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Por um marxismo insubordinado: pensamento crítico, utopia romântica e

mística revolucionária na obra de Michael Lowy. Um sobrevoo.

Tudo o que é já foi, é o

começo do que vai vir, toda a

hora a gente está num

cômpito.

João Guimarães Rosa

A obra do sociólogo franco-brasileiro Michael Lowy tem se destacado no

interior do pensamento marxista pela clareza de suas análises sobre o caminho das

idéias e dos movimentos sociais que vêm surgindo ao longo de toda história da

esquerda . O presente artigo é um sobrevoo sobre alguns dos temas tratados por Lowy e

qual horizonte aberto pelo seu pensamento para nós aqui da América Latina. Para

melhor exposição, decidi dividí-lo em partes, sem perder porém o sentido contínuo em

todo o texto. Espera-se que o escrito faça valer o dito; o todo é maior que a soma das

partes.

Marxismo crítico

É necessário se separar o joio do trigo. Esse conhecido ditado talvez consiga

resumir o que Michael Lowy espera dos pensadores marxistas que estão em formação e

precisam lidar com atual realidade. Uma afirmação sua explicita essa sua expectativa:

A obra de Marx foi freqüentemente apresentada como um edifício

monumental, de arquitetura impressionante, cujas estruturas se

articulavam harmoniosamente, dos alicerces até o telhado. Mas não

seria melhor considerá-la como um canteiro de obras, sempre

inacabado, sobre o qual continuam a trabalhar gerações de marxistas

críticos?1

1 LOWY, 1997. pág.21.

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Crítico ferrenho de toda ideologia oficial do marxismo de Estado e todos os

matizes que contribuíram para dar origem ao sistema burocrático autoritário e às

aberrações stalinistas, Lowý traduz em sua proposição a condição aberta e auto-crítica

de seu marxismo. Segundo o autor é necessária uma “faxina” geral na casa - no interior

do pensamento marxista - para que ele mantenha o vigor necessário à tarefa de enfrentar

os dilemas de nossa sociedade contemporânea. É somente identificando o que é

essencial e insuperável (pelo menos até hoje) daquilo que deve ser rejeitado e revisto no

marxismo é que conseguiremos estabelecer os parâmetros de um marxismo que seja

verdadeiramente atual, crítico e radical.

Primeiramente, segundo Lowy, é necessário que não percamos de vista a

atualidade da obra original de Marx, já que ela inaugura uma concepção de mundo

inédita até então. Superando tanto o idealismo neohegeliano (consciência é a chave para

libertação) como a Filosofia da Luzes (transformar as circunstâncias segundo preceitos

científico racionais), a obra de Marx propõe uma nova forma de pensamento–ação: a

práxis revolucionária. Na filosofia de Marx, mudança de circunstância e tomada de

consciência estão imbricadas uma na outra em um dinâmica unidade dialética2.

Superando as dicotomias, o materialismo dialético proposto por Marx reúne assim

análise da sociedade do capital (e sua evolução) com a renovação constante das

possibilidades de luta social e derrocada do capitalismo. É inegável que o mundo

capitalista está muito diferente da época de Marx. Porém também é inegável que ele

continua sendo um sistema que se alimenta da exploração, alienação e dominação

ideológica daqueles que vendem sua força de trabalho por aqueles que detém os meios

de produção. Apesar de mais complexa, sofisticada e perversa, a contradição capital-

trabalho – luta de classes - continua sendo a estrutura dinâmica pela qual se organiza

nossa sociedade.

Mas houveram muitas mudanças e elas precisam ser levadas em conta. Para que

o pensamento marxista atual não incorra no erro de uma ortodoxia homogênea e linear

é preciso que ele – canteiro de obras- se realize como uma “diversidade conflituosa e

aberta”. E, para isso, não é possível pensar o marxismo do séc. XXI sem levar em conta

os inúmeros autores dos marxismos do séc XX e suas análises. Temas como fascismo,

2 “ a filosofia da práxis de marx é intrinsecamente hostil a todo autoritarismo, substitucionismo ou totalitarismo. De todas as manipulações, deformações e falsificações que o marxismo conheceu pelos zelos do cesarismo burocrático estalinista – que não é um desvio teórico, mas um monstruoso sistema de monopólio dos poderes por um Estado parasitário – aquele que se produziu neste nível foi sem dúvida o pior.” (LOWY, 1997, pág.24)

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stalinismo, sociedade do espetáculo, capitalismo periférico e as novas formas de

dominação da globalização totalitária ganharam análises imprescindíveis para a

compreensão da história contemporânea. Nas palavras do próprio Lowy esse conjunto

de teorias nos legou pistas indispensáveis para decifrarmos os impasses de nossa época

atual.

Além de uma postura atenta aos autores de sua própria corrente, segundo o

autor, um marxismo vigoroso deve sabe revisitar antigas utopias socialistas e

anarquistas, o socialismos românticos e sua crítica ao progresso linear e ilimitado. Deve

saber também reter as contribuições não-marxistas3. Exemplo de autor que segue os

próprio mandamentos, a obra de Lowy chama a atenção pela capacidade de dialogar

com os representantes das mais diferentes correntes. O sociólogo franco-brasileiro

parece estar sempre atrás de descobrir pontos de congruência entre diversos autores, fios

de união muitas vezes invisíveis, e que somente uma análise criteriosa e pluralista é

capaz de encontrar.

Mas para que o marxismo atual se constitua como uma alternativa radical em

nossos dias, não é só o diálogo aberto para fora que se faz necessário. Para além de uma

postura que consiga absorver contribuições exteriores, é preciso realizar um

revisionismo crítico da obra original de Marx. Segundo Lowy, a inegável atualidade da

obra do filósofo alemão não “impede a existência de problemas, dificuldades e

insuficiências” em seu pensamento. Questões relacionadas às formas não-econômicas e

não-classistas de opressão como o nacionalismo e o patriarcalismo, a autonomia relativa

dos fatores étnicos e religiosos e principalmente as relações entre modo de produção e

meio ambiente são lacunas na obra de Marx que não podem ser ignoradas. Nesse

sentido, Lowy é bastante enfático em afirmar a necessidade de retomarmos uma

corrente de pensamento por vezes deixada de lado pelo pensamento crítico. Verdadeiro

“continente esquecido” pelas Ciências Sociais, o enigma romântico constitui para

Michael Lowy, uma dimensão fundamental na construção do socialismo do séc. XXI.

Romantismo utópico

Fenômeno que desafia as tentativas de encontrar um denominador comum para

suas incontáveis características (muitas delas contraditórias entre si) e fabulosa nuances

3 O próprio Lowy se reconhece como um marxista weberiano. A categoria do desencantamento e da racionalização do mundo estão bastate presentes nas reflexões Lowy, tendo ele inclusive escrito um artigo intitulado Figuras do marxismo weberiano.

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de sentimentos, o romantismo quase sempre nos é passado como um movimento

literário ou como uma ideologia política. Como escola literária, o romantismo é descrito

sendo um movimento que se opõe ao classicismo e sua regras de composição e de

estética. Não raro, essas descrições também indicam a busca da alma de uma nação

como uma qualidade intrinseca ao romantismo e trazem um lista de caracteristicas que

seriam próprias ao movimento. Sentimental, feminino, instável, simbólico, místico,

contraditório, subjetivo e inconsciente são algumas das nomenclaturas mais frequentes.

Já no campo político-ideológico, o romantismo quase sempre é apresentado como um

pensamento reacionário e contra revolucionário, um sentimento saudosista de um

passado medieval. Nesses casos, o romantismo frequentemente é descrito como um

prelúdio ao nazismo e ao facismo, ou seja, como uma forma extrema de pensamento

conservador. O principal problema dessas leituras voltadas para determinadas

disciplinas e que elas recorrem no erro de ignorar as dimensões do romantismo que não

estejam circunscritas ao seu campo de saber, menosprezando ou até mesmo ignorando

manifestações que não pertençam ao seu fragmento do conhecimento.

Tentando superar essas limitações, Michael Lowy se propõe a realizar uma

análise do romantismo que consiga abarcar sua extensão e multiplicidade. Para tal, o

autor interpreta o Romantismo como uma Weltanschung (visão de mundo) ou estrutura

mental coletiva. Inspirado na conceituação criada por Lúkács que amarra o conceito de

romantismo ao furor anti-capitalista (romanticher antikapitalimus), Lowy vai criar sua

própria conceituação. Para tal, vai somar a definição do pensador húngaro ao

sentimento de nostalgia pelo passado pré-capitalista que está no âmago da atitude

romântica. Escreve ele:

indiquemos com duas palavras a essência de nossa concepção: para

nós, o romantismo representa uma crítica da modernidade, isto é, da

civilização capitalista moderna, em nome de valores do passado (pré-

capitalista, pré-moderno).

Para Lowy, a visão romântica nasce de uma convicção de que o presente se

encontra alienado de algo que está perdido em um passado onde o sistema sócio-

econômico da modernidade ainda não se realizou. É como se a alma não encontrasse

mais no presente, a sua casa, a terra materna que encontrava em um passado idealizado.

No início, esse passado era bem determinado. O primeiro romantismo alemão fazia

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referência a Idade Média de onde deriva inclusive a própria palavra romantismo: o

romance cortês medieval. Porém, logo os românticos voltaram seu olhar para diferentes

passados; os tempos bíblicos, a Idade de Ouro, a Antiguidade grega ou as sociedades

primitivas. Os exemplos se estenderiam indefinidamente, mas o que permance em todos

eles é a idealização desse passado pré-capitalista. Na busca de alcançar essa atmosfera

acolhedora e imaculada do passado, o romântico se lança das mais diversas formas.

Poetização do presente, espiritualidade intensa, surgimento do fantástico e sobrenatural,

a entrega a uma paixão amorosa, uso de substâncias alucinógenas, apreço pela loucura e

pelo estado pueril da infância. Muitas vezes, o romântico vê no deslocamento espacial a

sua forma de retorno: vida no campo, cidades exóticas do oriente, eremitismo em meio

a natureza selvagem. Aqui também os exemplos se multiplicariam initerruptamente,

mas o que permanece é a tentativa constante de transcender a realidade presente,

realidade esta onde a vida se encontra desumanizada, sem sentido, vazia

espiritualmente.

Para aqueles que compartilham da visão de mundo romântica, o presente foi

tomado de valores que retiram da vida e da realidade suas qualidades essenciais.

Utilizando um termo weberiano caro a Lowy, para o romântico o mundo está

desencantado. A abstração racionalista, a mecanização e intelectualização fizeram o

mundo mergulhar na “água glacial do cálculo egoísta” (Marx). Já não há mais espaço

para o sublime e o belo no mundo moderno. A espiritualidade presente em cada ato

cotidiano, a virtude gratuita e o pneuma profético que alimentava a fraternidade de

comunidades e indivíduos já não encontra mais seu locus em uma sociedade secular

guiada pelo espírito do capitalismo4.

Uma das formas que os românticos utilizam para reencantar o mundo e

reencontrar com as origens de sua alma é o retorno às tradições religiosa e místicas 5.

Catolicismo medieval, magia, alquimia, orientalismo, mitos pagãos, narrativas míticas

de diferentes povos originários toda sorte de simbolismo esotérico e até mesmo a

mística antirreligiosa anarquista são constantemente evocados pelos românticos na

busca de encontrar a fonte original de sua existência.

4 Há um texto de Lowy onde ele comenta umescrito inédito de Benjamin denominado O capitalismo como religião . O texto de lowy, com o mesmo nome, é uma boa apresentação ao tema.

5 Lowy aponta e aprofunda outras diferentes características da modernidade que se somam ao desencantamento. São elas a quantificação do mundo, a mecanização, a abstração racionalista e a perda de vínculos sociais. Devido ao tema do artigo se relacionar diretamente com a dimensão religiosa e não haver espaço suficiente para uma análise mais esmiuçada do tema em qustão, optei por me deter somente na dimensão do desencantamento.

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Porém, segundo Lowy, há uma forma de busca de reencantamento que ocupa um

lugar à parte no romantismo. É o mito. Cerne miraculoso e vivo do espírito reencantado,

o mito é um “perigoso tesouro” que tanto serve para apontar para a humanidade a

direção de uma Nova Aurora – uma utopia – como para alimentar a perversão genocida

e conservantista que pode se desdobrar em regimes totalitários como aqueles que

eclodiram na Europa das Guerras Mundiais. Ao resgatar e ressignificar mitos arcaicos

de um passado mítico idealizado, pode-se tanto caminhar para um conservadorismo

aprisionante como para o “sonho de olhos abertos” (E.Bloch) de um futuro inédito. No

primeiro caso, o mito tende a ser vivido como uma espécie de essência imutável que

tende a se reproduzir indefinidamente. O caráter congelado e aprisionante dessa forma

de interpretação explica sua utilização por aqueles de posições políticas retrógradas e

ultra conservadoras. Na ponta oposta, o mito é vivido como uma realidade que se renova

e ganha novos matizes a cada momento histórico, pelos matizes dos hibridismos

culturais e até mesmo pela apropriação única que faz dele cada indivíduo. Os diferentes

movimentos camponeses e indígenas da América Latina são, para Lowy, um exemplo

atual de uma constante reivenção mítica que não buscam uma pálida imitação do

passado e sim a criação de um futuro não vivido.

Tentando trazer algum contorno a essa abrangência do espectro romântico,

Lowy propõe então uma tipologia que procura dividir e situar dentro do campo político

as diferentes formas de romantismo, explicitando dessa forma a abrangência desta

corrente de pensamento e suas potencialidades. Caminhando entre a dupla luz que vai

do sol negro da melancolia à estrela da revolta (G. De Nerval), Lowy apresenta o

romantismo desde sua face mais à direita – retitucionista- que prega o retorno à época

feudal– até sua versão mais à esquerda, o romantismo utópico-revolucionário.6

Para o autor, é na utopia revolucionária que o romantismo ganha sua versão mais

subversiva já que usa a nostalgia do passado pré-capitalista para investir na construção

de um futuro revolucionário. Defendendo a abolição do capitalismo e utopia igualitária,

esses pensadores reconhecem as qualidades do passado -seu enraizamento – mas tem os

olhos voltados para o vôo do porvir. Sua utopia, nas palavras de Jerzy Szachi é feito de

“raizes e asas”. E guardam, no seu apreço ao passado, uma inegável dimensão mística.

Essa atitude e sentimentos que remontam a uma origem mítica, espiritual e

6 A tipologia completa do romantismo proposta por Lowy é: 1) restitucionista, 2) conservador, 3) fascista, 4)resignado, 5)reformista,6) utópico-revolucionári. Este último esta subdividido em I)jacobino,II)populista,III)socialista utópico, IV)libertária, V) Marxista

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transcendente que se voltam à luta social no seio do mundo moderrno, Lowy vai chamar

de mística revolucionária.

A mística revolucionária

Conhecido como um dos grandes estudiosos das relações entre o marxismo e

religião, Michael Lowy se debruçou sobre as idéias de diversos pensadores críticos e

suas convergências com a estruturas filosóficas das religiões7. Segundo o autor,

diferentes pensadores e movimentos revolucionários carregam, no âmago de seus

anseios revolucionários, um sentimento religioso. Há uma correspondência entre o

desejo de libertação e emancipação humana e a formação sociorreligiosa de autores e

grupos que deram origens a movimentos sociais. Para compreender essa ressonância

mútua entre valores, Lowy se utilizou da categoria das afinidades eletivas (ou

Wahlverwandtschaft para Weber). Nas suas próprias palavras:

“essa afinidade eletiva baseia-se em uma matriz comum de crenças

políticas e religiosas, ambas enquanto um corpo de convicções individuais

e coletivas que estão fora do domínio da verificação e experimentação

empíricas... mas que dão sentido e coerência à experiência subjetiva

daqueles que as possuem”

No intuito de reconhecer essa dimensão fundamental que reúne dois ou mais

estruturas de pensamentos em um mesmo sentido de realização é que Lowy fará estudos

cuidadosos das afinidades eletivas entre o pensamento revolucionário e as matrizes

filosóficas do judaísmo e do cristianismo. Nos últimos anos, porém com menos

intensidade Lowy, também tem produzido textos que tematizam os movimentos

camponeses e indígenas.8

Como Lowy afirma, a questão da existência de um sentimento comum entre o

messianismo judeu e as idéias revolucionárias é um tema bastante discutido nas

Ciências Sociais. Como sabemos, não são poucos os teóricos e filósofos de origem

7 Dada a naturez desse escrito, nesse momento só faremos uma breve apresentação às extensas análises de Lowy sobre religião e pensamento revolucionário. Mais que qualque esmiuçamento, o objetivo é, em sobrevôo, os principais caminhos percorridos pelo autor.

8 O principal interesse de Lowy em seus estudos mais recentes são o aprofundamento e divulgação do Ecossocialismo, corrente do marxismo contemporâneo da qual ele é um dos fundadores. Ver bibliografia.

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judaica alinhados com os ideias revolucionários. Segundo Lowy (ele mesmo filho de

imigrantes judeus), há um inegável “isomorfismo espiritual” entre esses dois universos

culturais. A chegada do Messias, a irrupção de um mundo novo após o desmoronamento

apocalíptico é uma estrutura de visão de mundo que, no entendimento do sociólogo,

encontra forte correspondência com o elemento revolucionário que transfigurará

completamente o presente decaído. Escreve ele:

“No salmo 45,3, 'Israel pergunta a Deus: quando nos enviará a

redenção? Ele responde: quando descerdes ao nível mais baixo, nesse

momento Eu vos trarei a redenção'. Esse abismo não pode ser superado por

um progresso ou desenvolvimento qualquer: apenas a catástrofe

revolucionária, com um desenraizamento colossal, uma destruição total da

ordem existente, abre o caminho para redenção messiânica”

Já no que se refere ao cristianismo e suas aproximações com o pensamento

crítico, Lowy irá destrinchar as “afinidades eletivas” entre ambos a partir de uma análise

da Teologia da Libertação. E, nesse caso, foi só a partir de determinado contexto

histórico (polarização social nos anos 60 e 70) que muitas das ideias caritativas e

piedosas da Igreja puderam se ressignificar a partir de parâmetros baseados na

libertação dos oprimidos e em uma teologia dos pobres. Do lado político, foi também a

partir destas décadas que houve uma gradativa “desestalinização” do pensamento

marxista, o que possibilitou uma maior abertura da nossa esquerda para o cristianismo.

Sendo assim, a encarnação do Cristo pobre em meio aos seus se reuniu à crítica ao

individualismo e à secularização do mundo burguês. Inspirados pelo drama épico do

Êxodo, onde o povo hebreu enfrenta o poder absoluto do faraó, muitos puderam

entender sobre outra ótica sua condição de pobreza e opressão criando assim um

movimento no interior da Igreja que buscava orientar sua ação pastoral seguindo uma

síntese dialética entre cristianismo e marxismo.

Dessa forma, universalismo, opção pelos pobres (classe trabalhadora), valores

transindividuais e busca de uma comunidade de destino -reino da fraternidade- se

tornam pontos em comum que dão base a Teologia da Libertação.

Uma outra cosmovisão de mundo em que Lowy busca encontrar afinidades

eletivas com o socialismo é o indigenismo. Admirador da obra e do marxismo

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heterodoxo do peruano José Carlos Mariatégui, Lowy vê no pensador andino um

romântico-revolucionário emblemático.9

Procurando unir a “agonia revolucionária” (Miguel de Unamuno) ao re-

encantamento do mundo, a visão mística-utópica de Mariatégui tenta superar a

oposição entre fé e ateísmo, materialismo e idealismo. Crítico incisivo da crença cega

na razão e no evolucionismo positivista que “não podem satisfazer toda necessidade de

infinito que existe no homem”, Mariátegui vê a luta pelo socialismo como portadora de

uma “emoção religiosa” que se alimenta na força espiritual do Mito e na alma

encantada que luta e que está em oposição direta com uma religiosidade

institucionalizada e obscurantista.

Nesse sentido, Mariátegui é o pioneiro em afirmar que no modo de vida

indígena já haviam os valores partilhados e almejados pelos seguidores do comunismo.

Segundo o autor havia um comunismo incaico baseado em pequenas unidades

comunitárias – os ayullus – que deveriam servir de base ao comunismo marxista que se

concretizaria. Escreve o pensador:

Nós acreditamos que dentre as populações 'atrasadas' nenhuma

outra mais do que a população indígena de origem inca apresenta

condições tão favoráveis para que o comunismo agrário primitivo se

transforme, sob a hegemonia da classe proletária, em uma das bases mais

sólidas da sociedade coletivista preconizada pelo comunismo marxista

Profeta do socialismo indo-americano, Mariátegui enxergou de forma nítida as

afinidades eletivas entre o marxismo e o indigenismo. Porém, aponta Lowy, faltou-lhe a

capacidade de capturar a riqueza do imaginário indígena a qual chamou pobremente de

“elementos instintivos de uma religiosidade primitiva”. Esta, talvez seja uma das

principais desafios que se colocam a frente daqueles que se propõe a pensar e realizar

concretamente o socialismo do séc. XXI na América Latina

*

Criticismo herético, romantismo utópico e mística revolucionária. Elementos que

formam uma mesma unidade, um mesmo horizonte de superação no interior do

pensamento marxista. Em pleno canteiro de obras de um marxismo crítico, a atualidade

9 LOWY, 2010. p. 1.

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nos convoca ressignificarmos categorias históricas do pensamento de esquerda.

Retomarmos a dimensão romântica utópica da teoria crítica e, porque não dizer, da vida

aparece então como tarefa inadiável. Nesse sentido, como aponta Lowy, a América

Latina é ponta avançada na construção de uma nova concepção de mundo, de um novo

socialismo. Messianismo redentor, Teologia da Libertação, cosmovisões afro, indígena e

camponesas. O mundo mestiço e luta de classes se reatualizando a cada passo histórico.

Dessa constelação de forças é difícil se extrair um horóscopo seguro. Fica porém, como

desfecho, uma frase de Michael Lowy, professor e marxista insubordinado:

¿Pero cómo romper, sin el martillo encantado del romanticismo

revolucionario, los barrotes de la jaula de acero –para retomar la

expresión de Max Weber– donde nos ha encerrado la modernidad

capitalista?

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