nove e cento e quarenta e nove.

Tais conjeturas, entretanto, eram muito menos dignas de confiança do que outras informações ao alcance deles. O fato de nem sempre lhes ser satisfeita a curiosidade tinha por efeito obscurecer a quantidade realmente grande de dados que Tchang estava sempre disposto a fornecer. Por exemplo, não se faria nenhum segredo em torno dos usos e costumes da população do vale, e Conway, que estava interessado em conhecê-los, obteve informações que dariam para compor uma boa tese de formatura. Como estudioso de política, interessava-lhe principalmente a forma por que era governado o vale. Vigorava ali, segundo constatou, numa espécie de autocracia bastante folgada e elástica, exercida pelo mosteiro com uma benevolência quase negligente. Era um regime bem sucedido e muito sólido, como ele tinha ocasião de verificar cada vez que

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descia àquele fértil paraíso. Intrigava-o o problema da manutenção da lei e da ordem, pois não parecia haver polícia nem soldados. Contudo, devia por certo existir um meio de reprimir os incorrigíveis. A isto respondia Tchang que o crime era muito raro, em parte porque só se consideravam tais as faltas graves, e também em parte porque cada um possuía em quantia suficiente tudo o que pudesse desejar. Em último caso, os servidores do mosteiro tinham o poder de expulsar do vale os infratores — se bem que este castigo, tido como extremo e terrível, fosse aplicado apenas de longe em longe. Mas o fator principal no governo do vale da Lua Azul, disse Tchang, era a preconização das boas maneiras, fazendo-se sentir às pessoas que certas coisas "não se fazem" porque desqualificam quem as comete.

— É o mesmo sentimento que se inculca nas escolas públicas do seu país — disse Tchang —, mas não, receio, com relação às mesmas coisas. Por exemplo, os habitantes do nosso vale cultivam o sentimento de que não se deve ser hostil aos forasteiros, discutir com acrimônia ou querer sobressair-se um ao outro. A simples idéia de divertir-se com o que os mestres de suas escolas chamam a guerra simulada dos jogos esportivos lhes pareceria um barbarismo, uma excitação indecorosa dos instintos inferiores.

Indagou Conway se não disputavam por causa de mulheres.

— Só muito raramente, pois não consideram decoroso tomar uma mulher desejada por outro homem.

— Mas suponhamos que um homem desejasse uma mulher a tal ponto que pouco lhe importasse o decoro?

— Então, meu caro senhor, seria o caso de o outro

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lhe ceder, e quanto à mulher, as boas maneiras lhe aconse-lhariam aceitar a situação. O senhor se admiraria de ver como uma pequena dose de cortesia por parte de todos facilita a solução dessa sorte de problemas.

Na verdade Conway, em suas visitas ao vale, encon-trava um espírito de boa vontade e contentamento que lhe causava tanto mais prazer porque, de todas as artes, sabia ser a do governo a que menos fora estudada e aperfeiçoada até o presente. Entretanto, quando ele fez uma observação elogiosa sobre este ponto, Tchang replicou:

— Sim, mas como sabe, nós acreditamos que para governar com perfeição é necessário não governar em demasia.

— E contudo não possuem nenhuma instituição democrática, como o voto, por exemplo?

— De modo algum. Nossa gente não gostaria de ser forçada a apoiar uma política qualquer, considerada abso-lutamente boa, em detrimento de outra, tida como absolu-tamente má.

Conway sorriu. Simpatizava com este ponto de vista.

Entrementes, Miss Brinklow encontrava satisfação no estudo do tibetano, Mallinson impacientava-se e resmun-gava, e Barnard persistia numa equanimidade que não dei-xaria de ser notável, ainda que fosse apenas simulada.

— Para dizer a verdade — observou Mallinson um dia —, o bom humor do sujeito está começando a mexer-me com os nervos. Compreendo que se esforce por encarar as coisas com calma, mas irritam-me esses gracejos a res-peito de tudo. Se não tomarmos cuidado com ele, dentro em pouco estará feito a alma e a vida do nosso grupo.

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Conway também se admirava da facilidade com que o americano se aclimatara. E respondeu:

— Não lhe parece que é uma felicidade para nós ele ter tão bom gênio?

— Pessoalmente, acho isso muito esquisito. Que sabe você a respeito desse cidadão, Conway? Quem é ele e o que faz?

— Não sei muito mais do que você. Disseram-me que tinha vindo da Pérsia, onde andava à procura de petró-leo. É de seu natural levar as coisas em troça. Quando foi da evacuação, custou-me convencê-lo de que era preciso vir conosco. Só se decidiu quando eu lhe disse que um passaporte americano não servia de escudo contra as balas.

— Por falar nisso, você viu alguma vez o tal passaporte?

— Provavelmente vi, mas não me lembro. Por quê? Mallinson pôs-se a rir.— Talvez não lhe pareça bem, mas a culpa não foi

minha propriamente. Além disso, dois meses de convívio neste lugar terão de pôr à mostra todos os nossos segredos, se é que os temos. Note que foi simples acaso e eu não contei nada a ninguém, está visto. Não tencionava falar nem mesmo a você, mas já que tocamos no assunto.. .

— É lógico. Mas eu desejaria saber de que se trata.— Simplesmente isto: Barnard viaja com um passa-

porte falso e o seu nome não é Barnard.Conway ergueu as sobrancelhas com um interesse

medíocre. O homem lhe era simpático até certo ponto, mas não lhe importava muito saber quem era e quem não era.

— Quem pensa você que ele possa ser, então?— É Charmers Bryant.— Ora esta! Que é que o leva a pensar semelhante

coisa?

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— Esta manhã deixou cair um livrinho de bolso e Tchang entregou-mo, pensando que era meu. Não pude deixar de ver que estava abarrotado de recortes de jornal. Alguns caíram no chão enquanto eu examinava o livrinho, e não se me dá de confessar que olhei para eles. Afinal de contas, recortes de jornais não são papéis particulares! Todos tratavam de Bryant e das diligências da polícia para encontrá-lo, e um deles traz um retrato que é Barnard em pessoa, só com a diferença de ter bigode.

— Mencionou isso a Barnard?— Não. Apenas lhe entreguei o objeto, sem nenhum

comentário.— De modo que tudo se baseia numa fotografia de

jornal, identificada por você?— Sim, até agora é tudo.— Creio que eu não me atreveria a condenar alguém,

baseado em tão pouco. Naturalmente, é possível que você tenha razão. Não afirmo que ele não possa ser Bryant, tanto mais que esse fato explicaria a sua satisfação em per-manecer aqui; com efeito, onde encontrar melhor esconde-rijo?

Mallinson pareceu levemente decepcionado com a serenidade do companheiro ante uma notícia que ele julga-va sensacional.

— Então, que é que você pretende fazer a respeito? Refletiu Conway um instante e respondeu:— Não sei exatamente o que se possa fazer. Talvez

nada. Em fim de contas, que se poderá fazer num caso como este?

— Mas, com o demônio, se ele é o tal Bryant. . .— Meu caro Mallinson, mesmo que se tratasse de

Nero em pessoa, que importância teria isso no momento? Santo ou bandido, temos de suportar-lhe a companhia

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enquanto continuarmos aqui, e nada adianta tomar atitu-des. Se estivéssemos em Baskul, eu procuraria comunicar-me com Delhi a seu respeito. Seria um simples dever público. Mas presentemente creio poder dizer que não estou de serviço.

— Não lhe parece que há nisso certa dose de incúria?

— Pouco me importa que haja, contanto que a atitude seja razoável.

— Deseja que eu esqueça o que descobri?— Provavelmente isso não lhe é possível, mas penso

que devemos guardar segredo sobre o fato. Não em consi-deração a Barnard ou Bryant, ou quem quer que seja, mas para evitarmos uma situação extremamente embaraçosa, quando nos formos daqui.

— Quer dizer que devemos deixá-lo em liberdade?— Bem, eu me exprimiria de outro modo: acho que

devemos dar a outro o prazer de prendê-lo. Quando se viveu em boas relações com um homem por alguns meses, parece um tanto absurdo metê-lo em algemas tão depressa se muda de lugar.

— Não penso assim. Esse homem não passa de um ladrão em grande escala. Conheço muitas pessoas que foram roubadas por ele.

Conway deu de ombros. Não deixava de admirar o simples código de Mallinson, todo em preto e branco. Essa ética de escola pública pode ser rudimentar, mas ao menos é direita e franca. Quando um indivíduo viola as leis, é obrigação de todos os cidadãos que as respeitam deitar-lhe a mão e entregá-lo à justiça — sempre na hipótese de se tratar de uma dessas leis que não é permitido violar. E a lei relativa a cheques sem fundo, ações e balanços falsos é sem dúvida uma delas. Bryant a havia transgredido, e se

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bem que Conway não tivesse tomado grande interesse no caso, tinha a impressão de que fora dos mais escabrosos. Tudo que sabia era que a falência da gigantesca empresa Bryant em Nova York causara prejuízos que montavam a cerca de cem milhões de dólares — uma quebra-recorde, mesmo num país onde pululam os recordes. De uma maneira ou de outra (Conway não era entendido em finanças), Bryant fizera trampolinagens em Wall Street e o resultado fora uma ordem de prisão contra ele, sua fuga para a Europa e pedidos de extradição dirigidos a meia dúzia de países.

— Bem, se você quer ouvir o meu conselho — disse Conway finalmente —, não diga nada por enquanto. Não em benefício dele, mas no nosso. Em todo caso, faça como entender, contanto que não esqueça a possibilidade de não ser ele o homem, afinal.

Mas era, e a revelação veio naquela mesma noite após o jantar. Tchang se retirara. Miss Brinklow voltara à sua gramática tibetana e os outros três exilados se defronta-vam, fumando charutos e sorvendo cafezinhos. Não fosse a amabilidade e o tato do chinês, a conversação teria esmo-recido mais de uma vez durante a refeição. Ausente ele, penoso silêncio sobreviera. Pela primeira vez não estava Barnard para gracejos. Bem sabia Conway que não era possível a Mallinson tratar o americano como se nada hou-vera acontecido, e era do mesmo modo evidente que Bar-nard percebia ter-se passado alguma coisa.

Súbito, o americano jogou fora o charuto e disse:— Suponho que os senhores saibam quem sou. Ficou Mallinson vermelho como uma virgem, mas

Conway respondeu com a mesma serenidade:— Sim, Mallinson e eu julgamos saber.— Imperdoável descuido, ter deixado cair aqueles

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recortes.— Todos nós estamos sujeitos a cometer descuidos.— Ainda bem que toma a coisa com calma!Houve novo silêncio, quebrado afinal pela voz aguda

de Miss Brinklow.— Quanto a mim, não sei quem é o senhor, Mr.

Barnard, mas devo dizer que suspeitei que estivesse viajando incógnito.

Miraram-na os outros interrogativamente e ela conti-nuou:

— Lembro-me de que, quando Mr. Conway disse que os nossos nomes iriam aparecer nos jornais, o senhor respondeu que isso não o afetava nem um pouco. Refleti então que com certeza Barnard não era o seu verdadeiro nome.

O aventureiro sorriu vagarosamente enquanto acendia outro charuto.

— A senhora — disse afinal — não só mostra ser um bom detetive, como também encontrou um termo verdadeiramente polido para designar a minha situação presente. Estou viajando incógnito. A senhora o disse, e é verdade. Quanto aos amigos, não lamento, em certo senti-do, que tenham descoberto tudo. Enquanto não descon-fiavam de nada as coisas marchavam bem, mas em vista da situação em que nos achamos seria falta de camaradagem engrimpar-me com os senhores agora. Foram tão gentis para mim que não lhes quero dar incômodos. Pelo modo, os nossos destinos estão ligados por algum tempo, e con-vém que cada um faça o possível para ajudar os outros. Quanto ao que vier a acontecer depois, podemos deixar que tudo se resolva por si mesmo, acho eu.

Tudo isto se afigurou a Conway tão altamente sensato que passou a olhar Barnard com muito mais interesse e até

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— embora parecesse talvez estranho em tal momento — com um toque de genuína admiração. Era curioso pensar que esse homem, grande e corpulento, bem-humorado, de expressão paternal, era o mais formidável escroque do mundo. Mais aparentava o tipo de indivíduo que, com certa instrução, daria um excelente diretor de liceu. Sob a sua jovialidade vislumbravam-se os sinais de tensão nervosa e recentes preocupações, mas nem por isso ela parecia forçada. Evidentemente, era o que o mundo chama "um bom sujeito" — cordeiro por natureza, e só por profissão um lobo.

— Sim, penso que é o melhor que temos a fazer — disse Conway.

Barnard pôs-se a rir. Era como se possuísse reservas mais profundas de bom humor, às quais somente agora pudesse dar vazão.

— Caramba, que coisa extraordinária! — exclamou, estirando-se na cadeira. — Refiro-me a toda essa história. Atravessei a Europa, passei pela Turquia e pela Pérsia e vim parar naquele buraco. E todo o tempo com a polícia no meu encalço, notem bem... por pouco não me apanha-ram em Viena! A princípio é bastante divertido estar sendo perseguido, mas cansa os nervos depois de algum tempo. Afinal descansei um pouco em Baskul, e ali pensei que ficaria em paz no meio da revolução.

— Por certo que ficaria — aparteou Conway, com um sorriso —, se não fossem as balas.

— Sim, e foi isso que acabou por me inquietar. Podem crer que foi uma escolha bem difícil: ficar em Bas-kul e correr o risco de levar chumbo, ou embarcar num avião do seu governo e encontrar um par de algemas à minha espera, na chegada. Não tinha muita vontade de fazer nem uma nem outra coisa.

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— Sim, lembro-me de que não queria vir. Barnard tornou a rir.— Bem, pois foi assim, e como bem podem imaginar,

não me contrariou muito o acidente que nos trouxe aqui. Esse vôo continua a ser um mistério de primeira ordem, mas para mim, falando pessoalmente, não poderia haver coisa melhor. Não tenho o hábito de me queixar quando estou satisfeito.

O sorriso de Conway fez-se mais acentuadamente cordial.

— Uma atitude muito razoável, se bem que me pare-ça ter exagerado um pouco. Estávamos começando a ficar intrigados com o seu contentamento excessivo.

— Estava de fato contente. Este lugar não é mau, uma vez que a gente se acostume a ele. É verdade que o ar é um pouco picante a princípio, mas não se pode ter tudo como se quer. E, para variar, é muito sossegado. Todos os outonos vou fazer uma cura de repouso em Palm Beach, mas a gente não encontra descanso nesses lugares. Conti-nua-se na mesma roda-viva. Ao passo que estou certo de ter achado aqui justamente o que o médico me aconse-lhava, e me sinto radiante. Mudei de regime, não me preo-cupo com as cotações da bolsa e o meu corretor não me pode chamar ao telefone.

— Bem que ele deve desejar fazê-lo!— Não duvido. Há de estar com uma boa bota para

descalçar!Disse isto com tanta simplicidade que Conway não

pôde deixar de responder:— Não sou muito entendido nisso que se chama a

alta finança.Era uma deixa, e o americano a apanhou sem

relutância.

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— A alta finança — disse ele — é quase tudo farolagem.

— É o que tenho suspeitado muitas vezes.— Olhe, Conway, dir-lhe-ei como é a coisa. Um

camarada continua fazendo o que fez durante anos e o que muitos outros também fazem, quando de repente o merca-do se vira contra ele. Não pode remediar a coisa, só lhe resta ganhar coragem e esperar pela volta. Mas desta vez a volta não vem na forma do costume, e depois de perder dez milhões de dólares ele lê num jornal que um professor sueco é de opinião que o fim do mundo está próximo. Agora eu pergunto, você acredita que uma coisa dessas ajude o mercado? É claro que o abalo é grande, mas tam-bém não pode ser evitado. E lá fica o sujeito até que venha a polícia... se ele esperar tanto tempo. Eu não esperei.

— Quer dizer, então, que foi simples má sorte?— Bem, o fato é que minha perda foi grande.— E perdeu também o dinheiro de muita gente —

atalhou Mallinson, com aspereza.— Sim. E por quê? Porque todos eles queriam ganhar

dinheiro sem trabalho e não tinham inteligência bastante para fazê-lo por si mesmos.

— Não concordo. É porque confiavam no senhor e acreditavam que o dinheiro deles estivesse seguro.

— Pois bem, não estava. Nem podia estar. Não existe segurança em parte alguma, e os que pensavam assim não passavam de imbecis, procurando abrigar-se de um tufão debaixo de um guarda-chuva.

Conway interveio, conciliador:— Todos nós concedemos que o senhor não podia

evitar o tufão.— Nem sequer pude fingir que lutava, da mesma

forma como você não pôde opor-se ao que aconteceu de-

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pois que deixamos Baskul. Foi o que me veio ao pensa-mento quando o vi conservar toda a calma no aeroplano, enquanto aqui o Mallinson não se podia conter. Como sabia que nada podia fazer, não se preocupou mais. Foi exatamente o que se deu comigo quando veio o crash.

— Isto é um contra-senso! — gritou Mallinson. — Qualquer pessoa pode evitar de lograr outra. Basta obede-cer às regras do jogo.

— É difícil obedecer às regras do jogo quando ele vai por água abaixo. Além disso, não há ninguém que conheça tais regras. Nem mesmo todos os professores de Harvard e de Yale lhe poderiam dizer quais são elas.

Mallinson replicou desdenhosamente:— Estou-me referindo às simples normas que regem

a conduta na vida ordinária.— Nesse caso, acho que a conduta ordinária não se

aplica à direção de trustes.Conway apressou-se a intervir.— É melhor não discutir. Quanto a mim, não levo a

mal que faça comparação entre as suas ocupações e as minhas. Na verdade, ultimamente temos voado às cegas, e isso em todos os sentidos. Mas agora estamos aqui, e é o que importa por enquanto. Concordo com o senhor em que não temos muito motivo de queixa. Pensando bem, é curioso que, de quatro pessoas reunidas pelo acaso e seqüestradas a mil milhas de distância, três acabem por encontrar alguma satisfação na aventura. O senhor precisava de uma cura de repouso e de um refúgio; Miss Brinklow sente-se chamada a evangelizar os pagãos do Tibete.

— E qual a terceira pessoa? — atalhou Mallinson. — Espero que não seja eu.

— Incluí a mim próprio — respondeu Conway —, e

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o meu motivo é, talvez, o mais simples de todos: estou gostando daqui.

Pouco tempo depois foi fazer o seu passeio noturno e solitário, que se tornara habitual, ao longo do terraço ou junto ao lago dos lotos. Sentia extraordinário bem-estar fí-sico e mental. Era a pura verdade: ele gostava de Shangri-Lá. A atmosfera ali o aquietava, ao passo que o mistério o estimulava e a sensação resultante era agradável. Durante os últimos dias viera aproximando-se gradualmente, às tentativas, de uma conclusão a respeito do mosteiro e dos habitantes do vale. Ela lhe trabalhava ainda o espírito, sem de nenhum modo o perturbar. Era qual um matemático às voltas com um problema abstruso: preocupava-se com este, mas de um modo calmo e impessoal.

Com relação a Bryant, a quem resolvera continuar a considerar como Barnard e chamá-lo por este nome, a questão de suas aventuras e de sua personalidade fora rele-gada sem demora ao segundo plano, exceto esta frase pronunciada por ele: "o jogo vai por água abaixo". Recordando-a, Conway lhe conferia uma significação mais ampla do que lhe dera provavelmente o americano. Não era verdadeira somente em relação aos bancos e trustes da América do Norte. Também se ajustava a Baskul, a Delhi e a Londres, às guerras e ao desenvolvimento do império, aos consulados, às concessões comerciais e aos jantares de recepção nos palácios de governo. Havia um relento de decomposição naquele mundo distante e talvez a queda de Barnard houvesse sido, apenas, mais bem dramatizada do que a sua. O jogo, indubitavelmente, ia por água abaixo, mas por sorte os jogadores não eram, de ordinário, respon-sabilizados pelas peças que não conseguiam salvar. Nesse ponto, os financeiros eram mais infelizes.

Aqui em Sangri-Lá, porém, tudo estava mergulhado

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em profunda tranqüilidade. No céu sem lua as estrelas cintilavam em massa e um pálido clarão azulado nimbava o cume do Karakal. Veio então ao espírito de Conway que, se aparecessem carregadores para o levarem imediatamente dali, ele não ficaria de todo satisfeito com a supressão da espera. E nem Barnard tampouco, pensou sorrindo interiormente. Na verdade, era divertido; e de súbito descobriu que ainda gostava de Barnard, ou não acharia divertido aquilo. De certo modo, a perda de cem milhões de dólares era demasiado grande para justificar a prisão de um homem; seria muito mais fácil se ele tivesse simplesmente roubado um relógio. E afinal de contas, como era possível a um homem perder cem milhões de dólares? Talvez apenas no sentido em que um ministro podia anunciar jovialmente que "o haviam presenteado com a Índia".

Em seguida, tornou a pensar na volta. Imaginou a longa e dura viagem, e a chegada eventual ao bangalô de algum plantador em Sikkim ou Baltistan — momento que devia ser de delirante alegria, mas que provavelmente seria também de desencanto. Viriam então os primeiros apertos de mão e as primeiras apresentações; os primeiros goles na varanda do clube, as faces bronzeadas cercando-o com expressões de mal dissimulada incredulidade. Em Delhi teria sem dúvida entrevistas com o vice-rei e com o comandante-chefe; salamaleques de criados com turbantes; intermináveis relatórios que deveria preparar e remeter. Talvez até voltasse à Inglaterra e para Whitehall; jogos no convés de um paquete da "Peninsular and Oriental"; a mão flácida de um subsecretário; entrevistas à imprensa; vozes agudas, zombeteiras, sensuais, de mulheres perguntando: "É verdade mesmo, Mr. Conway, que esteve no Tibete?..."

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Duma coisa não tinha dúvida: com a narrativa da aventura, teria jantares garantidos ao menos para toda uma estação. Mas... e isso lhe agradaria? Lembrou-se da frase escrita por Gordon nos seus últimos dias em Cartum: Preferiria viver como dervixe no séquito do Mahdi a ter de sair para jantar todas as noites em Londres". A aversão de Conway era menos definida — previa, apenas, que contar a sua his-tória no pretérito não só lhe causaria aborrecimento como o entristeceria um pouco.

De repente, no meio das suas reflexões, sentiu a apro-ximação de Tchang.

— Meu senhor — começou este, com um leve tom de alvoroço na voz baixa —, estou orgulhoso por lhe trazer uma notícia importante. . .

"De modo que os carregadores chegaram mesmo antes do tempo", foi o primeiro pensamento de Conway. Era estranho que ainda há pouco estivesse pensando nisso. Sentiu o choque desagradável para o qual se havia preparado.

— Bem? —fez ele.Tchang estava tão agitado quanto lhe era possível.— Meu caro senhor, eu o felicito. Sinto-me feliz ao

pensar que sou até certo ponto responsável pelo aconteci-mento . . . Foi depois de minhas constantes recomendações que o Lama Superior tomou esta decisão. Ele deseja vê-lo imediatamente.

Conway fixou nele um olhar ironicamente interrogativo.

— Está sendo menos coerente que de costume, Tchang. O que aconteceu?

— O Superior mandou chamá-lo.— Entendi. Mas por que tanta agitação?

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— Porque é uma coisa extraordinária e sem prece-dentes. Até eu, que procurava apressar o encontro, não esperava que se desse tão já. Ainda não faz quinze dias que chegou, e está para ser recebido por ele! Jamais isto ocorreu tão depressa!

— Ainda estou um pouco confuso, sabe? Vou ver o seu Superior. . . isso percebo muito bem. Mas há alguma coisa mais?

— Então não é suficiente? Conway riu.— Mais que suficiente, asseguro-lhe. Não pense que

estou sendo descortês. É que me havia passado pelo espí-rito uma coisa muito diferente. . . Bem, não tem importân-cia. Naturalmente, me sentirei honrado e encantado em falar com o cavalheiro. Para quando é a entrevista?

— Para agora. Mandou-me que viesse buscá-lo.— Mas não é um pouco tarde?— Não importa. Meu caro senhor, cedo irá com-

preender muitas coisas. E permita-me acrescentar que sinto prazer em ver que esse intervalo, sempre tão incômodo, tenha chegado a termo. Acredite que me foi penoso ter de lhe recusar informações tantas vezes. . . extremamente penoso. Rejubilo-me por saber que de agora em diante essas desagradáveis reticências se tornarão desnecessárias.

— Você é um homem engraçado, Tchang — respon-deu Conway. — Mas vamos, não percamos mais tempo. Estou pronto e agradeço a sua delicadeza. Mostre-me o caminho.

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CAPÍTULO VII

Guardava Conway uma aparência de calma, porém, no fundo, sentia uma ansiedade crescente enquanto acom-panhava Tchang pelos pátios desertos. Caso tivessem algum sentido as palavras do chinês, devia estar às portas de uma revelação. Breve iria saber se a sua teoria, ainda incompleta, era menos absurda do que parecia.

À parte isto, não restava dúvida de que a entrevista prometia ser interessante. No seu tempo tivera encontros com vários potentados originais. Sentira por eles um inte-resse desprendido e era, em geral, arguto nas suas aprecia-ções. Isento de embaraço, tinha a valiosa habilidade de dizer gentilezas em idiomas que conhecia muito pouco. No caso presente, porém, talvez o seu papel fosse apenas de ouvinte. Notou que Tchang o estava conduzindo através de salas que ainda não tinha visto, todas elas encantadoras à luz fosca das lanternas. Em seguida, uma escada de caracol os levou a uma porta em que o chinês bateu. Foi aberta por um tibetano, com tal presteza que Conway suspeitou estivesse o homem atrás dela, esperando-os. Essa parte do mosteiro, pertencente a um andar superior, não revelava menos bom gosto que o resto do edifício, mas o que mais a caracterizava era a atmosfera quente e seca ao extremo, como se todas as janelas se achassem hermeticamente fechadas e algum aparelho de aquecimento interno esti-vesse funcionando a toda pressão. A falta de ar aumentava à medida que avançavam, até que por fim Tchang se

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deteve diante de uma porta que, a julgar pela sensação física, bem poderia dar acesso a um banho turco.

— O Superior o receberá sozinho — murmurou Tchang.

Tendo aberto a porta para que Conway entrasse, fechou-a depois tão silenciosamente que a sua retirada foi quase imperceptível. Deteve-se Conway hesitante, respi-rando uma atmosfera que não só era abafada mas também sombria, de forma que foram necessários alguns segundos para que os seus olhos se habituassem à escuridão. Foi então distinguindo, pouco a pouco, uma sala baixa, reves-tida de cortinas escuras e mobiliada simplesmente de mesa e cadeiras. Numa destas estava sentada uma pequena, páli-da e enrugada figura, imóvel na sombra, dando a impres-são de um quadro antigo e descolorido, em claro-escuro. Se fosse possível imaginar uma presença destituída de realidade, ali estaria ela, revestida de uma dignidade clássica que era mais emanação do que atributo. Conway notou com curiosidade a sua própria percepção intensa de tudo aquilo e perguntou consigo se seria digna de crédito, ou simples reação ao ambiente penumbroso e quente. Dava-lhe vertigens a mirada daqueles olhos antigos. Deu alguns passos à frente e estacou. O ocupante da cadeira tornou-se agora menos vago. conquanto não parecesse muito mais concreto. Era um velhinho vestido à chinesa, e as amplas pregas da túnica lhe envolviam frouxamente o corpo exíguo e emaciado.

— É o senhor Conway? — murmurou em excelente inglês.

A voz era agradavelmente acariciadora e tocada de uma melancolia suave que encheu Conway de estranha

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beatitude. . . embora o cético que havia nele estivesse novamente inclinado a atribuí-la à temperatura do aposento.

— Sou — respondeu. A voz continuou:— É um prazer conhecê-lo pessoalmente, Mr. Con-

way. Mandei chamá-lo porque pensei que seria bom conversarmos um pouco. Tenha a bondade de sentar-se ao meu lado e nada receie. Sou um velho e nenhum mal posso causar a ninguém.

— É uma assinalada honra ser recebido pelo senhor — respondeu Conway.

— Agradeço-lhe, meu caro Conway. Chamá-lo-ei assim, de acordo com o costume inglês. Este momento, como já disse, é de grande prazer para mim. Tenho a vista fraca, mas, acredite-me, sou capaz de vê-lo em espírito tão bem como se o fizesse com os olhos. Espero que se tenha sentido bem em Shangri-Lá desde a sua chegada.

— Extremamente bem.— Isso me alegra. Tchang fez o melhor que pôde

pelos senhores, sem dúvida. Para ele também tem sido um grande prazer. Disse-me que o senhor lhe faz muitas per-guntas sobre a nossa comunidade e sua vida.

— De fato, essas coisas me interessam.— Pois, se pode dedicar-me um pouco de tempo, gos-

tarei de lhe dar uma breve notícia desta instituição.— Nada me agradaria mais.— Era o que eu pensava, e contava com isso. . . Mas

em primeiro lugar antes de começarmos a discorrer. . .Fez um levíssimo aceno com a mão e imediatamente,

graças a um sistema de comunicações que ficou sendo um mistério para Conway, entrou um criado a fim de preparar o elegante ritual do chá. Numa bandeja de laca foram

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colocadas as taças de porcelana fina como casca de ovo, contendo um líquido quase incolor. Conway, que conhecia a cerimônia, acompanhou-a com ar apreciativo.

— Então está ao corrente dos nossos costumes? — tornou a voz.

Obedecendo a um impulso que não pôde analisar nem desejava reprimir, respondeu o hóspede:

— Vivi alguns anos na China.— Não falou nisso a Tchang.— Não.— A que devo, então, a honra que me faz? Raramente se embaraçava Conway na explanação de

seus motivos de proceder, mas desta vez não lhe ocorria razão alguma. Por fim replicou:

— Para ser sincero, não tenho a menor idéia, a não ser que desejava dizê-lo ao senhor.

— A melhor das razões, certamente, para aqueles que se vão tornar amigos. . . Agora diga-me, não acha delicado este aroma? Os chás que se colhem na China são variados e ricos em fragrância, mas na minha opinião este, que é um produto especial do nosso vale, não lhes fica atrás.

Conway levou a taça aos lábios e provou. O sabor era tênue, sutil e recôndito, o fantasma de um perfume a pairar sobre a língua.

— É realmente delicioso, e também completamente novo para mim.

— Sim, como grande número de ervas do nosso vale, é único e precioso. Naturalmente, deve saborear-se com muito vagar, não só como sinal de reverência e carinho, mas para que se extraia dele todo o prazer que comporta. É uma lição famosa que aprendemos de Kou Kai Tchou, que viveu há cerca de quinze séculos. Quando chupava cana-

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de-açúcar, sempre hesitava em chegar à medula suculenta, porque, como explicava, "queria penetrar gradualmente na região das delícias". Já estudou algum dos grandes clássi-cos chineses?

Respondeu Conway que conhecia ligeiramente uns poucos. Sabia que essa conversação alusiva continuaria, de acordo com a etiqueta, até haverem terminado de beber o chá; mas isto estava longe de o irritar, não obstante sua grande curiosidade de ouvir a história de Shangri-Lá. Havia nele, sem dúvida, um pouco da sensibilidade relu-tante de Kou Kai Tchou.

Finalmente foi dado o sinal, o criado surgiu e desapa-receu de modo tão misterioso como da primeira vez, e sem mais preâmbulos o Lama Superior de Shangri-Lá pôs-se a falar:

— Deve estar familiarizado, meu caro Conway, com a história do Tibete em suas linhas gerais. Fui informado por Tchang de que fez largo uso da nossa biblioteca, e não duvido que tenha estudado os escassos mas muito interes-santes anais destas regiões. Deve ter verificado, pelo menos, que o cristianismo nestoriano esteve muito difun-dido na Ásia durante a Idade Média e sua memória persis-tiu muito tempo após sua queda. No século XVII deu-se uma revivescência cristã, nascida na própria Roma e tendo por instrumentos aqueles heróicos missionários jesuítas, cujas viagens, se me permite a observação, formam uma leitura muito mais interessante do que as de São Paulo. Aos poucos a Igreja foi-se propagando sobre uma área imensa, e há um fato notável, ignorado por muitos euro-peus de hoje: durante trinta e oito anos existiu uma missão cristã em Lassa. Não foi entretanto de Lassa, mas de Pequim, que no ano de 1719 partiram quatro frades capu-chinhos em busca dos remanescentes da seita nestoriana

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que porventura ainda existissem no interior do continente. "Viajaram muitos meses na direção de sudoeste, passando por Lanchow e pelo Koho-Nor, lutando com dificuldades que o senhor bem pode imaginar. Três deles morreram em caminho, e o quarto não estava longe de seguir a mesma sorte quando, por acaso, deu com o desfiladeiro que até hoje é, praticamente, a única via de acesso ao vale da Lua Azul. Aqui, com grande alegria e surpresa, encontrou uma população amável e próspera que se apressou a aplicar o que sempre considerei a nossa mais antiga tradição: a hospitalidade para com os estranhos. Bem depressa recobrou a saúde e deu início à sua missão. O povo era budista, mas escutou-o de bom grado e ele obteve conside-rável êxito. Existia então nesta mesma plataforma de pedra um velho convento lamaico, mas estava em plena deca-dência física e espiritual e, como fosse aumentando a messe do capuchinho, concebeu ele a idéia de instalar no mesmo sítio magnífico um mosteiro cristão. Sob a sua fiscalização, os velhos edifícios foram reparados e em grande parte reconstruídos. Em 1734, quando contava cinqüenta e três anos de idade, ele próprio começou a viver aqui.

"Permita agora que me alongue um pouco a respeito desse homem. Chamava-se Perrault e era natural do Luxemburgo. Antes de se dedicar às missões no Extremo Oriente havia estudado em Paris, Bolonha e outras univer-sidades, e era uma espécie de erudito. Conservaram-se poucos episódios da sua mocidade — sua vida nessa época não diferia muito da de outros jovens da sua idade e profissão. Apreciava a música e as artes em geral, tinha especial aptidão para as línguas, e antes de estar seguro da sua vocação gozara todos os comuns prazeres mundanos. Era jovem quando se feriu a batalha de Malplaquet, e

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assim teve contato pessoal com os horrores da guerra e da invasão. Era robusto; durante seus primeiros anos aqui, trabalhou como qualquer outro homem, cultivando o seu jardim e aprendendo com os habitantes do vale ao mesmo tempo que lhes ensinava. Descobriu jazidas de ouro no vale, mas não o tentaram; interessava-se muito mais pelas plantas e ervas do lugar. Era humilde e de nenhum modo fanático. Censurava a poligamia, mas não via razão para invectivar o gosto que tinham pela baga do tangatse, à qual atribuíam propriedades medicinais, mas que devia sua popularidade sobretudo aos efeitos levemente narcóticos que tinha. Na verdade, o próprio Perrault tornou-se afeiçoado ao seu uso. Tinha por hábito aceitar das culturas nativas tudo o que lhe ofereciam de agradável e inofensivo, dispensando-lhes em troca os tesouros espirituais do Ocidente. Não era um asceta; apreciava as boas coisas do mundo e tinha o cuidado de ensinar aos seus conversos a arte culinária a par do catecismo. Quero que o senhor o veja como um homem sincero, trabalhador, instruído, simples e entusiasta que, sem esquecer as suas funções sacerdotais, não se desdenhava de vestir o avental de pedreiro e auxiliar na construção destas paredes que aqui vê. Foi, é claro, uma obra cheia de imensas dificuldades, e que só o seu orgulho e a sua pertinácia podiam levar a cabo. Digo orgulho, porque este foi sem dúvida o motivo dominante no princípio — o orgulho da própria fé, o qual o decidiu a mostrar que, se Gautama podia inspirar a homens a construção de um templo sobre a escarpa de Shangri-Lá, Roma não era capaz de menos.

"Mas, com o correr do tempo, era natural que esse motivo fosse cedendo lugar a outros mais serenos. Afinal, a emulação é mais própria dos espíritos jovens e Perrault, quando o mosteiro ficou completamente instalado, era já

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entrado em anos. Deve ter presente no espírito que, a rigor, o seu procedimento não fora muito regular, embora se devam fazer certas concessões a uma pessoa cujos superio-res eclesiásticos se acham tão longe que a distância deve ser medida em anos de viagem. Mas o povo do vale e os próprios monges não tinham apreensões: amavam-no e obedeciam-lhe, e à medida que passavam os anos iam aprendendo a venerá-lo. Costumava enviar relatórios periódicos ao bispo de Pequim, mas muitos não chegaram até ele, e como presumia que os mensageiros tivessem sucumbido aos perigos da viagem, Perrault foi-se tornando avesso a que eles arriscassem suas vidas e nos meados do século cessou de todo a prática. Algumas de suas primeiras mensagens, entretanto, deviam ter chegado ao destino, e sem dúvida surgiram suspeitas acerca da sua atividade, pois no ano de 1769 um desconhecido trouxe uma carta escrita doze anos antes e chamando Perrault a Roma.

"Se o chamado chegasse sem atraso, encontrá-lo-ia já um ancião de mais de setenta anos; sucedeu assim que, com a demora, contava oitenta e nove quando o recebeu. Não era possível pensar numa longa viagem por monta-nhas e planaltos; jamais teria resistido às rajadas ferozes e aos frios terríveis desses desertos. Por conseguinte, enviou uma resposta cortês explicando a situação, mas ignora-se se a sua mensagem chegou a transpor as cordilheiras.

"De modo que Perrault permaneceu em Shangri-Lá, não propriamente desobedecendo às ordens superiores, mas porque lhe era materialmente impossível atendê-las. Fosse como fosse, estava muito velho e provavelmente não tardaria que a morte viesse dar cabo dele e da sua insubmissão. Por esse tempo a instituição que fundara começava a sofrer transformação sutil. Talvez fosse deplorável, mas não era realmente nada de espantar. Não

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seria lícito esperar que um homem só fosse capaz de extirpar para sempre os hábitos e tradições de uma comunidade. Não tinha companheiros ocidentais que lhe prestassem mão firme quando a sua principiava a fraquear, e talvez houvesse sido um erro instalar o mosteiro num lugar onde viviam recordações tão antigas e tão diferentes. Seria pedir demasiado. Mas não seria pedir mais ainda, esperar que um velho, que orçava pelos noventa anos, reconhecesse o seu próprio erro? Seja como for, Perrault não atinou com ele. Estava já muito velho e era feliz. Seus discípulos lhe eram dedicados, embora lhe esquecessem os ensinamentos, e os habitantes do vale o contemplavam com tão reverente afeição que ele lhes perdoava com facilidade crescente o retorno aos antigos costumes. Ainda era ativo e suas faculdades conservavam excepcional lucidez. Com a idade de noventa e oito anos iniciou o estudo dos escritos budistas que seus predecessores tinham deixado em Shangri-Lá, e era intenção sua dedicar o resto da vida à composição de um livro atacando o budismo do ponto de vista da ortodoxia. Chegou a terminar o trabalho (nós temos o manuscrito completo), mas o ataque foi muito suave, pois nesse tempo já havia atingido a conta redonda dum século, idade em que até as mais profundas animosidades estão sujeitas a extinguir-se.

"Entrementes, como deve supor, tinham morrido mui-tos de seus primitivos discípulos e, como poucos eram substituídos, o número dos que viviam sob as ordens do velho capuchinho diminuía constantemente. De oitenta que chegara a somar, baixara para vinte, depois para uma dúzia apenas, a maioria deles também muito velhos. A vida de Perrault por esse tempo tornara-se uma serena espera do fim. Estava demasiado velho para adoecer ou para mostrar-se rabujento; somente o sono eterno poderia

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reivindicá-lo agora, e ele não tinha medo. O povo do vale, com a sua bondade, fornecia-lhe alimento e roupa, e a biblioteca lhe dava ocupação. Enfraquecera bastante, mas ainda tinha energia suficiente para cumprir as mais impor-tantes cerimônias do culto. O resto do dia tranqüilo, passa-va-o com seus livros, suas recordações e os suaves êxtases do narcótico. Seu espírito permanecia tão extraordina-riamente lúcido que ainda se abalançou a começar um es-tudo sobre certas práticas místicas a que os hindus dão o nome de ioga, e que se baseiam em vários métodos espe-ciais de respiração. Para um homem de tal idade a empresa bem poderia parecer arriscada, e a verdade é que pouco tempo depois, naquele memorável ano de 1789, baixou ao vale a notícia de que Perrault estava finalmente às portas da morte.

"Ele jazia nesta sala, meu caro Conway, de onde podia ver pela janela a mancha branca que era, aos seus olhos baços, o Karakal. Mas podia ver também com os olhos do espírito; podia imaginar aquela forma nítida e incomparável que meio século antes avistara pela primeira vez. E diante dele surgia também o estranho cortejo de suas muitas experiências, os anos de viagem por desertos e montanhas, as grandes multidões das cidades ocidentais, o fragor e o brilho dos exércitos de Malborough. Seu espírito confinara-se numa calma branca como neve; estava pronto para morrer, sentia-se alegre e desejoso da morte. Mandou vir seus amigos e servidores e despediu-se de todos, depois, pediu-lhes que o deixassem só. Era nessa solidão, com o corpo a consumir-se devagarinho e o espírito em plena beatitude, que esperava entregar a alma. . . mas tal não aconteceu. Jazeu durante muitas semanas sem fala e sem movimento, e então começou a viver de novo. Tinha

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cento e oito anos."O murmúrio cessou por um momento, e a Conway,

que apenas se movia, pareceu que o Lama Superior estivera traduzindo fluentemente um remoto e secreto sonho. Após um instante, ele recomeçou:

— Como todos aqueles que esperaram longo tempo nos umbrais da morte, Perrault tinha recebido a graça de uma visão de certa importância, para trazer consigo de volta ao mundo; dessa visão falarei mais tarde. Por enquanto desejo limitar-me ao seu procedimento, que foi na verdade notável. Porque, em vez de ter uma convales-cença inativa, como seria de esperar, ele mergulhou sem demora numa rigorosa autodisciplina, curiosamente com-binada com o uso do narcótico. Narcótico e exercícios respiratórios — não parece um regime muito próprio para resistir à morte. Mas o fato é que quando morreu o último monge, em 1794, Perrault ainda vivia.

"Seria quase motivo para sorrir, se houvesse alguém em Shangri-Lá com espírito suficientemente desabusado. O engelhado capuchinho, não mais decrépito do que era doze anos atrás, perseverava na prática dum ritual secreto que ele criara. Para a gente do vale, tornou-se logo um ser misterioso, um eremita dotado de poderes sobrenaturais e vivendo solitário neste formidável penhasco. Mas persistia ainda a tradicional afeição por ele, e passaram a considerar um ato meritório e propiciador subirem a Shangri-Lá a fim de trazer-lhe um modesto presente, ou executar algum ser-viço manual que aqui fosse necessário. Perrault abençoava a todos esses peregrinos, esquecendo, talvez, que eram ovelhas perdidas e desgarradas. Porque agora o Te Deum Laudamus e o Om Mane Padme Hum eram ouvidos indistintamente em todos os templos do vale.

"À aproximação do novo século, a lenda desenvolveu-

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se num belo e fantástico folclore. Dizia-se que Perrault se tornara um deus, e que fazia milagres e que em certas noites voava ao cume do Karakal para acender uma vela diante do céu. Há sempre um pálido clarão no alto da mon-tanha durante a lua cheia, mas não preciso afirmar-lhe que nem Perrault nem outro homem qualquer jamais a escala-ram. Faço menção disto, embora pareça desnecessário por-que há numerosos testemunhos pouco fidedignos de que Perrault podia fazer, e fazia, toda sorte de coisas impossí-veis. Acreditava-se, por exemplo, que ele praticava a arte da autolevitação, de que tanto falam os estudos sobre o misticismo budista. Mas a austera verdade é que ele tentou várias experiências nesse sentido, sem nenhum êxito entre-tanto. Descobriu, contudo, que a decadência dos sentidos ordinários pode ser compensada em certa medida pelo desenvolvimento de outros; assim, adquiriu uma perícia talvez notável em telepatia, e, se bem não visasse a nenhum poder específico de curar, a verdade é que a sua simples presença auxiliava a cura em certos casos.

"O senhor há de querer saber como ele passava o tempo durante aqueles anos inauditos. A atitude de Per-rault pode ser definida dizendo-se que, como não morrera na idade normal, começou a sentir que não havia nenhum motivo conhecido para que isso acontecesse em tal ou tal época determinada do futuro. Havendo demonstrado já que era anormal, era-lhe tão fácil acreditar que a anormalidade persistiria como que ela poderia ter fim a qualquer momento. Assim sendo, começou a viver sem mais cogitar da iminência da morte, que por tanto tempo o havia preo-cupado; começou a viver como sempre desejara, sem que isso lhe tivesse sido possível senão raramente; porque con-servava no fundo, através de todas as vicissitudes, os gos-tos tranqüilos do estudioso. Sua memória era espantosa;

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parecia haver escapado às limitações físicas e atingido al-guma região superior, de imensa claridade; era como se agora fosse capaz de aprender todas as coisas com mais facilidade do que tinha em seu tempo de estudante para aprender uma coisa só. Naturalmente, não tardou a sentir falta de livros, mas trouxera alguns consigo ao vir para cá, e talvez lhe interesse saber que havia entre eles uma gramática inglesa acompanhada de um dicionário e a tradução de Montaigne por Florio. Munido desses poucos livros pôs-se a trabalhar, conseguindo dominar as dificuldades do seu idioma, e ainda possuímos na nossa biblioteca o manuscrito de um dos seus primeiros exercícios lingüísticos, uma versão para o tibetano do ensaio de Montaigne sobre a vaidade — certamente uma produção única.

Conway sorriu.— Teria interesse em vê-la algum dia, se fosse

possível.— Com o maior prazer. Era, como pode supor, uma

realização bem pouco prática, mas lembre-se de que Per-rault atingira uma idade que nada tinha de prática. Sentir-se-ia muito só sem uma tal ocupação — pelo menos até o quarto ano do século dezenove, data que assinala um importante acontecimento na história da nossa instituição. Foi então que chegou ao vale da Lua Azul, vindo da Euro-pa, outro estrangeiro. Era um jovem austríaco chamado Henschell, que lutara contra Napoleão na Itália — um moço de alta estirpe, possuidor de grande cultura e encanto pessoal. Arruinado pelas guerras, atravessara a Rússia em direção à Ásia, com a vaga intenção de refazer sua fortuna. Seria interessante saber a maneira exata como alcançara o planalto, mas ele próprio não fazia disso uma idéia muito clara. Na verdade, estava quase a morrer quando aqui che-

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gou, tal qual Perrault quase um século antes. Mais uma vez teve Shangri-Lá ocasião de dispensar a sua hospitalidade, e o estrangeiro restabeleceu-se — mas aí cessa o paralelo. Porque Perrault tinha vindo para pregar e converter, ao passo que Henschell tomou interesse imediato nas jazidas de ouro. Sua ambição principal era enriquecer e regressar à Europa o mais cedo possível.

"Mas não regressou. Aconteceu uma coisa estranha — embora tenha acontecido tantas vezes depois que talvez não devêssemos reputá-la tão estranha, afinal de contas. O vale, com a sua quietude e absoluta isenção dos cuidados mundanos, tentou-o a ir adiando sempre e sempre a parti-da, e um dia, depois de ouvir a lenda local, subiu a Shangri-Lá e teve o primeiro encontro com Perrault.

"Esse encontro foi histórico, no mais exato sentido da palavra. Se bem que já um tanto alheado de sentimentos humanos tais como a amizade e a afeição, Perrault era do-tado de uma grande benignidade, que foi para o moço como chuva para um solo abrasado. Não tentarei descrever as relações que se formaram entre ambos. Um tributava a maior adoração possível, enquanto que o outro comunicava seus conhecimentos, seus êxtases e também o sonho fantástico que se tornara para ele a única realidade restante no mundo."

Sobreveio uma pausa, e Conway falou suavemente:— Perdoe-me a interrupção, mas não compreendi bem

o final.— Eu sei — respondeu com simpatia a voz

sussurrante. — Seria na verdade notável se compreendesse. É um assunto que terei prazer em explicar antes que termine a nossa entrevista; mas por ora, se me permite, circunscrever-me-ei a coisas mais simples. Eis um pormenor que lhe interessará: foi Henschell quem iniciou

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nossas coleções de arte chinesa, fazendo também as primeiras aquisições para a biblioteca e para a sala de música. Empreendeu uma viagem memorável a Pequim e trouxe o primeiro lote no ano de 1809. Não tornou a sair do vale, mas foi ele quem concebeu o complicado e engenhoso sistema por meio do qual tem sido possível à comunidade obter do mundo exterior tudo de que necessita.

— Suponho que lhes seja fácil efetuar os pagamentos em ouro.

— Sim, temos a sorte de possuir depósitos desse metal tão estimado em outras partes do mundo.

— Tão estimado, que têm sido muito felizes por escapar a uma invasão de exploradores.

O Lama Superior inclinou a cabeça, no mais singelo gesto de assentimento.

— Esse foi sempre, meu caro Conway, o receio de Henschell. Tomava o cuidado de evitar que alguns dos carregadores que traziam livros e tesouros de arte se apro-ximassem muito das jazidas; mandava-os deixar os volu-mes a um dia de viagem daqui, para que a própria gente do vale fosse depois buscá-los. Ainda postava sentinelas que mantinham constante vigilância à entrada do desfiladeiro. Mas pouco depois lembrou-se de um método mais fácil e seguro de defesa.

— Sim?A voz de Conway era cuidadosamente velada.— O senhor compreende, não era de temer a invasão

de um exército. Isso jamais seria possível, dadas as distân-cias e a natureza da região. O mais que se poderia esperar seria o aparecimento de alguns viajantes perdidos, que, ainda que tivessem armas, chegariam provavelmente tão extenuados que não constituiriam perigo algum. Ficou pois

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decidido que, de futuro, os forasteiros poderiam vir quando bem entendessem — mas com uma condição importante.

"E, durante muitos anos, vieram com efeito tais foras-teiros. Mercadores chineses, tentados a fazer a travessia do planalto, deparavam por vezes, casualmente, com esta passagem entre tantas outras. Tibetanos nômades, desgar-rados de suas tribos, chegavam aqui de quando em quando, como animais esgotados. Todos eram bem-vindos, embora muitos só alcançassem o abrigo do vale para morrer. No ano da batalha de Waterloo três missionários ingleses, que se dirigiam a Pequim por terra, cruzaram a cordilheira por uma passagem desconhecida e tiveram a felicidade extraordinária de chegar calmamente, como se viessem em visita. Em 1820 um negociante grego, acompanhado de criados doentes e famintos, foi encontrado moribundo no sítio mais alto do desfiladeiro. Em 1822 três espanhóis, que tinham ouvido falar vagamente em ouro, chegaram aqui depois de muitos descaminhos e desilusões. E de novo, em 1830, houve um largo afluxo de gente. Dois alemães, um russo, um inglês e um sueco fizeram a perigosa travessia dos Tian-Shans, impelidos por um motivo que se foi tornando cada vez mais comum: a exploração científica. Ao tempo da sua vinda, tinha-se dado uma ligeira modificação na atitude de Shangri-Lá para com os visitantes: não eram apenas bem recebidos quando tinham a sorte de encontrar o caminho do vale, como também se tornou hábito ir ao seu encontro se se aventuravam dentro de certo raio. Tudo isso, por uma razão de que tratarei mais adiante; mas o ponto é de importância, por mostrar que a comunidade deixara de ser indiferente na sua hospitalidade. Precisava agora de novos elementos e os desejava. E, com efeito, nos anos que se seguiram aconteceu que mais de uma expedição de

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exploradores, fascinados pelo primeiro e distante vislumbre do Karakal, encontrou mensageiros que lhes transmitiam cordial convite raras vezes recusado.

"Durante esse tempo o mosteiro foi adquirindo muitas de suas atuais características. Devo acentuar que Henschell era excepcionalmente capaz e talentoso, e que o Shangri-Lá de hoje lhe deve tanto quanto ao seu fundador. Sim, tanto ou mais, penso muitas vezes. Porque foi ele a mão firme, embora suave, de que toda instituição necessita em certa fase do seu desenvolvimento, e a perda desse homem teria sido irreparável se não houvesse completado a sua ta-refa quase sobre-humana antes de morrer."

Conway alçou a cabeça, mais para ecoar esta última palavra do que para interrogar:

— Morreu!— Sim. Foi muito repentino. Mataram-no. Isso acon-

teceu no ano da revolta dos cipaios. Pouco antes da sua morte um artista chinês desenhou-lhe o retrato, e posso mostrar-lho agora — está na sala.

Fez novamente aquele leve gesto de mão, e uma vez mais entrou o criado. Como um espectador hipnotizado, Conway viu o homem afastar uma cortinazinha no fundo da sala e acender uma lanterna que ficou a oscilar no meio das sombras. Depois ouviu o murmúrio que o convidava a aproximar-se — o murmúrio que já se lhe tornara música familiar.

Levantou-se, tropeçando, e caminhou para o trêmulo círculo de luz. O desenho era pequeno, pouco mais que uma miniatura em tintas coloridas, mas o artista conse-guira dar aos tons de carne uma delicadeza de figura de cera. As feições eram de grande beleza, quase femininas, e Conway sentiu-se fortemente atraído por elas, não obstante as barreiras do tempo, da morte e do artifício. O mais

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estranho de tudo, porém, era uma particularidade que ele só notou depois da primeira arfada de admiração: o rosto era o de um homem jovem.

Afastando-se um pouco, tartamudeou:— Mas... o senhor tinha dito... que esse retrato foi

feito pouco antes da morte dele?— Sim. Está muito parecido. — Mas, se ele morreu no ano que disse. . .— Morreu.— E veio para cá em 1803, segundo contou, quando

era jovem?— Sim.Esteve Conway um momento sem falar. Fez então um

esforço e perguntou:— E morreu assassinado, como ia dizendo?— Sim. Foi ferido a bala por um inglês, poucas

semanas após a chegada deste a Shangri-Lá. Era um dos tais exploradores.

— E qual foi a causa?— Houve um desentendimento a respeito de certos

carregadores. Henschell acabava de informá-lo sobre a importante condição a que estava sujeita a nossa hospitali-dade. É uma missão algo difícil e desde então, a despeito da minha debilidade, vejo-me obrigado a cumpri-la pessoalmente.

O Lama Superior fez outra pausa mais longa, e havia um quê de interrogação no seu silêncio. Finalmente prosseguiu:

— Talvez, meu caro Conway, esteja perguntando a si mesmo qual poderá ser essa condição.

Conway respondeu pausadamente e em voz baixa:— Penso que já adivinhei.— Deveras? E, depois de ter ouvido esta minha longa

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e curiosa história, não adivinha também outra coisa?Sentiu-se Conway aturdido enquanto procurava uma

resposta. A sala era agora um remoinho de sombras, tendo no centro aquele ancião benevolente. Escutara a narrativa com uma atenção que o impedira, talvez, de perceber tudo o que ela implicava. Agora que procurava uma expressão adequada, mergulhava em assombro e a certeza que se ia concretizando no seu espírito relutava em manifestar-se por palavras.

— Parece impossível — balbuciou. — E contudo, não posso deixar de pensar nisso. . . é espantoso, extraordinário... de todo incrível. . . e todavia não está absolutamente fora da minha capacidade de acreditar. . .

— O que, meu filho?E Conway respondeu, sacudido por uma emoção para

a qual não encontrava nenhum motivo e que não procurava ocultar:

— Que o senhor ainda está vivo, Padre Perrault!

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CAPÍTULO VIII

Seguiu-se um silêncio obrigatório, em razão de ter o Lama Superior pedido mais chá. Conway não estranhou isto, pois devia ser considerável a fadiga causada por tão longa narrativa. Ele próprio se sentia grato por esse inter-valo de repouso. Compreendia que ele era desejável sob todos os pontos de vista, inclusive o artístico; os sorvos de chá, com o seu acompanhamento de cortesias convencio-nalmente improvisadas, preenchiam a mesma função da cadência na música. Esta reflexão fez surgir (a não ser que se tratasse de mera coincidência) um curioso exemplo dos poderes telepáticos do Lama Superior, pois este começou imediatamente a falar de música, dizendo alegrar-se com o fato de os gostos musicais de Conway não ficarem de todo insatisfeitos em Shangri-Lá. Respondeu Conway com ade-quada polidez e mencionou a sua surpresa por ver que a comunidade possuía tão rica coleção de compositores europeus. O elogio foi agradecido entre vagarosos sorvos de chá.

— Ah! meu caro Conway, temos a fortuna de contar entre nós um músico talentoso — foi mesmo aluno de Chopin —, e somos felizes em lhe confiar a direção do nosso salão de música. Precisa conhecê-lo.

— Estimaria muito. A propósito, disse-me Tchang que o seu compositor ocidental preferido é Mozart.

— É verdade. Mozart possui uma elegância austera que muito nos satisfaz. Constrói uma casa que não é

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demasiado grande nem demasiado pequena, e a mobília com um bom gosto perfeito.

Prosseguiu a troca de comentários até que vieram tirar a mesa. Já então se achava Conway em estado de observar calmamente:

— De modo que, para voltar à nossa conversa ante-rior, o senhor pretende reter-nos aqui? Esta, suponho, é a condição importante e invariável a que se referiu?

— Sua suposição é certa, meu filho.— E vamos realmente ficar aqui para sempre?— Preferiria empregar o seu excelente idiomatismo

inglês, dizendo que todos nós permanecemos aqui for good, para o bem.

— O que me intriga é o fato de, entre todos os habi-tantes da Terra, termos sido nós quatro os escolhidos.

Voltando à sua maneira anterior, mais discursiva, res-pondeu o Superior:

— É uma história intricada, como verá se se der ao trabalho de ouvi-la. Deve saber que sempre procuramos, tanto quanto possível, manter o nosso número por meio de um recrutamento constante — pois que, além de outros motivos, é agradável ter entre nós pessoas de diversas ida-des e representativas de diferentes épocas. Infelizmente, a partir da última guerra européia e da revolução russa, as viagens ao Tibete e as explorações desta parte do globo foram quase completamente interrompidas. Com efeito, nosso último visitante, um japonês, chegou em 1912 e não foi, para ser franco, uma aquisição muito valiosa. Compreende, meu caro Conway, nós não somos impostores nem charlatães. Não damos nem podemos dar garantias de êxito. Alguns dos nossos visitantes não obtêm nenhum beneficio com sua permanência aqui. Outros somente alcançam o que se pode chamar uma

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idade normalmente avançada e morrem em conseqüência de algum mal insignificante. Descobrimos que, de um modo geral, os tibetanos, por estarem habituados tanto à altitude como a outras condições, são muito menos sensíveis do que os indivíduos de outras raças. É uma gente encantadora, e admitimos muitos deles, mas duvido que ultrapassem, a não ser bem poucos, a idade de cem anos. Os chineses são um pouco superiores, mas mesmo entre eles há uma porcentagem elevada de fracassos. Os nossos melhores objetos de experiência são os nórdicos e os latinos da Europa; talvez os americanos não fossem menos adaptáveis, e considero uma grande ventura termos finalmente entre nós, na pessoa de um de seus companheiros, um cidadão daquele país. Mas devo prosseguir na resposta à sua pergunta. Como vinha explanando, a situação era esta: havia já três décadas que não chegava nenhum visitante; e, como durante esse tempo haviam ocorrido muitos falecimentos, criou-se um problema. Entretanto, poucos anos faz, um dos nossos apresentou uma idéia original. Era um moço, natural do vale, merecedor de absoluta confiança e completamente identificado com os nossos ideais. Mas, como a todos os habitantes do vale, privava-o a própria natureza das vanta-gens concedidas aos que vêm de outras terras. Ofereceu-se para nos deixar, demandando algum país vizinho, a fim de angariar novos colegas por um processo que teria sido impraticável noutra época. Era a muitos respeitos uma idéia revolucionária, mas obteve o nosso consentimento, após as devidas deliberações. Porque, como deve com-preender, nós também, em Shangri-Lá, devemos acertar o passo com a época.

— Quer dizer então que ele foi enviado de propósito para trazer alguém pelo ar?

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— Bem, como vê, era um rapaz inteligente e de iniciativa e nós depositávamos nele grande confiança. Foi idéia dele e nós lhe demos inteira liberdade de ação. A única coisa que sabíamos de maneira definida era que o seu plano compreendia um período de instrução numa es-cola americana de aviação.

— Mas como podia arranjar-se para executar o resto do plano? Foi só por acaso que encontrou aquele avião em Baskul.

— Tem razão, meu caro Conway. Muitas coisas acontecem por acaso. Mas sucedeu, afinal de contas, justa-mente o que Talu esperava. Se não tivesse encontrado essa oportunidade, encontraria outra dentro de um ano ou dois — ou talvez nunca, está claro. Confesso que me surpreendi quando as sentinelas trouxeram a notícia da sua descida no planalto. O progresso da aviação tem sido rápido, mas a mim me parecia que teria de progredir ainda muito mais, antes que uma máquina comum pudesse voar sobre as nos-sas montanhas.

— Não era um avião comum. Era um tipo especial, construído para voar sobre montanhas.

— Outra coincidência? Nosso jovem amigo tinha realmente boa estrela. É pena não podermos conversar sobre o assunto com ele... Todos lamentamos sua morte. Tenho certeza de que iria gostar dele, Conway.

Conway inclinou levemente a cabeça. Achava que seria muito possível.

— Mas qual é o desígnio que há no fundo de tudo isso? — perguntou, ao cabo de um silêncio.

— Meu filho, o seu modo de fazer a pergunta me causa infinito prazer. Jamais ninguém, no curso de tão longa vida, me formulou num tom de tamanha calma. Minha revelação tem sido recebida de todas as maneiras

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concebíveis: com indignação, consternação, fúria, incredulidade, histerismo — mas nunca, até esta noite, com simples interesse. É todavia uma atitude que eu acolho cordialmente. Hoje se interessa, amanhã se preocupará; pode ser que ainda venhamos a pedir sua inteira devoção.

— Isto vai além do que eu poderia prometer.— Até essa dúvida me agrada. É a base de uma fé

profunda e valiosa. . . Mas não discutamos. Está interes-sado, e isto, partindo do senhor, já é muito. Apenas lhe peço que não comunique por enquanto aos seus três companheiros o que lhe estou dizendo agora.

Conway guardou silêncio.— Chegará o momento em que o saberão, como o

senhor, mas para bem deles mesmos não convém precipitar esse momento. Estou tão convicto da sua prudência neste assunto que não lhe peço nenhuma promessa; sei que procederá do modo que nós ambos consideramos o melhor. . . Agora deixe-me esboçar um quadro deveras atraente. Segundo os padrões do mundo, o senhor ainda é moço. Tem, como se costuma dizer, a vida diante de si. De acordo com o curso normal das coisas, poderá esperar uns vinte ou trinta anos de atividade, que irá decrescendo imperceptível e gradualmente. Não é em absoluto uma perspectiva desalentadora, e não posso esperar que a olhe como eu a olho: como um entreato brevíssimo e por demais agitado. Viveu sem dúvida o primeiro quartel de sua existência sob a nuvem de excessiva juventude, enquanto que os últimos vinte e cinco anos serão provavelmente obscurecidos pela nuvem ainda mais escura da demasiada velhice; e entre essas duas nuvens, como são fracos e escassos os raios de sol que iluminam uma vida humana! Mas o senhor pode estar

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destinado a ser mais feliz, pois, de acordo com os padrões de Shangri-Lá, mal começaram ainda os seus anos de sol. Poderá acontecer que, dentro de algumas décadas, não se sinta mais velho do que hoje — que conserve, como Henschell, uma longa e esplêndida juventude. Mas essa, acredite-me, será apenas uma fase inicial e superficial. Tempo virá em que comece a envelhecer como os outros, embora com muito mais lentidão e em condições infinitamente mais nobres. Aos oitenta anos poderá ainda subir ao desfiladeiro com a agilidade de um moço, mas quando contar o dobro dessa idade não deve esperar que o mesmo vigor ainda persista. Não fazemos milagres, não vencemos a morte e nem sequer a decadência. Tudo que podemos fazer e temos feito algumas vezes é retardar a marcha desses breves momentos que constituem a vida. Logramos isso mediante métodos tão simples aqui quanto impossíveis em outros lugares. Mas não se iluda; o mesmo fim aguarda a nós todos.

"Ainda assim, é uma perspectiva sedutora a que lhe ofereço: longos dias tranqüilos, durante os quais contem-plará o pôr do sol como um homem de outra parte do mundo ouve um relógio dar horas, mas com muito menos ansiedade. Virão e ir-se-ão os anos, e o senhor passará dos prazeres materiais a outros mais austeros, porém não menos satisfatórios. Poderá perder o gume do apetite e a rijeza dos músculos, mas desfrutará vantagens que compensarão essa perda. Adquirirá calma e profundeza, madureza, sabedoria e o cristalino encanto da memória. E, mais precioso que tudo, terá o tempo, esse dom tão raro, tão desejado, que os países ocidentais foram perdendo à medida que o buscavam com mais ardor. Reflita um instante. Terá tempo para ler, nunca mais precisará saltar páginas a fim de poupar minutos, nem deixar de lado

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nenhum estudo porque seja demasiado longo. Também tem gosto pela música: aí, pois, estão os seus instrumentos, as suas composições, e sobretudo o tempo, sem medida e sem pressa, para extrair deles o máximo encanto. É, além disso, diremos, um homem de boa companhia: não se extasia ao pensar que poderá fazer sábias e serenas amizades, e gozar um longo e profundo comércio espiritual, sem temor de que a morte o venha chamar com a sua costumeira pressa? Ou, se prefere a solidão, não poderia utilizar um dos nossos pavilhões para enriquecer a doçura das meditações solitárias?"

A voz fez uma pausa que Conway não pensou em aproveitar.

— Não faz nenhum comentário, meu caro Conway. Perdoe-me a eloqüência. Pertenço a uma época e a uma nação em que nunca se considerou de mau tom expressar-se com fluência. . . Mas talvez esteja pensando na esposa, nos pais e nos filhos que porventura tenha deixado no mundo. Ou terá ambições que pensa ver realizadas? Creia-me, se bem que a princípio a separação possa ser dolorosa, dentro de dez anos nem a sombra disso tudo existirá para o senhor. Digo isto embora o senhor — se é que leio certo no seu espírito — não tenha semelhantes preocupações.

Surpreendido com a agudeza da observação, Conway replicou:

— É verdade. Não sou casado, tenho poucos amigos íntimos e nenhuma ambição.

— Nenhuma ambição? E como se arranjou para escapar a essa doença tão comum?

Só agora tinha Conway a impressão de tomar parte numa conversa.

— Sempre me pareceu — disse — que boa porção

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daquilo que na minha profissão se chama "êxito" é bas-tante desagradável, sem contar que exige mais esforço do que eu desejaria despender. Era cônsul, um posto bem subalterno mas muito do meu agrado.

— Mas não pusera a alma nele?— Nem a alma, nem o coração, nem tampouco me-

tade de minhas energias. Sou um tanto preguiçoso por natureza.

As rugas tornaram-se mais acentuadas e sinuosas, e Conway compreendeu que o Lama Superior devia estar sorrindo.

— A preguiça na realização de certas coisas pode ser uma virtude — sentenciou o murmúrio. — Em todo caso, nós é que não nos mostraremos exigentes nesse particular. Creio que Tchang já lhe explicou o nosso princípio de moderação, e uma das coisas em que sempre somos mode-rados é a atividade. Eu, por mim, aprendi dez idiomas, mas estes poderiam ter sido vinte se houvesse estudado imoderadamente. Não o fiz, contudo. Acontece o mesmo em outros sentidos. Verá que não somos gozadores nem tampouco ascetas. Enquanto não alcançamos uma idade em que se impõe a prudência, aceitamos de bom grado os prazeres da mesa, ao passo que, para ventura dos nossos companheiros mais jovens, as mulheres do vale aplicam o princípio de moderação à sua própria castidade. Tudo bem pensado, tenho certeza de que se adaptará aos nossos cos-tumes sem muito esforço. Tchang, na verdade, mostrou-se muito otimista a esse respeito — e também eu, depois desta entrevista, não o estou menos. Mas há no senhor, reconheço-o, uma estranha qualidade que jamais encontrei em qualquer outro dos nossos visitantes. Não é propria-mente cinismo, muito menos amargura. Talvez seja em parte desilusão, mas também uma clareza de espírito que

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eu não esperaria encontrar num homem com menos de... cem anos, digamos. Se tivesse de exprimi-lo por uma forma concisa, diria que é falta de paixão.

— O termo é bem aplicado — replicou Conway. — Não sei se costumam classificar as pessoas que aqui vêm, mas, se o fazem, podem colocar-me este rótulo "1914-1918". Penso que isto fará de mim um espécime único no seu museu de curiosidades, pois os outros três que vieram comigo não entram nessa categoria. Gastei a maior parte de minhas paixões e energias durante aqueles quatro anos e, embora não costume falar nisso, a principal coisa que tenho pedido ao mundo desde então é que me deixe em paz. Encontro neste lugar certo encanto e certa quietude que me atraem e não duvido que, como observou, me acos-tume a ele facilmente.

— Isso é tudo, meu filho?— Espero que eu esteja sendo fiel à sua regra de

moderação.— É inteligente, como me disse Tchang. .. muito

inteligente. Mas no que lhe expus não haverá nada que lhe desperte algum sentimento mais forte?

Permaneceu Conway algum tempo calado antes de responder:

— Causou-me profunda impressão a sua narrativa do passado, mas, para ser franco, o esboço que traçou do futuro me interessa apenas dum modo abstrato. Não posso olhar tão longe. Ficaria sem dúvida pesaroso se tivesse que deixar Shangri-Lá amanhã, ou na próxima semana, ou tal-vez mesmo no próximo ano; mas o que irei sentir daqui a cem anos, se é que viverei tanto, é coisa que não posso predizer. Posso fazer-lhe frente, como a qualquer outra espécie de futuro, mas para que eu o almeje é preciso que tenha alguma razão de ser. Duvidei algumas vezes de que

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a própria vida a tenha. E, se não a tem, uma vida longa tê-la-á ainda menos.

— Meu amigo, as tradições desta casa, a um tempo budista e cristã, são muito confortadoras.

— Pode ser. Mas, infelizmente, continuo a desejar uma razão mais definida para invejar os centenários.

— Existe uma razão, e na verdade bem definida. É o motivo único desta colônia de estrangeiros reunidos ao acaso, que aqui vivem os seus longos anos. Não estamos realizando uma experiência vã, não seguimos um mero capricho. Temos um sonho e uma visão para nos guiar. É a visão que pela primeira vez apareceu ao velho Perrault quando jazia moribundo nesta sala, no ano de 1789. Ele considerou então o curso da sua longa existência, como já lhe contei, e pareceu-lhe que as coisas mais belas eram transitórias e perecíveis, e que a guerra, a luxúria e a bruta-lidade poderiam acabar por expeli-las um dia da face do mundo. Recordou coisas que tinha visto com os próprios olhos e esboçou outras com a imaginação. Viu as nações fortalecendo-se, não em sabedoria, mas em vulgares pai-xões e no desejo de destruir. Viu o poder de suas máquinas multiplicar-se a tal ponto que um só homem poderia fazer frente a todo um exército do Grande Monarca. E percebeu que, quando enchessem de ruínas a terra e o mar, procura-riam dominar os ares. . . Pode afirmar que essa visão não é verdadeira?

— Bem verdadeira, com efeito.— Mas isto não é tudo. Previu a chegada de um

tempo em que os homens, embriagados com a sua técnica homicida, assolariam o mundo com tal furor que toda coisa preciosa estaria em perigo, todos os livros, quadros e composições musicais, todo o tesouro acumulado durante

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dois mil anos, o pequeno, o delicado, o indefeso — tudo se perderia como perdidos foram os livros de Tito Lívio, ou seria destruído como os ingleses destruíram o Palácio de Verão em Pequim.

— Concordo com esta sua opinião.— Naturalmente. Mas que valem as opiniões dos ho-

mens razoáveis diante do ferro e do aço? Acredite-me, essa visão do velho Perrault se tornará realidade. E esse, meu filho, é o motivo por que eu e o senhor estamos aqui, e por que podemos rogar a graça de sobrevivermos à destruição que ameaça por todos os lados.

— Sobreviver a isso?— Há uma possibilidade. Todas essas coisas aconte-

cerão antes que seja tão velho como eu.— E pensa que Shangri-Lá se salvará?— Talvez. Não podemos esperar nenhuma mercê, mas

há uma tênue esperança de que sejamos esquecidos. Aqui ficaremos com nossos livros, nossa música e nossas meditações, conservando as frágeis elegâncias de uma época moribunda e buscando a sabedoria de que os ho-mens hão de precisar quando tiverem esgotado todas as suas paixões. Temos uma herança a preservar e transmitir. Tiremos dessas coisas todo o prazer que pudermos, até que venha esse dia.

— E então?— Então, meu filho, quando os fortes se houverem

devorado uns aos outros, poderá finalmente ser posta em prática a moral cristã, e os mansos herdarão a terra.

Revestira-se o murmúrio de uma sombra de ênfase. Conway rendeu-se à beleza de tudo aquilo. Uma vez mais sentiu crescer a escuridão em torno, mas agora simbolica-mente, como se lá fora já se estivesse preparando a

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tormenta. E então percebeu que o Lama Superior de Shangri-Lá se punha em movimento, que se levantara da cadeira e permanecia de pé, qual um fantasma semimaterializado. Por mera polidez procurou Conway ajudá-lo, mas de súbito um impulso mais profundo se apossou dele, e fez o que jamais fizera diante de nenhum homem: ajoelhou-se, sem ter consciência clara do motivo por que o fazia.

— Eu o compreendo, pai.Nunca soube direito de que modo se despediu. Estava

mergulhado num sonho, do qual não saiu senão muito tempo depois. Lembrava-se do ar gelado da noite após o calor daqueles aposentos, e da presença de Tchang, silen-ciosa serenidade, quando atravessaram juntos os pátios ilu-minados pela luz das estrelas. Jamais Shangri-Lá oferecera aos seus olhos uma beleza tão intensa. Apenas adivinhado, jazia o vale além da borda do penhasco, e sua imagem era a de um lago profundo cuja tranqüilidade se casava à paz de seus próprios pensamentos. Porque Conway já se curara do assombro. A longa conversação, com suas várias fases, o deixara vazio de tudo, exceto de uma satisfação que era tanto do intelecto como do sentimento, e não menos do espírito que de ambos. Até suas dúvidas já não eram atormentadoras, mas, ao contrário, faziam parte de uma sutil harmonia. Tchang não falava, nem ele. Era muito tarde e estava satisfeito por saber que seus companheiros tinham ido dormir.

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CAPÍTULO IX

Na manhã seguinte perguntou a si próprio se tudo o que lhe vinha ao espírito fazia parte de uma visão desperta ou de um sonho.

Logo o fizeram lembrar-se. Recebeu-o um coro de perguntas quando apareceu para o almoço.

— Que conversa comprida teve com o chefão, ontem à noite! — começou o americano. — Fazíamos tenção de esperá-lo, mas acabamos cansando. Que espécie de sujeito é ele?

— Disse alguma coisa sobre os carregadores? — perguntou Mallinson ansiosamente.

— Espero que lhe tenha falado na possibilidade de se mandar para cá um missionário — disse Miss Brinklow.

Este bombardeio fez com que Conway recorresse às suas habituais armas de defesa.

— Receio que vá desapontá-los a todos — respon-deu, entrando com facilidade na disposição de ânimo ade-quada. — Não discutimos a questão das missões; ele não fez nenhuma referência aos carregadores; e, quanto à sua aparência, só lhes posso dizer que se trata de um ancião muito inteligente e que fala excelente inglês.

Mallinson atalhou com irritação:— O que interessa é saber se ele é digno de confiança

ou não. Acha que o homem pretende enganar-nos?— Não me deu a impressão de ser uma pessoa

indigna.

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— Mas por que não insistiu com ele a respeito dos carregadores?

— Não me lembrei.Mallinson encarou-o com ar de incredulidade.— Não o entendo, Conway. Portou-se tão bem em

Baskul que mal posso crer seja o mesmo homem. Parece ter perdido a resolução.

— Sinto muito.— Nada adianta lastimar-se. Devia cobrar ânimo e

mostrar mais interesse no que se está passando.— Você compreendeu mal. Eu queria dizer que sinto

tê-lo desapontado.Disse isto num tom de voz quase rude. Era uma más-

cara destinada a ocultar os seus verdadeiros sentimentos, os quais eram, na verdade, tão complicados que dificil-mente poderiam os outros adivinhá-los. Estava um pouco surpreso ante a facilidade com que tergiversara. Era evi-dente que desejava observar a recomendação do Lama, guardando segredo. Estranhava igualmente a naturalidade com que aceitava uma situação que os seus companheiros certamente, e não sem motivo, tachariam de traição. Como dissera Mallinson, não era o que se esperava de um herói. Conway sentiu uma afeição súbita e meio compadecida pelo rapaz. Retemperou-se depois, refletindo que quem de-dica culto aos heróis deve estar preparado para as desilu-sões. Mallinson em Baskul era como o jovem calouro ado-rando o belo diretor de esportes, e agora o diretor de esportes começava a vacilar, se é que já não caíra do pedestal. Há sempre algo de patético na destruição de um ideal, embora seja este falso; e a admiração de Mallinson poderia ter sido pelo menos um refrigério ao esforço de aparentar o que não era. Mas, de qualquer modo, seria impossível simular. Havia qualquer coisa na atmosfera de

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Shangri-Lá — talvez devido à altitude — que vedava qual-quer tentativa de contrafazer emoções.

— Olhe, Mallinson — disse ele —, é inútil fazer continuamente alusões a Baskul. Está claro que eu era diferente então, pois a situação era completamente outra.

— E muito mais limpa também, na minha opinião. Pelo menos sabíamos o que íamos enfrentar.

— Assassínio e estupro, para sermos exatos. Pode chamar a isso de limpo, se lhe aprouver.

Subiu de tom a voz do rapaz enquanto retorquia:— Pois bem, ainda considero isso mais limpo... em

certo sentido. Prefiro enfrentar tais coisas a todo este mis-tério que nos cerca.

E abruptamente acrescentou:— Essa rapariga chinesa, por exemplo. . . De que

modo veio parar aqui? O tal sujeito lhe disse?— Não. Por que havia de dizer?— E por que não? E por que não havia você de per-

guntar, se tivesse algum interesse no assunto? É natural encontrar-se uma donzela vivendo entre monges?

Este ponto de vista ainda não se havia apresentado a Conway.

— Este não é um mosteiro comum — foi a melhor resposta que encontrou, depois de refletir um pouco.

— Meu Deus, bem sei que não é!Seguiu-se um silêncio, pois a discussão chegara

evidentemente a um ponto morto. Afigurava-se a Conway que a vida de Lo-Tsen não vinha ao caso. A pequena manchu repousava tão suavemente no seu espírito que mal sabia de sua presença ali. Mas ao ouvir mencionar o nome dela Miss Brinklow ergueu repentinamente os olhos da gramática tibetana, que não deixava nem durante as refeições (como se — pensava Conway com intenção

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oculta — não tivesse para isso todo o resto da sua vida). A referência a donzelas e monges trouxe-lhe à lembrança aquelas histórias sobre os templos da índia, que os missionários contam às suas mulheres e que estas transmitem às colegas solteiras.

— Naturalmente — disse, comprimindo os lábios — o moral desta casa é horripilante. É o que seria de esperar.

E voltou-se para Barnard, como pedindo apoio; mas o americano limitou-se a arreganhar os dentes.

— Não creio que dêem muito valor à minha opinião em assunto de moral — observou secamente. — Mas, quanto a mim, diria que viver às disputas não é menos mau. Já que teremos de ficar ainda algum tempo aqui, devemos dominar o gênio e tratar bem uns aos outros.

Conway achou bom o conselho. Mallinson, porém, ainda não se aplacara.

— Bem posso crer que ache isto aqui mais agradável do que Dartmoor — disse significativamente.

— Dartmoor? Oh! refere-se à grande penitenciária do seu país? Percebo. Bem, certamente não invejo os camaradas que estão em lugares como aquele. E há outra coisa que lhe devo dizer: não me fere com essas alusões. Couro duro e coração tenro — eis aí como sou feito.

Conway dirigiu-lhe um olhar de aprovação e outro de leve censura a Mallinson. Mas de repente sentiu que todos, ali, eram atores num palco imenso, cujo pano de fundo só ele avistava, e, como não pudesse comunicar o que sabia, assaltou-o repentino desejo de estar só. Despediu-se deles com um aceno de cabeça e saiu para o pátio. À vista do Karakal desvaneceram-se as apreensões, e os escrúpulos a respeito de seus três companheiros se dissolveram na acei-tação mística de um mundo novo que demorava muito

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longe das conjeturas daqueles três. Há ocasiões, pensou, em que a estranheza de tudo torna cada vez mais difícil perceber a estranheza dos objetos particulares — e é quando se aceitam as coisas tais quais são, simplesmente porque assombrar-nos seria tão fastidioso para nós próprios como para os outros. Havia chegado a esse ponto em Shangri-Lá, e lembrava-se de ter atingido um estado de ânimo semelhante, embora muito menos agradável, duran-te os anos passados na guerra.

Precisava de tranqüilidade, quando mais não fosse senão para acomodar-se à dupla vida que seria forçado a viver durante algum tempo. De agora em diante, iria viver com os seus companheiros de exílio na expectativa da chegada dos carregadores e do regresso à índia; longe deles, o horizonte se abriria como uma cortina. O tempo expandia-se e contraía-se o espaço. O futuro, tão sutilmente plausível, afigurava-se uma dessas coisas que só ocorrem uma vez cada dez mil anos. Às vezes perguntava a si mesmo qual das duas vidas era mais real do que a outra, sem que, no entanto, o problema fosse premente. E de novo recordava os dias da guerra, pois durante os bombardeios ele tinha a mesma sensação confortadora de possuir muitas vidas, das quais tão-só uma podia ser reclamada pela morte.

Tchang, é claro, falava-lhe agora sem nenhuma reser-va, e tinham muitas conversas sobre as regras e os costumes do mosteiro. Soube então Conway que durante os primeiros cinco anos viveria uma vida normal, sem estar sujeito a nenhum regime especial. Era o que se fazia sempre, segundo dizia Tchang, "para que o corpo se habituasse à altitude e também para dar tempo a que se dissipassem as nostalgias intelectuais e sentimentais".

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— Tem certeza, então — observou Conway com um sorriso —, de que nenhuma afeição humana pode resistir a cinco anos de ausência?

— Pode, sem dúvida — replicou o chinês —, mas apenas como uma fragrância cuja melancolia nos é grata.

Após esses cinco anos de prova, explicou Tchang, tinha início o processo de retardamento da velhice, e, se tivesse êxito, Conway poderia contar com meio século de estacionamento na idade aparente de quarenta anos — o que não era uma idade desagradável para nela se estacionar.

— Mas no seu caso — perguntou Conway — como se operou a coisa?

— Ah! meu caro senhor, eu tive a sorte de chegar aqui muito jovem, apenas com vinte e dois anos. Era mili-tar, embora isso talvez não lhe pareça. Comandava umas tropas em operações contra certas tribos de salteadores, no ano de 1855. Estava fazendo o que chamaria um reconhe-cimento, caso tivesse voltado e transmitido aos meus supe-riores o resultado da missão; mas a verdade ê que me perdi nestas montanhas e dos meus cento e tantos comandados somente sete sobreviveram aos rigores do clima. Quando afinal fui socorrido e trazido para Shangri-Lá, estava tão mal que só a minha extrema juventude e vitalidade me salvaram.

— Vinte e dois — repetiu Conway, fazendo as con-tas. — De modo que está agora com noventa e sete?

— Sim. Muito em breve, se os lamas derem o seu consentimento, receberei a iniciação completa.

— Compreendo. É preciso inteirar o número redon-do?

— Não, nós não temos limite estabelecido para isso,

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mas consideramos que um século é a idade em que as pai-xões e os caprichos da vida ordinária já desapareceram.

— Penso também que sim. E que acontece depois? Quanto tempo espera viver ainda?

— Dadas as perspectivas que Shangri-Lá oferece, há razões para esperar que eu viva ainda um século, ou talvez mais.

Conway balançou a cabeça.— Não sei se devo felicitá-lo, mas parece que lhe foi

concedido o melhor dos dois mundos, uma longa e agradá-vel mocidade para recordar e a perspectiva de uma velhice não menos longa e agradável. Com que idade começou a envelhecer exteriormente?

— Depois dos setenta. É o que muitas vezes sucede, embora eu creia poder afirmar que não represento a idade que tenho.

— De modo algum. E, supondo que deixasse o vale agora, que aconteceria?

— Morreria se permanecesse fora daqui mais que uns poucos dias.

— A atmosfera, então, é essencial?— Há só um vale da Lua Azul, e quem esperasse

encontrar outros pediria demasiado à natureza.— Bem, mas o que sucederia se tivesse deixado o

vale uns trinta anos atrás, suponhamos, durante a sua pro-longada juventude?

— Provavelmente teria morrido mesmo assim — res-pondeu Tchang. — Em todo caso, teria adquirido muito rapidamente a aparência da minha idade real. Faz alguns anos, houve um curioso exemplo desse fato embora tivesse havido vários outros antes. Um dos nossos deixou o vale para auxiliar um grupo de viajantes, de cuja aproximação

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tínhamos sido avisados. Esse homem, de nacionalidade russa, chegara aqui no vigor dos anos e tão bem vingaram com ele os nossos processos que, quase a completar oitenta anos, ninguém lhe daria mais de quarenta. Não devia ficar ausente mais que uma semana, o que não teria nenhuma importância. Mas, desgraçadamente, foi aprisionado por tribos nômades e conduzido a certa distância daqui. Suspeitamos de um acidente e consideramo-lo perdido. Entretanto, três meses depois, logrou escapar e voltou para o vale. Mas era agora um homem bem diferente. Tinha os seus oitenta anos gravados no rosto e nas maneiras, e pouco depois morreu, como morre um velho.

Pelo espaço de uns minutos Conway não fez nenhuma observação. Conversavam na biblioteca e durante a maior parte da narrativa estivera olhando pela janela o desfiladeiro que conduzia ao mundo exterior. Uma nuvenzinha deslizava sobre o topo da cordilheira.

— A sua história é um tanto sinistra, Tchang — disse por fim. — Dá a impressão de que o Tempo é um monstro ludibriado, esperando lá fora para atirar-se sobre os indolentes que conseguiram iludi-lo por muito tempo.

— Indolentes?— Em sentido figurado, é claro.Ficou Tchang uns instantes a refletir, e disse:— É significativo que os ingleses considerem a indo-

lência um vício. Nós, pelo contrário, lhe damos grande preferência sobre a pressa. Não é verdade que há dema-siada pressa no mundo atualmente, e não seria talvez me-lhor se houvesse mais pessoas indolentes?

— Inclino-me a concordar consigo — respondeu Conway com divertida solenidade.

Dentro da semana que se seguiu à entrevista com o

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Lama Superior, Conway fez conhecimento com muitos de seus futuros colegas. Não se mostrava Tchang nem muito ansioso nem pouco desejoso de fazer as apresentações, e Conway sentiu-se envolto numa nova atmosfera, assaz atraente para ele, em que não reinava a pressa clamorosa nem a lentidão decepcionadora.

— Na verdade — explicava Tchang —, alguns dos lamas só poderão travar relações com o senhor depois de um tempo considerável, talvez anos, mas isto não lhe deve causar estranheza. Estão preparados para dispensar-lhe acolhimento logo que se apresente a ocasião, e a falta de pressa não implica de nenhum modo ausência de interesse.

Conway, que muitas vezes tivera impressão seme-lhante quando ia visitar colegas recém-chegados aos con-sulados estrangeiros, achou muito compreensível a atitude.

Os encontros que teve, contudo, foram plenamente satisfatórios, e a conversação com homens que tinham três vezes a sua idade não lhe causou os embaraços comuns na sociedade de Londres ou Delhi. A primeira entrevista foi com um afável alemão chamado Meister, que ingressara na comunidade em oitenta e tantos, tendo sido o único sobrevivente de um grupo de exploradores. Falava bem o inglês, embora com certo sotaque. Um ou dois dias depois foi feita segunda apresentação, e Conway gozou a primeira palestra com um homem que o Lama Superior lhe mencionara de modo especial: Alphonse Briac, pequeno e vigoroso, de nacionalidade francesa, não aparentava ser demasiado velho embora dissesse ter sido discípulo de Chopin. Pareceu a Conway que a companhia dele e a do alemão seriam muito agradáveis. Já os estava analisando subconsciente-mente, e depois de uns poucos encontros formulou uma ou duas conclusões gerais. Percebeu que os lamas com quem tratara, se bem que

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tivessem suas diferenças individuais, possuíam em comum uma qualidade difícil de definir, para a qual não encontrava denominação melhor do que "ausência de idade". Além disso, eram todos dotados de uma serena inteligência que se manifestava agradavelmente por meio de opiniões comedidas e bem meditadas. Sentia Conway uma simpatia instantânea por essa espécie de gente e notava que eles o percebiam e lhe eram gratos. Achou-lhes o trato tão agradável como o de qualquer outra roda de pessoas cultas com quem pudesse ter feito conhecimento, embora lhe viesse muitas vezes uma sensação de estranheza, quando os ouvia aludir com tanta naturalidade a remotas recordações. Um homem de cabelos brancos e expressão benévola, por exemplo, lhe perguntara após ligeira palestra se lhe interessavam as irmãs Brontë. Respondeu Conway que sim até certo ponto, e o outro prosseguiu:

— Pois sucede que eu fui cura no West Riding, lá por 1840, e uma vez visitei Haworth, hospedando-me no "Parsonage". Depois de me achar aqui iniciei um estudo sobre o problema Brontë, e estou mesmo escrevendo um livro. Talvez queira examinar comigo o assunto qualquer dia destes?

Conway deu uma resposta cordial e depois, quando ficou a sós com Tchang, fez comentários em torno da vividez com que os lamas pareciam recordar a sua existência anterior à vinda para o Tibete. Respondeu Tchang que isto fazia parte dos seus exercícios habituais.

— Veja, meu caro senhor: um dos primeiros passos no sentido de clarificar a mente é a obtenção de um pano-rama da própria vida passada, e este, como qualquer outro panorama, é mais nítido em perspectiva. Quando tiver permanecido bastante tempo entre nós, verá a sua vida

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passada focalizar-se pouco a pouco, como um objeto visto por um telescópio a que se ajustam as lentes. Tudo se lhe apresentará tranqüilo e claro, nas devidas proporções e com sua verdadeira significação. Seu novo amigo, por exemplo, percebe que o grande momento da sua existência ocorreu na mocidade, quando ele visitou uma casa onde vivia um velho ministro em companhia de três filhas.

— Suponho, então, que deverei tratar de recordar os meus grandes momentos?

— Não será necessário nenhum esforço. Eles virão naturalmente.

— Não sei se os receberei com muita satisfação — respondeu Conway com melancolia.

Mas, fosse qual fosse o passado, a verdade é que começava a sentir-se feliz no presente. Quando se distraía lendo na biblioteca ou tocando Mozart no salão de música, sentia muitas vezes invadi-lo profunda emoção espiritual, como se Shangri-Lá fosse uma essência viva, destilada no alambique mágico dos séculos e milagrosamente preser-vada do tempo e da morte. Em tais momentos lhe vinha ao espírito, de maneira memorável, sua conversação com o Lama Superior. Sentia que uma calma inteligência vigiava com bondade cada uma de suas diversões, confiando-lhe ao ouvido e à vista mil segredos tranqüilizadores. Assim, punha-se a escutar enquanto Lo-Tsen dominava alguma fuga complicada, imaginando o que se ocultaria no fundo do sorriso vago que lhe agitava os lábios como uma flor que se abrisse. Ela falava muito pouco, embora já soubesse que Conway conhecia o seu idioma. Diante de Mallinson, que por vezes visitava a sala de música, ficava quase sem-pre calada. Mas Conway distinguia o encanto que os seus silêncios exprimiam com perfeição.

Uma vez interrogou Tchang sobre o seu passado e

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soube que ela descendia da família real manchu.— Era a prometida de um príncipe do Turquestão e

viajava para Kashgar a fim de encontrar-se com ele, quan-do seus carregadores se perderam nas montanhas. Todos teriam sem dúvida perecido se os nossos emissários não lhes houvessem saído ao encontro, como habitualmente faziam.

— Quando sucedeu isso?— Em 1884. Ela contava dezoito anos.— Dezoito anos naquele tempo? Tchang fez uma cortesia.— Sim, tivemos muito êxito com ela, como o senhor

mesmo pode verificar. Seus progressos têm sido constantes e excelentes.

— Como encarou a situação quando aqui chegou?— Talvez lhe houvesse custado mais do que a outros

aceitá-la. Não que protestasse, mas percebemos que ficou perturbada por algum tempo. Era, já se vê, um aconteci-mento nada comum: interceptar uma moça que ia casar. . . Todos nós tínhamos particular interesse em que ela fosse feliz aqui.

Tchang sorriu docemente e acrescentou:— Receio que a excitação do amor não se deixe ven-

cer facilmente, mas cinco anos foram mais que bastantes para isso.

— Devia ser muito afeiçoada ao homem com quem ia casar.

— Não se pode dizer que fosse isso, meu caro senhor, pois nunca o tinha visto. Tal era o costume antigo, como sabe. Sua afeição era completamente impessoal.

Conway concordou e sentiu uma leve ternura por Lo-Tsen. Imaginou-a como devia ter sido meio século atrás, escultural na sua liteira decorativa que os carregadores

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conduziam pelo planalto em fora, os olhos fixos nas mon-tanhas varridas pelos ventos e que lhe deviam parecer aspérrimas em comparação com os jardins e os lagos de lotos que deixara no nascente.

— Pobre criança! — disse, pensando naquela frágil elegância, prisioneira por tão longos anos. Agora que lhe conhecia a história, mais o deleitava sua tranqüilidade e seus silêncios. Era como um lindo vaso, precioso e frio, sem outro adorno que um raio de luz fugitivo.

Sentia-se também deleitado, embora com menos enle-vo, quando Briac lhe falava em Chopin e tocava com muito brilho as velhas melodias. Verificou que o francês conhecia diversas composições de Chopin que não tinham sido publicadas e, como ele as houvesse escrito, Conway dedicava agradáveis horas a decorá-las. Achava certo sabor picante em refletir que nem Cortot nem Pachmann haviam sido tão felizes. Não acabavam aí, porém, as recor-dações musicais de Briac; continuamente lhe vinham à memória trechos que o compositor lançara fora ou impro-visara em determinadas ocasiões. Punha-os em pauta à me-dida que os ia recordando, e alguns deles eram fragmentos deliciosos.

— Briac — explicou Tchang — iniciou-se há pouco tempo. Deve desculpá-lo, pois, se fala tanto em Chopin. Os lamas mais jovens preocupam-se naturalmente com o passado; é um passo necessário à contemplação do futuro.

— E esta, suponho, é a tarefa dos mais velhos.— Sim. O Lama Superior, por exemplo, leva quase

toda a sua existência em meditações clarividentes. Conway refletiu um instante e disse:— A propósito, quando pensa que voltarei a vê-lo?— Sem dúvida no fim dos seus primeiros cinco anos

aqui, meu caro senhor.

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Enganava-se Tchang, porém, nesta confiante profecia; menos de um mês depois de sua chegada a Shangri-Lá foi Conway novamente chamado à tórrida sala. Tchang lhe dissera que o Lama Superior nunca saía dos seus aposen-tos, cuja atmosfera quente lhe era necessária à vida corpo-ral. Assim prevenido, Conway achou menos incômoda que antes a mudança de temperatura. Na verdade, começou a respirar com facilidade logo depois de saudá-lo e de rece-ber em resposta uma cintilação mais viva daqueles olhos fundos. Sentia-se em comunhão com o espírito que morava atrás deles, e, embora soubesse que esta segunda entrevista, tão próxima da primeira, era uma honra sem precedentes, não estava em absoluto nervoso nem sucumbia à solenidade do momento. O fator da idade não tinha para ele mais importância que o da classe ou da cor, e jamais fora obstáculo à sua amizade por uma pessoa o fato de ser esta demasiado jovem ou demasiado velha. O Lama Superior lhe inspirava sincero respeito, mas não via por que suas relações deixassem de ser cordiais.

Trocaram as habituais cortesias e Conway respondeu a muitas perguntas amáveis. Disse que estava gostando muito daquela vida e já fizera amizades.

— E não revelou os nossos segredos aos seus três companheiros?

— Não, até agora. Foi difícil algumas vezes, mas provavelmente muito menos do que se eu lhes tivesse falado.

— Justamente como eu presumia. O senhor procedeu da maneira que achou melhor. Esta situação difícil, afinal de contas, é apenas temporária. Disse-me Tchang que, segundo pensa, dois deles darão poucos cuidados.

— Acho que é verdade.— E o terceiro?

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— Mallinson é um rapaz excitável, só pensa em vol-tar — respondeu Conway.

— Gosta dele?— Sim, quero-lhe bem.Neste momento apareceram as taças de chá e a con-

versa tornou-se menos grave entre os goles de líquido per- fumado. Era uma acertada convenção que permitia dar à palestra um tom de deliciosa frivolidade, ao qual se conformava de bom grado. Quando o Lama Superior perguntou se Shangri-Lá não lhe era uma experiência inédita e se o mundo ocidental podia oferecer algo semelhante, respondeu com um sorriso:

— Creio que sim. Para ser franco, lembra-me muito ligeiramente Oxford, onde fiz preleções. O cenário é menos belo, mas os temas de estudo também são muitas vezes destituídos de senso prático, e embora o mais antigo dos mestres não seja tão velho, parece chegar à velhice por um caminho semelhante.

— O senhor tem senso de humor, meu caro Conway — observou o Lama Superior —, e nós lhe seremos gratos por essa qualidade durante os anos que hão de vir.

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CAPÍTULO X

— Extraordinário — foi o comentário de Tchang ao saber que Conway tivera nova entrevista com o Lama Superior. Vindo de uma pessoa tão refratária ao uso de superlativos, a palavra era significativa. Jamais havia isso acontecido, acentuou, desde que se estabelecera a praxe da comunidade. Jamais o Lama Superior desejara um segundo encontro, antes que os cinco anos de provação tivessem expurgado todas as emoções do exilado.

— Porque, como pode compreender, o falar com recém-chegados em geral exige-lhe grande esforço. A sim-ples presença das paixões humanas lhe é desagradável e, na sua idade, torna-se um aborrecimento quase intolerável. Não que eu duvide da sabedoria do seu procedimento. Ele nos dá uma lição de grande valor, qual seja, a de que mesmo as regras fixas da nossa comunidade são apenas moderadamente fixas. Mas, de qualquer modo é extraordi-nário.

Para Conway, naturalmente, isso não era mais extraordinário do que tudo mais ali, e depois de visitar o Lama Superior uma terceira e quarta vez começou a achar que não era de nenhum modo extraordinário. Parecia, na verdade, haver qualquer coisa de predestinado na facili-dade com que se harmonizavam os espíritos de ambos. Dir-se-ia que todas as secretas agitações de Conway se acalmavam, deixando-lhe, quando se retirava, uma rica serenidade. Por vezes tinha a sensação de estar

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completamente subjugado pela força daquela inteligência diretriz, e diante das pequenas taças azul-pálidas o trabalho do cérebro se estremecia numa vivacidade tão delicada e miniatural que lhe dava a impressão de um teorema a dissolver-se limpidamente num soneto.

Suas conversas abrangiam destemidamente todos os assuntos. Filosofias inteiras eram esmiuçadas; as longas avenidas da história desdobravam-se e adquiriam nova perspectiva. Para Conway era uma experiência maravi-lhosa, mas nem por isso se desprendia do senso crítico, e certa vez, tendo ele argüido sobre um ponto, o Lama Supe-rior replicou:

— Meu filho, é jovem nos anos, mas percebo que o seu discernimento tem a madureza da velhice. Por certo hão de ter-lhe ocorrido coisas extraordinárias na vida.

Conway sorriu.— Não mais extraordinárias do que as que sucederam

a muitos outros da minha geração.— Ainda não encontrara um homem como o senhor. Conway respondeu após um intervalo:— Não há grande mistério nisso. O que em mim lhe

parece próprio de um velho corre por conta de uma intensa e prematura experiência. Minha vida entre os dezenove e os vinte e dois anos foi uma educação incomparável, não resta dúvida, mas algo exaustiva.

— Foi muito infeliz na guerra?— Muito, não. Excitava-me, tinha impulsos suicidas,

sentia medo, era temerário, e às vezes ficava possuído de uma fúria terrível. Como milhões de outros, aliás. Emborrachava-me, matava e gozava por atacado. Era o abuso de todas as emoções, e saímos de lá, os que conseguiram escapar, sob o domínio de um fastio e uma agitação desmedidos. Foi isso que fez tão difíceis os anos

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que se seguiram. Não creia que esteja exagerando a tragédia. Tudo considerado, fui bastante feliz depois. Mas tem sido qualquer coisa comparável a estar numa escola sob a direção dum brutamontes: há muito que divertir-se para quem se sente inclinado a isso, mas arruína os nervos e em suma não é muito satisfatório. Creio que verifiquei isso com mais clareza do que muita gente.

— E foi assim que continuou a sua educação? Conway encolheu os ombros.— Talvez a exaustão das paixões seja o começo da

sabedoria, se me permite alterar a máxima.— Essa, meu filho, é também a doutrina de

Shangri-Lá.— Eu sei. É por isso que me sinto como em casa.

Tinha dito a pura verdade. À medida que passavam os dias e as semanas, ia experimentando um contentamento profundo que unia corpo e espírito num só todo. Como Perrault, Henschell e os outros, estava sendo dominado pelo feitiço. A Lua Azul tomara posse dele e não havia como escapar. Cintilavam as montanhas ao redor, for-mando um muro de inacessível pureza, de onde seus olhos deslumbrados baixavam para o abismo verde do vale. O quadro todo era incomparável e, quando ouvia, na outra margem do lago, a argentina monotonia do cravo, afigurava-se-lhe que era ele que tecia aquela harmonia perfeita da vista e do som.

Estava, e bem o sabia, serenamente enamorado da pequena manchu. Seu amor nada pedia, nem sequer ser correspondido. Era um tributo do espírito, ao qual os senti-dos apenas emprestavam um sabor. Lo-Tsen era para ele o símbolo de todas as coisas delicadas e frágeis. Suas

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cortesias estilizadas e o leve toque de seus dedos no teclado lhe davam uma sensação de intimidade completamente satisfatória. Algumas vezes lhe falava num tom que os poderia levar, se ela o desejasse, a uma conversa menos cerimoniosa. Mas as respostas de Lo-Tsen nunca revelavam o delicado segredo dos seus pensamentos e, em certo sentido, ele não desejava que assim fosse. Conhecia já uma das facetas da jóia prometida; para o mais que desejasse dispunha do Tempo, tanto tempo que o próprio desejo se apagava na certeza da realização. Dentro de um ano, de uma década, teria ainda tempo. A visão ganhava intensidade e ele se sentia feliz.

Também às vezes se voltava para a sua outra vida e enfrentava a impaciência de Mallinson, a jovialidade de Barnard e a firme intenção de Miss Brinklow. Havia de alegrar-se quando todos soubessem o que ele sabia; e, como Tchang, tinha a impressão de que nem o americano nem a missionária seriam difíceis de persuadir. Achou mesmo graça uma ocasião que Barnard disse:

— Sabe, Conway? Quer-me parecer que isto não seria tão mau lugar para fixar residência nele. No começo pensei que ia sentir falta dos jornais e do cinema, mas agora vejo que a gente pode se acostumar a tudo.

— Também penso assim — concordou Conway. Soube depois que Tchang tinha levado Barnard ao

vale, atendendo a um pedido dele, para gozar tudo o que os recursos da localidade ofereciam a quem quisesse passar "uma noite fora". Mallinson, quando teve conhecimento disto, encheu-se de desdém.

— Com certeza andou bebendo — disse a Conway. E para o próprio Barnard comentou:— Naturalmente, nada tenho que ver com isso, mas,

como sabe, você precisa conservar-se em muito boa forma

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para a jornada. Os carregadores devem vir dentro de uns quinze dias, e pelo que inferi a volta não será propriamente uma viagem de recreio.

Barnard concordou de boa sombra:— Nunca acreditei que a volta seria fácil. Quanto a

conservar-me em forma, acho que há muitos anos não me sentia tão bem disposto como agora. Faço o meu exercício diário, não tenho nada que me aborreça e os donos desses botecos lá do vale não deixam a gente se exceder. Modera-ção, já sabe. . . É o lema da firma.

— Sim, não duvido que se tenha divertido moderada-mente — disse Mallinson com acrimônia.

— Claro que sim. Este estabelecimento atende a todos os gostos. Há quem tenha mais prazer em ouvir chinesinhas tocar piano, não é verdade? Não se pode cen-surar as pessoas pelas preferências.

Conway não se deu por achado. Mallinson, porém, enrubesceu como um colegial.

— Mas pode-se mandar para a cadeia quando mos-tram preferência pela propriedade alheia — retorquiu. A fúria o tornava mordaz.

— Sim, quando se consegue apanhá-las.O americano arreganhou os dentes afavelmente e

prosseguiu:— E isto me lembra uma coisa que é melhor dizer-

lhes de uma vez, já que tocamos no assunto. Resolvi lograr esses carregadores. Acho que eles vêm aqui regularmente. Esperarei pela próxima vinda — ou talvez pela terceira. Isso, bem entendido, se os monges me derem crédito para as despesas de hospedagem. . .

— Quer dizer que não irá conosco?— Isso mesmo. Decidi ficar algum tempo aqui. Para

os senhores está tudo muito bem. Serão recebidos com

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bandas de música, mas eu... só tenho a polícia à minha espera. E quanto mais penso nisso mais me desagrada. . .

— Por outras palavras, tem medo de enfrentar a orquestra?

— De fato, jamais gostei de orquestras.— Isto é assunto seu — tornou Mallinson com frio

desdém. — Ninguém pode impedi-lo de enterrar-se aqui para toda a vida se esse é o seu desejo.

E, olhando em torno como a pedir o apoio dos outros:— Nem todos pensarão assim, mas reconheço que os

gostos diferem. Que diz você, Conway?— Concordo. Os gostos diferem.Voltou-se Mallinson para Miss Brinklow, que subita-

mente deixou o livro de lado e declarou:— O caso é que eu também penso ficar.— O quê? — gritaram todos a um tempo.Ela prosseguiu, com um claro sorriso que mais pare-

cia um reflexo do que uma iluminação interior:— Pois é, estive meditando sobre os acontecimentos

que nos trouxeram aqui e pude chegar apenas a uma conclusão: há algum poder misterioso atrás dos bastidores. Não lhe parece, Mr. Conway?

Talvez Conway experimentasse dificuldade em res-ponder, se Miss Brinklow não se tivesse apressado a continuar:

— Quem sou eu para discutir os ditames da Provi-dência? Fui trazida aqui para algum fim, e aqui ficarei.

— Espera fundar uma missão neste lugar? — per-guntou Mallinson.

— Não só espero como tenho a firme intenção. Sei tratar com esta gente. Hei de impor a minha vontade, não tenham receio. Nenhum deles possui verdadeira fibra.

— E pretende dar-lhes alguma?

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— Pretendo, sim, Mr. Mallinson. Oponho-me decidi-damente a esta idéia de moderação sobre a qual tanto temos ouvido falar. Podem chamar-lhe largueza de vistas se quiserem, mas na minha opinião ela conduz à pior espé-cie de licenciosidade. Todo o mal desta gente é a tal lar-gueza de vistas, e tenciono combatê-la com todas as mi-nhas forças.

— E eles têm vistas tão largas que lhe permitirão isso? — interpôs Conway, sorrindo.

— Ou então ela é tão resoluta que não são capazes de lhe resistir — acudiu Barnard. E acrescentou numa risada: — É justamente como eu disse: este estabelecimento atende a todos os gostos.

— É possível, se você gosta da prisão — repontou Mallinson.

— Bem, até sobre este assunto há dois modos de ver. Meu Deus, quando se pensa em toda a gente que daria tudo o que tem para sair da balbúrdia e vir descansar num lugar como este, e não pode sair! Seria o caso de perguntar quem está preso: nós ou eles?

— Consoladora reflexão para um macaco encerrado numa jaula — replicou Mallinson, sempre furioso.

Mais tarde encontrou-se a sós com Conway.— Esse sujeito me rói os nervos — dizia, passeando

pelo pátio. — Não sentirei a falta da sua companhia quan-do voltarmos. Você me pode julgar demasiado suscetível, mas não achei graça naquela indireta sobre a chinesa.

Conway tomou-lhe o braço. Tornava-se-lhe cada vez mais claro que tinha muita afeição ao rapaz, e as últimas semanas de convívio haviam tornado mais profundo esse sentimento, apesar das discordâncias de gênio.

— Julguei que ele visasse a mim, e não a você — respondeu.

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— Não, tenho certeza de que era comigo. Ele sabe que estou interessado nela. Estou mesmo, Conway. Não posso descobrir por que vive aqui e se lhe agrada realmente viver aqui. Meu Deus, se eu falasse como você o idioma dela, já teria posto tudo em pratos limpos.

— Será mesmo que o faria? Ela não é de muita con-versa, como sabe.

— O que me espanta é que você não lhe tenha feito toda sorte de perguntas.

— Não creio que gostasse muito de passar por maçante.

Teve vontade de dizer mais alguma coisa, mas reteve-o de súbito aquele sentimento de piedade e de ironia, que o envolveu à maneira de uma névoa fina. O ardente e impe-tuoso rapaz não se conformaria tão facilmente. E Conway limitou-se a acrescentar:

— No seu lugar, eu não me preocuparia tanto com Lo-Tsen. Ela é bastante feliz.

A decisão que tinham tomado Barnard e Miss Brinklow de ficar atrás afigurou-se excelente a Conway, embora parecesse colocá-los, a ele e a Mallinson, temporariamente, num mesmo campo oposto. Era uma situação extraordinária e não tinha plano definido para enfrentá-la.

Felizmente, parecia não haver necessidade de tomar qualquer atitude por enquanto. Até que decorressem dois meses não poderia suceder coisa de maior. E depois, quan-do sobreviesse a crise, não seria menos aguda por ter ele tentado preparar-se para recebê-la. Por esta e por outras razões, não desejava inquietar-se com o inevitável, embora tivesse dito uma ocasião:

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— Sabe, Tchang? Esse jovem Mallinson me deixa preocupado. Temo que receba muito mal as coisas quando vier a sabê-las.

Tchang concordou, com alguma simpatia:— Realmente, não será fácil persuadi-lo de sua boa

fortuna. Mas a dificuldade será, em suma, apenas temporá-ria. Dentro de vinte anos o nosso amigo estará inteira-mente conformado.

Pareceu a Conway que isto era encarar o assunto com demasiada filosofia.

— O que eu desejaria saber é como a verdade lhe será revelada. Está contando os dias à espera dos carrega-dores, e se estes não vêm. . .

— Mas virão.— Ah, sim? Eu imaginava que o que diziam sobre a

sua vinda fosse uma fábula amável destinada a entreter-nos.

— De modo algum. Embora não sejamos fanáticos nesse ponto, é costume em Shangri-Lá ser moderadamente verídico, e posso assegurar-lhe que as minhas informações acerca dos carregadores eram quase exatas. De qualquer forma, nós os esperamos mais ou menos na época que eu disse.

— Nesse caso, acharão difícil impedir que Mallinson se vá com eles.

— Mas não é nossa intenção impedi-lo. Ele desco-brirá simplesmente — sem dúvida por experiência própria — que os carregadores não estão dispostos a levar em sua companhia a quem quer que seja, nem se acham em condi-ções de fazê-lo.

— Compreendo. Esse é o método, então? E que espe-ram venha a acontecer depois?

— Então, meu caro senhor, após um período de desi-

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lusão, ele começará — visto como é moço e otimista — a esperar que os novos carregadores, que deverão vir daqui a nove ou dez meses, se mostrem mais tratáveis. E nós, como aconselha a prudência, não começaremos por dissuadi-lo dessa esperança.

Conway observou abruptamente:— Não estou muito seguro de que ele se acalmará

desse modo. Acho mais provável que procure um meio de fugir.

— Fugir? Será esse realmente o termo apropriado? Afinal, o desfiladeiro está aberto a todos e em qualquer tempo. Não temos carcereiros, a não ser os que a própria natureza instituiu.

— Bem — respondeu Conway com um sorriso —, deve confessar que a natureza fez muito bem o trabalho. Mas, ainda assim, suponho que não confiem nela em todos os casos. Que foi feito das diversas expedições que aqui vieram ter? O desfiladeiro estava igualmente aberto para elas quando desejavam regressar?

Tocou agora a Tchang a vez de sorrir.— Circunstâncias especiais, meu caro senhor, exigem

algumas vezes especial atenção.— Magnífico. De modo que só dão ensejo de fugir às

pessoas quando sabem que seria loucura aproveitá-lo? Mesmo assim, alguns devem fazer a tentativa, não é verdade?

— Bem, isso tem acontecido umas poucas vezes, mas por via de regra os que se ausentam voltam de bom grado, após uma noite passada no planalto.

— Sem abrigo e sem roupas adequadas? Neste caso, compreendo muito bem que os métodos suaves dos senho-res sejam tão eficazes quanto a mais rigorosa disciplina. Mas quanto aos casos mais raros daqueles que não

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voltam? — O senhor mesmo respondeu à sua pergunta —

replicou Tchang. — Não voltam.Deu-se pressa, contudo, em acrescentar:— Posso assegurar-lhe, entretanto, que poucos foram

tão infortunados, e confio em que seu amigo não seja bas-tante temerário para lhes aumentar o número.

Não achou Conway a resposta de todo tranqüilizadora e o futuro de Mallinson continuou sendo uma preo-cupação. Desejava que fosse possível ao rapaz regressar com o consentimento dos lamas. Não era um fato sem precedentes, à vista do recente caso de Talu, o aviador. Tchang admitiu que as autoridades do mosteiro estavam armadas de poderes suficientes para fazer tudo o que considerassem avisado.

— Mas seria avisado, meu caro senhor, confiar-nos e confiar o nosso futuro aos sentimentos de gratidão do seu amigo?

Compreendeu Conway que a objeção era procedente, pois a atitude de Mallinson poucas dúvidas deixava quanto ao que faria tão logo regressasse à índia. Era o seu tema predileto e várias vezes discorrera sobre ele.

Mas tudo isso, é claro, pertencia à existência mundana que pouco a pouco ia sendo expelida do seu espírito pelo rico e penetrante mundo de Shangri-Lá. Salvo no que dizia respeito a Mallinson, sentia um contentamento extraordinário. A estrutura lentamente revelada deste novo mundo continuava a assombrá-lo pela sua complexa conformidade com os seus próprios gostos e necessidades.

Certa ocasião disse a Tchang:— A propósito, como é que os senhores encaixam o

amor no seu plano de existência? Suponho que, às vezes, os que vêm para cá concebam afeição por alguém.

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— Freqüentemente — respondeu Tchang com um vasto sorriso. — Os lamas, bem entendidos, são imunes, e também todos os que atingimos certa idade, mas afinal de contas somos iguais aos outros homens — salvo, penso eu, no fato de sermos mais razoáveis do que eles. E isto me fornece um ensejo, Mr. Conway, para lhe assegurar que a hospitalidade de Shangri-Lá é muito compreensiva. O seu amigo Barnard já tirou proveito disso.

Conway devolveu-lhe o sorriso, mas respondeu secamente:

— Obrigado. Não duvido de que ele o tenha feito, mas as minhas inclinações, ao menos por ora, não são tão ardentes. É antes o aspecto emocional do que o físico que desperta a minha curiosidade.

— Acha fácil separá-los um do outro? Será possível que se esteja enamorando de Lo-Tsen?

Conway ficou um tanto confuso, mas julgou não o ter demonstrado.

— Por que pergunta isso?— Porque, meu caro senhor, seria muito conveniente

que se enamorasse dela — uma vez, é claro, que o fizesse com moderação. Lo-Tsen não lhe iria corresponder apaixo-nadamente — isto seria esperar demasiado —, mas garan-to-lhe que acharia deleitosa a experiência. Falo com autoridade, pois eu mesmo estive enamorado dela quando era mais jovem.

— Deveras? E correspondeu-lhe?— Apenas com a mais encantadora aceitação da

minha homenagem e com uma amizade que se tem tornado mais preciosa com o correr do tempo.

— Por outras palavras, não lhe correspondeu?— Se prefere dizer assim. . .E Tchang acrescentou, um pouco sentenciosamente:

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— Sempre foi seu costume poupar aos apaixonados o momento de saciedade que sobrevém a toda realização absoluta de um desejo.

Conway riu.— Isto estará muito bem no seu caso e talvez no meu,

mas qual seria a atitude de um rapaz de sangue ardente como Mallinson?

— Meu caro senhor, seria esse o mais auspicioso dos acontecimentos possíveis! Não seria a primeira vez, asse-vero-lhe, que Lo-Tsen consolaria o exilado cheio de deses-pero por saber que daqui não sairá mais.

— Consolaria?— Sim, mas não deve tomar o termo em mau sentido.

Lo-Tsen não dispensa carícias, salvo aquelas que tocam o coração dolorido e emanam da sua própria presença. Que diz o seu Shakespeare de Cleópatra? "Ela deixa faminto quando mais satisfaz." Um tipo comum, sem dúvida, entre as raças apaixonadas, mas garanto-lhe que uma mulher assim estaria completamente desolada em Shangri-Lá. Lo-Tsen, se me permite emendar a passagem, elimina a fome quando menos satisfaz. É um efeito mais delicado e mais duradouro.

— E ela deve ter grande habilidade em consegui-lo, segundo presumo.

— Oh! sem dúvida. Temos muitos exemplos disso. Seu hábito é acalmar a palpitação do desejo até reduzi-lo a um murmúrio que não deixa de ser agradável, mesmo quando não correspondido.

— Nesse sentido, então, poderia ser considerada como fazendo parte do aparelhamento educativo do estabelecimento?

— Pode considerá-la assim, se deseja — replicou Tchang em tom de brando protesto; — mas seria muito

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mais gracioso, e não menos verdadeiro, compará-la ao arco-íris refletido num vaso de cristal, ou à gota de orvalho depositada na flor da macieira.

— Concordo plenamente consigo, Tchang. Isso seria muito mais gracioso.

Conway apreciava as réplicas ágeis e comedidas que o chinês opunha muitas vezes às suas bem-humoradas provocações.

Mas na próxima vez que se encontrou a sós com a pequena manchu verificou que eram muito sagazes as observações de Tchang. Emanava dela certa fragrância que se comunicava às emoções de Conway, ativando as cinzas de um fogo que não queimava mas apenas aquecia. E de súbito compreendeu que Shangri-Lá e Lo-Tsen eram per-feitos, e não desejou outra coisa senão despertar uma páli-da e eventual correspondência em toda aquela tranqüili-dade. Durante anos, suas paixões tinham sido como um nervo que o mundo arranhava; agora, a dor se acalmava por fim e ele podia abandonar-se a um amor que não era tortura nem aborrecimento. Quando passava às vezes pelo lago dos lotos, imaginava-a nos seus braços, mas a cons-ciência do tempo apagava-lhe a visão, acalmando-a, inspirando-lhe uma infinita e terna relutância.

Pensava que jamais fora tão feliz, mesmo durante os anos de sua vida que ficavam atrás da grande barreira da guerra. Amava o mundo sereno que lhe oferecia Shangri-Lá, mundo mais pacificado que dominado por aquela idéia única e tremenda. Agradava-lhe aquela disposição de ânimo predominante, na qual os sentimentos eram envoltos em pensamentos e estes se transformavam em felicidade pelas simples expressão verbal. Conway, a quem a experiência ensinara que a rudeza não é em absoluto uma garantia de boa fé, era ainda menos

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inclinado a ver nas frases bem torneadas uma prova de insinceridade. Apreciava o ambiente pausado e maneiroso, em que a conversa era uma arte, e não mero hábito. E comprazia-se em pensar que as coisas mais frívolas estavam agora livres da ameaça do tempo perdido, e o espírito podia acolher os sonhos mais frágeis.

Shangri-Lá era sempre tranqüilo, embora não dei-xasse de ser uma colméia de compassadas atividades. Vi-viam os lamas, na verdade, como se levassem o tempo em conta, mas este, na sua balança, pesasse tanto como uma pluma. Sem que fizesse novos conhecimentos entre eles, Conway foi aos poucos verificando, no entanto, a extensão e a variedade das suas ocupações. Além do seu saber lingüístico, alguns deles, segundo pôde ver, navegavam em pleno mar da ciência, de um modo que provocaria assombro no mundo ocidental. Muitos escreviam obras manuscritas, de várias espécies. Um deles, conforme disse Tchang, realizara valiosas pesquisas no domínio da matemática pura. Outro estava coordenando Gibbon e Spengler na formação de uma vasta tese sobre a história da civilização européia. Mas nem todos se entregavam a essa espécie de estudos, nem se ocupavam neles todo o tempo. Havia muitos canais estanques em que se metiam por mero capricho, registrando, como Briac, fragmentos de velhas melodias ou, como o ex-cura inglês, elaborando nova teoria sobre o caso de O Morro dos Ventos Uivantes. E havia coisas ainda menos práticas do que estas. Certa vez, quando Conway fez um reparo nesse sentido, contou-lhe o Lama Superior, em resposta, a história de um artista chinês que viveu no terceiro século antes de Cristo e que, tendo des-pendido muitos anos em esculpir dragões, pássaros e cavalos num caroço de cereja, ofereceu o trabalho

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concluído a um príncipe real. De início, o príncipe nada podia ver senão um caroço, mas o artista o aconselhou a "mandar construir um muro e neste abrir uma janela, e observar o caroço através da janela, no esplendor da manhã". Assim fez o príncipe, e percebeu então que o caroço era na verdade belíssimo.

— Não é uma história encantadora, meu caro Conway, e não lhe parece que encerra uma preciosa lição?

Conway concordou. Era-lhe grato constatar que a se-rena finalidade de Shangri-Lá abrangia um número infinito de ocupações estranhas e aparentemente triviais, pois ele mesmo sempre tivera gosto por tais coisas. Quando contemplava o seu passado, via-o povoado de idéias de trabalhos, ou muito vagos ou demasiado grandes para se realizarem, mas que agora se faziam possíveis, mesmo como meio de ocupar o ócio. Deleitava-se com esta pers-pectiva e não se sentiu disposto a mofa quando Barnard lhe confiou que também encarava com interesse o seu futuro em Shangri-Lá.

Ao parecer, as excursões de Barnard no vale, que por último se haviam tornado mais freqüentes, não eram intei-ramente dedicadas à bebida e às mulheres.

— Veja, Conway, eu lhe digo isto porque você é diferente de Mallinson... Ele tem raiva de mim, como provavelmente já observou. Mas acho que você poderá compreender melhor a situação. Coisa esquisita. . . os funcionários ingleses parecem tão formalistas, tão engomados, a princípio, mas afinal a verdade é que se pode ter inteira confiança em homens assim.

— Não lhe garanto — redargüiu Conway, sorrindo. — Olhe que Mallinson é tão funcionário inglês quanto eu.

— Sim, mas é uma criança ainda. Não encara os fatos de um modo razoável. Você e eu somos homens do

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mundo, tomamos as coisas como elas vêm. Esta casa aqui por exemplo. . . Ainda não compreendemos nada de tudo isto, nem sabemos por que nos trouxeram aqui, mas afinal de contas não são assim todos os caminhos da vida? Acaso sabemos por que estamos neste mundo?

— Talvez muitos dentre nós não o saibam. Mas aonde quer chegar?

Barnard baixou a voz, que se fez um murmúrio um tanto rouco.

— Ouro, meu amigo — respondeu, meio extático. — Nem mais nem menos. Toneladas de ouro, literalmente toneladas, no vale! Em moço fui engenheiro de minas e não me esqueci de como se reconhece um veio. Acredite-me, este é tão rico como o Rand e dez vezes mais fácil de explorar. Com certeza você pensava que eu ia para a pân-dega todas as vezes que lá descia na cadeirinha. Qual nada! Sabia o que estava fazendo. Olhe, eu vinha ruminando há muito que estes camaradas não podiam adquirir tudo o que lhes vem de fora sem pagar um preço elevadíssimo; e com que haviam de pagar, a não ser com ouro, prata, diamantes ou qualquer coisa desse jaez? Lógica simples, não é? Comecei então a bisbilhotar por aí e não tardei muito a desvendar o mistério.

— Desvendou-o sozinho?— Bem.. . não de um todo, mas fiz as minhas

conjeturas e então expus a coisa a Tchang — francamente, ouça bem, de homem a homem. E creia-me, Conway, esse chim não é um sujeito tão mau como seria de pensar.

— Por minha parte, nunca o considerei mau sujeito.— Sim, sei que você sempre simpatizou com ele, e

não estranhará que nos tenhamos entendido bem. A verda-de é que nos acertamos maravilhosamente. Mostrou-me todas as instalações da mina, e você há de ter interesse em

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saber que as autoridades me deram permissão de inspe-cionar todo o vale à vontade e preparar um relatório completo. Que lhe parece, meu amigo? Pareceram muito satisfeitos por dispor dos serviços de um perito, principalmente quando lhes disse que podia sugerir meios de aumentar produção.

— Vejo que você vai sentir-se como em sua casa aqui — disse Conway.

— Bem, o fato é que encontrei uma ocupação, e isto não é pouco. E a gente nunca sabe como vai acabar uma coisa. Pode ser que o pessoal lá na terra não faça tanta questão de me meter na cadeia quando souberem que eu lhes posso indicar uma nova mina de ouro. A única dificul-dade é esta: eles acreditariam na minha palavra?

— Pode ser. A boa fé da humanidade é extraordi-nária.

Barnard assentiu com entusiasmo.— Alegra-me que você tenha compreendido, Conway.

E é sobre este ponto que podemos entrar num entendi-mento. Metade por metade em tudo, bem entendido. Tudo o que quero de você é que aponha a sua assinatura no meu relatório. Cônsul inglês et cetera e tal. Isso vale muito.

Riu-se Conway.— Havemos de tratar disso. Primeiro faça o seu

relatório.Divertia-o a idéia desse negócio cuja realização era

tão improvável e ao mesmo tempo sentia-se contente por haver Barnard encontrado uma ocupação tão satisfatória.

Compartilhava desse sentimento o Lama Superior, a quem Conway visitava cada vez mais amiúde. Não raro ia vê-lo a horas adiantadas da noite e ficava largo tempo, até

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muito depois de retirarem os criados as últimas taças de chá e serem mandados dormir. Nunca deixava o Lama Superior de interrogá-lo sobre os progressos e o bem-estar de seus companheiros, e certa vez o inquiriu particular-mente acerca de suas profissões, forçosamente interrom-pidas desde a chegada a Shangri-Lá.

Conway respondeu em tom refletido:— Mallinson poderia ter uma bela carreira. É enér-

gico e tem ambição. Quanto aos outros dois... — ajuntou, encolhendo os ombros — o fato é que lhes convém a estada aqui, pelo menos durante algum tempo.

Notou um bruxuleio de luz através da janela encortinada. Percebera um rumor de trovões ao atravessar os pátios em direção à sala, que se lhe tornara já tão familiar. Não ouvia, agora, som algum, e os grossos reposteiros amorteciam os relâmpagos reduzindo-os a pálidos vislumbres de claridade.

— Sim — respondeu o Lama Superior. — Fizemos o possível para que ambos se sintam à vontade. Miss Brinklow deseja converter-nos, e Mr. Barnard também gostaria de nos converter. . . numa companhia de responsabilidade limitada. Projetos inofensivos, que os ajudarão a passar agradavelmente o tempo. Mas quanto ao seu jovem amigo, a quem nem o ouro nem a religião podem oferecer conforto —, que faremos dele?

— Sim, vai tornar-se um problema.— Receio que se torne o seu problema.— Porque meu?Não teve Conway resposta imediata. O serviço de chá

foi introduzido naquele momento e o Lama Superior assu-miu as maneiras de uma débil e ressequida hospitalidade.

— O Karakal nos envia tormentas nesta época do ano — observou, adornando a conversação de acordo com o

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ritual. — O povo da Lua Azul acredita que elas são cau-sadas por demônios enraivecidos que andam soltos nos vastos espaços além do desfiladeiro. "Lá fora", dizem eles. Talvez tenha notado que no seu dialeto a expressão designa todo o resto do mundo. É claro que nada sabem de países como a França, a Inglaterra, ou mesmo a Índia. Imaginam que o terrível altiplano não tem fim. Para eles, tão abrigados no seu vale quente e sossegado, parece inconcebível que um morador daqui deseje ir embora. Supõem mesmo que todos os infelizes "forasteiros" anseiem por vir para cá. É uma simples questão de ponto de vista, não acha?

Conway recordou-se das observações semelhantes de Barnard e referiu-as.

— Como ele é sensato! — comentou o Lama Supe-rior. — E é o primeiro americano que temos entre nós. Fomos realmente felizes.

Conway achou graça ao pensar que era uma felicidade para o mosteiro a aquisição de um homem que a polícia de doze países procurava ativamente. Gostaria de comunicar o chiste, mas pareceu-lhe que seria preferível contar o próprio Barnard a sua história na ocasião azada. Limitou-se, pois, a dizer:

— Não resta dúvida de que ele tem toda a razão, e há hoje em dia no mundo muita gente que teria satisfação em vir para cá.

— Gente demais, meu caro Conway. Nós somos um único bote salva-vidas, afrontando os mares numa borrasca; podemos recolher alguns sobreviventes que o acaso nos depara, mas se todos os náufragos nos alcançassem subissem a bordo correríamos risco de ir ao fundo também. . . Mas deixemos de pensar nisso agora. Soube que tem discreteado com o nosso excelente Briac.

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Um encantador compatriota meu, embora não compartilhe a sua opinião de que Chopin é o maior dos compositores. Quanto mim, como sabe, prefiro Mozart. . .

Somente depois de retirado o serviço de chá e de serem finalmente despedidos os criados foi que Conway se aventurou a repetir a sua pergunta que ficara sem resposta:

— Falávamos a respeito de Mallinson e o senhor disse que ele seria o meu problema. Por que meu?

Então o Lama Superior respondeu muito simples-mente:

— Porque estou prestes a morrer, meu filho.A declaração parecia extraordinária, e por algum

tempo Conway não pôde articular uma palavra. Finalmente o Lama Superior continuou:

— Ficou surpreso? Mas é claro, meu amigo, que todos somos mortais.. . mesmo em Shangri-Lá. E é possí-vel que ainda me restem alguns momentos, ou quem sabe alguns anos. . . Apenas lhe participo a singela verdade de que já vejo próximo o fim. É muito gentil em mostrar-se assim compungido, e não pretendo ocultar que, mesmo na minha idade, contempla-se a morte com certa melancolia. Por felicidade, pouco sobra de mim para morrer fisica-mente, e, quanto ao resto, todas as nossas religiões pos-suem em comum um agradável otimismo. Sinto-me contente, mas devo acostumar-me a uma estranha sensação durante as horas que me restam: devo compreender que só tenho tempo para uma coisa mais. Não imagina o que seja?

Conway permaneceu calado.— Ela te diz respeito, meu filho.— Faz-me uma grande honra.— Tenho em mente fazer muito mais do que isto. Inclinou-se Conway levemente, sem falar, e o Lama

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Superior, depois de aguardar por um momento, continuou:— Talvez saibas que a freqüência destas conversa-

ções não é usual aqui. Mas é da nossa tradição, se me permites o paradoxo, não sermos escravos da tradição. Não temos normas rígidas, nenhuma regra inflexível. Fazemos o que nos parece justo, guiados um tanto pelo exemplo do passado, porém muito mais pela nossa sabedoria presente e pela clarividência do futuro. E eis por que me sinto com ânimo de levar a cabo este último intento.

Conway guardava o mesmo silêncio.— Deponho em tuas mãos, meu filho, a herança e o

destino de Shangri-Lá.Relaxou-se por fim a tensão, e Conway sentiu atrás

dela o poder de uma persuasão suave e benigna. Os ecos mergulharam no silêncio, e só ficaram as pancadas do seu coração, que batia como um gongo. Depois, interceptando o ritmo, vieram as palavras:

— Esperei-te, meu filho, durante longo tempo. Senta-do nesta sala, olhava a fisionomia dos recém-chegados, perscrutava-lhes os olhos e ouvia-lhes a voz, sempre na esperança de algum dia encontrar-te. Meus colegas enve-lheceram e adquiriram sabedoria, mas tu ainda tão jovem, possuis já a mesma sabedoria. Meu amigo, não é árdua a tarefa que te lego, pois a nossa ordem só conhece cadeias de seda. Ser brando e paciente, velar pelos tesouros do espírito, presidir com sabedoria e sigilo enquanto a tempestade ruge lá fora — tudo isso te será muito simples e agradável, e sem dúvida encontrarás nessas coisas grande felicidade.

De novo tentou Conway replicar, mas não pôde. Afi-nal, um forte relâmpago fez empalidecer as sombras e o incitou a exclamar:

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— A tormenta. . . essa tormenta de que fala.. .— Será uma tormenta, meu filho, como jamais o

mundo viu outra igual. Não haverá segurança pelas armas, nem auxílio dos poderosos, nem resposta de ciência. Rugirá até que todas as flores da cultura tenham sido espezinhadas e todas as coisas humanas se nivelem num vasto caos. Tal foi a minha visão quando Napoleão era ainda um nome desconhecido. E continuo a vê-la, mais clara a cada hora que passa. Podes dizer que me engano?

Conway respondeu:— Não, penso que pode ter razão. Uma catástrofe

semelhante aconteceu uma vez, e veio então a Idade das Trevas, que durou quinhentos anos.

— O paralelo não é inteiramente exato, porque essa Idade das Trevas não foi na realidade tão escura. Havia por toda parte clarões de lanternas, e, ainda que a luz se houvesse apagado por completo na Europa, existiam ou-tros lumes, da China ao Peru, nos quais poderia ser de novo acesa. Mas a Idade das Trevas que está por vir cobri-rá o mundo todo como uma única mortalha. E não haverá escapatória nem refúgio, salvo os que forem demasiado secretos para ser encontrados, ou tão humildes que nin-guém lhes dê atenção. E Shangri-Lá pode talvez ser ambas as coisas. O aviador que demanda as grandes cidades com a sua carga mortífera não passará por aqui, e, se o fizer, talvez não nos considere dignos de uma bomba.

— E pensa que tudo isso acontecerá no meu tempo?— Acredito que sobreviverás à tormenta. E ainda

depois, através da longa época de desolação, poderás con-tinuar a viver, tornando-te mais velho, mais sábio e mais paciente. Conservarás a fragrância da nossa tradição e acrescentar-lhe-ás o toque do teu próprio espírito.

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Acolherás o estranho e lhe ensinarás as regras da sabedoria e da longa vida; e poderá acontecer que um desses estranhos venha a suceder-te quando estiveres muito velho. Para além desse ponto minha visão se turva, mas ainda vislumbro, a grande distância, um novo mundo que nasce das ruínas, agitando-se desajeitado, mas cheio de esperança, à procura dos legendários tesouros que perdeu. E estarão todos aqui, meu filho, ocultos por detrás das montanhas, no vale da Lua Azul, preservados como por milagre para um novo Renascimento. . .

Cessou a fala e sob os olhos de Conway o rosto banhou-se de remota beleza. Então desapareceu o resplendor e não quedou senão uma máscara, mergulhada na sombra e esfarelando-se como madeira velha. Estava completamente imóvel e tinha os olhos fechados. Observou-o Conway durante algum tempo e afinal, como se fosse num sonho, compreendeu que o Lama Superior estava morto.

Pareceu-lhe necessário referir a situação a uma reali-dade qualquer, a fim de que não se tornasse demasiado estranha para ser acreditada, e com instintivo movimento de mão e olhos, consultou o relógio de pulso. Passava um quarto da meia-noite. Subitamente, quando atravessava a sala dirigindo-se para a porta, ocorreu-lhe que não sabia sequer onde e como iria pedir auxílio. Os tibetanos, segun-do o costume, já se haviam todos recolhido e ele não tinha idéia de como encontrar Tchang ou qualquer outro. Deteve-se indeciso no limiar do escuro corredor. Por uma janela pôde ver que o céu estava claro, embora as montanhas ainda resplandecessem à luz dos relâmpagos, como um afresco prateado. E então, no meio daquele sonho sereno e envolvente, sentiu-se senhor de Shangri-

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Lá. Eram suas essas coisas amadas que o cercavam, essas coisas recônditas do espírito, entre as quais vivia com crescente intensidade, longe da agitação do mundo. Seus olhos mergulharam nas sombras e prenderam-se aos pontinhos de ouro que faiscavam nas lacas soberbas e ondulantes; e o aroma das angélicas, tão tênue que mal chegava a ser uma sensação, atraía-o de peça em peça. Por fim deparou com a porta dos pátios e pôs-se a errar à beira do lago. A lua cheia singrava o céu por detrás do Karakal. Faltavam vinte minutos para as duas.

Mais tarde percebeu que Mallinson estava junto dele, que o tomava pelo braço e o levava dali com grande pres-sa. Não compreendia de que se tratava. Apenas ouvia a voz do rapaz, que falava muito agitado.

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CAPÍTULO XI

Chegaram à sala com sacadas, onde lhes eram servi-das as refeições. Mallinson ainda lhe apertava o braço quase arrastando-o para diante.

— Venha, Conway, temos tempo até o amanhecer para arrumar as nossas coisas e ir embora. Grande notícia, homem! Imagino o que dirão amanhã o velho Barnard e Miss Brinklow, quando derem pela nossa falta. . . Enfim, ficam porque querem, e provavelmente viajaremos muito melhor sem eles... Os carregadores estão a cerca de cinco milhas do desfiladeiro. Chegaram ontem com uma remessa de livros e outras coisas. . . Amanhã vão voltar. . . Mostra que esses indivíduos tinham a intenção de nos enganar . . . nem nos avisaram. . . íamos ficar presos aqui até sabe Deus quando. , . Mas que tem você? Está doente?

Afundara-se Conway numa cadeira e estava inclinado para a frente, com os cotovelos na mesa. Passou a mão pelos olhos.

— Doente? Não, penso que não. Talvez um pouco. . . cansado.

— Deve ser a tormenta. Onde esteve todo esse tempo? Há horas que estava à sua espera.

— Estive. . . visitando o Lama Superior.— Ah, esse! Bem, em todo caso foi a última vez,

graças a Deus!— Sim, Mallinson, a última vez.

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Algo na voz de Conway e ainda mais no silêncio que se seguiu provocou irritação no moço.

— Seria bom que não ficasse nessa moleza. Temos muito que fazer, como sabe!

Conway retesou-se no esforço que fez para voltar à plena consciência.

— Sinto muito — disse.Para experimentar seus nervos e a realidade de suas

sensações, acendeu um cigarro. Verificou que tanto as mãos como os lábios estavam trêmulos. .

— Receio não ter entendido bem. . . Diz você que os carregadores. . .

— Sim, os carregadores, homem! Por favor, caia em si!

— Está pensando em ir com eles?— Pensando?! Vou com eles, com o demônio! Estão

pouco além da cordilheira. E temos de nos pôr em marcha imediatamente.

— Imediatamente?— Sim, sim, por que não?Conway fez nova tentativa para se transportar de um

mundo para o outro. Como o conseguisse em parte, disse finalmente:

— Você compreende, sem dúvida, que isso talvez não seja tão simples como parece?

Mallinson estava amarrando umas botas tibetanas de montanha e respondeu em frases entrecortadas:

— Compreendo tudo. . . mas trata-se de uma coisa que temos de fazer. . . e faremos, com a ajuda da sorte. . . se não perdermos tempo.

— Não vejo como. . . — Ó Senhor! Conway, será que você recua diante de

tudo? Por acaso perdeu toda a fibra?

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A interpelação, um tanto apaixonada e um tanto sardônica, ajudou Conway a tomar acordo de si.

— Se perdi ou não, não vem ao caso; mas, se deseja que me explique, eu me explicarei. Quero expor-lhe deta-lhes importantes. Suponhamos que você atravesse o desfiladeiro e encontre os carregadores. Como sabe se eles quererão levá-lo? De que modo os induzirá a isso? Não lhe ocorreu que, ao contrário do que imagina, eles talvez se mostrem pouco dispostos? Não pode apresentar-se diante deles e pedir-lhes que o conduzam. É necessário entrar em negociações, fazer um ajuste prévio. . .

— Ou qualquer outra coisa que acarrete nova demora — exclamou Mallinson com violência. — Meu Deus, que homem! Felizmente, não preciso contar com você para arranjar as coisas. Porque elas estão arranjadas; os carre-gadores foram pagos adiantado e concordaram em nos levar. E aqui estão as roupas e o equipamento para a via-gem, tudo pronto. Assim, a sua última escusa desaparece. Venha daí, façamos alguma coisa!

— Mas... eu não compreendo. . .— Eu sei disso, mas não importa.— Quem foi que organizou todos esses planos? Mallinson respondeu com brusquidão:— Pois se faz questão de saber, foi Lo-Tsen. Já está

com os carregadores à nossa espera.— À nossa espera?— Sim, ela vai conosco. Creio que você não se opõe.

À menção de Lo-Tsen, os dois mundos entraram em contato e fundiram-se instantaneamente no espírito de Conway. Gritou vivamente quase com desprezo:

— Isto é um disparate. É impossível!

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Mallinson, por sua vez, perguntou cortante: — Por que impossível?— Porque. . . bem, porque é. Há uma série de

razões. Creia-me, isso não pode dar certo. Já é bastante incrível que ela esteja lá fora neste instante. . . espantou-me o que você disse. . . mas a idéia de Lo-Tsen ir conosco é simplesmente absurda.

— Não vejo por que possa ser absurda, afinal de contas. É tão natural que ela queira ir! É aí que você se engana.

Mallinson sorriu nervosamente.— Você pensa que a conhece muito melhor do que

eu. Mas talvez não conheça, apesar de tudo.— Que quer dizer?— Há outros meios de entender as pessoas, sem que

seja preciso aprender dúzias de línguas.— Em nome do céu, aonde quer você chegar? E, mais calmo, Conway acrescentou:— Isto não tem pés nem cabeça. Não devemos discu-

tir. Diga-me, Mallinson, o que significa tudo isso? Até agora não entendi nada.

— Então por que está fazendo tamanho barulho?— Diga-me a verdade; por favor, diga-me a verdade!— Bem, é bastante simples. Uma garota dessa idade,

encerrada aqui entre velhos excêntricos. . . é natural que queira ir embora se lhe dão um ensejo. Até agora não se apresentara nenhum.

— Não imagina que possa estar enganado, atribuin-do-lhe uma situação que é puramente sua? Como sempre lhe tenho dito, ela é perfeitamente feliz.

— Então por que concordou em ir embora?— Disse isto? Como podia fazê-lo, se não sabe

inglês?

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— Eu lhe perguntei... em tibetano. Foi Miss Brinklow que me ensinou as palavras. Claro que não foi uma conversação muito fluente, mas bastou para. . . para levar a um entendimento.

Mallinson corou de leve.— Irra, Conway. não me encare desse modo! Quem

o visse diria que estive caçando no seu cercado.— Ninguém diria semelhante coisa, espero — res-

pondeu Conway. — Mas a sua observação revela muito mais do que você desejaria talvez dar-me a entender. Só posso dizer que lamento muito.

— E por que diabo há de lamentar?Conway deixou cair o cigarro que tinha entre os

dedos. Sentia-se cansado, aborrecido e agitado por um pro-fundo conflito de afeições que bem desejaria não ter despertado. Disse com brandura:

— Seria melhor que deixássemos de falar por enig-mas. Sei que Lo-Tsen é encantadora, mas por que havemos de disputar por causa dela?

— "Encantadora"? — repetiu Mallinson, escarninho. — É muito mais do que isso. Você não deve pensar que todos tenham o seu sangue-frio com relação às mulheres. Admirá-la como se fosse uma peça de museu talvez seja a idéia que você faz do seu mérito, mas quanto a mim sou mais prático, e quando vejo em situação difícil uma criatura que me agrada, faço tudo por ajudá-la.

— Mas não acha que está agindo precipitadamente? Para onde pensa que ela irá, se sair daqui?

— Penso que deve ter amigos na China ou em qual-quer outra parte. Seja como for, estará melhor do que aqui.

— Como pode ter certeza disso?— Bem, eu olharei por ela se não houver ninguém

que o faça. Afinal de contas, quando se vai salvar alguém

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de um inferno, não se costuma indagar se esse alguém tem para onde ir.

— E considera um inferno Shangri-Lá?— Positivamente. Há neste ambiente qualquer coisa

de tenebroso e diabólico. Nosso próprio caso demonstra-o bem, desde o princípio; a maneira como fomos trazidos para cá, sem o menor motivo, por algum maluco, e o modo como nos foram retendo, sob um pretexto ou outro. Porém o mais assustador de tudo, a meu ver, foi o efeito que pro-duziu em você.

— Em mim?— Sim, em você. Você deu para andar na lua, como

se nada lhe importasse e como se estivesse conformado a ficar aqui para sempre. Pois se chegou a reconhecer que este lugar lhe agradava!. .. Que foi que lhe sucedeu, Conway? Será que não pode voltar a ser como era antes? Nós nos entendíamos tão bem em Baskul. . . Você era completamente outro, então.

— Meu bom rapaz!Conway estendeu a mão a Mallinson, que a apertou

com afeição veemente e impetuosa, prosseguindo:— Suponho que não o tenha notado, mas me senti

terrivelmente só estas últimas semanas. Ninguém parecia importar-se com a única coisa que era realmente importan-te... Barnard e Miss Brinklow tinham lá seus motivos, mas fiquei aterrado quando descobri que você também estava contra mim.

— Lamento-o deveras.— Você repete sempre isto, mas de que serve? Conway replicou, levado por um impulso repentino:— Bem, deixe-me ajudá-lo, se for possível,

contando-lhe certas coisas. Depois de ouvi-las, estou certo

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de que compreenderá grande parte do que agora lhe parece estranho e obscuro. Pelo menos, compreenderá por que Lo-Tsen não pode voltar em sua companhia.

— Creio que não há nada que me possa convencer disso. E abrevie o mais possível o que tem para dizer, pois não podemos perder tempo.

Conway então contou, o mais resumidamente que pôde, toda a história de Shangri-Lá tal como a ouvira do Lama Superior, acrescida de novos detalhes colhidos nas conversações com este e com Tchang. Era uma coisa que não pretendia fazer, mas sentia que nas atuais circuns-tâncias isso era justificável e até necessário. Mallinson tornara-se, na verdade, o seu problema, e estava empe-nhado em resolvê-lo. Narrou tudo com rapidez e fluência, e ao fazê-lo caiu de novo sob o sortilégio daquele estranho mundo exterior ao tempo. A beleza desse mundo o subju-gava enquanto ia falando, e mais de uma vez teve a impressão de estar lendo uma página impressa na memória, tão nitidamente se haviam gravado as idéias e as frases. Só uma coisa omitiu, e isto para poupar a si próprio uma emoção que não poderia ainda dominar: a morte do Lama Superior naquela noite e o fato de que iria suceder-lhe.

Ao se aproximar do fim sentiu-se aliviado. Estava satisfeito por haver vencido a dificuldade, e esta, enfim, era a única solução. Ergueu os olhos calmamente assim que terminou, na certeza de que havia procedido bem.

Entretanto, Mallinson não fazia mais do que tamborilar na mesa com os dedos. Ao cabo de uma longa espera falou:

— Francamente, não sei o que dizer, Conway... a não ser que você deve estar completamente louco. ..

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Seguiu-se um largo silêncio, durante o qual os dois homens se encararam com sentimentos bem diversos: Conway alheado e desapontado, Mallinson num violento e inquieto mal-estar.

— Então você me julga louco? — disse Conway afinal.

Mallinson desatou num riso nervoso.— Bem, que outra coisa poderia dizer, depois de uma

história como esta? Quer dizer. . . ora, com franqueza. . . um absurdo tão evidente. . . parece-me que não vale a pena discutir.

A expressão e a voz de Conway eram de imenso assombro.

— Acha que é absurdo?— Pois que nome daria você a isso? Desculpe-me,

Conway. . . o que vou dizer é um pouco forte. . . mas não vejo como uma pessoa de juízo são possa ter dúvidas a respeito.

— Então continua acreditando que viemos ter aqui devido a um simples acaso, por obra de um lunático que preparou cuidadosamente o plano de fuga num aeroplano e voou milhas por mera brincadeira?

Conway ofereceu um cigarro, que o outro aceitou. A pausa que se seguiu pareceu ser do agrado de ambos. Finalmente Mallinson respondeu:

— Olhe, não convém discutir isso ponto por ponto. Na verdade, a sua teoria de que esta gente daqui enviou alguém a vaguear pelo mundo, à caça de estrangeiros, e que esse sujeito fez curso de piloto e ficou à espera de que um aparelho apropriado aos seus intuitos deixasse Baskul com quatro passageiros. . . bem, não direi que isso seja de todo impossível, embora me pareça ridiculamente forçado. Se a coisa parasse aí, poderia ser digna de consideração,

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mas quando você a prende a toda aquela série de detalhes absolutamente impossíveis. . . isso de os lamas terem cen-tenas de anos de idade, e que descobriram uma espécie de elixir da juventude ou coisa que o valha. . . bem, isso simplesmente me faz perguntar aos meus botões que sorte de micróbio o mordeu, eis tudo.

Conway sorriu.— Sim, não é de estranhar que ache difícil acreditar

nisso. Talvez eu mesmo tenha duvidado no princípio. . . Não me recordo bem. Sem dúvida é uma história extraordinária, mas deve ter verificado com os seus próprios olhos que este lugar também é extraordinário. Pense em tudo o que até agora vimos: um vale perdido entre montanhas inexploradas, um mosteiro com uma biblioteca de livros europeus. . .

— Oh! sim, e calefação interna, e encanamentos modernos, e chá da tarde, e tudo mais. . . Tudo isto é real-mente maravilhoso, eu sei.

— Bem, e como o explica, então?— Confesso que não posso fazer idéia. É um com-

pleto mistério. Mas isso não é motivo para aceitar histórias que são materialmente impossíveis. Acreditar em banhos quentes que a gente toma é muito diferente de acreditar na existência de homens com mais de duzentos anos, só por-que eles o dizem.

Mallinson riu outra vez, ainda contrafeito.— Olhe aqui, Conway, este lugar afetou-lhe os ner-

vos, e isso não me admira. Arrume as suas coisas e vamos. Terminaremos esta discussão daqui a um mês ou dois, diante de um bom jantar no Maiden.

Conway respondeu tranqüilamente:— Não tenho nenhum desejo de voltar a essa vida.

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— Que vida?— A vida em que você está pensando. Jantares, bai-

les, pólo. . . e mais o que se segue.— Mas eu não falei em bailes nem em pólo! Em todo

caso, que há de mal nisso? Quer dizer que não pretende vir comigo? Prefere ficar aqui como os outros dois? Mas pelo menos não há de impedir que eu me safe o quanto antes!

Mallinson deitou fora o cigarro e enveredou em dire-ção à porta, despedindo chispas pelos olhos.

— Você está fora do juízo! — gritou, exasperado. — Está louco, essa é a verdade, Conway! Sei que sempre foi calmo e eu sou irritável, mas com tudo isso tenho o juízo perfeito, e você não tem! Preveniram-me antes que eu me juntasse a você em Baskul, e eu pensei que se enganavam, mas agora vejo que tinham razão. . .

— De que o preveniram?— Disseram-me que você foi atingido por uma

explosão de granada durante a guerra, e que desde então fica tresloucado às vezes. Não o estou censurando por isso. Sei que não tem culpa, e Deus sabe o que me custa falar assim... Oh, vou-me embora! Tudo isto é horrível e desalentador, mas tenho de ir. Dei a minha palavra.

— A Lo-Tsen?— Sim, já que deseja saber. Conway ergueu-se e estendeu a mão.— Adeus, Mallinson.— Pela última vez, não vem conosco?— Não posso.— Adeus, então.Apertaram-se as mãos e Mallinson afastou-se.

Quedou-se Conway sozinho à luz das lanternas. Pare-

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ceu-lhe, de acordo com uma frase gravada na memória, que as coisas mais belas eram transitórias e perecíveis, que os dois mundos afinal eram irreconciliáveis e que um deles, como sempre, estava suspenso por um fio. Depois de meditar por algum tempo, olhou o relógio. Faltavam dez minutos para as três.

Estava ainda junto à mesa, fumando o último cigarro, quando Mallinson voltou. O rapaz entrou tomado de certa emoção e, vendo-o ali, permaneceu na sombra, como tra-tando de se dominar. Estava calado, e depois de esperar um momento Conway começou:

— Olá, que aconteceu? Por que voltou?A pergunta tão natural fez com que Mallinson desse

alguns passos à frente. Tirou a pesada capa de pele de ove-lha e sentou-se. Tinha o rosto cor de cinza e todo o seu corpo tremia.

— Não tive ânimo! — exclamou, quase soluçando. — Aquele lugar em que fomos amarrados, lembra-se? Cheguei até lá... mas não pude continuar! Não tenho ca-beça para as alturas, e ao luar aquilo é medonho. Estúpido, não acha?

Abateu-se por completo. Sobreveio-lhe uma crise de nervos e por fim, depois de tê-lo Conway acalmado, acrescentou:

— Não precisam preocupar-se estes sujeitos da-qui . . . Nunca serão ameaçados por terra. Mas, meu Deus, quanto eu daria para voar por cima disto com uma carga de bombas!

— Por que desejaria fazer isso, Mallinson?— Porque este lugar precisa ser destruído, seja ele o

que for. É um lugar sórdido e nefasto. . . e, se fossem verdadeiras as histórias incríveis que você me contou, seria mais odioso ainda! Dúzias de velhos encarquilhados,

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agachados aqui como aranhas à espreita do primeiro que lhes passe perto. . . é asqueroso! E afinal quem desejaria viver tanto assim? E quanto ao seu rico Lama Superior, se tem metade da idade que você diz, já é tempo de alguém livrá-lo dessa miséria. . . Oh! por que não quer vir comigo, Conway? Detesto implorar-lhe a minha própria salvação, mas, que diabo, sou moço e temos sido tão bons amigos! Minha vida nada vale então para você comparada com as patranhas dessas criaturas hediondas? E Lo-Tsen, então. . . Ela é jovem; não merece ser levada em conta?

— Lo-Tsen não é jovem — disse Conway. Mallinson alçou os olhos e pôs-se a rir histericamente.— Oh! não, não é jovem! Absolutamente! Parece ter

uns dezessete anos, mas você me vai dizer com certeza que ela anda pelos noventa, bem conservados.

— Mallinson, ela veio para cá em 1884.— Você está delirando, homem!— Sua beleza, Mallinson, como toda beleza no

mundo, jaz à mercê daqueles que não lhe sabem dar o devido valor. É uma coisa frágil que só pode viver onde as coisas frágeis são amadas. Tire-a deste vale e vê-la-á desvanecer-se como uma miragem.

Mallinson teve um riso áspero, como se haurisse con-fiança nos seus pensamentos.

— Não receio tal coisa. Aqui é que ela é apenas uma miragem, e não em qualquer outro lugar.

Fez uma pausa e acrescentou:— Mas esta conversa não resolve nada. Seria melhor

que deixássemos de lado o poético e descêssemos à realidade. Conway. desejo ajudá-lo. Sei que tudo isso é puro disparate, mas estou disposto a discuti-lo se da discussão lhe resultar algum bem. Farei de conta que se

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trata de coisas possíveis e que requerem exame. Agora diga-me seria mente: que provas tem da veracidade da história que me contou ?

Conway permaneceu calado.— Apenas a palavra de quem lhe impingiu essa

fantástica conversa fiada. Ainda que se tratasse de uma pessoa merecedora de toda a confiança, e que você tivesse conhecido a vida inteira, não aceitaria tais coisas sem prova. E que provas tem no caso presente? Absolutamente nenhuma, que eu veja. Lo-Tsen lhe contou alguma vez a sua vida?

— Não, mas. . .— Então por que acreditar na versão de um outro? E

toda essa fábula de longevidade. . . pode apresentar algum fato que venha em seu apoio?

Conway refletiu por um momento e mencionou as composições inéditas de Chopin, que Briac tocara.

— Bem, este é um assunto que não me diz nada, pois não conheço música. Mas, mesmo que fossem autênticas, não seria possível que ele as tivesse ouvido de alguém, sem que essa história seja verdadeira?

— Perfeitamente possível, sem dúvida.— E esse método que você diz existir. . . conservação

da juventude, e tal e coisa. Em que consiste ele? Você disse que se trata de uma certa droga. . . Mas eu quero saber que droga é. Viu-a por acaso, ou provou-a? Porven-tura alguém lhe apresentou algum fato positivo que demonstrasse a sua eficácia?

— Não em detalhe, é verdade.— E você nunca pediu detalhes? Não lhe ocorreu que

semelhante coisa exigia confirmação? Engoliu tudo sem

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pestanejar?E, tirando proveito da sua vantagem, Mallinson

continuou:— Que sabe de positivo acerca deste lugar, além do

que lhe disseram? Falou com meia dúzia de velhos, eis tudo. Fora disso, só podemos dizer que o lugar está bem aparelhado e reina aqui certa atmosfera de cultura. Agora, quanto a saber como e por que isso veio a ter existência, não fazemos a menor idéia. Também é um mistério o moti-vo por que nos querem prender aqui, se é que têm essa intenção. Mas por certo isso não é razão para dar crédito à primeira lenda que lhe contam! Afinal, homem, você é uma pessoa dotada de senso crítico! Não acreditaria em qualquer coisa que lhe dissessem, mesmo num mosteiro inglês. Francamente, não compreendo como aceita tudo sem hesitar, só porque está no Tibete!

Conway moveu a cabeça em sinal de assentimento. Embora a sua percepção fosse mais profunda, não podia; negar aprovação a um argumento bem apresentado.

— A observação é fina, Mallinson. A verdade, suponho, é que quando se trata de acreditar nas coisas sem provas reais, todos nós nos inclinamos para aquilo que mais nos agrada.

— Arre, que me enforquem se vejo alguma coisa de agradável em continuar vivendo quando já se está meio morto! Antes uma vida curta, mas alegre. E isso duma guerra futura me parece muito fantasioso. Quem poderá saber quando vai dar-se a próxima guerra e como será ela? Por acaso não se enganaram todos os profetas da última guerra?

Calou-se à espera de uma resposta, mas, como esta não viesse, prosseguiu:

— Como quer que seja, não acredito que essas coisas

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sejam inevitáveis. E, ainda que fossem, não vejo razão para nos pormos a tremer de susto. Só Deus sabe se eu me portaria como um valente numa guerra, mas preferiria enfrentá-la a sepultar-me vivo neste lugar.

Conway sorriu.— Mallinson, você tem a soberba habilidade de não

me entender. Quando estávamos em Baskul tomava-me por um herói. Agora me considera um covarde. A verdade é que não sou nem uma nem outra coisa — embora, naturalmente, isso não tenha importância para mim. Se quiser pode dizer a toda gente, quando voltar à Índia, que resolvi ficar num mosteiro tibetano porque tenho medo de outra guerra. Não é esse em absoluto o motivo, mas não deixará de merecer o crédito daqueles que me consideram louco.

Mallinson respondeu com alguma tristeza:— É ridículo falar assim. Aconteça o que acontecer,

jamais direi uma palavra contra você. Pode estar certo disso. Reconheço que não o entendo, mas. . . mas desejaria entender. Sim, eu o desejo! Conway, não poderei ajudá-lo? Que é preciso que eu diga ou faça?

Seguiu-se um longo silêncio, que Conway afinal que-brou dizendo:

— Há uma pergunta que desejava fazer-lhe, mas é terrivelmente íntima. Não sei se me perdoará.

— O que é?— Está apaixonado por Lo-Tsen?A palidez do rapaz cedeu lugar rapidamente a um

vivo rubor.— Penso que estou. Sei que você qualificará isso de

absurdo e inconcebível, e é provável que tenha razão, mas não posso evitar meus sentimentos.

— Não me parece absurdo, de modo algum.

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A discussão parecia navegar agora em águas mais tranqüilas, depois de tantos embates. Conway acrescentou:

— Eu também não posso evitar os meus sentimentos. Sucede que você e essa moça são as duas pessoas por quem mais me interesso no mundo, embora isto possa parecer-lhe singular.

Ergueu-se abruptamente e entrou a passear pela sala.— Já dissemos tudo o que podíamos, não é verdade?— Suponho que sim — respondeu Mallinson, que no

entanto prosseguiu, num ímpeto repentino: — Oh! como é estúpido dizer que ela não é jovem! Estúpido e abominá-vel. Conway, você não pode acreditar nisso! Pois não vê que é uma coisa ridícula? Como será isso possível?

— Como pode você saber que ela é realmente jovem? Mallinson desviou parcialmente o rosto, com uma

expressão de timidez grave.— Porque sei... Talvez venha a me estimar menos

por causa disto. . . mas eu sei. Receio que você nunca a tenha compreendido bem, Conway. Ela era fria na aparên-cia, devido a este ambiente que lhe gelou todo o ardor. Mas o ardor existia.

— Pronto para ser reavivado?— Sim... se quer exprimir-se desse modo.— E ela é jovem, Mallinson. . . está seguro disso? Mallinson respondeu suavemente:— Meu Deus, sim. . . é uma simples menina. Eu

tinha imensa pena dela e creio que nos sentíamos atraídos um pelo outro. Não vejo por que me envergonhar disso. Mesmo num lugar como este, acho que jamais aconteceu coisa mais decente. . .

Dirigiu-se Conway para a sacada e pôs-se a contem-plar o deslumbrante penacho do Karakal. A lua vogava no alto, sobre um mar sem ondas. Sentiu então que um sonho

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se havia desvanecido, como todas as coisas demasiado belas, ao primeiro contato da realidade; e que todo o futuro do mundo pesa tanto como o ar em confronto com a mocidade e o amor. Compreendeu, além disto, que o seu espírito habitava um mundo próprio — Shangri-Lá — em miniatura, e que esse mundo também estava em perigo. Porque, no mesmo instante em que se enchia de ânimo, viu os corredores de sua imaginação torcerem-se e retesarem-se sob o impacto; os pavilhões desmoronavam; tudo se ia reduzir a escombros. Não se sentia de todo infeliz, mas mergulhara numa perplexidade infinita e tocada de tristeza. Não sabia se estivera louco e acabava de recobrar a razão, ou se, depois de um período de lucidez, tornara a enlouquecer.

Quando voltou para dentro da sala, já não era o mesmo. Sua voz estava mais viva, quase brusca, e o rosto se lhe crispava de leve. Parecia-se muito mais com o herói de Baskul. Pronto para a ação, encarou Mallinson com uma nova súbita energia.

— Acha que conseguirá vencer o precipício, amar-rado com uma corda, se eu for com você?

Mallinson correu para ele.— Conway! — exclamou em voz sufocada. — Você

vem, então? Resolveu-se afinal?

Puseram-se a caminho logo que Conway terminou os preparativos para a jornada. Foi surpreendentemente sim-ples: uma partida e não uma fuga. Não houve nenhum inci-dente quando atravessaram os pátios raiados de luar e sombra. Dir-se-ia que tudo aquilo estava deserto, refletiu Conway. E a idéia desse vazio imediatamente lhe tornou vazio o espírito, enquanto Mallinson não cessava de pairar

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sobre a viagem — embora ele mal ouvisse. Como era estranho que aquela longa discussão conduzisse a tal resultado e que o secreto refúgio estivesse sendo abandonado por quem encontrara nele a sonhada felicidade! Com efeito, menos de meia hora depois faziam alto, arquejantes, numa curva da subida e contemplavam Shangri-Lá pela última vez. Abaixo deles, no abismo, o vale da Lua Azul era como uma nuvem e afigurou-se a Conway que os telhados esparsos o seguiam, flutuando na bruma. Era o momento de dizer adeus. Mallinson, a quem o esforço da ascensão fizera guardar silêncio, exclamou numa arfada:

— Amigo velho, vamos indo às mil maravilhas. . . Para diante!

Conway sorriu, sem responder. Estava já preparando a corda para a perigosa escalada. Na verdade, como dissera o rapaz, tinha-se resolvido — mas apenas o fizera com a parte que restava do seu espírito. Era esse pequeno frag-mento ativo que predominava agora. O resto abrangia um vazio quase intolerável. Era um homem perdido entre dois mundos, e continuaria sempre perdido. Mas por ora, naquele vácuo interior que se fazia cada vez mais profun-do, só sentia uma coisa: gostava de Mallinson e tinha de ajudá-lo. Ele, como milhões de outros, estava condenado a fugir da sabedoria e ser um herói.

O precipício punha Mallinson nervoso, mas Conway fê-lo passar à maneira tradicional dos alpinistas e, termi-nada a provação, detiveram-se para acender cigarros trazi-dos por Mallinson.

— Conway, devo dizer que você foi admirável. . . Talvez imagine o que eu sinto. . . Não lhe posso exprimir a minha alegria. . .

— No seu lugar eu não o tentaria, então.

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Após uma longa pausa, e antes que recomeçassem a jornada, Mallinson acrescentou:

— Mas estou contente, não só por mim como também por você. . . É esplêndido que você compreenda agora que tudo aquilo era pura tolice. . . É simplesmente maravilhoso vê-lo voltar à sua verdadeira personalidade. . .

— Absolutamente — replicou Conway, saboreando a sua ironia secreta.

Amanhecia quando atravessaram a linha divisória, sem serem incomodados por sentinelas — se é que as havia ali. Ocorreu a Conway que o caminho, de acordo com a norma de Shangri-Lá, devia ser vigiado com moderação. Pouco depois atingiram a planura, que se apresentava limpa como um osso, varrida pelos ventos rugidores. Após descerem um pouco, avistaram o acampamento dos carregadores. Tal como havia predito Mallinson, encontraram os homens à sua espera, indivíduos robustos vestidos de peles e couro de ovelha, acocorados para se defenderem das rajadas e ansiosos por iniciar a jornada rumo a Tat-sien-Fu — mil e cem milhas para leste, na fronteira da China.

— Ele vai conosco — gritou Mallinson, excitado, quando se encontraram com Lo-Tsen.

Esquecia-se de que ela não entendia inglês, mas Con-way traduziu.

Pareceu-lhe que a pequena manchu nunca estivera tão radiante. Teve um sorriso encantador para ele, mas os seus olhares eram todos para o rapaz.

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EPÍLOGO

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Foi em Delhi que tornei a encontrar Rutherford. Tomávamos parte num jantar do vice-rei, mas a distância e o cerimonial nos mantiveram isolados um do outro até o momento da saída, quando os lacaios de turbante nos entregaram os chapéus.

— Venha até o meu hotel e beberemos um trago — convidou ele.

Tomamos um táxi para percorrer as áridas milhas que separam a natureza morta de Lutyens3 desse vivo e palpi-tante cinematógrafo que é a Velha Delhi. Eu sabia, pelos jornais, que ele voltara recentemente a Kashgar. Era a sua uma dessas reputações bem cultivadas que de quase tudo extraem proveito. Qualquer passeio fora do comum toma as proporções de uma exploração, e, embora o explorador tenha o cuidado de não fazer nada verdadeiramente origi-nal, o público fica na ignorância disto e ele aufere todas as vantagens da primeira impressão. A viagem de Rutherford, por exemplo, tal como a narrava a imprensa, não me pare-cia de molde a fazer época. As cidades soterradas de Kho-tan não apresentavam novidade alguma para quem se recorde de Stein e Sven Hedin. Era eu bastante íntimo de Rutherford para caçoar com ele a esse respeito.

3 Sir Edwin Lutyens, arquiteto inglês que, na segunda década deste século, dirigiu a construção de Nova Delhi. (N. do T.)

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Riu-se.— Sim, a verdade daria uma reportagem muito me-

lhor — respondeu com ar de mistério.Chegados ao seu quarto no hotel, começamos a beber

uísque.— Então você andou à procura de Conway? — insi-

nuei quando o momento me pareceu propício.— Procura é palavra demasiado forte no caso — tor-

nou ele. — Não é possível procurar-se um homem num país tão grande como a metade da Europa. Tudo o que posso dizer é que visitei lugares onde havia probabilidade de encontrá-lo ou ter notícias dele. Em sua última carta, como deve lembrar-se, falava em partir de Bancoc para noroeste. Até certa altura encontrei vestígios da sua passa-gem no interior do país, e na minha opinião ele tomou o rumo da região habitada pelas tribos, na fronteira chinesa. Não creio que pretendesse entrar na Birmânia, onde corre-ria o risco de topar com funcionários ingleses. Seja como for, o rastro se perde lá pelo Alto Sião, mas é claro que eu não esperava ir muito longe por esse lado.

— Julgava que talvez fosse mais fácil ir em busca do vale da Lua Azul?

— Sim, parecia pelo menos um objetivo mais defini-do. Com certeza você passou os olhos por aqueles meus originais.

— Muito mais do que isso! A propósito, queria devolvê-los, mas ignorava o seu endereço.

Rutherford sacudiu a cabeça.— Desejaria saber a sua impressão.— Muito notável. . . contanto, é claro, que a história

se baseie estritamente no que lhe referiu Conway.— Dou-lhe a minha palavra de honra que sim. Não

inventei absolutamente nada. Há ali, até, muito menos

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expressões minhas do que pensa. Minha memória é boa e Conway sempre teve um modo especial de descrever. Não esqueça que nós tínhamos conversado durante vinte e qua-tro horas, quase sem interrupção.

— Pois, como lhe disse, achei deveras notável. Rutherford reclinou-se e sorriu.— Se isso é tudo o que tem a dizer, vejo que terei de

discorrer sozinho. Deve julgar-me um pouco crédulo, mas não creio realmente que eu o seja. A gente comete erros na vida por acreditar demasiado, mas também levaria a mais aborrecida das existências se acreditasse demasiado pouco. A história de Conway interessou-me em mais de um senti-do e por isso tratei de comprová-la na medida do possível, sem falar na possibilidade de encontrá-lo a ele próprio.

Acendeu um charuto e prosseguiu:— Isso me exigiu uma série de curiosas viagens, mas

gosto dessas coisas e meus editores não podem rejeitar um livro de viagens de vez em quando. Devo ter percorrido um total de vários milhares de milhas: Baskul, Bancoc, Chung-Kiang, Kashgar. . . Visitei iodos esses lugares, e em algum ponto dentro da área compreendida por eles jaz o mistério. Mas é uma área bem extensa, como sabe, e todas as minhas investigações não foram além da sua orla — ou da orla do mistério, como queira. Na verdade, se de-seja os fatos positivos que pude averiguar no tocante à aventura de Conway, só lhe poderei dizer que ele deixou Baskul em 20 de maio e chegou a Chung-Kiang em 5 de outubro. E a última coisa que sabemos dele é que tornou a partir de Bancoc em 3 de fevereiro. Tudo mais são probabilidades, possibilidades, conjeturas, mito, lenda ou como quer que lhe agrade chamá-lo.

— Então não descobriu nada no Tibete?— Meu caro amigo, não cheguei a pôr os pés no

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Tibete. A gente do governo não queria falar nisso. Por muito favor dão licença para uma expedição ao Everest, e quando manifestei vontade de viajar pelos Kuen-Luns por conta própria eles me encararam como se eu sugerisse a idéia de escrever uma vida de Ghandi. A verdade é que sa-biam o que estavam fazendo. Um giro pelo Tibete não é coisa para um homem só. Seria necessário organizar uma expedição completa, conduzida por um homem que conhe-cesse alguma coisa do idioma nativo. Recordo-me de que, ao ouvir a história de Conway, eu perguntava a mim mesmo por que faziam tanta questão de esperar pelos carregadores, em vez de irem embora sem eles. Não tardei muito a descobrir o motivo. A gente do governo tinha inteira razão: todos os passaportes do mundo não me fariam atravessar os Kuen-Luns. Cheguei a vê-los a distância, talvez umas cinqüenta milhas, num dia muito claro. Não são muitos os europeus que podem dizer o mesmo.

— São tão inacessíveis assim?— Pareciam uma frisa branca no horizonte, nada

mais. Em Yarkand e Kashgar interroguei a respeito deles toda a gente que encontrava, mas era extraordinário o pouco que sabiam. Penso que deve ser a cadeia de monta-nhas menos conhecida do mundo. Tive a sorte de encontrar um viajante americano que tentara atravessá-la, mas não encontrara passagem. Há passagens, disse ele, mas são terrivelmente altas e não vêm nos mapas. Perguntei-lhe se achava possível que existisse um vale como o que Conway me havia descrito. Respondeu que impossível não era, mas achava pouco provável — do ponto de vista geológico, pelo menos. Indaguei então se ouvira falar numa montanha de forma cônica, quase tão alta quanto o mais elevado pico dos Himalaias, e sua

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resposta me intrigou. Contou que existia uma lenda sobre tal montanha, mas na sua opinião não tinha nenhum fundamento. Acrescentou que corriam até certos rumores a respeito de montanhas mais altas do que o Everest, mas que não lhes dava crédito.

" 'Duvido que haja algum pico nos Kuen-Luns com mais de vinte e cinco mil pés de altura', disse ele. Mas admitiu que nunca se tinham feito medições apropriadas.

"Em seguida lhe perguntei o que sabia dos conventos lamaicos do Tibete, pois estivera no país várias vezes. Fez-me as descrições de costume, dessas que se encontram em qualquer livro. Assegurou-me que são lugares nada atraentes, e os monges que neles vivem são em geral cor-ruptos e imundos.

" 'Vivem muitos anos?', perguntei."Respondeu-me que sim, que muitas vezes alcançam

idade avançada, quando não morriam de alguma doença asquerosa. Enchi-me então de audácia e lhe perguntei se não ouvira lendas sobre casos de extrema longevidade entre os lamas.

" 'Quantidade delas', respondeu. 'É desse gênero de histórias que se ouvem por toda parte, sem que ninguém possa comprová-las. Dizem que algumas dessas nojentas criaturas têm vivido cem anos metidas numa cela, e certa-mente têm aspecto disso, mas é claro que a gente não pode pedir certidão de idade.'

"Perguntei-lhe se pensava que eles conheciam algum processo medicinal ou oculto para prolongar a vida e pre-servar a juventude. Disse que passavam por possuir grande soma de conhecimentos curiosos acerca de tal assunto, mas suspeitava de que se tratasse de coisas já sabidas. Ajuntou, entretanto, que os lamas parecem dispor de estra-nhos poderes de domínio sobre o corpo.

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" 'Vi-os sentados', dizia, 'à beira de um lago gelado, inteiramente nus, sob uma temperatura inferior a zero e fustigados por um vento terrível, enquanto os criados quebravam o gelo para mergulhar lençóis na água e os envolverem neles. Fazem isso umas doze vezes ou mais, e os. lamas secam os lençóis no próprio corpo. Supõe-se que conservem o calor pela simples força de vontade, embora essa explicação seja pouco convincente.' "

Rutherford serviu-se de mais bebida. — Mas naturalmente, como admitia o meu amigo

americano, nada disso tem muito que ver com a longevi-dade. Serve simplesmente para mostrar que os lamas têm gostos selvagens em matéria de autodisciplina. . . De modo que ficamos apenas nisso e você há de reconhecer que os elementos de prova, por enquanto, eram extrema-mente exíguos.

Admiti que por certo isso não provava nada e pergun-tei se os nomes "Karakal" e "Shangri-Lá" eram conhecidos do americano.

— De nenhum modo. Mencionei-lhos, e depois de o ter interrogado por algum tempo ele disse:

" 'Francamente, não me atraem os mosteiros. Res-pondi mesmo certa ocasião, a um sujeito que encontrei no Tibete, que antes me desviaria do meu caminho para evitá-los do que para lhes fazer visita'.

"Esta observação fortuita me provocou uma idéia sin-gular e perguntei-lhe quando ocorrera esse encontro no Tibete.

" 'Oh! há muito tempo', respondeu; 'antes da guerra, em 1911, se não me engano.'

"Insisti por mais detalhes e ele mos deu, tão comple-tos quanto podia recordar. Parece que estava viajando por conta de alguma sociedade geográfica do seu país, na com-

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panhia de vários colegas, carregadores, etc. — uma expedição completa, enfim. Num lugar próximo aos Kuen-Luns encontrou esse homem, um chinês que era conduzido numa liteira por homens da terra. O sujeito mostrou falar excelente inglês e recomendou-lhes com calor que visitassem certo mosteiro lamaico das vizinhanças, oferecendo-se até para servir de guia. O americano respondeu que não tinha tempo nem tampouco interesse, e isso foi tudo."

Rutherford fez uma pausa e continuou:— Não quero dizer que isto tenha muito peso. Quan-

do alguém procura recordar um incidente casual aconte-cido vinte anos antes, não se pode esperar daí muita coisa. Mas em todo caso dá margem a interessantes especulações.

— Sim, e mesmo que uma expedição tão bem apare-lhada tivesse aceito o convite, não vejo como eles poderiam ser retidos no mosteiro contra a sua vontade.

— Perfeitamente. E depois, talvez não se tratasse de Shangri-Lá.

Refletimos sobre isto, mas o assunto parecia dema-siado nebuloso para o discutirmos e passei a indagar se ele nada havia descoberto em Baskul.

— Em Baskul nada e em Peshawar menos ainda. Ninguém me soube dizer coisa alguma, a não ser que o roubo do avião era autêntico. E mesmo isto admitiam a contragosto, pois era um episódio de que não se orgulhavam.

— E não tiveram mais notícias do avião?— Nem uma palavra. Quanto aos quatro passageiros,

a mesma coisa. Verifiquei, entretanto, que se tratava de um aparelho adaptado a grandes alturas. Também procurei descobrir o rastro desse tal Barnard, mas achei tão

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misterioso o seu passado que não me surpreenderia se ele fosse realmente Chalmers Bryant. Afinal, não deixa de ser assombroso o desaparecimento completo de Bryant no meio de todo aquele barulho.

— Fez indagações a respeito do rapto?— Fiz, mas também sem resultado. O aviador que ele

pôs em nocaute e por quem se fez passar morreu poste-riormente, e assim se perdeu uma promissora linha de investigação. Cheguei a escrever a um amigo que dirige uma escola de aviação nos Estados Unidos, perguntando se nos últimos tempos tivera entre os seus alunos algum tibetano; mas a resposta, que não demorou, foi decepcio-nante. Escreveu ele que não sabia distinguir entre tibetanos e chineses, mas tivera como alunos cerca de cinqüenta chi-neses, que se preparavam para lutar contra os japoneses. Como vê, não tive muita sorte. Mas o fato é que fiz uma descoberta bastante curiosa — aliás, não seria preciso sair da Inglaterra para isso. . . Havia em Iena nos meados do século passado um professor alemão que saiu a correr mundo e visitou o Tibete em 1887. Nunca mais voltou, e dizia-se que morrera afogado ao vadear um rio. Chamava-se Friedrich Meister.

— Céus! Um dos nomes que Conway mencionou!— Sim. . . embora possa ser mera coincidência. Isto

de modo algum prova que toda a história seja verdadeira, porque o professor de Iena nasceu em 1845. Nada de extraordinário nisso.

— Mas é singular — disse eu.— Sim, bastante singular.— Não pôde encontrar algum rasto dos outros?— Não. Foi pena que não dispusesse de uma lista

maior. Não encontrei nenhuma referência a um aluno de Chopin chamado Briac, embora, naturalmente, isso não

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prove que tal aluno não existisse. Conway fez muita economia de nomes, e entre uns cinqüenta lamas que deviam viver lá só mencionou um ou dois. Foi igualmente impossível descobrir qualquer vestígio de Perrault e Henschell.

— E sobre Mallinson? — perguntei. — Procurou averiguar o que foi feito dele? E aquela moça, a chinesa?

— Claro que sim. meu caro. O que tornava difícil a pesquisa era o fato, que você deve ter constatado pelo manuscrito, de terminar a narrativa de Conway no momento em que deixaram o vale na companhia dos carre-gadores. Não pôde ou não quis dizer o que aconteceu de-pois — mas talvez mo tivesse contado, note bem, se houvéssemos permanecido mais tempo juntos. Creio que podemos admitir uma tragédia. Já as dificuldades da jorna-da eram simplesmente aterradoras, sem falar nos riscos de serem assaltados por bandoleiros ou traídos pelos próprios homens que os escoltavam. É provável que jamais saiba-mos exatamente o que aconteceu, mas parece certo que Mallinson não logrou atingir a China. Fiz toda sorte de averiguações. Em primeiro lugar, procurei descobrir vestí-gios de grandes encomendas de livros e outros objetos, que tivessem passado a fronteira do Tibete, mas as minhas indagações em lugares como Xangai e Pequim foram pura perda. Isto, entretanto, não queria dizer nada, uma vez que os lamas deviam cercar de mistério os seus métodos de importação. Fiz depois uma tentativa em Tatsien-Fu. É um estranho lugar, uma espécie de mercado do fim do mundo, de acesso difícil como o diabo, e onde os cules chineses que vêm de Yunnan passam aos tibetanos os seus carrega-mentos de chá. Você poderá ler acerca dessa viagem no meu próximo livro. São raros os europeus que vão até lá. Encontrei uma população bastante educada e cortês, mas,

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quanto a Conway e os seus companheiros, nada de nada!— De modo que continua sem explicação a maneira

como Conway alcançou Chung-Kiang?— A única conclusão a tirar é que ele foi ter lá como

poderia ter ido a qualquer outra parte. Em todo caso. vol-tamos aos fatos concretos quando chegamos a Chung-Kiang, e isto já é alguma coisa. Às freiras do hospital da missão eram bem reais, e também o era o espanto de Sieveking no navio, quando Conway tocou as supostas composições de Chopin.

Rutherford fez uma pausa e depois acrescentou, pesando as palavras:

— Na verdade, é um problema de cálculo de proba-bilidades, e devo dizer que os pratos não se inclinam convincentemente para nenhum lado. É claro que, se não aceitarmos a história de Conway, teremos de pôr em dúvi-da — sejamos francos — a sua veracidade ou a sua sani-dade mental.

Fez nova pausa, como se esperasse um comentário, e eu repliquei:

— Como sabe, não tornei a vê-lo depois da guerra, mas ouvi dizer que mudou muito.

— Sim, é inegável que mudou — respondeu Ruther-ford. — Não se pode sujeitar um rapaz novo a três anos de forte tensão física e emocional sem que alguma coisa se rompa dentro dele. Muita gente há de dizer que ele saiu sem um arranhão. No entanto, arranhões houve — na alma.

Falamos por algum tempo sobre a guerra e seus efei-tos em diversas pessoas, e finalmente ele continuou:

— Mas há ainda um pormenor a que devo referir-me. . . e talvez, em muitos sentidos, o mais estranho de todos. Veio-me ao conhecimento quando fazia indagações no hospital da missão. Todos fizeram o possível para me

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auxiliar, como deve supor, mas não podiam recordar muita coisa, sobretudo porque naquela ocasião tinham estado muito ocupados com uma febre epidêmica. Uma das ques-tões que procurei esclarecer desde logo foi o modo como Conway havia chegado ao hospital — se se apresentara por si mesmo ou se, tendo sido encontrado doente, fora trazido ali por alguma pessoa. Não se lembravam bem — afinal de contas, fazia tanto tempo! —, mas de repente, quando eu já ia desistir do interrogatório, uma das freiras observou incidentalmente que "parecia ter ouvido do dou-tor que ele fora trazido por uma mulher". Era tudo o que me podia dizer, e como o doutor já houvesse deixado a missão, nenhuma confirmação era possível obter no momento.

Mas, tendo eu já chegado tão longe, é claro que não estava disposto a suspender minhas investigações. Soube que esse doutor se transferira para um hospital mais importante, em Xangai, de modo que me informei sobre o seu endereço e fui até lá, na intenção de me avistar com ele. Foi logo depois dos reides aéreos dos japoneses e o aspecto da cidade era sinistro. Já conhecia esse médico, com quem travara relações durante minha primeira visita a Chung-Kiang. Foi muito polido, mas naquele momento estava terrivelmente ocupado — sim, terrivelmente é a palavra porque, acredite-me, os vôos dos alemães sobre Londres nada foram, comparados com o que os nipônicos fizeram nas zonas nativas de Xangai.

"'Oh! sim', disse sem hesitar, 'lembro-me do caso daquele inglês que perdeu a memória.'

" 'É verdade que ele foi trazido ao hospital da missão por uma mulher?', perguntei.

" 'Sim, sim, por uma mulher, uma chinesa.' " 'Lembra-se de alguma coisa a respeito dela?'

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"'Nada', respondeu, 'salvo que ela também estava atacada de febre e veio a morrer quase em seguida . . .

"Nesse instante houve uma interrupção. Trouxeram um grupo de feridos e as padiolas atravancaram os corre-dores, pois as enfermarias já estavam repletas. Eu não podia tomar o tempo do homem, tanto mais que troavam os canhões em Woosung, advertindo-lhe que teria ainda muito que fazer. Quando voltou para junto de mim, com uma expressão animada apesar de todos aqueles horrores, só lhe fiz uma derradeira pergunta, que você com certeza adivinha qual fosse.

" 'E essa mulher chinesa', disse eu, 'era jovem?' "Rutherford sacudiu nervosamente as cinzas do charu-

to, como se a narrativa o tivesse excitado tanto quanto esperava fazê-lo a mim. Depois continuou:

— O doutorzinho olhou-me por um momento com ar solene e então respondeu, nesse inglês comicamente truncado que os chineses educados usam:

" 'Oh! não, ela era muito velha, a mulher mais velha que vi até hoje.' "

Permanecemos longo tempo calados e finalmente nos pusemos a falar sobre o Conway que eu conhecera outrora, juvenil, talentoso e encantador, sobre a guerra que o alte-rara e sobre muitos mistérios do tempo, da idade e do espí-rito, sobre a pequena manchu que era "muito velha" e aquele estranho e remoto sonho do vale da Lua Azul.

— Pensa que ele virá a encontrá-lo um dia? — perguntei.

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