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Sobre o autor:
Arthur Conan Doyle
Escritor britânico
Por Dilva Frazão
Biografia de Arthur Conan Doyle
Arthur Conan Doyle (1859-1903) foi um escritor e médico britânico, autor das
histórias do imortal detetive Sherlock Holmes que superou a fama de seu criador.
Arthur Ignatius Conan Doyle nasceu em Edimburgo, Escócia, no dia 22 de maio de
1859. Filho de católicos irlandeses estudou no Colégio Stonyhurst, onde concluiu o
colegial em 1875.
Em 1876 ingressou na Universidade de Edimburgo concluindo o curso de
Medicina em 1881. Entre 1882 e 1890 exerceu a profissão em Southsea, Inglaterra.
Carreira literária
Ainda estudante, Conan começou a escrever pequenas histórias. Em 1887
publicou na revista de bolso Beeton’s Christmas Annual, a história “Study in Scarlate”
(Um Estudo em Vermelho).
Um Estudo em Vermelho se converteu no primeiro dos 60 outros contos
policiais em que aparece sua criação máxima, o detetive “Sherlock Holmes”.
Em fevereiro de 1890, Conan Doyle teve sua segunda história, intitulada “The
Signo of the Four” (O Signo dos Quatro), publicada na revista Lipincott’s Magazine.
O sucesso dos contos de Arthur Conan Doyle teve início em julho de 1891,
quando a revista Strand Magazine publicou “A Scandal in Bohemia” (Um Escândalo na
Boêmia).
Outra criação de grande destaque em suas histórias é o doutor “Watson”, um
médico leal, porém intelectualmente lerdo que acompanha Sherlock e escreve suas
aventuras.
Há em seus livros um constante duelo entre o detetive e seu inimigo oculto. O
desenlace vem sempre carregado de forte dose dramática.
A expressão de Sherlock Holmes ante a admiração de seu inseparável
companheiro – “Elementar, meu caro Watson” – entrou para a linguagem cotidiana
A morte de Sherlock Holmes
Em 1893 Arthur Conan Doyle publicou “The Final Problem” (O Problema
Final), quando resolveu matar o detetive Holmes, junto com seu inimigo mortal, o vilão
Moriarty.
Porém, as manifestações de desagrado e a pressão de seus leitores fez o escritor
trazer de volta o detetive na história “A Casa Vazia”, com a explicação de que apenas
Moriarty havia caído nas Cataratas de Reichenbach.
O conto foi publicado originalmente no livro “A Volta de Sherlock Holmes”
(1905).
Últimos anos
Após a morte de seu filho mais velho nas trincheiras da Primeira Guerra
Mundial, Arthur Conan sofreu uma crise existencial e encontrou consolo no espiritismo.
Conan Doyle decidiu então difundir sua crença com a publicação das obras: “A Nova
Revelação” (1918), “A Chegada das Fadas” (1921) e “A História dos Espíritos”.
O grande sucesso dos contos de Sherlock Holmes levou o escritor Arthur Conan
Doyle a publicar suas fascinantes histórias ao longo de quarenta anos.
Ainda hoje, seus contos continuam a despertar o interesse de jovens e adultos de tal
forma que o seu endereço fictício – 221B, Baker Street, Londres, abriga hoje o museu
do ilustre detetive, atraindo um grande número de visitantes de várias partes do mundo.
Em 1902, o rei Eduardo VII concedeu a Doyle o título de Sir pela publicação de
diversos artigos a favor de seu país na Guerra dos Bôeres e no livro “A Guerra na África
do Sul” (1900).
O autor publicou também seis volumes da obra “The British Compaign in
Flanders” (1916-1919).
Arthur Conan Doyle faleceu em Crowborough, Inglaterra, no dia 7 de julho de
1930.
Frases de Conan Doyle
O mundo está cheio de coisas obvias, que ninguém, em momento algum observa.
Onde não há imaginação não há horror.
É um erro terrível teorizar antes de termos informação.
Por muito tempo tem sido um dos meus axiomas que as pequenas coisas são
infinitamente mais importantes.
Há uma luz nos olhos das mulheres que fala mais alto que as palavras.
Principais obras de Arthur Conan Doyle
Um Estudo em Vermelho (1887)
O Signo dos Quatro (1890)
Um Escândalo na Boêmia (1891)
O Mistério do Vale Boscombe (1891)
As Aventuras de Sherlock Holmes (1892)
Ritual Musgrave (1893)
O Problema Final (1893)
O Arquivo Secreto de Sherlock Holmes‌ (1902)
O Cão de Baskervilles (1902)
A Volta de Sherlock Holmes (1905)
O Mundo Perdido (1912)
A liga dos cabeças vermelhas Arthur Conan Doyle
https://mundosherlock.wordpress.com/arthur-conan-doyle/
A liga dos cabeças vermelhas
Título original: The Red Headed League
Publicado pela primeira vez na Strand Magazine,
em Agosto de 1891 e com 10 ilustrações de Sidney Paget.
Sobre o texto em português:
Este texto digital reproduz a
tradução de The Red Headed League publicado em
As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume II,
editado pelo Círculo do Livro
e com tradução de Hamílcar de Garcia.
Fui visitar meu amigo Sherlock Holmes, num dia de outono do ano passado, e
encontrei-o numa séria conversa com um senhor idoso, muito corpulento, de rosto
corado e cabelos vermelhos.
Pedindo desculpas pela minha intrusão, ia retirar-me quando Holmes me puxou
abruptamente para dentro da sala e fechou a porta.
— Não podia ter vindo em melhor hora, caro Watson — disse-me ele cordialmente.
— Receei que estivesse ocupado.
— De fato. E muito.
— Então devo esperá-lo na outra sala.
— Nada disso. Este cavalheiro, sr. Wilson, tem sido meu companheiro e auxiliar em
muitos dos meus casos mais bem-sucedidos, e não duvido de que venha ainda a ser útil
no seu também.
O cavalheiro gordo levantou-se da cadeira e cumprimentou-me com uma expressão
interrogativa nos pequenos olhos meio fechados pela gordura.
— Sente-se no sofá — disse Holmes, ajeitando-se de novo na poltrona e juntando as
pontas dos dedos como era seu costume quando estava pensativo. — Eu sei, meu caro
Watson, que você é como eu, gosta de tudo o que é bizarro e foge à rotina monótona do
convencionalismo da vida cotidiana. Você já demonstrou esse gosto no entusiasmo com
que escreve, e, desculpe-me dizê-lo, até no embelezamento de muitas das minhas
próprias aventuras.
— Seus casos têm sido realmente do maior interesse para mim — observei.
— Lembra-se de eu ter dito outro dia, quando começamos a estudar o problema
apresentado pela srta. Mary Sutherland, que, devido a estranhos efeitos e combinações
de circunstâncias extraordinárias, precisávamos nos convencer de que a própria vida
tem muito mais ousadia do que se possa imaginar?
— Uma proposição da qual tomei a liberdade de duvidar.
— Sim, doutor, mas mesmo assim tem de aceitar meu ponto de vista, ou continuarei a
aborrecê-lo com uma grande quantidade de fatos até que fique desorientado e admita
que tenho razão. O sr. Jabez Wilson fez-me o favor de vir aqui hoje e começou uma
narrativa que promete ser um dos mais singulares casos de que tenho conhecimento
desde há muito tempo. Você já me tem ouvido dizer que as coisas mais estranhas e
esquisitas geralmente têm relação não com os maiores crimes, mas com os menores, e,
ocasionalmente, há mesmo razão para duvidar se houve crime ou não. Portanto, pelo
que ouvi até agora, é-me impossível decidir se o caso atual foi crime perpetrado ou não;
todavia, o curso que tomam os acontecimentos é certamente dos mais curiosos. Talvez o
sr, Wilson queira ter a bondade de recomeçar sua narrativa. Não lhe faço esse pedido
apenas porque meu amigo, o dr. Watson, não a ouviu; mas também porque a natureza
peculiar da história faz-me ansioso por não perder o mínimo pormenor. Quase sempre,
quando ouço as primeiras notícias de um caso, sigo-lhes o fio devido à experiência de
milhares de outros semelhantes e dos quais vou me lembrando. Mas neste caso, sou
obrigado a admitir que os fatos são, segundo creio, únicos no gênero.
Sidney Paget, cortesia The Camden House
O cliente corpulento aprumou-se com visível orgulho e tirou do bolso do sobretudo um
jornal sujo e amarrotado. Enquanto lia a coluna da primeira página, com o jornal
estendido sobre o joelho, olhei bem para o homem e esforcei-me, seguindo o hábito do
meu companheiro, por ler as indicações que pudessem estar contidas em seu vestuário e
aparência geral. Não lucrei muito, no entanto, com minha inspeção. Nosso visitante
tinha apenas as características de um negociante britânico comum, obeso, pomposo e
lento. Vestia calças cinza axadrezadas e largas, como as usadas pêlos pastores de
ovelhas nos campos; a sobrecasaca estava desabotoada na frente e não muito limpa, e do
colete escuro pendia uma pesada corrente de ouro com uma medalha como ornamento.
Uma cartola gasta e um sobretudo castanho com uma gola de veludo enrugada jaziam
numa cadeira a seu lado. Ao todo, pelo que pude observar, não havia nada de
extraordinário nem de estranho no homem, a não ser a cabeça flamejante e uma
expressão de extrema mortificação e descontentamento no rosto.
O olhar perscrutador de Sherlock Holmes percebeu minha preocupação, e ele sacudiu a
cabeça, sorrindo perante o meu olhar inquiridor.
— Além dos fatos evidentes de que já foi operário, tomava rapé, é maçom, esteve na
China e tem escrito muito ultimamente, não deduzi mais nada O sr. Jabez Wilson pulou
da sua cadeira com o dedo indicador sobre o jornal, porém com os olhos fixos no meu
amigo.
— De que modo mágico descobriu tudo isso, sr. Holmes? — perguntou ele. — Como
adivinhou por exemplo que fui operário? É verdade como o Evangelho, e comecei como
carpinteiro a bordo de um navio.
— Suas mãos, meu caro senhor. Sua mão direita é muito maior do que a esquerda.
Usou-a muito, e os músculos estão mais desenvolvidos.
— Bem, e o rapé, e a maçonaria?
— Não quero insultar sua inteligência dizendo-lhe como notei tudo isso, principalmente
porque, contra as regras da sua ordem, o senhor usa um arco e um compasso no alfinete
da gravata.
— Ah! é certo, esqueci-me disso. Mas, e os inúmeros escritos?
— O que se há de pensar quando se vê a manga direita tão brilhante e gasta na extensão
de umas cinco polegadas, e a manga esquerda puída perto do cotovelo que o senhor
apoia na secretária?
— Bem, e a respeito da China?
— O peixe que o senhor traz tatuado logo acima do pulso direito só pode ter sido feito
na China. Estudei um pouco a respeito de tatuagem e até contribuí com alguma
literatura sobre o assunto. Aquele truque de colorir as escamas de peixe com um
delicado cor-de-rosa é peculiar da China. Quando, ainda por cima, vejo uma moeda
chinesa pendurada na corrente do seu relógio, torna-se fácil descobrir tudo.
Jabez Wilson riu-se a bandeiras despregadas.
— Bem, nunca vi! — declarou. — Pensei que o senhor tivesse feito uma coisa de muito
valor, mas vejo, enfim, que não houve nada de extraordinário.
— Estou pensando, Watson — disse Holmes —, que cometi um erro explicando
tudo. Omne ignotum pro magnifico, você bem sabe, e minha pobre e pequena reputação
soçobrará se eu continuar a ser tão ingênuo. Não encontrou o anúncio, sr. Wilson?
— Sim, já o tenho — respondeu ele, com o dedo vermelho e grosso colocado no meio
da coluna. — Aqui está. Foi isto o que deu início a tudo. Leia-o, senhor.
Sidney Paget, cortesia The Camden House
Tirei-lhe o jornal da mão e li o seguinte:
“Liga dos Cabeças Vermelhas
Devido ao recente falecimento de Ezequias Hopkins, da Pensilvânia, EUA, está aberta
uma vaga que dá direito a outro membro da liga a receber o salário de quatro libras
semanais por serviços puramente nominais. Todos os homens de cabelos vermelhos que
estejam em perfeita saúde mental e física, com mais de vinte e um anos, são elegíveis.
Tratar pessoalmente na segunda-feira, às onze horas; falar com Duncan Ross, nos
escritórios da liga, em Pope’s Court, Fleet Street”.
— Que vem a ser isso? — exclamei, depois de ler duas vezes o extraordinário anúncio.
Holmes riu e mexeu-se na cadeira, como era seu costume quando estava entusiasmado.
— Nada comum, não é verdade? E agora, sr. Wilson, deixe de brincadeiras e conte-nos
tudo sobre sua vida, sua família, e o efeito deste anúncio sobre suas posses. Doutor,
tenha a bondade de tomar nota da data do jornal e do nome do mesmo.
— É o Morning Chronicle de 27 de abril de 1890, justamente há dois meses passados.
— Muito bem. E agora, sr. Wilson?
— Bem, foi como acabei de lhe contar, sr. Sherlock Holmes — disse Jabez Wilson,
enxugando o suor da testa. — Tenho um pequeno negócio de penhores na Saxe-Coburg
Square, perto da City. É pequeno, e ultimamente mal dá para me sustentar. Antigamente
podia pagar a dois ajudantes, mas agora tenho um só, e teria dificuldade em pagar
mesmo a esse se não aceitasse metade do ordenado, visto a outra metade custear a
aprendizagem do negócio.
— Qual é o nome desse jovem tão compreensivo? — perguntou Holmes.
— Chama-se Vincent Spaulding, e não é tão jovem como pensa. É difícil dizer a idade
dele. Não podia desejar ajudante mais ativo, sr. Holmes; e eu sei que ele poderia ganhar
duas vezes mais do que lhe posso pagar. Mas, em todo caso, se está satisfeito, por que
haveria eu de lhe encher a cabeça com outras idéias?
— Claro! O senhor parece ter sorte; um empregado que não exige ordenado além do
regulamentar não é muito comum nestes tempos. Não sei se seu ajudante não será tão
estranho como este anúncio.
— Oh, ele tem também as suas falhas — disse o sr. Wilson. — Nunca houve outro igual
para bater fotos. Bate fotos quando devia estar trabalhando, e desce logo em seguida
para a adega, como um coelho que procura a toca, para revelar os negativos. É a
principal falha dele, mas em geral trabalha bastante. Não tem vícios.
— Continua em serviço, suponho?
— Sim, senhor. Ele e uma mocinha de treze anos, que cozinha um pouco e faz a
limpeza. É só o que tenho em casa, porque sou viúvo; somos só os três, e nos
arranjamos para pagar o aluguel, sem contrairmos dívidas, mesmo que não façamos
mais nada. A primeira coisa que nos chamou realmente a atenção foi este anúncio.
Spaulding desceu para o escritório justamente há dois meses com este jornal na mão e
disse:
“— Gostaria que Deus me tivesse dado cabelos vermelhos, sr. Wilson”.
“— Por quê? — perguntei-lhe.
Sidney Paget, cortesia The Camden House
“— Porque há outra vaga na Liga dos Cabeças Vermelhas, e creio que há mais vagas do
que homens para ocupá-las; por isso os depositários estão preocupados, sem saber onde
encontrar as pessoas que devem receber o dinheiro. Se o meu cabelo fizesse o favor de
mudar de cor, aqui estaria um bom negociozinho para mim.
“— Mas de que se trata? — perguntei eu. O senhor compreende, sr. Holmes, sou um
homem caseiro, e como o meu negócio vem ter comigo e não é necessário eu procurá-
lo, passam-se semanas sem que eu saia de casa; e, assim, gosto de ouvir as notícias.
“— O senhor nunca ouviu falar da Liga dos Cabeças Vermelhas? — perguntou ele,
abrindo muito os olhos.
“— Nunca.
“— Admiro-me, porque o senhor próprio é elegível para uma das vagas.
“— E quanto valem? — perguntei.
“— Oh, apenas umas duzentas libras por ano, mas o trabalho é pequeno, e pouco tempo
é necessário roubar às suas outras ocupações. — Bem, como deve calcular, aquilo me
interessou, porque meu negócio não corre bem há alguns anos, e umas duzentas libras
extras seriam bem-vindas.
“— Conte-me tudo a respeito disso — pedi eu.
“— Bem — continuou ele, mostrando-me o anúncio —, como vê, há uma vaga na liga,
e está aqui o endereço onde obter as informações. Por tudo o que pude descobrir, a liga
foi fundada por Ezequias Hopkins, milionário americano, que tinha idéias muito
esquisitas. Ele próprio tinha cabelos vermelhos e sentia grande simpatia por todos
aqueles que o tinham da mesma cor. Assim, quando morreu, descobriram que deixara
sua enorme fortuna nas mãos de depositários, com instruções para empregarem os juros
na criação de empregos para homens que tivessem o cabelo daquela cor. Pelo que ouvi
dizer, o trabalho é pouco e bem pago.
“— Mas — retruquei — devem inscrever-se multidões de homens.
“— Não tantos como pensa — respondeu. — Bem vê que o negócio é limitado aos
londrinos que sejam adultos. O tal americano saiu de Londres quando jovem, e queria
deixar um benefício à sua cidade. Ouvi dizer também que o cabelo não pode ser apenas
ruivo ou mesmo vermelho carregado. Tem de ser vermelho mesmo. Como fogo
brilhante, como fogo. Se pretende o lugar, sr. Wilson, creio que o conseguiria, mas
talvez nem valha a pena incomodar-se por causa de duzentas libras. — Como os
senhores podem ver, meu cabelo é, de fato, de cor exuberante, e pareceu-me que, se
houvesse realmente alguma concorrência, teria tanta possibilidade como qualquer outro
homem, e talvez mais. Vincent Spaulding parecia saber tanto a respeito do assunto, que
achei que me poderia ser útil. Mandei-o fechar a loja naquele dia, para que fosse comigo
imediatamente. Gostou de ter um feriado. Fechamos tudo e saímos à procura do
endereço que vinha no anúncio. Espero nunca mais ver semelhante horror outra vez, sr.
Holmes. De norte, sul, leste ou oeste, qualquer homem que tivesse um fio de cabelo
vermelho na cabeça tinha vindo para a cidade em resposta ao anúncio. Nem se podia
passar na Fleet Street por causa deles, e Pope’s Court mais parecia a carroça de um
vendedor de laranjas. Nunca imaginei que houvesse tantos em todo o país como os que
se reuniram por causa daquele anúncio. Havia cabelos de todas as tonalidades. Cor de
palha, de limão, de laranja, tijolo, cor de bílis e de barro, mas, como observou
Spaulding, poucos com cabelos vermelhos, cor de terra. Quando vi tanta gente à espera,
quis desistir, desanimado, mas Spaulding não concordou. Como ele o conseguiu, não
sei, mas empurrou alguns e puxou outros, dando cotoveladas, até que atravessamos a
multidão e subimos os degraus que levavam ao escritório.”
— Sua experiência foi divertida — disse Holmes enquanto o cliente fazia uma pausa e,
para refrescar a memória, tomava uma pitada de rapé. — Tenha a bondade de continuar.
— Não havia nada no escritório, a não ser duas cadeiras de madeira e uma mesa de
pinho atrás da qual estava sentado um homem com cabelos ainda mais vermelhos do
que os meus. Dizia poucas palavras a cada candidato que subia e depois encontrava
alguns defeitos que o desclassificavam. Obter uma vaga não parecia assim tão fácil;
enfim, quando chegou a nossa vez, o homenzinho tratou-me melhor do que aos outros, e
fechou a porta quando entramos para que pudesse falar-nos em particular.
“— Este é o sr. Jabez Wilson — disse o meu ajudante —, e ele quer preencher uma
vaga na liga.
Sidney Paget, cortesia The Camden House
“— É admiravelmente adequado ao lugar — respondeu o outro. — Nunca vi nada tão
perfeito. — Deu um passo para trás, inclinou a cabeça de lado, e olhou meu cabelo até
que fiquei embaraçado. De repente adiantou-se, sacudiu-me a mão e deu-me parabéns
pelo êxito. — Seria uma injustiça hesitar. Com certeza o senhor me desculpará por
tomar uma precaução óbvia. — Dito isto, agarrou-me pêlos cabelos e puxou-os até que
gritei de dor. — Há lágrimas nos seus olhos — disse ele, soltando-me. — Vejo que tudo
está em ordem, mas temos de tomar cuidado, porque fomos duas vezes enganados com
chinos e uma vez com tintas. Podia contar-lhe histórias de farsas que enojariam sua
natureza humana. — Deu um passo até a janela e gritou que a vaga já estava preenchida.
Um gemido de desapontamento subiu lá de fora, e todos se dispersaram em diversas
direções, até que não ficou ninguém. Quanto a cabeças vermelhas à vista, só a do agente
e a minha.
“— Meu nome — disse ele — é Duncan Ross, e eu próprio sou um dos beneficiários do
dinheiro deixado pelo nosso benfeitor. É casado, sr. Wilson? Tem família?
“Disse-lhe que não, e sua fisionomia modificou-se.
“— Deveras — disse ele com voz grave. — Isso é muito sério! E custa-me ouvi-lo
declarar tal coisa. O auxílio em dinheiro tem como objetivo a propagação dos cabelos
vermelhos, tanto quanto possível. É uma infelicidade ser solteiro.
“Fiquei desanimado quando ele disse aquilo, sr. Holmes, pois pensei que não obteria a
vaga; porém, depois de pensar no caso um instante, ele disse que não fazia mal.
“— No caso de outro qualquer, a objeção poderia ser fatal, mas devemos ser tolerantes
no caso de um homem com a cabeça coberta de cabelos como os seus. Quando é que
poderá começar suas novas obrigações?
“— Bem, é um pouco difícil, porque já tenho um negócio — disse-lhe eu.
“— Oh, não se incomode com isso, sr. Wilson — respondeu Vincent Spaulding —,
posso substituí-lo.
“— Qual seria o horário? — perguntei.
“— Das dez às catorze horas.
“Agora os negócios nas casas de penhores são feitos mais à noite, especialmente às
quintas e sextas à tarde, pouco antes dos dias de pagamento. Sendo assim, seria bom
para mim poder ganhar um pouco de manhã; além disso, sabia que meu ajudante era um
homem correio e resolveria qualquer problema que aparecesse.
“— Para mim, está bem — disse eu. — E o pagamento?
“— É de quatro libras por semana.
“— E o trabalho?
“— É puramente nominal.
“— O que quer dizer puramente nominal?
“— Bem, o senhor terá de estar no escritório, ou pelo menos no edifício, durante todo o
tempo. Se sair, perderá para sempre todas as vantagens, O testamento é muito claro
quanto a este ponto. Se sair durante o horário de trabalho, estará faltando a suas
obrigações.
“Como eram apenas quatro horas, eu não precisaria sair antes.
“— Nenhuma desculpa terá valor — disse o sr. Duncan Ross. — Nem doença, nem
negócios, nem qualquer outra coisa. Terá de ficar aqui ou perderá a colocação.
“— E o trabalho?
“— É copiar a Encyclopædia Britannica. O primeiro volume está dentro daquele
armário. Tem de trazer sua própria tinta, penas e mata-borrão, mas nós lhe fornecemos
esta mesa e esta cadeira. Pode vir amanhã?
“— Certamente — respondi.
“— Então adeus, sr. Jabez Wilson, e permita-me que lhe dê os parabéns mais uma vez
pela feliz aquisição deste importante cargo.
“Conduziu-me para fora do escritório e segui para casa com meu ajudante, mal sabendo
o que dizer e fazer, tão satisfeito estava com a minha sorte. Pensei no caso o dia inteiro,
e à tarde já estava de novo triste porque me convencera de que tudo aquilo não passava
de mistificação ou fraude, embora não pudesse imaginar qual o objetivo. Parecia
incrível que alguém pudesse dedicar tal soma para se fazer uma coisa tão simples como
copiar a Encyclopædia Britannica. Vincent Spaulding fez o que pôde para me animar.
Mas à hora de me deitar já tinha esquecido tudo.
De manhã, todavia, resolvi ir ver do que se tratava, e por isso comprei um vidro de tinta,
uma pena de ganso, sete folhas de papel almaço e fui para Pope’s Court. Fiquei alegre
ao ver que tudo se achava em ordem. A mesa estava à minha espera, e o sr. Duncan
Ross permaneceu até verificar que eu tinha começado o trabalho. Fez-me iniciar com a
letra A e depois deixou-me, vindo de vez em quando para ver se tudo corria bem. As
catorze horas disse-me adeus, perguntando quanto já copiara, e fechou a porta do
escritório.
“Isto aconteceu dia após dia, sr. Holmes, e no sábado o chefe entrou e atirou para cima
da mesa as quatro libras de ouro que eu havia ganho naquela semana. Na semana
seguinte e na outra aconteceu a mesma coisa. Todas as manhãs chegava às dez horas e
todas as tardes saía às catorze horas. A pouco e pouco o sr. Duncan Ross foi deixando
de aparecer. Vinha somente uma vez de manhã, e por fim deixou mesmo de
comparecer. Todavia, nunca ousei sair do escritório por um só instante, porque não
tinha certeza se ele viria ou não e o emprego era tão bom que não podia arriscar-me a
perdê-lo.
“Passaram-se oito semanas assim. Eu já havia copiado ‘abade’, ‘arma’, ‘arqueiro’,
‘arquitetura’ e ‘ática’, e esperava que, com diligência, pudesse passar à letra B dentro de
algum tempo.
“Gastei um bom bocado de papel almaço, e já quase um terço da prateleira estava cheio
das minhas cópias, quando de repente todo o negócio se desvaneceu.”
— Como se desvaneceu?
— Vai ouvir. Hoje de manhã fui para o trabalho como de costume, às dez horas, mas a
porta estava fechada à chave e tinha um cartão afixado no centro do painel com um
preguinho. Aqui está ele, e o senhor pode lê-lo.
Mostrou um pedaço de cartolina, do tamanho mais ou menos de um memorando, sobre
o qual estava escrito:
Sidney Paget, cortesia The Camden House
A LIGA DOS CABEÇAS VERMELHAS
ESTÁ DISSOLVIDA
9 DE OUTUBRO, 1890
Sherlock Holmes e eu examinamos o lacônico aviso e o rosto triste do homem. Ao lado
cômico do caso acrescentei qualquer outra consideração, e ambos desatamos a rir.
— Não vejo nada de engraçado — exclamou o nosso cliente, corando até a raiz dos
cabelos. — Se não puderem fazer melhor do que rir de mim, terei de procurar outra
pessoa.
— Não, não — disse Holmes, fazendo-o sentar-se de novo na cadeira de onde se havia
levantado. — Eu não perderia o seu caso por nada deste mundo. É uma original
novidade, mas permita-me que lhe diga que tem qualquer coisa de cômico. Diga-me que
passos deu quando encontrou o cartão pregado à porta.
— Fiquei atônito e vacilei, não sabendo o que fazer. Depois fui aos escritórios da
vizinhança, mas não pareciam saber de coisa alguma. Finalmente fui falar com o
senhorio, que é funcionário e mora no andar térreo, e perguntei-lhe se podia informar-
me para onde tinha ido a Liga dos Cabeças Vermelhas. Disse-me que nunca ouvira falar
de tal liga. Perguntei-lhe quem era o sr. Duncan Ross e ele respondeu-me que nunca
ouvira falar nesse nome.
“— Bem — disse-lhe eu —, e o cavalheiro da sala número 4?
“— Oh! Aquele homem de cabeça vermelha?
“— Sim.
“— Ah! Segundo me informou, o nome dele é William Morris. É advogado e ocupou
aquela sala temporariamente, até que seus escritórios ficassem prontos. Mudou-se
ontem.
“— Onde é que eu o poderia encontrar?
“— Só nos escritórios novos. Ele deu-me o endereço. É no número 17 da King Edward
Street, perto da Catedral de São Paulo.
“Saí, sr. Holmes, mas ao chegar àquele endereço deparei com uma fábrica de protetores
artificiais para joelhos, e ninguém lá conhecia William Morris, nem tampouco Duncan
Ross.”
— E que fez o senhor então? — perguntou Holmes.
— Voltei para minha casa na Saxe-Coburg Square e consultei meu ajudante. Mas ele
não pôde auxiliar-me. Disse apenas que, se eu esperasse, talvez recebesse qualquer
coisa pelo correio. Mas aquilo não era suficiente, sr. Holmes. E eu não queria perder
semelhante emprego sem lutar por ele. Por isso, ouvindo dizer que o senhor atende aos
pobres que necessitam do seu auxílio, vim falar-lhe diretamente.
— E fez muito bem — disse Holmes. — Seu caso é deveras extraordinário, e terei
muito prazer em investigá-lo. Pelo que o senhor me contou, penso que se trata de coisa
mais séria do que à primeira vista pode parecer.
— Séria a valer! Pois perdi quatro libras por semana — disse Jabez Wilson.
— Quanto a isso, não vejo muita razão para se queixar dessa liga extraordinária. Pelo
contrário, o senhor ganhou mais umas trinta libras, para não falar dos grandes
conhecimentos que adquiriu de todos os assuntos mencionados sob a letra A. Por isso
não teve prejuízo.
— Não, senhor, mas desejo descobrir quem eles são, e qual foi o objetivo ao pregarem-
me essa peça, porque foi uma armadilha, e só para mim. Custou-lhes caro a brincadeira,
porque tiveram de gastar umas trinta e duas libras.
— Vamos nos esforçar por lhe esclarecer todos os pontos. Mas, primeiramente, uma ou
duas perguntas, sr. Wilson. Há quanto tempo estava no emprego esse seu ajudante,
quando lhe chamou a atenção para o anúncio?
— Cerca de um mês.
— Como foi que ele apareceu?
— Em resposta a um anúncio.
— Era o único candidato?
— Não, entrevistei pelo menos uma meia dúzia.
— Por que o escolheu?
— Porque tinha boa aparência e estava disposto a me servir por um ordenado baixo.
— Meio ordenado até.
— Sim.
— Que espécie de pessoa é esse Vincent Spaulding?
— É pequeno, gordo, ligeiro nos seus movimentos, não tem pêlos no rosto, embora
tenha quase trinta anos de idade, e tem na testa uma mancha branca que parece ter sido
produzida por algum ácido.
Holmes endireitou-se na cadeira, nervoso.
— Já calculava isso — ripostou ele. — O senhor também me disse que as orelhas eram
furadas como para colocar brincos?
— Sim, senhor, contou-me que um cigano lhe fez aquilo quando era pequeno.
— Hum! — Holmes recostou-se de novo na cadeira, pensativo. — Ele esteve com o
senhor até agora?
— Oh, sim. Foi agora mesmo que o deixei.
— E seus negócios correram bem enquanto o senhor esteve ausente?
— Não posso me queixar, senhor. Nunca há muito o que fazer de manhã.
— Basta, sr. Wilson, terei a satisfação de lhe dar mais algumas informações sobre o
caso dentro de um ou dois dias. Hoje é sábado, e espero que até segunda-feira tenhamos
chegado a alguma conclusão.
— Bem, Watson — disse Holmes quando nosso visitante saiu. — O que você pensa de
tudo isso?
— Não sei o que pensar, é um caso misterioso.
— Em regra, e por mais estranho que pareça, o caso é menos misterioso quando
evidente, e os crimes comuns é que são verdadeiramente difíceis de decifrar, assim
como um rosto comum é mais difícil de se identificar. Mas preciso andar depressa com
este assunto.
— Que vai fazer então?
— Fumar — respondeu ele. — Vou precisar de três boas pitadas antes de chegar a uma
conclusão. Espero que você não fale comigo durante uns cinqüenta minutos.
Sidney Paget, cortesia The Camden House
Enroscou-se na poltrona, os joelhos quase tocando o nariz pontudo como o de um
gavião, fechou os olhos e pôs o cachimbo de barro na boca, de forma a parecer o bico de
um pássaro exótico.
Eu estava certo de que ele tinha caído no sono, e cheguei a dormitar quando de repente
ele se levantou da cadeira com a gesticulação de um homem que já decidiu o que fazer,
tirou o cachimbo e o atirou na pedra da lareira.
— Sarasate está se apresentando no St. James’s Hall esta tarde — disse ele. — O que é
que acha, Watson? Seus doentes poderão dispensá-lo por algumas horas?
— Não tenho quase nada que fazer hoje, e minha clientela nunca me absorve muito
tempo.
— Então, ponha o chapéu e vamos até lá. Vou passar pela City e podemos almoçar no
caminho. Reparei que há bastante música alemã no programa, que aprecio mais do que a
italiana ou a francesa. É introspectiva, e preciso de introspecção. Vamos!
Fomos pelo metro até Aldersgate; um breve passeio levou-nos à Saxe-Coburg Square,
ao lugar onde tinham ocorrido os fatos da singular história que ouvíramos de manhã.
Era um largo pequeno, medíocre e maltratado; havia quatro carreiras de casas de tijolos
de frente para um terreno cercado, onde um conjunto de arbustos se esforçava por viver
numa atmosfera carregada de fumaça e poluição. Três bolas douradas e uma tábua
castanha com “Jabez Wilson” escrito em letras brancas numa casa de esquina indicavam
que era ali que nosso cliente tinha o seu negócio. Sherlock Holmes postou-se diante da
casa, olhando, a cabeça de lado e os olhos brilhando entre as pálpebras. Subiu a rua
vagarosamente e depois desceu-a até a outra esquina, examinando as casas. Finalmente,
voltou à casa de penhores e, depois de bater três vezes com força na calçada, foi até a
porta e bateu. A porta foi imediatamente aberta por um rapaz bem-barbeado e esperto,
que o convidou a entrar.
Sidney Paget, cortesia The Camden House
— Obrigado — disse Holmes —, desejava apenas perguntar-lhe como é que se vai para
o Strand.
— Vire na terceira esquina à direita, e depois na quarta à esquerda — respondeu
prontamente o empregado, fechando a porta.
— Rapaz vivo, aquele — observou Holmes quando saímos. — A meu ver, é a quarta
pessoa mais esperta de Londres, e pela sua ousadia talvez mereça o terceiro lugar. Já sei
alguma coisa a seu respeito.
— Claro que é o ajudante do sr. Wilson, e tem grande importância nesse mistério da
Liga dos Cabeças Vermelhas. Tenho certeza de que você pediu a informação apenas
para que pudesse vê-lo.
— Não a ele.
— Então o quê?
— Os joelhos das calças dele.
— E o que foi que você viu?
— O que esperava ver.
— Por que bateu na calçada?
— Meu caro doutor, é hora de observação, não de prosa. Somos espiões na terra do
inimigo. Já conhecemos a Saxe-Coburg Square, vamos agora explorar as ruas que ficam
por trás dela.
A rua em que entramos depois que viramos a esquina da praça fazia um perfeito
contraste com a outra, tal como a frente de um quadro em relação ao verso. Era uma das
principais artérias por onde passava o tráfego da cidade para norte e oeste. Estava
bloqueada por uma imensa fila dupla de veículos comerciais, em ambos os sentidos, e
as calçadas estavam escuras devido à multidão de passantes. Era difícil crer que os
fundos daquelas lojas e daqueles majestosos edifícios dessem na feia praça onde
tínhamos desembocado.
— Deixe-me ver — disse Holmes parando na esquina e olhando a fila de prédios —,
gostaria de fixar a ordem destas casas. É um passatempo meu este de obter um
conhecimento exato das ruas de Londres. Mais adiante fica a loja de Mortimer, o
vendedor de tabaco, a lojinha de jornais, o restaurante vegetariano, o depósito de
McFarlane, o fabricante de carros. Isso nos leva até o outro quarteirão. E agora, doutor,
que já acabamos nosso trabalho aqui, vamos nos divertir um pouco. Vamos tomar uma
chávena de café e comer um sanduíche, e depois seguir para a terra dos violinos, onde
tudo é doçura, delicadeza e harmonia, e onde não há clientes de cabeça vermelha a nos
incomodar com suas histórias.
Sidney Paget, cortesia The Camden House
Meu amigo era um músico entusiástico, e não só sabia tocar instrumentos como também
era um compositor de mérito, acima do comum. Ficou toda a tarde sentado, perdido na
mais perfeita alegria, agitando os dedos ao compasso da música, enquanto o rosto
sorridente e os olhos lânguidos e sonolentos não pareciam ser os mesmos do Holmes
caçador, do impiedoso, do esperto agente criminal. No seu temperamento a natureza
dupla alternava-se, e sua extrema exatidão e astúcia representavam, como muitas vezes
tenho pensado, uma reação contra a tendência poética e contemplativa que
ocasionalmente predominava nele. A transição rápida de sua natureza levava-o do
extremo langor a uma energia devorante, e eu sabia que nunca era tão temível como
quando, durante alguns dias sem interrupção, ficava na poltrona rodeado pelas suas
pesquisas e notas. Era então que, repentinamente, suas faculdades arrasadoras
demonstravam um tão, alto nível de intuição que aqueles que não estavam habituados
aos seus métodos o olhavam, atônitos, considerando quase sobre-humanos seus
conhecimentos. Quando o vi naquela tarde, tão entretido com a música no St. James’s
Hall, senti que aqueles que ele resolvera caçar corriam perigo.
— Com certeza quer regressar a casa, não, doutor? — perguntou ele ao sairmos do St.
James’s Hall.
— Sim, seria bom.
— E eu tenho um assunto que me ocupará algumas horas. Este caso da Saxe-Coburg
Square é coisa séria.
— Por que séria?
— Um crime hediondo está sendo planejado. Tenho os melhores motivos para crer que
estamos a tempo de o impedir. Como hoje é sábado, isto complica um pouco os
movimentos. Esta noite precisarei do seu auxílio.
— A que horas?
— Às vinte e duas horas seria conveniente.
— Estarei na Baker Street a essa hora, então.
— Muito bem. E olhe, doutor! Pode ser que haja um certo perigo, é bom prevenir-se
levando seu revólver do exército no bolso. — Agitou a mão, rodou nos calcanhares e
desapareceu rapidamente no meio da multidão.
Espero não ser menos inteligente que os demais homens, porém, fiquei oprimido com a
consciência da minha própria insensatez em comparação com Sherlock Holmes. Tinha
ouvido e visto o mesmo que ele, e pelas suas palavras era evidente que ele sabia não só
o que acontecera, mas até o que ia acontecer, ao passo que para mim tudo era apenas
confusão. Pensava no assunto enquanto ia de carro para a minha residência, em
Kensington, na história esquisita do copiador da Encyclopædia, na Saxe-Coburg Square
e nas palavras sinistras com que ele se despedira de mim. Que expedição noturna seria
essa, e por que haveria eu de ir armado? Onde iríamos e o que teríamos de fazer?
Calculei, pela atitude de Holmes, que o sujeito insinuante, ajudante do homenzinho da
loja de penhores, era um indivíduo temível, capaz de tudo. Quis desvendar qualquer
coisa, mas parei descoroçoado, e deixei de pensar no caso até que a noite trouxesse
alguma explicação. Eram vinte e uma e quinze quando saí de casa e me dirigi através do
parque e da Oxford Street à Baker Street. Havia dois carros à porta, e quando entrei no
corredor ouvi o som de vozes lá em cima. Ao entrar no aposento, vi Holmes numa
animada conversa com dois homens, um dos quais reconheci ser Peter Jones, o agente
da polícia; o outro era um homem de rosto comprido e magro, com um chapéu lustroso
e metido numa respeitável sobrecasaca.
— Oh! Nosso grupo agora está completo — disse Holmes, abotoando sua jaqueta e
pegando seu chicote de cabo grosso de caçador que estava pendurado no bengaleiro. —
Watson, creio que você já conhece o sr. Jones, da Scotiand Yard. Deixe-me apresentar-
lhe o sr. Merryweather, que vai nos acompanhar nas aventuras desta noite.
— Vamos caçar dois a dois outra vez, doutor, como está vendo — disse Jones. —
Nosso amigo é muito bom para inventar uma caça. Só precisa de mais um cão para
ajudá-lo a farejar.
— Espero que nossa caçada não seja em vão — observou tristemente o sr.
Merryweather.
— Pode confiar inteiramente no sr. Holmes — disse o policial arrogantemente. — Ele
tem os seus próprios metodozinhos, os quais são a meu ver um pouco teóricos e
fantásticos demais, mas tem jeito para detetive. Não é demais admitir isso uma ou duas
vezes, como no caso do assassino de Sholto e no do tesouro de Agra, em que os seus
cálculos foram mais exatos do que os da polícia.
— Oh, se fala assim, então está tudo bem, sr. Jones! — disse o estranho com deferência,
— Todavia, confesso que sinto perder hoje o meu joguinho. Nos últimos dois anos, é a
primeira noite de sábado que não vou jogar.
— Creio que hoje achará as apostas mais importantes do que jamais o fez, e de maior
interesse — exclamou Holmes. — Para o sr. Merryweather, as apostas valerão mais do
que trinta mil libras, e para o sr. Jones, será um homem a quem deseja deitar as mãos.
— John Clay, o assassino, ladrão, estrangulador e falsário, é jovem, sr. Merryweather,
mas é perito na sua profissão; eu gostaria mais de lhe pôr as algemas do que a qualquer
outro criminoso de Londres. É extraordinário esse tal Clay; o avô era um duque da casa
real, e ele próprio estudou em Eton e Oxford. Tem um cérebro tão agudo como os
dedos, e, embora encontremos sinais dele a cada passo, nunca sabemos onde se
encontra. Faz um roubo na Escócia numa semana e na outra já está arranjando dinheiro
para fundar um orfanato na Cornualha, no extremo sul. Há anos que o persigo, mas
nunca o vi.
— Espero ter o prazer de apresentá-lo ao senhor esta noite. Eu também já andei atrás
dele uma ou duas vezes e concordo que é perito na profissão. Já se passaram duas horas
e devíamos estar a caminho. Vocês dois seguem no primeiro carro, e Watson e eu
seguimos no outro.
Sherlock Holmes manteve-se calado durante o longo percurso e encostou-se para trás,
cantarolando baixo as músicas que havia escutado à tarde. Atravessamos o labirinto de
ruas iluminadas a gás até desembarcarmos na Farringdon Street.
— Agora estamos pertinho — disse o meu amigo. — Aquele sujeito chamado
Merryweather é diretor de um banco e está pessoalmente interessado no assunto. Achei
melhor trazer o Jones conosco, não é mau rapaz, embora absolutamente imbecil quanto
à sua profissão. Tem uma virtude: é tão corajoso como um buldogue e teimoso como
uma lagosta, desde que põe a mão a alguém. Aqui estamos, e lá estão eles à nossa
espera.
Sidney Paget, cortesia The Camden House
Tínhamos chegado às mesmas ruas onde estivéramos de manhã. Despachamos os
coches e, seguindo no encalço do sr. Merryweather, passamos por um estreito corredor e
por uma porta lateral, que ele nos abriu. Dentro havia outro pequeno corredor, que
terminava num enorme portão. Merryweather parou para acender a lanterna e então
conduziu-nos através de uma passagem escura e úmida e, depois de abrir a segunda
porta, entramos num porão onde estavam empilhados caixotes gradeados e grandes
caixões.
— Não são vulneráveis lá de cima — disse Holmes, enquanto suspendia a lanterna e
olhava em redor.
— Nem de baixo — disse Merryweather, dando uma leve pancada com sua bengala nas
lajes que forravam o chão. — Ora essa, então não é que parece oca? — disse ele,
surpreso.
— Peço-lhe que fique calmo — disse Holmes severamente. — O senhor está pondo em
risco o êxito da nossa expedição. Peco-lhe o favor de se sentar sobre um daqueles
caixotes e de não interferir.
Com a expressão de quem fora humilhado, o sr. Merryweather sentou-se solenemente
em cima de um caixote gradeado, enquanto Holmes, de joelhos e com a lanterna na mão
e uma lente de aumento, começou a examinar cuidadosamente as frestas entre as lajes.
Poucos segundos depois ficou satisfeito, porque se pôs de pé novamente e colocou a
lente no bolso.
— Temos pelo menos uma hora de espera — disse ele.
— Não podem trabalhar enquanto o bom penhorista estiver na cama. Depois não
perderão um instante, porque, quanto mais depressa fizerem o trabalho, mais tempo
terão para fugir antes de serem descobertos. Nós, como talvez tenha adivinhado, doutor,
estamos nos subterrâneos de um dos principais bancos de Londres. O sr. Merryweather
é um dos diretores, e explicará as razões por que os ousados criminosos devem ter
atualmente grande interesse por este porão.
— É por causa do nosso ouro francês… — cochichou o diretor. — Fomos avisados
diversas vezes de que iam tentar um assalto.
— Ao ouro francês?
— Sim. Tivemos ocasião, há poucos meses atrás, de aumentar nossos recursos, e
fizemos um empréstimo de trinta mil napoleões ao Banco de França. Sabem que ainda
não tivemos necessidade de desempacotar o dinheiro e que ele continua aqui no porão.
Este caixote onde estou sentado contém dois mil napoleões encerrados entre duas
chapas de chumbo. Nossas reservas de dinheiro são atualmente muito maiores do que as
que costumamos guardar em qualquer agência do banco, e os diretores já estão
receosos.
— E esses receios são muitos justificados — observou Holmes. — E agora devemos
executar nossos planos. Penso que dentro de uma hora as coisas chegarão ao auge.
Entretanto, sr. Merryweather, devemos cobrir a luz daquela lanterna.
— E ficaremos sentados no escuro?
— Temo que seja necessário. Eu tinha trazido um baralho de cartas para que o senhor
não perdesse o seu joguinho, visto que somos quatro, mas vejo que os preparativos do
inimigo estão adiantados demais para nos arriscarmos a ter luz. E, em primeiro lugar,
devemos escolher nossas posições. Aqueles homens são ousados e, embora estejam em
desvantagem, podem ferir-nos, a não ser que tomemos todas as precauções. Ficarei atrás
deste caixote e você fica atrás daquele. Quando eu os focar com a luz, rodeiem-nos
depressa, e se eles fizerem fogo, Watson, não tenha receio de abatê-los a tiro.
Coloquei meu revólver automático em cima de um dos caixotes gradeados atrás dos
quais estava escondido. Holmes fechou a chapa escura de um dos lados da lanterna e
deixou-nos em escuridão completa. O cheiro de metal quente permaneceu e assegurou-
nos que a luz ainda estava acesa, pronta para brilhar de um momento para outro. Para
mim, cujos nervos já estavam excitados, havia algo de deprimente nessa escuridão e no
ar frio e úmido do porão.
— Eles só têm uma saída — cochichou Holmes —, através da casa da Saxe-Coburg
Square. Espero que faça o que pedi, Jones.
— Tenho um inspetor e dois policiais à espera na porta da frente.
— Então as saídas estão fechadas e agora devem ficar quietos e esperar.
Quanto tempo parecia passar! Mais tarde, ao comparar minhas anotações, descobri que
esperamos apenas uma hora e quinze minutos, todavia pareceu-me que a noite acabara e
o dia estava prestes a raiar por cima de nós. Fiquei com as pernas hirtas e cansadas
porque receei mudar de posição, e tinha os nervos na mais alta tensão e o ouvido tão
atento que não só pude ouvir o respirar dos meus companheiros, como pude discernir o
respirar mais forte do obeso Jones em contraste com o fino suspirar do diretor do banco.
Da minha posição, pude olhar de cima do caixote em direção ao sol, e subitamente meus
olhos perceberam um raio de luz.
Pareceu-me primeiramente uma faixa lúgubre sobre a laje, depois alastrou-se até se
tornar uma linha amarela, e então, sem aviso nem ruído, abriu-se um vão por onde uma
mão branca que parecia de mulher surgiu no centro da área iluminada. Por um minuto, a
mão de dedos retorcidos ficou por cima da laje, e depois desapareceu tão ligeiramente
como veio e tudo ficou no escuro, a não ser a faixa lúgubre que marcava uma brecha
entre as lajes. A mão voltou logo, e houve um som de quebrar e partir. Uma das largas
lajes brancas caiu para o lado e deixou um buraco quadrado através do qual brilhou a
luz de uma lanterna. Por ele surgiu o rosto liso de um rapaz, que olhou ansiosamente em
redor e depois, com uma mão em cada lado da abertura, suspendeu-se até a cintura e
com um joelho atingiu a borda; mais um instante e ele deu um salto, colocando-se ao
lado do buraco para ajudar o companheiro a subir, um homem ligeiro e pequeno como
ele, de rosto pálido e abundante cabelo vermelho.
— Está ok — murmurou ele. — Trouxe o formão e os sacos? Céus! Suba, Archibald,
suba que eu me responsabilizo!
Sherlock Holmes deu um pulo e pegou o intruso pela gola. O outro ergueu-se pela
abertura, e ouvi o rasgar de roupa quando Jones o agarrou. A luz brilhou sobre a
coronha de um revólver, mas o cabo do chicote de Holmes caiu sobre o pulso do
homem, fazendo a pistola rolar na laje.
Sidney Paget, cortesia The Camden House
— Não adianta, John Clay — disse Holmes suavemente. — Já não pode fugir.
— Estou vendo — disse o outro com a maior calma —, creio que meu companheiro está
bem, embora estejam aqui as costas do casaco.
— Há três homens à espera dele à porta — disse Holmes.
— Oh, deveras! Você parece ter preparado tudo muito bem. Devo dar-lhe os parabéns.
— E eu a você — respondeu Holmes. — Sua idéia do cabelo vermelho é nova e de
grande efeito.
— Verá seu companheiro em outra ocasião — disse Jones. — Ele é mais ágil para
passar buracos do que eu. Estenda as mãos enquanto lhe ponho as algemas.
— Espero que não me toque com suas mãos imundas — disse o prisioneiro no momento
em que lhe ajustavam as algemas nos pulsos. — Pode ser que o senhor não saiba, mas
tenho sangue real nas veias. Tenha a bondade, quando falar comigo, de dizer “sir” e
“faça o favor”.
— Muito bem — disse Jones com um olhar de escárnio. — Então queira fazer o favor,
sir, de marchar e de subir a escada, para arranjarmos um carro que leve Vossa Alteza até
o posto policial.
— Assim está melhor — disse John Clay serenamente. Fez-nos uma profunda vênia e
avançou.
— Realmente, sr. Holmes — disse Merryweather quando os viu presos fora do porão —
, não sei como o banco lhe poderá agradecer ou recompensá-lo. Não há dúvida de que
descobriu e derrotou, da maneira mais completa, um dos mais audaciosos e bem-
arquitetados roubos de banco de que até agora se ouviu falar.
— Eu também tenho uma ou duas coisas a resolver com este sr. John Clay — disse
Holmes. — Tive muitas despesas com o caso, que espero que o banco me reembolse,
mas além disso estou satisfeito por ter tido uma experiência tão rara e por ter ouvido a
extraordinária narrativa da Liga dos Cabeças Vermelhas.
— Como vê, Watson — explicou-me ele de madrugada, enquanto tomávamos um
uísque com soda na Baker Street —, era evidente desde o princípio que o único objetivo
possível desse fantástico negócio de copiar a enciclopédia era afastar o penhorista
durante algumas horas todos os dias. Foi um modo curioso de arranjar as coisas, mas
seria difícil sugerir melhor. Com certeza foi produto da mentalidade de Clay, sugerido
pela cor do cabelo do seu companheiro. As quatro libras por semana eram a isca para o
atrair, e o que representava isso para aqueles que tinham milhares de libras em jogo?
Publicam o anúncio, o outro malandro incita o homem a ir candidatar-se ao lugar, e
juntos conseguem que ele se ausente durante algumas horas todas as manhãs. Desde que
ouvi o penhorista dizer que o empregado trabalhava por metade do salário, convenci-me
de que tinha forte motivo para conservar o emprego.
— Mas como pôde descobrir qual era o motivo?
— Se houvesse mulheres na casa, eu suspeitaria de uma intriga comum. Mas isso estava
fora de questão. A casa de penhores era pequena, e não tinha nada que justificasse tão
grandes preparativos e tantas despesas. Devia então ser alguma coisa alheia à casa. O
que seria? Lembrei-me da grande paixão que o rapaz tinha por fotografias e do seu
hábito de se meter na adega. A adega! Era ali que estava o fulcro deste caso intrincado.
Fiz algumas indagações a respeito do ajudante e descobri que lidava com um dos
criminosos mais frios e audazes de Londres. Estava portanto querendo fazer qualquer
coisa na adega, coisa que levava horas durante dias, meses sem fim. Que podia ser?
Ocorreu-me que estaria abrindo um túnel até outro edifício. Tinha chegado a esta
conclusão, quando fomos visitar o local da ação. Surpreendi-o quando bati na calçada
com a bengala. Tentava saber se a adega ficava na frente ou fundos da casa. Toquei a
campainha e, como esperava, foi o empregado que veio abrir a porta. Já tivemos os dois
algumas lutas, mas indiretamente, e mal olhei para ele. Queria ver os joelhos dele, e até
você deve ter reparado como as calças estavam rotas e sujas justamente nos joelhos.
Falavam daquelas horas passadas cavando o chão. Só restava descobrir o motivo por
que cavavam. Virei a esquina e percebi que o City and Suburban Bank se ligava à casa
do nosso amigo. Achei que estava ali a solução do meu problema. Quando você foi para
casa depois do concerto, procurei a Scotland Yard e o presidente da diretoria do banco,
obtendo o resultado que já conhece.
— E como adivinhou que iam tentar o assalto hoje? — perguntei-lhe.
— Bem, quando fecharam o escritório da liga, era sinal de que já não se incomodavam
com a presença do sr. Jabez Wilson. Em outras palavras, tinham completado o túnel,
mas era essencial que o utilizassem logo, porque podia ser descoberto ou o dinheiro ser
transferido de lugar. Sábado seria melhor que qualquer outro dia, porque proporcionava
dois dias para a fuga. Foi por todas essas razões que os esperei hoje.
— Calculou maravilhosamente — exclamei eu cheio de admiração. — A corrente é
longa, mas todos os elos se ligam fielmente.
— Serviu para me divertir — respondeu ele, bocejando. — Sinto chegar o
aborrecimento. Passo a vida procurando escapar às coisas vulgares e corriqueiras, e
estes problemas ajudam-me a consegui-lo.
— E é um benfeitor da raça — comentei.
Encolheu os ombros.
— Bem, no fim talvez seja de alguma utilidade — disse ele. — “L’homme c’est rien —
l’oeuvre ces’t tout“, [1] como escreveu Gustave Flaubert a George Sand.
A face amarela
Arthur Conan Doyle
A face amarela Título original: The Yellow Face
Publicado pela primeira vez na Strand Magazine,
em Fevereiro de 1893 e com 7 ilustrações de Sidney Paget.
Sobre o texto em português:
Este texto digital reproduz a
tradução de The Yellow Face publicado em
As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume III,
editado pelo Círculo do Livro
e com tradução de Hamílcar de Garcia.
Ao publicar estes breves esboços, baseados em numerosos casos e dramas
estranhos de que as qualidades especiais de meu companheiro me fizeram espectador, e
eventualmente ator, é muito natural que me detenha mais nos êxitos do que nos
fracassos. Não se trata de amor à sua reputação, pois era precisamente quando não tinha
nada em mãos que sua energia e vitalidade se tornavam mais admiráveis, mas sucedia
muitas vezes que, onde ele fracassava, ninguém mais era bem sucedido. Entretanto, às
vezes acontecia que, mesmo quando errava, a verdade era descoberta. Possuo alguns
casos dessa natureza, dos quais o da segunda mancha e o que vou agora narrar são os
que apresentam as mais fortes características de interesse.
Sherlock Holmes era um homem que só muito raramente fazia exercícios por
diletantismo, mas poucos seriam capazes de maior esforço físico. Foi, sem dúvida
alguma, um dos mais exímios pugilistas de seu peso que já encontrei. Considerava
porém o esforço físico sem objetivo um desperdício, e poucas vezes se entregava à
atividade, exceto se havia um fim profissional a ser atingido. Então era infatigável,
sendo de espantar que, em ocasiões extremas, se encontrasse em forma. Atribuo isso a
seu sóbrio regime alimentar e aos hábitos simples, que se aproximavam da austeridade.
Um dia, no começo da primavera, estava tão bem-disposto que saiu comigo para
um passeio no Hyde Park. Os olmos começavam a desabrochar, e as duras pontas de
lança dos castanheiros rebentavam-se em folhas múltiplas. Erramos juntos durante duas
horas, a maior parte do tempo em silêncio, como sucede com duas pessoas que se
conhecem intimamente. Eram já quase cinco horas quando regressamos à Baker Street.
— Desculpe, senhor — disse nosso criado, ao abrir a porta —, mas esteve aqui um
cavalheiro que perguntou pelo senhor.
Holmes olhou para mim com ar de censura:
— Gastar tanto tempo nestes passeios à tarde! O cavalheiro já se foi?
— Sim, senhor.
— Não o mandou entrar?
— Mandei, sim. Ele entrou.
— Quanto tempo esteve à espera?
— Meia hora. Era um cavalheiro inquieto. Todo o tempo que aqui esteve, andou de um
lado para outro e batia os pés no chão. Ouvi perfeitamente, senhor, porque fiquei à
espera do outro lado da porta. Por fim, saiu para o corredor e disse: “Esse homem nunca
mais vem?” Foram essas suas próprias palavras, senhor. Eu respondi: “Queira esperar
um pouco mais”. “Então esperarei ao ar livre, porque tenho pressa. Voltarei mais tarde.”
E foi-se embora.
— Bem, você fez o que pôde — disse Holmes quando entramos. E, dirigindo-se a mim:
— Realmente, é muito aborrecido, Watson; tenho imensa necessidade de um caso e este
parece-me de importância, a julgar pela impaciência do homem. Espere! Aquele
cachimbo em cima da mesa não é seu! Nosso homem deve tê-lo esquecido. É um belo
cachimbo de roseira, com um cabo comprido, de uma substância a que os tabaquistas
chamam âmbar. Pode fazer-se uma idéia de quantas boquilhas de âmbar autêntico há em
Londres. Algumas pessoas acham que uma pequena mosca na boquilha é um sinal de
distinção, a tal ponto que há um ramo de negócio que consiste em simular moscas em
âmbar falso. Mas o homem deve ter sofrido um distúrbio mental para se esquecer de
uma coisa que tanto estima.
— Como sabe disso? — perguntei.
— Bem, calculo o custo original do cachimbo em sete xelins e seis pence. Ora, ele já foi
consertado duas vezes, como se vê: no cabo de madeira e no âmbar. Cada um desses
arranjos, feito com anilhas de prata, deve ter custado mais do que o cachimbo. O
homem tem de estimá-lo muito para preferir mandar consertá-lo a comprar outro com o
mesmo dinheiro.
Sidney Paget, 1893
— Alguma coisa mais? — insisti, vendo Holmes virar o objeto na mão e observá-lo a
seu modo peculiar e pensativo.
Ergueu-o e bateu-lhe ao de leve com o indicador comprido e fino, como um professor
que fizesse uma preleção sobre um osso.
— Os cachimbos são, por vezes, de um interesse extraordinário. Nada tem mais
originalidade, exceto talvez os relógios e os cadarços das botas. No entanto, as
indicações neste caso não são muito significativas nem muito importantes. O dono deste
objeto é um homem musculoso, canhoto e de excelente dentadura. Além disso, é
descuidado em seus hábitos e não tem a menor necessidade de fazer economia.
Meu amigo lançou essa opinião de maneira categórica, mas vi que olhou para mim para
ver se eu lhe seguia o raciocínio.
— Você acha que um homem precisa ser rico para fumar um cachimbo de sete xelins?
— perguntei.
— Esta mistura de Grosvenor custa oito pence a onça — respondeu Holmes. — Visto
que ele poderia comprar um excelente tabaco por metade do preço, deduzo que não tem
necessidade de fazer economia.
— E os outros pontos?
— Tem o hábito de acender o cachimbo nos candeeiros e nos bicos de gás. Nota-se que
a madeira está toda queimada de um lado, e um fósforo não teria feito isso. Não se
compreende que um homem coloque um fósforo do lado de fora do cachimbo, mas se o
acender numa lâmpada queima-lhe o bojo. É o lado direito que está queimado, e por
isso concluo que é canhoto. Leve você seu cachimbo à chama e repare que, não sendo
canhoto, é o lado esquerdo que queima, normalmente. Mas vê-se também que é um
indivíduo musculoso, enérgico, por ter conseguido morder o âmbar desta maneira. Que
belos dentes deve ter! Mas, se não estou enganado, ouço-o subir a escada, de modo que
teremos algo de mais interessante para estudar do que seu cachimbo.
Um instante depois, a porta abriu-se e entrou na sala um jovem alto, modestamente
vestido de cinza-escuro, na mão um chapéu mole e castanho. Eu lhe daria uns trinta
anos, embora fosse um pouco mais velho.
— Peco-lhes desculpas — começou com certo embaraço. — Creio que devia ter batido.
Sim, devia ter batido, na verdade. Mas estou um pouco transtornado, de modo que me
esqueço de tudo. — Passou a mão pela testa com uma expressão de surpresa e jogou-se
numa cadeira.
— Noto que o senhor não dorme há uma ou duas noites — disse Holmes, à maneira
fácil e engenhosa. — Isso é pior para os nervos do que o trabalho. Pior mesmo que o
prazer. Importa-se que lhe pergunte em que posso servi-lo?
— Queria que me desse um conselho. Não sei o que fazer. Toda a minha vida parece
transtornada.
— Quer contratar meus serviços como detetive?
— Não. Não é bem isso. Queria sua opinião porque sei que o senhor é um homem
criterioso, um homem experiente. Preciso saber o que fazer. E Deus queira que possa
ajudar-me.
Falava entrecortadamente, com arranques ásperos e espasmódicos. Parecia que falar era-
lhe muito penoso, e que seu desejo era vencer essa dificuldade.
— É um assunto muito delicado — disse ele. — Ninguém gosta de falar a estranhos a
respeito de suas questões domésticas. Parece-me horrível abordar a conduta da mulher
com quem me casei com dois homens que nem sequer conheço. É na verdade horrível
ter de recorrer a isso. Cheguei porém ao fim de meus receios, e preciso de conselho.
Sidney Paget, 1893
— Meu caro sr. Grant Munro — começou Holmes.
O nosso visitante saltou na cadeira.
— O quê? — gritou. — O senhor sabe meu nome?!
— Se quiser manter-se incógnito — respondeu Holmes —, sugiro-lhe que deixe de
escrever seu nome no forro do chapéu, ou então volte a copa para a pessoa a quem se
dirigir. Mas eu dizia que tanto meu amigo como eu temos ouvido muitos segredos nesta
sala, e também temos tido a felicidade de levar a paz a muitas almas angustiadas.
Espero que possamos fazer o mesmo com o senhor. Visto que o tempo é sempre de
primordial importância, peco-lhe para expor o caso sem mais delongas.
Como se achasse isso muito doloroso, o nosso visitante passou outra vez a mão pela
testa. Em cada um de seus gestos e expressões, eu notava nele um homem reservado e,
por natureza, capaz de se dominar; mas havia também certo orgulho que o levava a
preferir ocultar suas feridas em lugar de as revelar. De repente, fazendo com a mão o
gesto de quem se liberta de um peso, começou:
— Os fatos são estes, sr. Holmes, Sou casado há três anos, minha mulher e eu amamo-
nos sempre com paixão e temos sido felizes como se nunca houvéssemos vivido um
sem o outro. Nunca tivemos uma divergência, por pensamentos, palavras ou obras. Mas
agora, desde segunda-feira passada, surgiu de súbito uma barreira entre nós e descobri
que existe alguma coisa em sua vida e em seus pensamentos que conheço tão mal como
se se tratasse de uma estranha que cruzasse comigo na rua. Somos estranhos, e quero
saber por quê. Mas há uma coisa que desejo salientar antes de prosseguir, sr. Holmes.
Effi me ama. Não deve haver a menor dúvida a esse respeito. Ama-me de todo o
coração e de toda a sua alma, e nunca me amou mais do que agora. Sei disso, sinto-o, e
não venho aqui para discuti-lo. Um homem pode saber com facilidade quando a mulher
o ama. Mas agora há este segredo entre nós, e nunca poderemos voltar a ser os mesmos
enquanto tudo não estiver esclarecido.
— Tenha a bondade de me apresentar os fatos, sr. Munro — disse Holmes com
impaciência.
— Começarei pelo que sei da história de Effi. Era viúva quando a encontrei pela
primeira vez, embora muito nova, pois tinha apenas vinte e dois anos. Chamava-se
então sra. Hebron. Fora muito jovem para a América, e viveu na cidade de Atlanta, onde
se casou com um advogado de grande clientela chamado Hebron. Tiveram uma filha;
mas, durante a epidemia de febre amarela que repentinamente grassou na cidade, ambos
morreram, o marido e a filha. Vi as certidões de óbito. Esses tristes fatos desgostaram-
na na América, e fizeram-na regressar à casa de uma tia solteira que vive em Pinner, em
Middlesex. Posso acrescentar que o marido a deixou muito bem, com um capital de
quase quatro mil e quinhentas libras, tão bem aplicado que rende uma média de sete por
cento. Chegara a Pinner havia seis meses quando a vi pela primeira vez; gostamos logo
um do outro e casamo-nos poucas semanas depois.
“Sou negociante de lúpulo e, como tenho uma renda de setecentas a oitocentas libras,
vivemos com um certo desafogo e alugamos, em Norbury, uma casa de oito libras por
ano. É um lugar bastante rústico, embora fique muito perto da cidade. Há na região uma
pensão e duas casas um pouco mais adiante e, do outro lado do prado, bem em frente à
nossa, outra casa. Isso é tudo até meio caminho da estação. Meu negócio obriga-me a
vir à cidade em certas épocas do ano. No verão, em geral, tenho menos o que fazer, e
fico mais em casa. Minha mulher e eu éramos realmente tão felizes quanto podíamos
desejar. Digo-lhe que nunca houve a menor sombra entre nós, até surgir este maldito
caso. Mas há mais uma coisa que lhe devo dizer antes de continuar: quando nos
casamos, minha mulher passou toda a sua propriedade para meu nome, apesar de minha
firme oposição, porque eu via nisso um perigo caso meus negócios corressem mal. Mas
ela insistiu tanto que assim se fez. Ora, há cerca de seis semanas, ela veio ter comigo e
disse-me:
“— Jack, quando você ficou com meus bens, disse que, se eu precisasse de dinheiro,
bastava pedir.
“— Naturalmente — respondi —, visto que é todo seu.
“— Nesse caso, preciso de cem libras.
“Fiquei um tanto alarmado com o pedido; julguei tratar-se simplesmente de um vestido
novo ou coisa parecida.
“— Para que quer tanto dinheiro?
“— Oh! — disse ela com seu modo travesso —, você me disse que seria apenas meu
banqueiro, e os banqueiros nunca fazem perguntas.
“— Se realmente o deseja, é claro que o terá.
“— Sim, realmente quero.
“— E não me diz para quê?
“— Um dia, talvez. Mas agora não, Jack.
“Fiquei calado, embora aquele fosse o primeiro segredo entre nós, mas dei-lhe um
cheque e nunca mais falamos no assunto. Pode ser que este detalhe não tenha nada a ver
com o que se passou em seguida, mas achei conveniente mencioná-lo. Eu lhe disse
ainda há pouco que existe outra casa não muito distante da minha, separada apenas por
um prado. Para chegar lá é preciso tomar a estrada e seguir depois por um beco. Mais
adiante, há um pequeno pinhal muito lindo, onde eu gostava de passear porque as
árvores são sempre boas companheiras. Ora, esta casa está vazia há oito meses, e é uma
pena, visto que é uma bela moradia de dois andares, com uma entrada de estilo antigo,
toda cercada de madressilvas. Pensei muitas vezes que bela residência se faria dela. Na
segunda-feira passada à tarde, eu descia o caminho em meu passeio habitual, quando
cruzei com um caminhão de mudança vazio subindo o beco. Vi também uma pilha de
tapetes e outros objetos ao lado da entrada, tornando-se evidente que a moradia fora
alugada. Continuei a andar, depois parei como qualquer pessoa desocupada e corri os
olhos pela casa, tentando imaginar que espécie de gente teria vindo morar tão perto de
nós. Foi então que descobri um rosto que me fitava de uma das janelas de cima. Não
sabia o que havia naquele rosto, mas, ao fixá-lo melhor, senti um arrepio percorrer-me a
espinha. Estava longe, de modo que não fui capaz de lhe distinguir as feições, mas senti
que havia nele qualquer coisa que não era natural nem humana. Foi essa a impressão
que tive. Corri então, a fim de ver mais de perto a pessoa que continuava a fitar-me.
Mas, quando me aproximei, o rosto desapareceu repentinamente, tão repentinamente
que me pareceu ter sido arrastado para a escuridão do quarto. Durante uns cinco
minutos fiquei estático, pensando no assunto e tentando analisar minhas impressões.
Não podia, porém, dizer se o rosto era de homem ou mulher. Sua cor foi o que mais me
impressionou: era de um amarelo lívido e cadavérico, com algo de rígido mesmo, que o
tornava chocantemente antinatural. Cheguei a tal ponto de estupefação que decidi
indagar a respeito de tão estranho inquilino. Aproximei-me da porta e bati. Uma mulher
alta e magra, mal-encarada e antipática, apareceu logo.
Sidney Paget, 1893
“— O que o senhor quer? — perguntou, com um sotaque do norte.
“— Sou seu vizinho e moro ali — respondi, indicando com a cabeça minha casa. —
Vejo que acaba de se instalar, e pensei que talvez lhe pudesse ser útil.
“— Muito bem — respondeu a mulher. — Chamaremos quando precisarmos. — E
bateu-me com a porta na cara.
“Aborrecido com tal grosseria, fui para casa; toda a tarde pensei na aparição da janela e
na rispidez daquela mulher. Em vão tentava desviar o pensamento para outras coisas, e
resolvi não dizer nada a minha mulher, pois ela é uma pessoa nervosa e facilmente
impressionável. No entanto, antes de nos deitarmos, observei-lhe que a moradia vizinha
já estava alugada, mas ela não fez nenhum comentário.
“Normalmente, tenho o sono pesado. Dizem até por brincadeira, em família, que não há
nada que me acorde durante a noite. Mas desta vez deve ter acontecido alguma coisa
especial, talvez por causa da excitação que me provocara minha pequena aventura. Não
sei; o certo é que nessa noite tive um sono muito leve. Mais ou menos em sonhos,
estava consciente de que se passava qualquer coisa em meu quarto e, pouco a pouco, fui
me certificando de que minha mulher se vestia, punha a capa nas costas e pegava o
chapéu. Meus lábios se abriram ainda para murmurar algumas palavras de surpresa ou
censura perante tais preparativos; mas meus olhos meio abertos pousaram de repente em
seu rosto, iluminado pela luz da vela, e o espanto emudeceu-me. Ela tinha uma
expressão que eu nunca lhe vira, e que não a sabia capaz de assumir: mortalmente
pálida, olhava furtivamente para a cama, enquanto prendia a capa, para ver se me
acordara. Supondo que eu continuava a dormir, saiu silenciosamente do quarto e,
instantes depois, ouvi um rangido áspero, que podia ser dos gonzos da porta da frente.
Sentei-me, esfreguei as articulações nas colunas da cama para me certificar de que
estava acordado e tirei o relógio que ficara debaixo do travesseiro. Eram três da manhã.
Que diabo poderia fazer minha mulher numa estrada às três horas da manhã?
“Fiquei sentado uns vinte minutos pensando no assunto e tentando descobrir uma
explicação plausível, mas quanto mais pensava mais extraordinário tudo aquilo me
parecia. Perplexo, ouvi de novo a porta da frente fechando-se devagarinho, e os passos
dela subindo a escada.
“— Onde você esteve, Effi? — perguntei, quando ela entrou.
“Levou um susto violento e deu uma espécie de grito ofegante quando falei; e tanto o
susto como o grito ainda mais me perturbaram porque denunciavam indiscutivelmente
certa culpa. Minha mulher sempre fora franca e aberta para comigo, de modo que senti
um arrepio estranho ao vê-la entrar furtivamente em seu próprio quarto e encolher-se,
gritando, quando o marido lhe falava.
“— Você está acordado, Jack? — gritou, com uma risada nervosa. — Pensava que nada
podia acordar você.
“— Onde esteve? — perguntei, com mais dureza.
“— Não admira que você esteja surpreso — disse ela. Os dedos tremiam-lhe ao
desprender a capa. — Não me lembro de ter feito semelhante coisa em toda a minha
vida. Mas a verdade é que me senti sufocada, com uma necessidade louca de um pouco
de ar fresco. Creio que desmaiaria se não tivesse saído. Fiquei alguns minutos à porta, e
agora estou de novo perfeitamente bem.
“Durante toda essa história, não olhou uma única vez para mim, e sua voz era
totalmente diferente da que lhe era habitual. Tornou-se evidente que estava mentindo.
Não lhe dei resposta. Virei-me para a parede, o coração angustiado, a cabeça cheia de
milhares de dúvidas e suspeitas cruéis. O que minha mulher estaria ocultando? Onde
teria estado em seu estranho passeio? Eu sentia que não teria paz enquanto não o
soubesse, mas resistia à idéia de perguntar, uma vez que ela me mentia. Fiquei agitado e
angustiado pelo resto da noite, formando teoria após teoria, cada uma mais improvável
do que a outra.
“Naquele dia, eu devia ir à cidade, mas estava preocupado demais para dar atenção a
assuntos comerciais. Minha mulher parecia tão transtornada como eu. Pêlos olhares
rápidos que me lançava, pude adivinhar que sentia minha dúvida em relação a tudo o
que ela dissera. E isso a preocupava. Trocamos apenas uma palavra durante o desjejum.
Logo a seguir, saí; fui dar um passeio ao ar fresco da manha, para não pensar tanto no
assunto. Afastei-me até o Crystal Palace e andei uma hora pêlos campos. Quando voltei
a Norbury, era uma hora da tarde. Aconteceu que, quando passei diante daquela casa,
parei um instante para ver se conseguia descobrir a tal face estranha que me encarara no
dia anterior. Imagine minha surpresa, sr. Holmes, quando a porta se abriu e saiu de lá
minha mulher.
“Ao avistá-la, fiquei mudo de espanto, mas minhas emoções não eram nada comparadas
às que se lhe estamparam no rosto quando nossos olhos se encontraram. Por um
instante, pareceu-me que queria retroceder para dentro da casa. Percebendo porém que
seria inútil qualquer tentativa de fuga, caminhou em frente com o rosto muito branco, e
com um olhar tão assustado que fez morrer o sorriso que tinha nos lábios.
“— Oh, Jack! Entrei aqui agora mesmo para ver se nossos vizinhos precisavam de
alguma coisa. Por que olha assim para mim? Está zangado?
“— Estou — respondi. — Foi para cá que você veio a noite passada.
“— Que quer dizer?
“— Tenho certeza de que foi para cá que você veio a noite passada. Que pessoas você
foi visitar àquela hora?
“— Mas eu nunca vim até aqui…
“— Como tem coragem de dizer aquilo que você sabe que é mentira? — exclamei. —
Até sua voz se altera quando você fala. Já lhe escondi porventura alguma coisa? Vou
entrar na casa para desvendar esse mistério.
“— Não, Jack! Pelo amor de Deus! — gritou com incontida emoção.
Sidney Paget, 1893
“Aproximei-me da porta, mas ela puxou-me pelo braço com uma força convulsiva.
“— Imploro-lhe que não entre, Jack — gritou. — Juro que um dia direi tudo. Mas, se
entrar nessa casa, você terá um desgosto.
“E agarrou-se a mim quando tentei livrar-me de sua súplica frenética.
“— Confie em mim, Jack — continuou, com angústia. — Confie em mim desta vez
apenas, e nunca terá razões para se arrepender. Sabe que eu não ocultaria nada se não
fosse para seu próprio bem. Nossas vidas estão em perigo. Se voltar para casa comigo,
tudo correrá bem, mas se insistir em entrar, tudo acabará entre nós.
“Havia tal veemência, tal desespero em sua atitude, que estas palavras me detiveram e
fiquei imóvel, indeciso, diante da porta.
“— Confiarei em você, mas com uma condição, uma única condição — disse por fim.
— Eu lhe darei a liberdade de manter seu segredo, mas prometa-me que não haverá
mais visitas noturnas nem atos ocultos que eu ignore. Quero esquecer tudo o que se
passou, se me prometer que no futuro não se repetirão.
“— Eu estava certa de que você confiaria em mim — disse ela com um grande suspiro
de alívio. — Será como quiser. Agora, vamos embora! Vamos para casa! — E,
puxando-me pelo braço, afastou-me aquela casa. No caminho olhei para trás; lá estava
aquele rosto amarelo, lívido, a espiar-nos da janela de cima. Que elo poderia haver entre
aquela criatura e minha mulher? Como ela poderia manter relações com aquela mulher
grosseira que eu vira no dia anterior? Tudo isso era um estranho enigma, e eu não teria
sossego enquanto não o desvendasse.
“Permaneci dois dias em casa, e minha mulher parecia conservar-se leal a nosso
compromisso, visto que, até onde me foi dado saber, também não saiu. No entanto, ao
terceiro dia, tive a certeza de que sua promessa solene não era suficientemente forte
para libertá-la daquela secreta influência que a afastava de mim.
“Eu fora a Londres mas regressei no trem das duas e quarenta, e não no das três e trinta
e seis, como de costume. Quando cheguei a casa, a criada acorreu à entrada com um ar
muito assustado.
“— Onde está a senhora? — perguntei.
“— Parece-me que foi dar um passeio — foi a resposta.
“Fiquei imediatamente cheio de suspeitas. Precipitei-me escada acima para ver se de
fato ela não estava em casa. Aconteceu que, passando por uma janela, olhei para fora e
vi a criada, com quem estivera falando, correndo pelo campo em direção à casa.
Compreendi então o que tudo aquilo significava: minha mulher fora até lá e pedira à
criada que a chamasse quando eu voltasse. Ardendo de raiva, desci precipitadamente e
saí correndo, resolvido a acabar com aquela história de uma vez para sempre. Vi minha
mulher e a criada voltando apressadas pelo beco, mas não parei para lhe falar. Na casa é
que estava o segredo que lançava uma sombra sobre minha vida. Jurei que esse segredo
se desvaneceria, acontecesse o que acontecesse. Nem bati à porta; virei rápido a
maçaneta e entrei. No andar térreo tudo estava tranquilo e silencioso. Na cozinha, uma
chaleira cantava sobre o fogão. Um grande gato preto estava enrolado dentro de um
cesto. Nenhum sinal da mulher grosseira que me abrira a porta no outro dia. Corri ao
outro quarto, que estava igualmente vazio. Subi a escada correndo, mas só encontrei
duas salas desertas. Não havia ninguém, absolutamente ninguém em toda a casa. A
mobília e os quadros eram comuns, excetuando-se a do quarto em cuja janela eu vira o
estranho rosto. Esse era elegante e confortável. Mas todas as minhas suspeitas se
acenderam num ardor amargo e violento quando vi, sobre a lareira, uma ampliação de
uma fotografia que minha mulher tirara, a meu pedido, havia apenas três meses.
“Permaneci ali o tempo suficiente para me certificar de que a casa estava realmente
vazia. Saí então, sentindo no peito o que nunca sentira. Minha mulher estava no
vestíbulo quando cheguei a casa. Mas eu estava muito magoado para lhe falar, de modo
que fui direto ao escritório. Ela no entanto alcançou-me antes que eu tivesse tempo de
fechar a porta.
Sidney Paget, 1894
“— Estou triste por ter quebrado minha promessa, Jack. Mas se você soubesse o que se
passa, estou certa de que me perdoaria.
“— Então, conte-me tudo.
“— Não posso, Jack. Não posso!
“— Enquanto não me disser quem mora naquela casa e a quem você deu aquela
fotografia, não pode haver confiança entre nós — disse eu.
“E, abandonando-a, saí de casa. Isso se passou ontem, sr. Holmes, e desde então não
tornei a vê-la, nem soube mais nada do assunto. É a primeira sombra que cai entre nós.
Mas fiquei tão abalado que não sei o que fazer. Esta manhã lembrei-me de que o senhor
era homem para me aconselhar; apressei-me pois a procurá-lo e coloco-me sem reservas
em suas mãos. Se houve algum ponto sobre o qual não fui claro, pode perguntar. Mas,
acima de tudo, tenha a bondade de me dizer o que devo fazer, porque tudo isso está
além de minhas forças.”
Holmes e eu ouvimos, com o mais vivo interesse, essa extraordinária narrativa, exposta
aos tropeços por um homem atingido pela mais extrema emoção. Meu companheiro
continuou sentado, pensativo, o queixo apoiado nas mãos.
— Diga-me — começou, por fim. — O senhor pode jurar que era o rosto de um homem
o que viu na janela?
— Vi-o sempre a uma certa distância, de modo que não é possível afirmá-lo.
— No entanto, parece que o impressionou desfavoravelmente.
— Pareceu-me de cor antinatural e de feições muito rígidas. Quando me aproximei,
desapareceu num salto.
— Há quanto tempo sua mulher lhe pediu as cem libras?
— Há cerca de dois meses.
— Já viu algum retraio do primeiro marido?
— Não. Houve um grande incêndio em Atlanta logo depois de sua morte, e os papéis
dela ficaram todos destruídos.
— Mas tinha uma certidão de óbito. O senhor diz que a viu.
— É verdade. Trata-se de uma segunda via, tirada depois do incêndio.
— Encontrou alguma vez antigas relações de sua mulher na América?
— Não.
— Ela falou-lhe em voltar para lá?
— Não.
— Recebe cartas de lá?
— Que eu saiba, não.
— Muito obrigado. Gostaria de pensar um pouco no assunto. Se a casa continuar
desabitada, é possível que venhamos a ter dificuldades. Mas se, como creio, os
inquilinos foram avisados de sua ida tempestuosa e saíram por momentos, voltando em
seguida, então poderemos esclarecer tudo facilmente. Aconselho-o a voltar a Norbury e
examinar, de novo, as janelas da casa. Se notar que há gente, não entre à força, mas
mande-nos um telegrama. Iremos ter com o senhor, e uma hora depois atacaremos o
caso a fundo.
— E se continuar vazia?
— Nesse caso, irei amanhã discutir o caso com o senhor. Adeus e, acima de tudo, não se
irrite sem motivo.
— Receio que se trate de um caso grave, Watson — disse meu amigo, ao voltar da porta
aonde fora acompanhar o sr. Munro. — Que lhe parece?
— Soa mal — respondi.
— Sim. Há chantagem, ou estou muito enganado.
— E quem é o chantagista?
— Tem que ser o indivíduo que mora no único quarto confortável da residência, e que
tem a fotografia dela em cima da lareira. Juro-lhe, Watson, que há algo de atraente
naquele rosto lívido da janela, e por coisa nenhuma desistirei do caso.
— Já tem alguma hipótese?
— Já; uma hipótese provisória. Mas ficarei surpreso se verificar que não é exata. É o
primeiro marido daquela mulher quem está na casa.
— Por que pensa assim?
— Do contrário, como explicar a ansiedade frenética dela, com receio de que o segundo
marido entrasse? Os fatos, como os imagino, são mais ou menos estes: essa mulher
casou-se na América e o marido deve ter revelado qualquer característica odienta, ou
contraiu, digamos, uma doença repelente, ficando leproso ou imbecil, por exemplo. Ela
então fugiu dele, regressou à Inglaterra, mudou de nome e, como ambicionava,
recomeçou sua vida. Casada há três anos, supunha que sua posição estava
absolutamente garantida, tendo mostrado ao marido a certidão de óbito de qualquer
outro homem, de cujo nome se apropriou, quando de repente seu paradeiro foi
descoberto pelo primeiro marido, ou talvez por uma mulher sem escrúpulos que,
entretanto, se ligara ao inválido. Escreveram à mulher ameaçando-a de revelar toda a
verdade. A atual sra. Munro conseguiu cem libras e tentou comprar-lhes o silêncio. Eles
se mudaram apesar disso, e quando o marido disse à esposa que havia novos inquilinos
na casa, ela adivinhou que eram seus perseguidores. Esperou que o marido adormecesse
e então correu à tal casa, esforçando-se por persuadi-los a deixá-la em paz. Sem obter
êxito, voltou na manhã seguinte, momento em que o marido, como nos disse, a
encontrou quando saía. Ela então prometeu não voltar, mas a esperança de se libertar de
seus terríveis vizinhos é muito forte e, dois dias depois, voltou à carga, levando a
fotografia que, provavelmente, lhe tinham exigido. No meio da entrevista, a criada
entrou para anunciar que o patrão chegara. Não duvidando de que ele viria à moradia,
fez os inquilinos saírem pela porta de trás, talvez para o bosque que parece existir
próximo. Eis por que ele, quando entrou, encontrou a casa deserta. Ficarei no entanto
muito surpreso se assim continuar, quando ele a inspecionar de novo esta tardinha. Que
pensa de minha hipótese?
— É apenas uma hipótese.
— Pelo menos, abrange todos os fatos. Se chegarem a meu conhecimento novos fatos
que não caibam nela, terei tempo para reconsiderar. De momento, não podemos fazer
nada enquanto não recebermos nova mensagem de nosso amigo de Norbury.
Mas não esperamos muito tempo. O recado veio justamente quando estávamos
acabando o chá. “A casa está habitada”, dizia. “O rosto apareceu outra vez à janela.
Espero-os no trem das sete, e não darei nenhum passo até que cheguem.”
Grant esperava-nos na plataforma, e apesar da luz fraca da estação reparei que estava
muito pálido e trémulo de agitação.
— Ainda estão lá, sr. Holmes — disse, pondo a mão no braço de meu amigo. — Vi
luzes na casa quando descia. Vamos esclarecer tudo de uma vez por todas.
— Qual é seu plano? — perguntou Holmes, quando descíamos a estrada escura, ladeada
de árvores.
— Vou entrar à força e ver, com meus próprios olhos, quem está naquela casa. Quero
que ambos estejam lá para testemunhar.
— Está realmente decidido a fazê-lo, apesar da advertência de sua esposa de que seria
melhor não penetrar no mistério?
— Sim. Estou resolvido.
— Bem, creio que o senhor está em seu direito. Qualquer verdade é melhor do que a
dúvida. O melhor que temos a fazer é subir já. É certo que legalmente não temos esse
direito, mas penso que vale a pena arriscar.
A noite estava muito escura, e uma chuva fria começava a cair quando, deixando a
estrada, entramos num beco estreito, cheio de buracos e com uma cerca de ambos os
lados. O sr. Grant Munro avançava com impaciência, e nós, aos tropeções, o
acompanhávamos o melhor que podíamos.
— Ali estão as luzes de minha casa — murmurou ele, apontando para o clarão entre as
árvores. — Aqui está a casa onde vamos entrar.
Viramos uma esquina, como ele dissera, e logo a seguir surgiu o prédio a nosso lado.
Um feixe de luz amarela, no primeiro plano, mostrava que a porta não estava
inteiramente fechada. Uma janela do andar superior estava brilhantemente iluminada;
quando olhamos, vimos um vulto escuro mover-se por trás da vidraça.
— Lá está a criatura — gritou o sr. Grant Munro. — Os senhores mesmos podem vê-la.
Sigam-me, e saberemos tudo.
Aproximamo-nos da porta, mas de repente uma mulher saiu da sombra e permaneceu no
círculo dourado da luz do candeeiro. Não consegui ver-lhe o rosto na escuridão, mas
mantinha os braços estendidos, numa atitude de súplica.
— Pelo amor de Deus, Jack, não entre — gritou. — Eu tinha o pressentimento de que
você viria esta noite. Pense melhor, querido! Confie em mim, e não se arrependerá.
— Já confiei demais, Effi — gritou ele severamente. — Deixe-me! Preciso passar!
Estes meus amigos e eu vamos resolver o assunto definitivamente.
Dizendo isso, empurrou a mulher para o lado e nós o seguimos de perto. Quando abriu a
porta, uma mulher de idade saltou-lhe ao caminho, tentando barrar-lhe a passagem, mas
o sr. Munro afastou-a com decisão e, um instante depois, estávamos todos na escada.
Com Munro à nossa frente, corremos para o quarto do andar de cima, que estava
fortemente iluminado.
Era uma sala confortável e bem-mobiliada. Dois candeeiros ardiam em cima da mesa, e
outros dois sobre a lareira. A um canto, inclinado sobre uma escrivaninha, estava um
vulto sentado que parecia uma menina. Virou-nos o rosto quando entramos, mas apenas
conseguimos ver que usava um vestido vermelho e luvas brancas e compridas. Ao
mover-se rapidamente para nós, não pude conter um grito de surpresa e horror; seu rosto
era de um matiz lívido e estranho, e seus traços, completamente vazios de expressão.
Um momento depois, o mistério estava explicado. Holmes, com uma risada, levou a
mão atrás da orelha da criança e retirou-lhe a máscara. Apareceu então uma menina,
negrinha como o carvão, os dentinhos brancos e cintilantes, muito divertida com nosso
espanto. Explodi num riso de simpatia para com sua alegria, mas Grani Munro ficou
estático, com as mãos no rosto.
Sidney Paget, 1894
— Meu Deus! — gritou. — O que significa tudo isso?
— Eu lhe direi o que significa — gritou uma senhora que entrou na sala como uma
rajada, de aspecto orgulhoso e inflexível. — Você me obrigou a falar contra minha
vontade. Agora precisamos ter coragem. Meu marido morreu em Atlanta, mas minha
filha sobreviveu.
— Sua filha?
A senhora retirou do seio um grande medalhão de prata.
— Nunca o viu aberto?
— Nem sequer sabia que se abria.
Ela apertou uma mola e a tampa saltou. Dentro estava o retrato de um homem,
chocantemente belo e inteligente, revelando os traços inconfundíveis de sua origem
africana.
— É John Hebron, de Atlanta — começou ela. — Homem mais nobre nunca pisou a
terra. Abandonei os de minha raça para me casar com ele. Mas não me arrependi um só
instante. Nossa infelicidade foi que minha filha única ficou com mais sangue do pai que
do meu. Acontece, muitas vezes, em tais casamentos. Lucy saiu ainda mais negra que o
pai. Mas negra ou loira é minha querida filhinha, o mimo de sua mãe.
A essas palavras, a criança correu e aninhou-se no vestido da senhora.
— Deixei-a na América porque sua saúde era frágil, e uma mudança podia fazer-lhe
mal. Ficou ao cuidado de uma fiel escocesa que já fora, em outros tempos, nossa
empregada. Nunca, nem por um instante, sonhei repudiá-la como filha. Mas quando o
acaso me pôs no seu caminho, Jack, e compreendi que o amava, tive receio de falar
sobre a menina. Deus me perdoe, mas tinha medo de perdê-lo, e faltou-me a coragem
para falar nisso. Tive de escolher entre você e ela e, na minha fraqueza, abandonei
minha filha. Durante três anos, conservei sua existência em segredo, mas era informada
pela governanta e sabia que tudo corria bem. Por fim, senti um desejo irresistível de
tornar a vê-la. Lutei contra esse desejo, mas em vão. Embora reconhecesse o perigo,
resolvi trazê-la apenas por algumas semanas. Mandei cem libras à governanta e dei-lhe
instruções a respeito desta casa, de maneira a poderem vir como vizinhos sem que
minhas visitas levantassem suspeitas. Exagerei tanto minhas precauções que ordenei
que se conservasse a menina em casa durante o dia e se lhe cobrissem o rosto e as mãos,
para que, se alguém a visse à janela, não começasse a dizer que havia uma negrinha nas
vizinhanças. Talvez fosse mais sensato não ter tomado tantas cautelas. Mas eu estava
louca de medo de que você viesse a saber toda a verdade. Por acaso, foi você quem me
disse primeiro que a casa estava habitada. Eu devia ter esperado pelo amanhecer, mas
não podia dormir de excitação. Saí então devagarinho, confiando em seu sono pesado.
Mas você me viu sair, e foi aí que começaram as dificuldades. No dia seguinte, meu
segredo estava à sua mercê, mas você, nobremente, absteve-se de abusar dessa
vantagem. Três dias depois, a governanta mal teve tempo de fugir com a menina pela
porta dos fundos, quando você se precipitou, como um furacão, pela casa adentro. E
agora, esta noite, você sabe de tudo, e pergunto o que vai ser de nós, de mim e de minha
filha.
A sra. Munro, apertando as mãos, esperou a resposta. Dois longos minutos se passaram
antes que o sr. Munro quebrasse o silêncio. Mas sua resposta é aquela em que tanto
gosto de pensar. Levantou a menina nos braços, beijou-a e, mantendo-a ao colo,
estendeu a outra mão à mulher, dirigindo-se para a porta.
Sidney Paget, 1894
— Podemos discutir isso com mais conforto em casa — disse, por fim. — Não sou um
homem muito bom, Effi, mas creio que sou melhor do que você supõe.
Holmes e eu o acompanhamos pelo beco, mas, chegados à estrada, meu amigo puxou-
me pelo braço.
— Parece-me — disse — que somos mais úteis em Londres do quem em Norbury.
Nem mais uma palavra disse sobre o assunto; só quando, com uma vela acesa, se dirigia
para o quarto, murmurou:
— Watson, se alguma vez notar que estou muito confiante em minhas possibilidades,
dando a um caso menos atenção do que ele merece, tenha a bondade de segredar em
meu ouvido “Norbury”, e eu lhe ficarei eternamente grato.
1894
Memórias de Sherlock Holmes