artigo - a fortuna e a providência - hermisten maia

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a) `rea temÆtica: Filosofia, Cristianismo e Histria b) Ttulo da Comunicaªo: A Fortuna e a ProvidŒncia: Maquiavel e Calvino, dois olha- res sobre a histria e a vida. c) Nome Completo e Titulaªo: Hermisten Maia Pereira da Costa, Doutor. d) Instituiªo que representa: Universidade Presbiteriana Mackenzie. e) Texto: A Fortuna e a ProvidŒncia: Maquiavel e Calvino, dois olhares sobre a Histria e a Vida Abstract: In this text Costa analyses de fundamental difference between two contemporaries, the Italian Machiavelli (1469-1527) and the French Calvin (1509-1564) concerning the history and the life. He understands that the Machiavelli’s concept about Fortune - secularized way of providence - , blind divinity which controls 50% of our life, and the Calvin’s concept about Providence, which gives us assurance of God’s care in the darkest moments of our existence. Both concepts were important to the understanding of History, Ethics e teaching of both. Keywords: Machiavelli, Calvin, Fortune, Providence, Ethics Resumo: Neste texto Costa analisa a diferena fundamental entre dois contemporneos, o italiano Maquiavel (1469-1527) e o francŒs Calvino (1509-1564) a respeito da histria e da vida. Interpreta que o conceito de Maquiavel sobre a Fortuna forma secularizada da providŒncia , divindade cega que controla 50% de nossa vida, e o de Calvino sobre a ProvidŒncia, que nos propicia a certeza do cuidado de Deus nos momentos mais sombrios de nossa existŒncia, foram determinantes para a visªo de histria, Øtica e ensinamentos de ambos. Palavras Chaves: Maquiavel, Calvino, Fortuna, ProvidŒncia, tica Introduªo: O sentimento religioso, mesmo sendo recheado de elementos de racionalidade e compre- endido dentro dos cnones da razªo, tem tambØm elementos inexplicÆveis. Sei que este argu- mento pode ser comeado pelo fim; no entanto, neste caso, a ordem dos argumentos nªo altera a tese: o sentimento religioso pode ser compreendido dentro de uma perspectiva plural na qual se aglutinam elementos de racionalidade e, digamos, de elementos estranhos razªo humana. O fato Ø que a religiªo estÆ presente em todas as culturas e, mesmo que ingenuamente ten- temos ignorar, a realidade Ø que a religiªo compıe com cores fortes, variando apenas de tona-

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A Fortuna e a Providência - Hermisten Maia - Artigo Fides Reformata - São Paulo - Mackenzie

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  • a) rea temtica: Filosofia, Cristianismo e Histria b) Ttulo da Comunicao: A Fortuna e a Providncia: Maquiavel e Calvino, dois olha-

    res sobre a histria e a vida. c) Nome Completo e Titulao: Hermisten Maia Pereira da Costa, Doutor. d) Instituio que representa: Universidade Presbiteriana Mackenzie. e) Texto:

    A Fortuna e a Providncia: Maquiavel e Calvino, dois olhares sobre a Histria e a Vida

    Abstract: In this text Costa analyses de fundamental difference between two contemporaries, the Italian Machiavelli (1469-1527) and the French Calvin (1509-1564) concerning the history and the life. He understands that the Machiavelli's concept about Fortune - secularized way of providence - , blind divinity which controls 50% of our life, and the Calvin's concept about Providence, which gives us assurance of God's care in the darkest moments of our existence. Both concepts were important to the understanding of History, Ethics e teaching of both. Keywords: Machiavelli, Calvin, Fortune, Providence, Ethics

    Resumo:

    Neste texto Costa analisa a diferena fundamental entre dois contemporneos, o italiano Maquiavel (1469-1527) e o francs Calvino (1509-1564) a respeito da histria e da vida. Interpreta que o conceito de Maquiavel sobre a Fortuna forma secularizada da providncia , divindade cega que controla 50% de nossa vida, e o de Calvino sobre a Providncia, que nos propicia a certeza do cuidado de Deus nos momentos mais sombrios de nossa existncia, foram determinantes para a viso de histria, tica e ensinamentos de ambos.

    Palavras Chaves:

    Maquiavel, Calvino, Fortuna, Providncia, tica

    Introduo:

    O sentimento religioso, mesmo sendo recheado de elementos de racionalidade e compre-endido dentro dos cnones da razo, tem tambm elementos inexplicveis. Sei que este argu-mento pode ser comeado pelo fim; no entanto, neste caso, a ordem dos argumentos no altera a tese: o sentimento religioso pode ser compreendido dentro de uma perspectiva plural na qual se aglutinam elementos de racionalidade e, digamos, de elementos estranhos razo humana.

    O fato que a religio est presente em todas as culturas e, mesmo que ingenuamente ten-temos ignorar, a realidade que a religio compe com cores fortes, variando apenas de tona-

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  • 2 lidade, o colorido de todas as culturas, determinando, assim, a viso da realidade e conseqen-

    temente a tica e valores destas.1 A religio um apangio do ser humano.2 O etnlogo Mali-

    nowski (1884-1942), inicia seu livro Magia, Cincia e Religio, com esta afirmao: No e-xistem povos, por mais primitivos que sejam, sem religio nem magia ([s.d], p. 19).

    1. Maquiavel: nem anjo, nem demnio; um pouco dos dois.3

    a) Pensador controvertido. Maquiavel o oposto a um maquiavlico,

    pois descreve as manhas do poder, pois, como se disse, divulga um segredo. (Merleau-Ponty, 1979, p. 76).

    Niccol Machiavelli nasceu em Florena em 03/05/1469, filho do advogado Bernardo e de Bartolomea, sendo o terceiro de quatro filhos do casal. Morreu em 1527. Maquiavel considerado o fundador do pensamento poltico moderno (Condren, 1983, p. 93 e 100)4 Todavia, sua figura e idias se constituem numa imagem difusa, onde os con-ceitos histricos so dos mais variados, contribuindo de forma eloqente para uma constata-

    o cada vez mais evidente, de que a anlise de Maquiavel e de sua obra algo extremamente complexo .

    Entre os conceitos divergentes formulados atravs da histria a respeito de Maquiavel, po-demos citar, a ttulo de amostra, o emitido pelo Cardeal-Arcebispo de Cantebury, Reginald Pole, que declarou que O Prncipe (1513) foi redigido pela mo do Demnio (Cf. Chevalli-er, 1982, p. 45). bom lembrar que no Conclio de Trento (1545-1563), O Prncipe foi con-denado e colocado no Index (Cf. Chevallier, 1982, p. 45). Em outra vertente, temos o teste-munho de Baruch Espinosa (1632-1677), em sua obra publicada postumamente (1677), Tra-tado Poltico, onde diz (1973, p. 329):

    Talvez Maquiavel tenha querido, tambm, mostrar quanto a populao se deve defender de entregar o seu bem-estar a um nico homem que, se no ftil ao ponto de se julgar capaz de agradar a todos, dever constantemente recear qualquer conspirao e, por isso, v-se obrigado a preocupar-se consigo prprio e, as-sim, a enganar a populao em vez de a salvaguardar. E estou tanto mais disposto a julgar assim acerca deste habilssimo autor quanto mais se concorda em consider-lo um partidrio constante da liberdade e quanto, sobre a maneira necessria a conservar, ele deu opinies muito salutares.

    1 Por toda a parte, at hoje, tem sido o sentimento religioso a inspirao, a substncia, ou o cimento das institui-

    es livres, onde quer que elas duram, enrazam, e florescem (Barbosa, 1929, p. 433). 2 Thomas Hobbes (1974, p. 69) em 1651, conclui que a religio exclusividade do ser humano: Verificando

    que s no homem encontramos sinais, ou frutos da religio, no h motivo para duvidar que a semente da religi-o se encontra tambm apenas no homem, e consiste em alguma qualidade peculiar, ou pelo menos em algum grau eminente dessa qualidade, que no se encontra em outras criaturas vivas. 3 Quanto s opinies diferentes a respeito de Maquiavel e sua obra, vejam-se: Cassirer, 2003, p. 145-159; Che-

    vallier, 1982, p. 44ss. 4 Abbagnano (1984, Vol. 5, p. 56) o chama de primeiro escritor poltico da Idade Mdia.

  • 3 Contudo, o testemunho favorvel a Maquiavel mais famoso, o de J.J. Rousseau (1712-1778), no seu Contrato Social (1762) (1973, p. 95), quando diz que Maquiavel fingindo dar lies aos reis, deu-as, grandes, aos povos. O Prncipe de Maquiavel o livro dos republica-

    nos.5 Da mesma forma, um contemporneo nosso, Marclio Marques Moreira (1985, p. 113) a-firma no mesmo diapaso que Maquiavel pode e deve ser considerado como precursor da tradio democrtica moderna.

    Particularmente, com a ousadia talvez da ignorncia, no compartilho das idias de Espi-nosa, Rousseau e Moreira; por outro lado, no vou to longe como o Cardeal Pole. De qual-quer forma, tenho de admitir que O Prncipe um tratado de pedagogia (Cambi, 1999, p. 246). Analisemos ento o pensamento de Maquiavel. Como bem sabemos, Maquiavel desejando alcanar a graa do prncipe Lorenzo II (1492-1519),6 escreveu O Prncipe em 1513, dedicando-lhe a sua obra. Ao que parece, o seu livro s foi entregue a Lorenzo em 1515, em forma manuscrita. O prncipe recebeu o livro friamente e, possivelmente, jamais o leu (Cf. Chevallier, 1982, p. 44). Maquiavel o terico do resultado; o Estado no pode estar preso aos valores morais pre-valecentes (Cf. Paim, 1999, p. 57). No caso de O Prncipe, ele prope a perpetuao do go-vernante no poder. Para alcanar seus objetivos, todos os meios so vlidos. Assim, ao prnci-pe ele sugere a venda de um perfil que represente as virtudes consideradas relevantes pelo po-

    vo, tais como: piedade, fidelidade, humanidade, integridade e religiosidade. No comportamen-to e palavras do prncipe, devem estar sempre embutidas a aparncia destas qualidades consi-

    deradas relevantes pelo povo.

    Como que querendo se desculpar desses princpios conforme observou Napoleo7 ,

    Maquiavel afirma que se os homens todos fossem bons, este preceito seria mau (Maquia-vel, 1973, p. 80). No capitulo XVII de sua obra, Maquiavel j havia tratado desse assunto, di-zendo que os homens so ingratos, volveis, simuladores, covardes e ambiciosos de dinheiro (Maquiavel, 1973, p. 76).

    b) Histria, Religio e Poder.

    Dentro da hipocrisia oficializada por Maquiavel, encontramos a priorizao da religiosi-dade, como meio do prncipe permanecer no poder. Nesta viso extremamente pessimista a

    5Veja-se tambm, Aron, 1985, p. 99ss. 6 Vejam-se a carta dedicatria ao prncipe na obra (Maquiavel, 1973, p. 9-10). Na mesma edio encontra-se a

    carta escrita por Maquiavel ao Embaixador Florentino Francesco Vettori, em 10/12/1513, p. 117-120.

  • 4 respeito do homem que, por ser essencialmente o mesmo, age sempre dirigido pelas mes-

    mas motivaes, paixes e interesses (Cf. Mora, 2001, Vol. 3, p. 1856) , Maquiavel diz que os homens, em geral, julgam mais pelos olhos do que pelas mos, pois todos podem ver, mas

    poucos so os que sabem sentir. Todos vem o que tu pareces, mas poucos o que s realmen-

    te.... (Maquiavel, 1973, p. 81). Assim sendo, o que realmente importa so os resultados obti-dos. Os meios sero sempre considerados bons se alcanarem os objetivos propostos. Algum

    poderia argumentar: os fins propostos esto associados ao bem comum. De fato. Contudo, quem estabelece o bem comum no o prncipe? Logo, o bem comum dele o do que ele julgar comum aos sditos. (Veja-se: Cassirer, 2003, p. 176). justamente a que reside o po-der; em utilizar uma estratgia adequada para que o prncipe permanea no poder. Os fins jus-

    tificam os meios! (Maquiavel, 1973, p. 81).8 Sustenta que o fato de Rmulo ter matado seu irmo Remo, justificado pelo seu objetivo e sucesso em alcan-lo: Nenhum esprito es-

    clarecido reprovar quem se tenha valido de uma ao extraordinria para instituir um reino ou uma repblica. Algum pode ser acusado pelas aes que cometeu, e justificado pelos re-

    sultados destes. E quando o resultado for bom, com no exemplo de Rmulo, a justificao no faltar (Maquiavel, 1979, I.9, p. 49). Como exemplo de algum que ilustre de forma concreta sua tese, cita Fernando de Arago, o catlico (1452-1516), que em 02/02/1492 invadira Granada, o ltimo baluarte mouro na Pe-nnsula Ibrica, marcando assim, a vitria definitiva do catolicismo sobre os muulmanos na Pennsula. Na opinio de Maquiavel, o rei Fernando apenas usava da religio, sendo de fato

    um homem irreligioso (Maquiavel, 1973, p. 8 e 99). Assim, Maquiavel prope uma tica nariz de cera, que se inclina sempre para a estratgia

    que se mostrar mais efetiva na consumao de seu objetivo. Na elaborao de seus princ-pios, Maquiavel considera a Histria como mestra, emitindo conceitos que se coadunam com

    os exemplos extrados da mesma, da as suas normas serem sempre ilustradas por fatos hist-ricos, quer pretritos, quer presentes.

    Parece-nos relevante destacar que a sua viso cclica da histria9 gera um fatalismo cclico. Deste modo, a sociedade composta por indivduos que ocupam um lugar predeterminado,

    7 Na passagem citada infra, Napoleo Bonaparte, enquanto General, anotou na margem de seu livro: Retratao

    pblica de moralista (Maquiavel, 1977, p. 99). 8De fato, Maquiavel apesar de propor em toda a sua obra este conceito, ele no o empregou textualmente em ne-nhum momento. Ao que parece, uma frase similar foi emitida pelo padre jesuta Hermann Busenbaum (1602-1668), que escreveu: Quando o fim lcito, os meios tambm so lcitos (Medulla Theologiae Moralis, IV.3.2. Apud Abbagnano, 1982, p. 615). 9Dentro desta perspectiva, o curso dos acontecimentos comandado por uma necessidade absoluta que dirige a histria sem um objetivo final, conduzindo-nos a fatalismo cclico. Deste modo, o homem apenas um especta-dor do universo que pode at prever os eventos, todavia, no mud-los (Ver: Piper, 1956, p. 15).

  • 5 aos quais no competem modific-los, apenas conserv-los. Coerente com este conceito, Ma-quiavel, respaldado por uma prtica j consagrada na histria, teoriza a respeito do modus vi-vendi e modus faciendi dos homens e, neste ato, ele ajuda a perpetuar uma prtica convencio-nada. Maquiavel entende que 50% de nossa vida e destino esto entregues Sorte ou Fortuna, divindade cega (Chevallier, 1982, p. 84), ou melhor, divindade que nos cega para no es-caparmos de seus desgnios (Maquiavel, 1979, II. 29, p. 291-293). Notemos que aqui Maquia-vel substitui a palavra Providncia por Fortuna; no entanto, mais do que a palavra, ele modi-fica o conceito; a Fortuna em Maquiavel a forma secularizada da Providncia; uma esp-

    cie de poder do acaso que age visivelmente por meio das vicissitudes s quais todos esto su-jeitos (Cf. Spitz, Maquiavel, 2003, Vol. 2, p. 127b. Veja-se: Cassirer, 2003, p. 188ss). A outra metade comandada pelo nosso livre arbtrio (Maquiavel, 1973, p. 109 e 114). Deste modo, os homens podem conquistar parte da sorte pela virt,10 mas nunca opor-se a ela, aos seus

    desgnios. No entanto a Sorte bastante passional: Estou convencido de que melhor ser impetuoso do que circunspecto, porque a sorte mulher, e para domin-la, preciso bater-lhe e contrari-la. E geralmente reconhecido que ele se deixa dominar mais por estes do que por

    aqueles que procedem friamente. A sorte, como mulher, sempre amiga dos jovens, porque so menos circunspectos, mais ferozes e com maior audcia a dominam (Maquiavel, 1973, p. 111). Por isso, para escapar de um fatalismo rgido, Maquiavel sugere a conquista de parte do territrio governado pela fortuna, pela virt, que a capacidade de liderana e de grandes

    feitos (Cf. Moreira, 1985, p. 106-107 e Touchard, 1959, Vol. 2, p. 23). O caminho de que dis-pomos a oportunidade. Compete ao prncipe a exemplo de Moiss, Ciro, Teseu, entre

    outros usar do seu livre arbtrio11 para no entregar seu futuro simplesmente sorte. ....

    digo que se v hoje o sucesso de um prncipe e amanh a sua runa, sem ter havido mudana das suas qualidades. Creio que a razo disso, conforme o que se disse anteriormente, que,

    quando um prncipe se apia totalmente na fortuna, arruna-se segundo as variaes daquela. Tambm julgo feliz aquele que combina o seu modo de proceder com as particularidades dos

    tempos, e infeliz o que faz discordar dos tempos a sua maneira de proceder (Maquiavel, 1973, p. 110). Curiosamente, Maquiavel no est preocupado em tratar de qual seja a melhor forma de governo; ele objetiva apenas fornecer, amparado nos exemplos histricos, uma estratgia efi-

    10 Moreira (1981, p. 27) observa que Maquiavel retoma, e transforma em smbolo, o conceito de virt, deusa

    pag, a ela apenas se referindo em sua forma italiana e no singular, em contraste com o plural latino virtudes, da tradio crist.

  • 6 caz de fazer reinar a ordem social sob o domnio do prncipe. Deste modo, ele mostra as coi-sas como lhes parece, no necessariamente como desejasse que fossem. Sua viso essenci-almente pragmtica.

    Todavia, como meu intento escrever coisa til para os que se interessarem, pareceu-me mais conveni-ente procurar a verdade pelo efeito das coisas, do que pelo que delas se possa imaginar. E muita gente imagi-nou repblicas e principados que nunca se viram nem jamais foram reconhecidos como verdadeiros. Vai tan-ta diferena entre o como se vive e o modo por que se deveria viver, que quem se preocupar com o que se deveria fazer em vez do que se faz aprende antes a runa prpria, do que o modo de preservar; e um homem que quiser fazer profisso de bondade natural que se arrune entre tantos que so maus. Assim, necessrio a um prncipe, para se manter, que aprenda a ser mau e que se valha ou deixe de va-ler-se disso segundo a necessidade (Maquiavel, 1973, p. 69).

    Se olharmos com extrema bondade e ingenuidade sua tica, poder parecer-nos que Ma-quiavel apenas expe um imperativo hipottico sem nenhum compromisso com a morali-

    dade ou no de seus fins.12 Acredito, contudo, que o imperativo hipottico s se torna desti-

    tudo desta responsabilidade, na hiptese da ignorncia dos objetivos da pessoa a quem ele

    dirigido. Assim, se algum me pergunta sobre a melhor maneira de matar um homem, posso dizer-lhe sobre o emprego de uma arma; todavia, se esta mesma pessoa me diz que pretende

    matar um homem e me faz a pergunta referida acima, no posso indicar-lhe o meio sem me tornar de alguma forma responsvel por parte do seu crime, caso venha a se concretizar. O cu-rioso, que ningum pediu os conselhos de Maquiavel, ele quem voluntariamente os deu.

    Analisando outra vertente, podemos observar que o tipo de meio que eu emprego, deve se harmonizar eticamente com o meu objetivo; os meios revelam os meus fins. Deste modo, a proposta de hipocrisia, de no manuteno da palavra, entre outras, feita por Maquiavel, deve

    ser olhada como o caminho sugerido por um imoral, rumo a uma moralidade falsa e pernicio-sa que, a rigor, uma imoralidade. O realismo de Maquiavel parece-nos, se a sua descrio

    da realidade for correta, uma colaborao bem elaborada para que ela permanea com muito boa sade. Se, por outro lado, Maquiavel apenas emitiu seus conceitos para agradar o prncipe e, de-cididamente, no cria no que preceituou, encontramos mais uma vez a fragilidade do seu car-

    ter: seus interesses pessoais (ou mesmo coletivos), fazem-no expressar e perpetuar conceitos que ele abomina. Nesse caso, sua ambio foi inconseqente. Podemos aplicar seu conceito

    sua prtica. Em outro lugar, Maquiavel escreveu (1979, II.20, p. 264): A ambio do homem to violenta que, para satisfazer o desejo do momento, no reflete nas desvantagens resul-

    tantes.

    11 Deus no quer fazer tudo, para no nos tolher o livre arbtrio e parte da glria que nos cabe (Maquia-

    vel,1973, p. 114). 12

    Kant (1974, p. 219) afirma: O imperativo hipottico diz, pois, apenas que a ao boa em vista de qualquer inteno possvel ou real.

  • 7 Considero conclusivas as palavras de E. Cassirer (2003, p. 174,175):

    Maquiavel considerava a luta poltica como um jogo de dados. Tinha estudado profundamente as regras do jogo. Mas no tinha a menor inteno de alterar ou criticar essas regras. A sua experincia poltica ensina-ra-lhe que nunca o jogo poltico fora jogado sem fraude, mentira, traio e felonia. Ele nem recomendava nem reprovava essas coisas. A sua preocupao era descobrir o melhor lance o lance que ganha a partida. (...) Maquiavel, na sua teoria, esquece que o jogo poltico se joga com verdadeiros homens, e no com mar-cas, e que o que est em jogo a felicidade ou desgraa desses homens.

    2. Joo Calvino: Providncia e Responsabilidade.

    a) Sua Formao.

    Calvino foi, sem dvida, o principal arquiteto da tradio Reformada do Protestantismo (Cf. Battles, 1978, p. 7). Vejamos como isso se deu. Joo Calvino nasceu em 10 de julho de 1509 em Noyon, Picardia, sendo o segundo filho de uma famlia de cinco irmos (Cf. Beza, 2006, p. 8). Seu pai, Grard Cauvin era de origem humilde; sua me, Jeanne Leafranc, uma senhora piedosa, proveniente de famlia abastada, morreu quando Calvino tinha uns 5 ou 6 anos. Como Grard era secretrio apostlico de Charles de Hangest bispo de Noyon (1501-1525) e procurador fiscal do municpio, sua famlia mantinha ntimas relaes com as fam-lias nobres de sua regio, sendo ele prprio um ambicioso visionrio que procurou encami-nhar a educao de seus filhos da melhor maneira possvel usando dos meios e recursos de que dispunha. Posteriormente, Calvino, acompanhado de alguns amigos, filhos de nobres de sua terra na-tal, foi para Paris, onde recebeu treinamento para o sacerdcio, estudando alguns meses no

    Collge de la Marche (Humanidades e Latim) (agosto de 1523),13 tendo como mestre o gran-de humanista Maturinus Corderius. Posteriormente foi para uma escola menos requintada em seus costumes e mais dura em sua disciplina e de orientao escolstica: Collge de Montai-

    gu14 (Gramtica, Filosofia e Teologia) (1524), por onde tambm passaram Erasmo de Ro-terd e Rabelais (c. 1483-1553) , estudando sob a direo de um mestre espanhol grande-mente competente, Antonio Coronel, com quem Calvino fez grandes progressos, destacando-se entre os seus colegas no estudo da gramtica. Neste perodo, Calvino foi tambm, ao que

    parece, grandemente influenciado por outro de seus professores, que havia retornado a Mon-taigu (1525-1531), o escocs John Major (ou Mair) (1469-1550), Major que era nominalista ao seu modo, tentou fazer uma sntese entre o nominalismo e o realismo.

    13 McGrath (2004, p. 37-43) discute a possibilidade de esta interpretao tradicional ser equivocada. Em sua o-

    pinio Calvino no estudou no Collge de la Marche. 14

    As regras do Collge de Montaigu eram bastante rgidas e a alimentao precria. famosa a descrio de E-rasmo a respeito desta Escola. Entre outros trabalhos, vejam-se: (Erasmus, 1965, p. 351-353; Bainton, 1988, p. 39ss. e McGrath, 2004, p. 44-45. Para um estudo detalhado de Montaigu, a obra clssica a de Marcel Godet (1912, 220p).

  • 8 Em 1528 concludo o seu curso de Artes , por determinao de seu pai, Calvino foi es-tudar na concorrida universidade de Orlans, de cunho mais humanista, onde se dedicaria ao estudo de Direito civil. L tornou-se Bacharel em Direito (licenci s lois) (14/2/1531). Como Calvino resolveu deixar a universidade antes de completar os estudos, a Academia em reconhecimento aos seus servios prestados resolveu por voto unnime de seus professo-

    res conferir-lhe o grau de Doutor em Direito, sem cobrar-lhe as taxas habituais; no entanto, no h consenso se Calvino aceitou ou no o ttulo. Foi ento para Bourges certamente atrado

    pelo famoso humanista e mestre de Direito, o italiano Andreas Alciati (1492-1550), um juris-ta de primeira linha, terico da soberania do Prncipe (Ladurie, 1999, Vol. 1, p. 325). Na j famosa Universidade de Bourges, fundada em 1463 por Lus XI, estudaria com Alciati e Mel-chior Wolmar, a quem conhecera em Orlans.

    Quando um de seus amigos, Nicols Cop foi eleito reitor da Universidade de Paris, Calvi-no talvez o tenha ajudado a preparar o seu discurso,15 que foi lido na igreja dos Maturinos, como de costume no dia 1 de novembro de 1533. Neste discurso propunha-se uma reforma na Igreja. A resposta foi imediata; Cop e Calvino tiveram de fugir de Paris; Cop voltou sua terra natal, Basilia e Calvino para outras cidades francesas. Em 1534, Calvino completaria

    25 anos, idade legal para ser ordenado. Este o momento de assumir de fato a sua f e ofcio. Assim, em 4 de maio de 1534, voltou a Noyon e renunciou aos benefcios eclesisticos. As perseguies ento intensificaram-se. Novamente ele inicia suas peregrinaes: Paris, Angou-

    lme, Poitiers; passaria algum tempo na Itlia, Estrasburgo e Basilia (1535). Como fica evi-

    dente, nesse nterim, Calvino havia sido convertido ao protestantismo; a questo : como e

    quando?

    b) Sua Adeso ao Protestantismo.

    No nos possvel precisar as circunstncias e data da sbita converso de Calvino,

    contudo as evidncias apontam para um perodo entre (c. 1532-1534), portanto, em Orlans ou Paris. Sem adentrarmos em especulaes, contentemo-nos com suas palavras: No que se refere sua converso, em 1539 diz: "Contrariado com a novidade, eu ouvia com muita m

    vontade e, no incio, confesso, resisti com energia e irritao; porque (tal a firmeza ou des-caramento com os quais natural aos homens resistir no caminho que outrora tomaram) foi

    com a maior dificuldade que fui induzido a confessar que, por toda minha vida, eu estivera na ignorncia e no erro" (Calvino, 1990, p. 63). Na introduo do seu comentrio de Salmos

    15 Este ponto no consensual entre os especialistas. Vejam-se: Ganoczy, 1987, p. 80-83; Daniel-Rops, 1996, p.

    370; Pannier, 2006, Vol. 1, p. 10.

  • 9 (1557), descreve: "Inicialmente, visto eu me achar to obstinadamente devotado s supersti-es do papado, para que pudesse desvencilhar-me com facilidade de to profundo abismo de lama, Deus por um ato sbito de converso, subjugou e trouxe minha mente a uma disposio

    suscetvel, a qual era mais empedernida em tais matrias do que se poderia esperar de mim

    naquele primeiro perodo de minha vida (Calvino, 1999, Vol. 1, p. 38). Tambm na j citada carta ao Cardeal Sadoleto (01/09/1539), Calvino descreve suas angstias espirituais no roma-nismo, resultantes do que a Igreja pregava (Calvino, 1990, p. 61-64). No entanto, em nenhum momento, Calvino menciona como isso se deu.

    c) O Conforto de Confiar no Deus da Providncia.

    Nos fins da Idade Mdia pesava na alma do povo uma tenebrosa melancolia, constata

    o holands Huizinga (1978, p. 31). Os sculos anteriores Reforma so descritos como pero-do de grande ansiedade.16

    Lutero (1483-1546) e as suas famosas angstias espirituais, espelhava a eptome dos me-dos e das esperanas de sua poca (George, 1994, p. 26). Calvino, ainda que no sendo do-minado por esse sentimento, refletia uma constatao natural: a fragilidade humana. Sobre os

    perigos prprios da vida, relaciona: Incontveis so os males que cercam a vida humana, males que outras tantas mortes ameaam. Para que

    no saiamos fora de ns mesmos: como seja o corpo receptculo de mil enfermidades e dentro de si, na ver-dade, contenha inclusas e fomente as causas das doenas, o homem no pode a si prprio mover sem que leve consigo muitas formas de sua prpria destruio e, de certo modo, a vida arraste entrelaada com a morte. Que outra cousa, pois hajas de dizer, quando nem se esfria, nem sua, sem perigo? Agora, para onde quer

    que te voltes, as cousas todas que a teu derredor esto no somente no se mostram dignas de confiana, mas at se afiguram abertamente ameaadoras e parecem intentar morte pronta. Embarca em um navio: um passo distas da morte. Monta um cavalo: no tropear de uma pata a tua vida periclita. Anda pelas ruas de uma cida-de: quantas so as telhas nos telhados, a tantos perigos ests exposto. Se um instrumento cortante est em tua mo ou de um amigo, manifesto o detrimento. A quantos animais ferozes vs, armados esto-te destrui-o. Ou que te procures encerrar em bem cercado jardim, onde nada seno amenidade se mostre, a no raro se esconder uma serpente. Tua casa, a incndio constantemente sujeita, ameaa-te pobreza durante o dia, du-rante a noite at mesmo sufocao. A tua terra de plantio, como esteja exposta ao granizo, geada, seca e a outros flagelos, esterilidade te anuncia e, dela a resultar, a fome. Deixo de referir envenenamentos, embosca-das, assaltos, a violncia manifesta, dos quais parte nos assedia em casa, parte nos acompanha ao largo. Em meio a estas dificuldades, no se deve o homem, porventura, sentir assaz miservel, como quem na

    vida apenas semivivo, sustenha debilmente o sfrego e lnguido alento, no menos que se tivesse uma espada perpetuamente a impender-lhe sobre o pescoo? (Calvino, 1985, I.17.10).

    No h parte de nossa vida que no se apresse velozmente para a morte (Calvino, 2002, p. 585). E o que mais somos ns seno um espelho da morte? (Calvino, 2002, p. 586).

    No entanto, Calvino no termina seu argumento numa descrio existencialista da vida,

    mas, na certeza prpria de um corao dominado pela Palavra de Deus. Assim, ele conclui

    16 Tillich (1976, p. 44 e 45) denomina a ansiedade predominante nos fins da Idade Mdia de ansiedade moral

    e ansiedades da culpa e da condenao. Vejam-se tambm: Tillich, 1988, p. 210ss.; May, 1980, p. 175ss.; George, 1994, p. 25ss.; Delumeau, 1993, passim.

  • 10 falando da incalculvel felicidade da mente piedosa (Calvino, 1985, I.17.10). Quando, po-rm, essa luz da Divina Providncia uma vez dealbou ao homem piedoso, j no s est alivi-

    ado e libertado da extrema ansiedade e do temor de que era antes oprimido, mas ainda de toda preocupao. Pois assim como, com razo, se arrepia de pavor da Sorte, tambm assim ousa

    entregar-se a Deus com plena segurana (Calvino, 1985, I.17.11). .... o homem crente e fiel levado a contemplar, mesmo nessas coisas, a clemncia de Deus e Sua bon-dade paternal. E assim, ainda que se sinta consternado pela morte de todos os que lhe so chegados e veja sua casa deserta, no deixar de bendizer a Deus. Antes se dedicar a meditar: Visto que a graa de Deus habita em sua casa, no a deixar triste e vazia; ainda que as suas vinhas e suas lavouras sejam destrudas pela gea-da, pela saraiva ou por qualquer outro tipo de tempestade, prevendo-se por isso o perigo de fome, ainda assim ele no perder o nimo e no ficar descontente com Deus. Em vez disso, persistir em sua firme confiana, dizendo em seu corao: Apesar disso tudo, estamos sob a proteo de Deus, somos ovelhas de sua mo e rebanho do seu pastoreio. Por mais grave que seja a improdutividade da terra, Ele sempre nos dar o susten-to. Mesmo que o crente padea enfermidade, no se deixar abater pela dor nem se deixar arrastar pela im-pacincia e queixar-se de Deus. Ao contrrio, considerando a justia e a bondade do Pai celestial nos castigos que nos ministra, o crente fiel se deixar dominar pela pacincia (Calvino, 2006, Vol. IV, p. 195-196).

    Calvino admite que para qualquer lado que olharmos encontraremos sempre desespero, at

    que tornemos para Deus, em Quem encontramos estabilidade no meio de um mundo que se corrompe (Calvino, 2002, p. 586).

    d) Os Caminhos Misteriosos da Providncia.

    A maior de todas as misrias o desconhe-cimento da providncia de Deus; e a suprema bem-aventurana conhec-la (Calvino, 1985, I.17.11).

    No h homem de mente to embotada e es-tpida que no consiga ver, bastando dar-se ao trabalho de abrir seus olhos para o fato de que pela espantosa providncia de Deus que os cava-los e bois prestam seus servios aos homens que as ovelhas produzem l para vesti-los , e que todas as sortes de animais os suprem de ali-mento para sua nutrio e sustento, mesmo de sua prpria carne (Calvino, 1999, Vol. 1, p. 173).

    A compreenso de Calvino a respeito da direo de Deus sobre todas as coisas, ao con-

    trrio do que poderia parecer, no o leva ociosidade ou a um tipo de perspectiva fatalista a-

    firmando que nada podemos fazer a no ser nos contentar com o que est previamente fixado por uma causa sobrenatural. Pelo contrrio, sua compreenso de providncia de Deus inspira-

    o ao trabalho, consciente de que somos instrumentos de Deus para a execuo do Seu sbio e eterno propsito. Esta doutrina tem, portanto, uma urgncia pragmtica para todo o povo de

    Deus. O tempo um recurso precioso que Deus nos concede para o progresso em todas as es-feras de nossa vida (Calvino, 1997, p. 140).

  • 11 Ilustremos a viso de Calvino em sua prpria existncia: Em 1539, Calvino, o jovem de 30 anos, podia tornar a fazer o que julgava determinado sua vida: o estudo, a reflexo e a pre-gao. Com este objetivo, dirige-se a Estrasburgo. Ele deveria ter chegado a Estrasburgo em 1536, contudo, por encontrar-se impedida a estrada que daria acesso direto quela cidade, teve de pernoitar em Genebra, no mais que uma noite. No entanto, o tmido e discreto Calvino

    que desejava passar annimo, foi descoberto... Ento teve seu encontro dramtico com o pas-tor Guilherme Farel (1489-1565) que o persuadiu a permanecer em Genebra e, juntos, levar adiante a Reforma que oficialmente fora adotada democrtica e unanimemente pelo Conse-lho Geral naquela cidade, em 21 de maio de 1536. Calvino, mais tarde, em 1557, relembran-do o fato, diria que Farel o convenceu, no propriamente movido por conselho e exortao, e, sim, movido por uma fulminante imprecao, a qual me fez sentir como se Deus pessoal-

    mente, l do cu, houvera estendido sua poderosa mo sobre mim e me aprisionado. Conti-nua: E, ao descobrir [Farel] que meu corao estava completamente devotado aos meus pr-

    prios estudos pessoais, para os quais desejava conservar-me livre de qualquer outras ocupa-es, e percebendo ele que no lucraria nada com seus rogos, ento lanou sobre mim uma imprecao, dizendo que Deus haveria de amaldioar meu isolamento e a tranqilidade dos

    estudos que eu tanto buscava, caso me esquivasse e recusasse dar minha assistncia, quando a

    necessidade era em extremo premente. Farel conseguiu: Sob o impacto de tal imprecao, eu me senti to abalado de terror, que desisti da viagem que havia comeado (Calvino, 1999, Vol. 1, p. 40-41). Depois de tentarem implantar de fato a reforma em Genebra, em 1538, com a mudana poltica, Calvino e Farel foram expulsos da cidade. Deus dirige todos os eventos: cr. Agora, finalmente est em Estrasburgo disposto a re-comear sua vida pastoral e de estudo, tendo ento, como marco desta nova fase, a redao do

    seu comentrio do livro que considerava o principal das Escrituras: A Epstola de Paulo aos Romanos (1539).

    No sabia Calvino que em Estrasburgo encontraria um outro Farel, chamado Martin Bu-

    cer (1491-1551) que, empregando um gnero similar de censura e protesto ao que Farel re-correra antes, arrastou-me de volta a uma nova situao. Alarmado com o exemplo de Jonas,

    o qual ele pusera diante de mim, ainda prossegui na obra do ensino. E embora continuasse como sempre fui, evitando por todos os meios a celebridade, todavia fui levado, sem o saber,

    como pela fora, a comparecer s assemblias imperiais, onde, voluntria ou involuntariamen-

    te, fui forado a aparecer ante os olhos de muitos (Calvino, 1999, Vol. 1, p. 41-42). A situao poltica muda em Genebra. Assim, em 22 de outubro de 1540 entre outras car-

    tas enviadas , o Conselho dos Duzentos resolve convidar Calvino a voltar a Genebra; ele he-

  • 12 sita; em 1 de maio de 1541, o Conselho Geral, por considerar Calvino e Farel pessoas de

    bem e de Deus, revoga o edito de banimento de 1538. Farel, que convencera Calvino em 1536 a permanecer em Genebra, agora, a pedido do Conselho daquela cidade visto que Calvino no atendera ao seu convite , convence Calvino a retornar a Genebra em 1541. Em agosto do mesmo ano, Calvino j se decidira; mesmo desejando permanecer em Estrasburgo, voltaria a Genebra: Mas quando eu me lembro que no perteno a mim prprio, eu ofereo meu corao, apresentado como um sacrifcio ao Senhor (Calvin, Letter to Farel, 1998, n 73). Na manh de tera-feira de 13/9/1541 os magistrados de Genebra, precedidos por um a-rauto, foram receber Calvino, percorrendo o mesmo caminho que ele e Farel fizeram trs a-nos antes, passando pela porta Cornavin em direo Versoix. Neste mesmo dia, Calvino entra em Genebra; no dia 16, escreve a Farel dando-lhe notcia da sua entrevista com os Magistra-dos e dos passos para a elaborao da forma para disciplina eclesistica (Calvin, , Letter to Farel, 1998, n 76). A partir de ento, Calvino d prosseguimento implantao de uma in-

    tensa reforma naquela cidade. Mais tarde (1557), ele contaria que regressou a Genebra com lgrimas, tristeza, ansiedade e abatimento, contrariando a sua aspirao e inclinao; contu-

    do, ele tinha dentro de si um sentimento maior do que simplesmente fazer o que desejava; confessa: o bem-estar desta Igreja, verdade, era algo to ntimo de meu corao, que por sua causa no hesitaria a oferecer minha prpria vida; minha timidez, no obstante, sugeriu-

    me muitas razes para escusar-me uma vez mais de, voluntariamente, tomar sobre meus om-

    bros um fardo to pesado. Entretanto, finalmente uma solene e conscienciosa considerao para com meu dever prevaleceu e me fez consentir em voltar ao rebanho do qual fora separa-do (Calvino, 1999, Vol. 1, p. 42). Mas, como ele mesmo diria, comentando o Salmo 13, pela f que tomamos posse de Sua providncia invisvel (Calvino, 1999, Vol. 1, p. 262). Comentando o Salmo 18, diz: No h nada mais miservel do que uma pessoa, em adversi-dade, que entra em desespero por agir segundo o mero impulso de sua prpria mente e no em obedincia vocao divina (Calvino, 1999, Vol. 1, p. 354). Em tudo isso, ele via a mo de Deus agindo por meio dos eventos e da modelagem de sua vontade.

    A sua tarefa no foi fcil nem tranqila (Ver: Calvino, 1998, p. 306). No entanto, ele tinha a convico de ser um instrumento de Deus para levar adiante o seu propsito em Genebra na edificao da igreja de Deus. Descrevendo a confiana de Davi, a sua f em meio a temores,

    diz: A verdadeira prova de f consiste nisto: que quando sentimos as solicitaes do medo natural, podemos resisti-las e impedi-las de alcanarem uma indevida ascendncia. Medo e esperana podem parecer sensaes opostas e incompatveis, contudo provado pela observa-o que esta nunca domina completamente, a no ser quando exista a alguma medida daque-

  • 13 le. Num estado de tranqilidade mental no h qualquer espao para o exerccio da esperana (Calvino, 1999, Vol. 2, p. 495. Tambm: Vol. 2, 329). Wallace interpreta acertadamente que os escritos teolgicos de Calvino sobre a questo da providncia podem freqentemente ser

    lidos como um testemunho pessoal da f que o sustentou na obra da sua vida (Wallace, 2003, p. 213).

    Calvino permaneceu em Genebra at o fim de sua vida (17/5/1564) implementando inten-sa reforma que se tornou modelo e inspirao especialmente para o mundo ocidental.

    Cerca de 300 anos depois, um erudito catlico francs, Ernest Renan (1823-1892), como um dos primeiros historiadores da Frana, revela a sua incompreenso diante da figura inquie-tante daquele personagem distante no tempo e nas idias, mas, que continuava vivo em seu pas e em quase todo mundo Ocidental. Assim, nos seus Estudos da Histria das Religies,

    revela sua perplexidade, dizendo ter sido ele, o maior cristo do seu sculo (Renan, 1857, p. 342).

    Consideraes Finais.

    Maquiavel e Calvino, dois personagens contemporneos, com duas cosmovises to distin-tas e, em muitos aspectos excludentes, marcaram a histria de forma indelvel. A influncia

    de ambos permanece at os nossos dias. As suas percepes, inclusive religiosas, moldaram suas compreenses da vida, da tica e da Histria. Logicamente tudo isso delineou os ensi-namentos e comportamento de cada um. Maquiavel, no uso do que acredita ser livre arbtrio, negocia, em tons racionais e msticos, com a Sorte (Fortuna) tentando lidar com a maldade

    humana e tomar com habilidade virt parte do controle de seu destino entendendo que

    este fim nobre, portanto, os meios que usar so lcitos.

    Calvino, diferentemente, cr na direo da Histria por parte de um Deus soberano, santo,

    sbio, justo, misericordioso e amoroso. Ele se v como a todos os seres humanos , como

    agente da Histria que tem parte na execuo do propsito de Deus dentro de sua esfera de ao; nas pequenas e grandes coisas. Ou seja: somos meios ordinrios por meio dos quais Deus dirige a Histria; devemos assumir, portanto, as nossas responsabilidades procurando

    sempre agir conforme os ensinamentos bblicos. Deste modo, devemos procurar harmonizar os nossos ideais aos meios e aos fins de Deus que, em ltima instncia, se concretizam na gl-

    ria de Deus, que o alvo final de nossa existncia (1Co 10.31). (Cf. Calvin, 1958, Vol. 2, p. 37; Calvino, 2003, p. 11).

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