artigo - vilém flusser - pessoa-pensamento no brasil.pdf

26
DUBITO ERGO SUM Vilém Flusser VILÉM FLUSSER: PESSOA-PENSAMENTO NO BRASIL Maria Lília Leão * Traçar um perfil de personalidade tão rica quanto a de Vilém Flusser não é tarefa fácil. Eu diria que é enorme desafio. Tal personalidade não é meramente uma personalidade rica. Engloba aspectos tão multifacetados e aparentemente contraditórios que busquei eu mesma, que com ele compartilhei tantos anos de convivência no Brasil, improvisar uma metodologia para “pôr ordem na casa” - mental e existencial. Uma metodologia que fosse capaz de me prevenir contra as malhas da subjetividade e hábil para uma orientação crítica de análise e síntese de todos aqueles aspectos. Todos, naturalmente, no âmbito da minha própria percepção. Devo dizer que aceitar este desafio, como também o privilégio em proferir a abertura do Seminário, se deve exclusivamente ao fato de ser eu amiga de Flusser de muitos anos. Uma amizade que se consolidou à distância, por cartas que trocamos assiduamente, desde que deixou o país em 1972. Não eram cartas prosaicas, noticiosas, mas cartas temáticas. Flusser jamais se interessaria por meras descrições da circunstância pessoal, e foi preciso que ele deixasse o Brasil para que eu, simplesmente, perdesse o medo de Flusser: medo da sua genialidade, da sua perturbadora fluência, da sua totalidade. À medida em que me aventurei a expressar livremente idéias e inquietações, e até mesmo a brigar com ele muitas vezes, fui descobrindo um novo Flusser: aquele que se deixava impressionar pelo outro capaz de impressioná-lo, que buscava no interlocutor não a erudição, mas a autenticidade espontânea, a faísca viva do pensamento livre e descompromissado. Page 1 of 26 Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto 4/3/2009 http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

Upload: alberto-rocha

Post on 26-Oct-2015

24 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

k

TRANSCRIPT

DUBITO ERGO SUM

Vilém Flusser

VILÉM FLUSSER:

PESSOA-PENSAMENTO NO BRASIL

Maria Lília Leão *

Traçar um perfil de personalidade tão rica quanto a de Vilém

Flusser não é tarefa fácil. Eu diria que é enorme desafio. Tal

personalidade não é meramente uma personalidade rica.

Engloba aspectos tão multifacetados e aparentemente

contraditórios que busquei eu mesma, que com ele

compartilhei tantos anos de convivência no Brasil, improvisar

uma metodologia para “pôr ordem na casa” - mental e

existencial. Uma metodologia que fosse capaz de me

prevenir contra as malhas da subjetividade e hábil para uma

orientação crítica de análise e síntese de todos aqueles

aspectos. Todos, naturalmente, no âmbito da minha própria

percepção.

Devo dizer que aceitar este desafio, como também o

privilégio em proferir a abertura do Seminário, se deve

exclusivamente ao fato de ser eu amiga de Flusser de muitos

anos. Uma amizade que se consolidou à distância, por cartas

que trocamos assiduamente, desde que deixou o país em

1972. Não eram cartas prosaicas, noticiosas, mas cartas

temáticas. Flusser jamais se interessaria por meras

descrições da circunstância pessoal, e foi preciso que ele

deixasse o Brasil para que eu, simplesmente, perdesse o

medo de Flusser: medo da sua genialidade, da sua

perturbadora fluência, da sua totalidade.

À medida em que me aventurei a expressar livremente idéias

e inquietações, e até mesmo a brigar com ele muitas vezes,

fui descobrindo um novo Flusser: aquele que se deixava

impressionar pelo outro capaz de impressioná-lo, que

buscava no interlocutor não a erudição, mas a autenticidade

espontânea, a faísca viva do pensamento livre e

descompromissado.

Page 1 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

Pois é justamente como uma descompromissada que eu aqui

me coloco. Não sou graduada em filosofia, não sou

intelectual militante. Minha relação com a filosofia é de

amadora - aquela que ama (não caberia, talvez, dizer que tal

relação com a filo-sofia é de dupla amante?). Sou, sim, uma

livre-pensadora. De modo algum, porém, isto implica ser

irresponsável, porque o compromisso é com a honesta

"liberdade de pensar" - aliás, título nada gratuito ao posfácio

"Flusser e a liberdade de pensar ou Flusser e uma certa

geração 60", para o Filosofia da caixa preta" - livro que

ajudei a publicar no Brasil, em 1985.

O comentário de Mário Bruno Sproviero, para o contexto, é

reconfortante: pelo que se pode inferir do historiador da

filosofia grega, Diógenes Laércio, as raízes da filosofia

nascem da Admiração e do Espanto. Aquela, pela obra

divina; este, pelo sentido trágico da vida. O homem, esse

eterno admirador espantado, deve superar a tragédia pela

comédia, posto que a vida é um Grande Teatro. Necessário,

pois, que o espectador seja o filó-sofo, tornando-se amigo

da sabedoria a fim de se capacitar para compreendê-la

profundamente e então superá-la pelo Riso. Filósofo, palavra

que ainda não existia - tal como Sofos, palavra corrente na

cultura grega antiga e já com equivalentes em várias

culturas da Antiguidade - passa a significar o livre-pensador,

dotado de sabedoria natural, inerente a qualquer um de nós,

espectadores que somos. "Livre pensar é só pensar", na

síntese perfeita de Millôr Fernandes, estaria na origem

mesma da filosofia, é seu gesto inaugural.

Quanto àquela personalidade efetivamente rica, eu diria que

ela encerra em si mesma uma grande síntese, e que para

percebê-la é preciso lhe desferir um corte transversal,

separando-a nos dois grandes corpos que a constituem. De

um lado, a pessoalidade flusseriana: vitalmente complexa e

fascinante, o caráter temperamental eivado de paradoxos,

num equilíbrio irônico de simultaneidades: não ora ético, ora

amoral, mas eticamente amoral; nem ora lúdico, ora

engajado, mas ludicamente engajado. E de outro lado, o

pensamento flusseriano: este universo de idéias

extremamente originais e audaciosas, sempre expressas com

Page 2 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

o rigor inusitado da razão-e-da-paixão, par-de-opostos que

Flusser, e muito raros, conseguiram amalgamar com tanta

veracidade.

Pois o desafio começa a tomar corpo. Porque é impossível

separar a pessoalidade do pensamento, separar o amigo-e-

mestre generosamente intempestivo do intelectual-e-filósofo

visceralmente provocativo. Flusser vivenciava tudo até os

mínimos gestos, porque as idéias e os conceitos não só

nestes se refletiam, como pareciam ser gerados a partir

deles, seja quando pensava, fumava, caminhava, falava,

escrevia, ensinava. E sobretudo quando se entregava ao

Diálogo, a quintessência de seus relacionamentos

interpessoais e da sua mediação com o mundo.

Não admira que se trate de um pensador que fez da

fenomenologia um método de investigação disciplinada. De

um analista-sintetizador do sutil e do óbvio, do superficial e

do profundo, do reprimido e do manifestado, do mil-vezes-

explicado ao não-ainda-articulado. Tudo isso em Flusser era

um contraponto assumido, quase ritualizado, ao

grandiloqüente, à inautenticidade e à falácia ou conversa

fiada – que se tornou um conceito flusseriano nas várias

línguas e culturas em que habitou, especialmente a cultura

brasileira.

A tal metodologia, pois, me fez coletar peculiaridades

daqueles dois campos energéticos, dentre as que mais me

marcaram e que julguei poderem sintetizar, do meu ponto de

vista, os traços pessoais e os conceitos mais significativos

deste universo existencial, filosófico, político, ético, estético e

religioso chamado Vilém Flusser. Os fios da memória

parecem ter cumprido seu papel, e quais garimpeiros-

arqueólogos foram encontrar as matrizes vivas da

experiência, como se aqueles traços e conceitos tivessem se

transformado em palimpsestos autobiográficos, reflexos nas

paredes da caverna da nossa história pessoal, reflexos estes,

ao mesmo tempo internalizados e refratados por nós -

aqueles jovens Amigos e Discípulos, todos por ele marcados

indelével, dolorosa, luminosamente.

Page 3 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

Da coleta que passei a fazer, os dados primários poderiam

ser assim formulados:

Flusser e o clima do absurdo

Flusser: o anti-acadêmico nato

Flusser e o horror a toda ideologia

Flusser: o homo ludens por

excelência

Flusser e a relação amor - repulsa

pela realidade brasileira

Flusser: este Judeu Errante e o

multiculturalismo

Flusser e os desafios existenciais face

à liberdade

Flusser e o confronto de idéias

Flusser e a linguagem: a paixão pela

língua portuguesa falada no Brasil

Flusser: o humanista do Diálogo, do

Gesto e da Amizade.

Flusser e a dialética da religiosidade:

Fé e Razão

Flusser e a Filosofia ou a “grande

conversação” .

Procurarei abrir clareira nesta floresta densa para comentar

alguns desses aspectos. Não todos, naturalmente, pois seria

tarefa para tese ou livro monumentais. Seguirei a trilha de

minhas próprias lembranças ao longo da convivência que se

estabeleceu de forma direta, dialógica, e de forma indireta,

epistolar, como também através dos textos que assimilei.

Passo a condensá-los em três grandes aspectos

transgressores no exercício e no ensino da filosofia, que

permearam sua conduta pela vida: o Anti-academicismo, o

Humor filosófico e a Religiosidade.

I

Vilém Flusser é o grande apologista do confronto de idéias,

do verdadeiro Diá-logo. Não suportava o Monó-logo: passivo,

dócil e quase sempre monótono. Em não havendo oposição,

o confronto dialético, a ele parecia não haver troca. Não

Page 4 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

estaria havendo aquela faísca imponderável do fenômeno

pensamento. Eu me lembro que costumava dizer, em suas

últimas viagens para cá, que gostava de voltar ao Brasil para

rever os amigos e "para matar a saudade de brigar com o

Milton Vargas"...

Esta sua maneira de provocar intelectualmente o outro foi

confundida por muitos de nós que o conhecemos aos

dezessete, dezoito anos - e por muitos mais velhos ainda -

com mera agressividade. Ao contrário, era um gesto de

comunicação essencial, um convite para que todo diálogo

atingisse o patamar da Grande Conversação - ou a filosofia.

Isso criou um estilo de fazer filosofia e de ensinar filosofia

peculiarmente flusserianos: tornar o interlocutor um seu

igual, à guisa de um diálogo inter-pares, independentemente

de grau e natureza do conhecimento, ou de nível da

bagagem cultural e, sobretudo, de hierarquia. A única

condição sine qua non: a presença erótica da Inteligência.

De modo que discutir vigorosamente com Flusser era já se

candidatar a ser Amigo de Flusser. Eis o pensador

sinceramente anti-acadêmico!

O tradutor do livro Eu e tu, Newton Aquiles Von Zuben, fez

certas afirmações a respeito de Martin Buber que, creio, se

aplicariam a nosso filósofo: "O fato primitivo para Buber é a

relação. O escopo último é apresentar uma ontologia da

existência humana, explicitando a existência dialógica, ou a

vida em diálogo". Tenho para mim que, se Flusser não

chegou a teorizar, como Buber, a relação eu-e-tu, conseguiu

existencializá-la, fazendo mesmo questão de torná-la a sua

praxis.

Diz Von Zuben: "Uma das manifestações antropológicas mais

concretas da existência da esfera entre é o fenômeno da

resposta. Quem ouve se não é para responder?" E aqui

relembro frase de uma carta de Flusser de 1990:

"Aprendi a duras penas que todo

projeto no Brasil é fadado a ser

engolido pelo algodão de indiferença

e desprezo pelo esforço do outro ..."

Page 5 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

Referia-se ele, genericamente, aos livros, artigos e ensaios

que publicava no Brasil e que raramente recebiam críticas da

imprensa cultural ou da comunidade pensante. Referia-se

também, especificamente, a um projeto editorial sobre sua

obra que apresentei à Fundação Vitae, cujo título era "Vilém

Flusser: Da passagem de uma Ficção Filosófica a uma

Filosofia da Escrita e da Imagem", projeto este que não fora

selecionado pela Vitae em agosto de 1990, e sobre o qual

farei mais adiante alguns comentários.

Passo a citar o próprio Martin Buber: "A verdadeira

comunidade não nasce do fato de que as pessoas têm

sentimentos umas para com as outras (embora ela não

possa, na verdade, nascer sem isso). Ela nasce de duas

coisas: de estarem todos em relação viva e mútua com um

centro vivo, e de estarem elas unidas umas às outras em

relação viva e mútua." Para Flusser, isso devia se dar na

arena das idéias,- para ele, este centro vivo coletivo e

interpessoal. Escreve o próprio Flusser em uma de suas

últimas cartas:

"Sou inter-nacional, por ser inter em

todos os sentidos (o termo

"intelectual" significa inter-legere,

isto é, escolher entre). O ódio aos

intelectuais que caracteriza os

nazistas revela o verdadeiro

significado de inter: saltos de escolha

para escolha em busca de

multiplicidade de pontos de apoio. Eis

a razão porque a fotografia me

fascina mais que a câmera vídeo:

salta, não desliza. (...) O dever de

gente como nós é engajar-se contra

a ideologização e em favor da dúvida

diante do mundo, que de fato, é

complexo e não-simplificável.

Engajamento difícil, mas nem por

isso, apolítico. Para nós, Polis é a

camada decisória da sociedade e não

a tal Massa."

Page 6 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

Ao lhe escrever sobre o projeto da Fundação Vitae - quando

ousei, pela primeira vez, chamar de ficção filósofica aquela

espécie de "filosofia-de-jornal" flusseriana -, ele me

surpreendeu com sua resposta risonha e franca: "Teu projeto

sobre mim veio no meio dos preparativos para o livro

Überflusser, do qual você participa com um ensaio." Tratava-

se do livro com que editores alemães quiseram homenageá-

lo pela passagem de seus 70 anos, e cuja tradução é uma

espécie de trocadilho em língua alemã: tanto pode significar

"Sobre Flusser", como "O Transbordador".

Flusser, então, prosseguia:

"Não preciso dizer-te quanto prazer

me dá teu interesse por meus textos

e o quanto estou convencido de que

você é a pessoa indicada para

tanto..." (desculpem-me pela

imodéstia em transcrever este

trecho) "...pela tua cultura, pela tua

capacidade intuitiva e pela amizade

que nos une (grifo meu). No entanto,

há vários pontos na tua descrição do

projeto que devem ser esclarecidos,

se é que o projeto venha a realizar-

se" . (era a sua veia profética...)

"Quanto aos meus artigos em

jornais: Tua idéia em considerá-los

"filosofia cotidiana de jornal" me

fascina, porque na época o que me

fascinava eram dois aspectos: o da

publicação quase imediata, e o da

imposição de limites (3 páginas para

o Suplemento do Estadão e 1 e 1/2

para a Folha).O fato de ser lido por

dezenas de milhares de receptores

não me comovia, porque já naquela

época eu era elitista. Sou, pois, o

contrário do jornalista, e "filosofia de

jornal" seria para mim o que o soneto

e o alexandrino são para

Page 7 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

poetas." (Isso revela a amplitude

mental de Flusser, voltado sempre

para o futuro, às novas formas de

pensar e expressar o pensamento, e

aos novos meios de comunicação.)

"Quanto ao título "ficção filosófica":

Há muito tempo estou com a idéia de

que o tratado filosófico (texto

alfanumérico sobre) não mais se

adequa à situação da cultura; de que

os filósofos acadêmicos são gente

morta, e que a verdadeira filosofia

atual é feita por gente como Fellini,

os criadores de clips, ou os que

sintetizam imagens. Mas como eu

próprio sou prisioneiro do alfabeto, e

como sou preso da vertigem

filosófica, devo contentar-me em

fazer textos que sejam pré-textos

para imagens. A maneira de fazê-lo é

escrever fábulas, porque o fabuloso é

o limite do imaginável. Escrevi e

publiquei uma fábula animal,

Vampyrotheutis Infernalis, sobre a

qual Abraham Moles escreveu que

inicia método filosófico futuro. Em

suma, sempre tentei fazer ficção

filosófica, e meus ensaios não

aparentemente fabulosos, na

realidade se querem ficcionais."

Por esta razão é que propus insistentemente à Edusp -

Editora da Universidade de São Paulo - o título para a sua

recente publicação Ficções Filosóficas, e que mereceu

comentário interessantíssimo do filósofo e professor de

filosofia, Bento Prado Júnior, em seu artigo na Folha de São

Paulo de 13.02.1999, "A chuva universal de Flusser". Bento

inicia com um enunciado do próprio Flusser:

"Participo da desconfiança por

analogias que tendem rapidamente a

Page 8 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

se transformar em metáforas, isto é,

transferências de raciocínio adequado

a um dado contexto para contexto

inadequado. No entanto, nada

captaremos sem modelo." Por meio

dessas frases, o leitor pode perceber

que o título do livro é menos

paradoxal ou subversivo do que

parece. Ou que o adjetivo "filosófica"

pode modificar o substantivo "ficção"

sem engendrar contradição.

Poderíamos dizer, ao contrário, que,

na afirmação dessa inquietante

proximidade, encontramos uma

cumplicidade perfeitamente clássica,

fixada exemplarmente na "alegoria

da caverna", da "República" de

Platão."

Também comentou o título outro artigo de nossa imprensa

cultural - "Filosofia e Ficção se encontram no labor paradoxal

de Flusser" - publicado no jornal "O Tempo", de 7.11.1998,

de autoria de Rodrigo Duarte:

Ficções filosóficas de Vilém Flusser é

um livro sui generis, a começar pelo

título que remonta a uma antiga

polêmica no seio da filosofia, desde

Platão. Para este, o filósofo -

literalmente o amigo da sabedoria -

deveria, per definitionem, superar o

filodoxo, isto é, o amigo das opiniões.

Enquanto o filodoxo labora sobre

coisas do senso comum - que

poderiam ser pura ficção - o filósofo

deveria obrigatoriamente ter como

objeto a realidade em si mesma -

para Platão, o mundo das Idéias.

Nesse aspecto, a coletânea de

Flusser já nasce sob a égide de um

paradoxo: a possibilidade de que

Page 9 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

possam existir, de fato, "ficções

filosóficas". Entretanto, para um

espírito inquieto e criativo como o do

pensador judeu (residente em São

Paulo desde sua expulsão da antiga

Thecoslováquia pelos nazistas até

sua mudança para a Europa em

1972), a inexistência de tais ficções

não chega a ser um problema: ele,

por assim dizer, as inventou..."

Não sem uma ponta de ironia, creio que, na qualidade de

cúmplice e co-inventora, devo confessar outra ousadia em

caso muito semelhante. Trata-se de um outro título para um

outro livro de Flusser, o Filosofia da caixa preta, que,

segundo consta, é o livro de Flusser mais lido no Brasil, e até

certo ponto, responsável por este seminário organizado por

fotógrafos, críticos e estudiosos da fotografia entre nós.

Publicar este livro no Brasil foi uma maratona de

dificuldades. Ao receber os originais do autor - quando o

visitei no sul da França, em sua casinha provençal, em

Robion -, o livro era sucesso na Europa com o título original

Für eine Philosophie der Fotographie. Uma vez em São Paulo,

tratei de procurar editora. Poucas se interessaram; muitas

nunca tinham ouvido falar em Vilém Flusser. Reuni então um

grupo de amigos comuns, formamos um conselho editorial

ad hoc, e produzimos o livro rapidamente. No entanto,

cometemos algumas "licenças poéticas" sem consulta prévia:

a foto do autor na contra-capa; o posfácio "Flusser e a

liberdade de pensar", que escrevi por achar indispensável, na

época, re-apresentar o autor à esquecida comunidade

brasileira; e, por fim, a mudança do título "Por uma Filosofia

da Fotografia" para o intrigante "Filosofia da Caixa Preta".

Ora, após tantas revisões do texto, meus critérios pareceram

corretos aos amigos-editores: era mais adequado ao

mercado editorial brasileiro e fiel ao estilo ensaístico de

Flusser. Além do mais, me convencera de que a analogia da

"caixa preta" entre os automatismos do aparelho fotográfico

e do aparatus da sociedade pós-industrial constituía o cerne

filosófico do livro.

Page 10 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

Tais licenças, porém, chocaram o nosso autor, que aqui

chegava em plena véspera do lançamento. Não fosse uma

consulta telefônica sobre o novo título ao Andreas Müller-

Pohle, seu editor na Alemanha e que detinha os direitos

autorais pela "European Photography", toda a produção

editorial e o nosso esforço teriam ido água abaixo. Graças a

Pohle, o "Filosofia da Caixa Preta" veio a lume: "Por que não

pensamos nisso antes? " Filosofia da Caixa Preta" é perfeito!"

Malgré tout, minha amizade com Flusser sofreu abalos

profundos. Mas a reconciliação veio logo por carta, e mais

uma vez surpreendente, revelando nova faceta de caráter:

"Quanto ao meu comportamento ir-ra-cio-nal e as feridas

que causou, digo o seguinte: todo engajamento é abandono

do privado em prol do público, e quem arrasta o privado para

dentro do público está cometendo, a meu ver, impudicidade.

Por isso protestei contra a minha foto na capa: strip-tease.

Ora, você mobilizou meu e teu privado em prol da publicação

do livro. E´ como se tivesse tirado minha roupa. Você pode

objetar que se trata de preconceito judeo-cristão contra a

nudez, mas considere: se transformo publicação em

exibicionismo, estou traindo o privado (relações de

intimidade) e o público (relações que visam mudar o

mundo). Tua ação (por mais nobre que tenha sido seu

motivo) projetou-se para o terreno viscoso da auto-

promoção. (...) Isso me fez refletir muito sobre a relação

entre escritor e editor, e mandarei oportunamente ensaio a

respeito. Se tu és meu editor, isto é a forma mais pública da

relação privada de amizade. Abraços, Vilém."

(E assim, só me resta fazer aqui uma confissão:

Continuamos brigando, Flusser, pois estou tornando público

o nosso privado, citando trechos de suas cartas - e, o que é

pior, com a mauvaise conscience da impudicidade, embora

movida novamente por motivo tão nobre... )

Também a relação de Vilém Flusser com a nossa

universidade não passou em brancas e serenas nuvens. Não

admira que difícil e raramente a academia brasileira, privada

ou pública, lhe tenha aberto as portas. Em tal contexto,

tornaram-se antológicas as polêmicas que suscitou. Hoje, à

Page 11 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

guisa de resposta a Flusser, assistimos a polêmicas de igual

teor em nossa imprensa sobre o ensino universitário da

filosofia. Não sei se assistimos a isso com entusiasmo ou

nostalgia: será que o anti-academicismo de Flusser, tão

rejeitado àquela época, estaria fadado a gerar seus frutos?...

Na Folha de São Paulo de 10.08.98, o professor de filosofia

da Universidade de São Paulo, Oswaldo Porchat Pereira, no

artigo "Em defesa de uma instituição", assim avalia seu

método de ensino: "Continuo persuadido de que o ensino da

filosofia deve necessariamente reservar um papel importante

e fundamental para os cursos de história da filosofia, os

cursos monográficos, os seminários e as explicações de

texto. Não teremos, entretanto, contribuído para que a

história da filosofia substituísse, gradativamente, a filosofia

em grande parte de nossos cursos? (...) Não nos teremos

deixado dominar por um temor exagerado de que nossos

estudantes se deixassem tentar pelo ensaísmo filosofante

irresponsável... adiando sempre, assim, suas elaborações

filosóficas pessoais?"

Voltando em contraponto aos anos 60, Flusser já ensaiava

sua rebeldia à fidelidade ao texto, em seu artigo "Breve

relato de um encontro em Platão", na Revista do Instituto

Brasileiro de Filosofia":

"Sócrates acaba de contar a Fedro

uma história egípcia sobre a

descoberta da escrita. E Fedro

responde: Tens um jeito, Sócrates,

de inventar com facilidade estórias

egípcias, ou de não importa que

outra terra. Sócrates: Havia uma

tradição no templo de Dodona que as

primeiras profecias foram articuladas

por carvalhos. Os primitivos, tão

diferentes no seu

subdesenvolvimento mental do

academicismo atual, eram de opinião

que o que importa é ouvir a verdade,

venha ela de onde quiser, e que seja

Page 12 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

de carvalhos ou rochas. Tu, no

entanto, pareces interessado não na

verdade de uma proposição, mas na

fonte da qual surgiu e no contexto no

qual se deu. O texto dispensa

comentários na sua simplicidade

cristalina. Fedro critica Sócrates por

sua irresponsabilidade intelectual em

não manter fidelidade a fontes e em

cometer inautenticidades históricas.

Sócrates responde ironicamente,

mostrando que o interesse por

explicações diacrônicas (historicistas)

encobre o fenômeno a ser explicado.

Sócrates põe a nu, na sua resposta, a

atitude de Fedro como tentativa de

relegar a discussão do mérito da

questão às calendas gregas. Mostra,

com efeito, que explicações históricas

têm a virtude de desviarem a

atenção do assunto, de serem um

explaining away, uma desconversa.

Que assumem ares de preciosismo

acadêmico para evitar o confronto

existencial com o fenômeno a ser

considerado."

E Flusser conclui:

"Admito de bom grado que nesta

reflexão husserlizei Platão, talvez

demasiadamente. Mas não importa

se inventei o meu Fedro, ou se relatei

um Fedro socrático, platônico, ou um

Fedro de outro contexto. Importa,

isto sim, se o que eu digo (ou o que

Sócrates, ou Platão, ou Husserl

dizem) é ou não é verdade. E´ neste

sentido que a leitura dos "Diálogos"

provoca sempre novos enfoques

sobre a nossa situação e os nossos

Page 13 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

problemas. E é neste sentido que não

se pode falar em "História da

Filosofia" como processo evolutivo."

Primorosa é também a análise que faz do estilo acadêmico

como escolha decisiva da forma de escrever, em seu artigo

"Ensaios" no Estadão de 1967 (republicada em Ficções

filosóficas):

"O problema que pretendo expor é

certamente vivenciado por todos cuja

meta é escrever sobre um tema

"erudito". E´ este: devo formular

meus pensamentos em estilo

acadêmico (isto é, despersonalizado)

ou devo recorrer a um estilo vivo

(isto é, meu) ? A decisão tomada

afetará profundamente o trabalho a

ser feito. Não é uma decisão que diz

respeito à forma apenas. Diz respeito

igualmente ao conteúdo. Não há um

pensamento único articulável em

duas formas. Duas sentenças

diferentes são dois pensamentos

diferentes. (...) O estilo acadêmico é

um caso especial de estilo. Reúne

honestidade intelectual com

desonestidade existencial, já que

quem a ele recorre empenha o

intelecto e tira o corpo.

Caracteristicamente evita o uso do

pronome "eu" pelo bombástico

(embora aparentemente modesto)

"nós", ou pelo "se", que não

compromete."

Escolho um fragmento de Novalis como fecho a este primeiro

grande aspecto transgressor do nosso filósofo judeu-tcheco-

paulistano, uma vez que o Flusser transdisciplinar defendia a

inseparabilidade entre ciência, política, filosofia, arte,

religião. Diz o poeta fazendo eco a Flusser: "A filosofia é

Page 14 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

fundamentalmente anti-histórica. Parte do futuro e do

necessário para o real. E´ a ciência do universal sentido

adivinhatório. Ilumina o passado com o futuro. A história faz

o contrário. A filosofia é, como toda a ciência sintética, como

as matemáticas: arbitrária."

II

Passemos ao segundo aspecto transgressor por excelência: o

humor flusseriano.

Rubem Alves escreveu recentemente na Folha de São Paulo:

"Meu filósofo mais querido, Nietzsche, escrevia para adultos

eruditos, e eles não o entendiam. Desanimado com a

estupidez dos adultos, ele escreveu: "Gosto de me assentar

aqui, onde as crianças brincam, ao lado da parede em

ruínas, entre espinhos e papoulas vermelhas. Para as

crianças, sou ainda um sábio; e também para os espinhos e

as papoulas vermelhas." E Rubem Alves conclui: "Os adultos

não o entendiam porque ele escrevia como criança." Eu diria

que esta é também característica do estilo de escrever

flusseriano, ou do que estou chamando de "humor filosófico

flusseriano". Mas sempre com a ressalva de que "escrever

como criança" não quer dizer "escrever infantilmente".

Quando, em 1983, organizei no MASP um evento cultural

para o lançamento do seu livro Pós-História, com um ciclo de

palestras com a presença do autor, ele me enviou um texto

informativo, que acabou ficando inédito. Chamava-se

"Confissões sobre o ensaio "Pós-História":

"Como se infiltrou essa unicidade

temática nas minhas reflexões? Foi

ela soprada pelo espírito do tempo?

Ou é produto da minha forma

mentis? Ou resultado da minha

biografia? A sensação do absurdo,

que é a vivência do acaso, será tão

onipresente a ponto de se manifestar

em campos aparentemente

desinteressantes para a existência?

Feita a descoberta da unicidade

Page 15 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

temática, confesso que remanejei os

vinte ensaios a fim de escondê-la. A

graça é precisamente o esconde-

esconde com a sensação do absurdo,

a sua descoberta em cantos

insuspeitados, e não a proclamação

sumamente banal do absurdo de

tudo. O que proponho ao leitor de

"Pós-História" é um jogo de baralho:

cada um dos vinte ensaios é carta

transparente que pode ser

sobreposta a qualquer outra. Toda

sobreposição poderá revelar o acaso,

enquanto matéria prima dos eventos.

Mas toda sobreposição revelará à sua

maneira. Estou propondo jogo

mortalmente sério. Por isso mesmo,

jogo divertido e infinitamente

permutável. Por favor, brinquem

comigo."

O Segundo Livro da Poética de Aristóteles - cujo famoso

desaparecimento é o tema de Umberto Eco em O Nome da

Rosa -, trata justamente da Comédia, e do modo pelo qual,

segundo o próprio filósofo, "ao suscitar o prazer do ridículo,

ela (a Comédia) pertence à purificação desta paixão". A

tensa originalidade dessa ficção filosófica sobre um fato

histórico está na descoberta final de que uma monumental

discussão sobre o mundo tem como nó a questão do Humor

e de sua proibição. Tudo porque era inconcebível à

mentalidade medieval a idéia de que Cristo pudesse ter rido.

Cristo sorria, mas não ria...

Até hoje, desconhece-se a natureza essencial do Humor. O

que sabemos, com certeza, é que se trata de fenômeno sui

generis de comunicação da espécie humana - exatamente

como o gênio de Aristóteles prenunciava: "...como já

dissemos, no Livro sobre a Alma, de nobre consideração é

digna uma tal paixão (o prazer do ridículo) na medida em

que, dentre os animais, só o homem é capaz de rir." Face à

postura de rejeição e preconceito com que o Humor é

Page 16 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

encarado enquanto tema e método de investigação

acadêmica - e, em particular, filosófica -, somos levados a

concluir que, pela falta de exercitar o Humor, o ser humano

vem assim des-aprendendo um pouco mais sobre si mesmo.

Lembro-me de uma palestra na Bienal de São Paulo em que

Flusser investia contra a maioria sisuda que o ouvia com este

comentário: "Daqui a alguns séculos, os futuros humanos

nos olharão com desprezo por nossa seriedade animalesca."

São tantos os exemplos da ironia, do humor e da leveza

estilística de Flusser que bastaria abrir a esmo o Ficções

filosóficas. Lá encontraremos o "Deixe isto pra lá":

"Uma análise fenomenológica e

existencial dos hit songs da

atualidade pode revelar a "alma do

povo".(...) O título do presente artigo

é tirado de uma dessas canções de

êxito fulminante. O núcleo dessa

canção é constituído pela frase: "Eu

não estou fazendo nada." Trata-se de

uma glorificação e de uma apologia

da conversa fiada pela conversa

fiada. "Faz mal bater um papo assim

gostoso com alguém?" O texto, a

melodia, o ritmo e os gestos

conseguem captar, de maneira feliz,

um aspecto da consciência coletiva:

"Deixe que falem, que digam, que

pensem, deixe isto pra lá, eu não

estou fazendo nada, você também.

Faz mal bater um papo assim

gostoso com alguém? Vem pra cá, o

que é que tem?" A minha tese é a

seguinte: por trás da aparente

idiotice do texto esconde-se um

cinismo profundo e uma desilusão

total com os valores da sociedade. A

canção advoga, com efeito, o

abandono desses valores, e sua

substituição pela inautenticidade do

Page 17 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

bate-papo. (...) "Vem pra cá, o que é

que tem, vamos não fazer nada. "

Esta é, a meu ver, a mensagem

infernal que a nossa canção articula.

Os leitores poderão argumentar que

estou exagerando a importância da

canção e que ninguém está tomando

a sério a sua mensagem. Que, afinal,

ela estará esquecida dentro de

poucas semanas. Mas este

argumento hipotético dos leitores

equivale a dizer: "Deixe que falem,. o

que é que tem? Faz mal bater um

papo assim gostoso com

alguém?" (...) "Escolhi como título

deste artigo a frase do texto "Deixe

isto pra lá", porque ela significa

quase exatamente aquilo que

Guimarães Rosa articula na primeira

palavra do Grande Sertão: Veredas,

a saber: "Nonada". Entre a canção e

o romance abre-se um abismo não

apenas estético mas também ético,

que é sintoma da situação dentro da

qual fomos lançados. Ambas as

articulações estão debaixo do signo

do nada. O brado desesperado, digno

e corajoso de Guimarães Rosa é "Não

ao nada!" A recomendação

desesperada, vergonhosa e cínica da

canção é "Sim ao nada!".

Em recente conversa com José Bueno, este me dizia, com a

convicção de amigo de Flusser de todos esses anos, que

"Vilém era um ingênuo." Isso me intrigou: filósofo do porte

de Flusser, ingênuo? Seria ele um ingênuo, ou um filósofo

do ingênuo?

(Questão filosófica da maior importância, meu bééim - diria

Flusser...)

Page 18 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

Seja como for, - espírito de criança, homo ludens, humour -

tudo isso só é possível na esfera sem pose da ingenuidade.

No entanto, o Humor permanece elemento ignorado e sub-

utilizado, para não dizer banido, de nossas escolas e

universidades. O que se constata é a postura generalizada de

desprezo pelo riso e pelo potencial-instrumental do Humor

para a arte de ensinar, aprender e comunicar. Ou

simplesmente, para a arte de viver. Mas Flusser foi ainda

mais longe: utilizou-o na arte de filosofar. Ao mesmo tempo

em que cria um humor filosófico, ele se propõe, até certo

ponto, a teorizá-lo. Embora não se refira exatamente ao

termo humor, este subjaz como objeto da reflexão ácida que

faz do "divertimento" no atual contexto da sociedade de

consumo. Abramos o "Pós-História" no capítulo "Nosso

Divertimento":

"Há culturas que recorrem à

concentração dos pensamentos para

alcançarem a felicidade. A nossa

cultura dirigiu-se para técnicas

opostas. Técnicas que visam divertir

o pensamento. (...) No divertimento

a oposição dialética entre eu e

mundo é desviada para terreno

intermediário, o das sensações

imediatas. (...) Parece, à primeira

vista, que acumular sensações é

armazená-las. Como se quiséssemos

guardar as sensações na memória.

Tal interpretação do divertimento

levou ao conceito da "sociedade de

consumo", sociedade que consome as

sensações materiais e outras

fornecidas pelos aparelhos

produtores. Como se a sociedade

fosse aparelho digestivo dos

aparelhos produtores. Isto seria

interpretar mal a essência do

divertimento. A sociedade de massa,

a que se diverte, se caracteriza

precisamente por falta de memória,

Page 19 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

por incapacidade de digerir o

devorado. (...) Não há memória

aonde não há um Eu, uma

interioridade. A sociedade de massa

não é aparelho digestivo, mas canal

pelo qual as sensações fluem para

serem eliminadas sem terem sido

digeridas. (...) Divertimento é

acúmulo de sensações a serem

eliminadas indigeridas. Uma vez

posto entre parênteses mundo e eu,

a sensação passa sem obstáculo. Não

há nem o que deve ser digerido, nem

interioridade que possa digerí-lo. Não

há intestino nem necessidade de

intestino. O que resta são bocas para

engolir a sensação, e ânus para

eliminá la.(...) Na sociedade do

divertimento funcionam apenas os

aparelhos orais e anais, apenas o

input e o output. Somos canais para

a repetição eterna. (...) Mas estão

surgindo ciências coprofílicas,

estudos do indigerido. A psicanálise,

a arqueologia, a etimologia, a busca

das fontes e das raízes é disto

exemplo. Estão surgindo movimentos

coprófilos que visam reciclar a

merda. O movimento ecológico é

disto exemplo. Outro é a reciclagem

de especialistas. O importante nisto é

a reestruturação do nosso

pensamento e da nossa atividade.

(...) Nada é tomado a sério, tudo nos

diverte. Não apenas os programas

destinados explicitamente ao

divertimento. Devoramos tudo com

atitude sensacionalista. Arte,

filosofia, ciência, política, inclusive os

eventos que nos dizem respeito em

nossa vida concreta: fome, doença,

Page 20 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

opressão. (...) Os aparelhos

codificaram o mundo de maneira a

divertir-nos. Tornaram "espetacular"

o mundo. (...) Esta é a meta dos

programas com os quais estamos

colaborando."

Eis o humor filosófico de Vilém Flusser: jogo mortalmente

sério. Por favor, brinquem comigo.

III

Iniciei e finalizo minha contribuição com o traço pessoal e

intelectual de Vilém Flusser que marcou o seu ser mais

profundo e configurou o percurso Bodenlos (“Sem Chão”:

título de sua autobiografia filosófica, inédita no Brasil, onde

relata as influências de amigos brasileiros) de sua existência.

O seu percurso sem chão, sem fundamento, sem raízes. Esse

traço é a Religiosidade (nas entrelinhas deste texto desde o

início, quando me referi e à Amizade que nos uniu e à sua

Totalidade).

Sempre tive a impressão de que Flusser queria que uma

certa tonalidade religiosa - e algo profética - permeasse

todos os temas de seu pensamento. Esta minha impressão

foi agora reiterada, não apenas ao pesquisar alguns trechos

de suas cartas e de seus textos, mas principalmente

reiterada pela certeza de Dora Ferreira da Silva - esta cara

amiga comum e constante interlocutora de Vilém Flusser.

Relatou-me ela que foram certa vez a uma sinagoga no Dia

do Perdão. E o Rabino Pinkuss, embora não tendo declinado

o nome de Flusser, anunciara: "Está aqui, hoje, uma pessoa

que não nos freqüenta, mas é a pessoa mais religiosa que

conheci e com quem dialoguei."

No livro Da Religiosidade, de 1967, já na Introdução Flusser

afirma: "O senso de realidade é, sob certos aspectos,

sinônimo de religiosidade. Real é aquilo no qual

acreditamos." Em seguida, no primeiro ensaio, cujo título é o

do próprio livro, e em que Flusser faz um paralelo entre

música e religião, musicalidade e religiosidade, define ele:

Page 21 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

"Chamarei de religiosidade a nossa

capacidade para captar a dimensão

sacra do mundo."

E conclui, profeticamente:

"A procura de um novo veículo para a

nossa religiosidade, que marca a meu

ver a atualidade, é uma superação da

Idade Moderna. Com efeito, todas as

nossas atividades criadoras, inclusive

as científicas e as artísticas, estão

dedicadas ao esforço de abrir campo

novo à religiosidade. Com nosso

intelecto ainda somos modernos, mas

com nossa religiosidade já

participamos de uma época vindoura.

O que equivale a dizer que somos

seres de transição e em busca do

futuro. Se as religiões tradicionais

são inaceitáveis para essa nova

religiosidade, se as religiões exóticas

são desvendadas como fugas, e se o

desvio da religiosidade para a

política, a economia, a tecnologia

decepciona, ficamos com a fome

religiosa insatisfeita. Invejamos os

que a satisfazem na forma tradicional

ou nas formas substitutivas, mas

simultaneamente sentimos desprezo

por eles. Essa mistura de inveja e

desprezo, de humildade e blasfêmia,

caracteriza a religiosidade

insatisfeita. E´ essa religiosidade não

comprometida, e portanto faminta de

compromisso, que construirá, a meu

ver, o futuro."

Na entrevista (texto disponível no site Vilém Flusser no

Brasil: uma apresentação - www.fotoplus.com/flusser, no

link Boletim Flusser) que J. C. Ismael fez a respeito do

Page 22 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

História do Diabo, o segundo livro de Vilém Flusser publicado

no Brasil, em 1965, a agilidade de suas respostas às

elaboradíssimas perguntas do entrevistador refletem o

quanto a problemática religiosa lhe aflorava à pele:

" O diabo é um idiota, Sr. Flusser?

“Há uma faceta idiótica no diabo -

desde que a palavra seja tomada no

seu sentido grego. A idiotice é a vida,

em particular na economia. Um dos

deveres do diabo é seduzir-nos para

a integração na família e no

emprego. Além disso, o paraíso da

satisfação que nos é prometido pelos

diversos messianismos

psicossomáticos, psicanalíticos e

econômicos é uma das metas do

diabo enquanto idiota.

“Se o diabo implica Deus, este é

também um idiota?

“Se o termo Deus pode ter

significado, este seria meramente

negativo, a saber, "não-diabo".

Desde que nessas perguntas a

idiotice do diabo foi salientada, Deus

poderia ser concebido como a

negação da idiotice, portanto, da

alienação, da família e da economia.

“O senhor vem sendo acusado

sistematicamente de ótimo poeta...

“Se você levar a pergunta a um

campo pessoal, devo admitir que me

engajei em filosofia e que portanto

resisti ao diabo idiótico para talvez

cair nas malhas de um diabo

estetizante. Com efeito, a filosofia e a

teologia são para mim indistintas, já

Page 23 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

que ambas propõem o terreno do até

agora não pensado, e o propõem no

clima da beleza.

“O senhor falou em comunicação

que já me parece uma palavra

gastíssima...

“Você tem razão, já ouvi que os que

não podem comunicar poderiam calar

a boca. Quando falei em pseudo-

comunicação, referi-me justamente

àquela massa de mensagens sem

informação que amalgama as

solidões individuais em solidões

coletivas. Aventuro a tese de que

onde há autêntica comunicação, isto

é, onde dois seres humanos se

abrem mutuamente, o diabo é

derrotado."

Vilém Flusser também manteve com o teólogo católico,

brasileiro de origem francesa, Hubert Lepargneur, intensa

correspondência, fundada toda ela na problemática de sua

religiosidade. Em carta de 1973, parece brandir ao universo

as questões de sua interioridade: "Para nós, queiramos ou

não queiramos, a fé (este submeter-se a uma espécie de

evidência existencial) abre por necessidade o espaço

transcendente. O problema, por certo para ambos, é este: o

que está dentro de tal espaço? Deus? As idéias? Os modelos?

A mathesis? A estrutura? Ou nada? Ou serão todos estes

termos indefiníveis, por definição, sinônimos?"

Karl Jaspers, em sua "Introdução ao Pensamento Filosófico",

pode estar querendo tranqüilizar Flusser: "Vivemos num

mundo de enigma, onde o que é autêntico deveria revelar-se

a nós, mas não se revela e permanece oculto na interminável

variação das significações." E Kant pode ainda exclamar,

entregando a ambos uma chave: "Duas coisas enchem o

espírito de admiração e de respeito: o céu estrelado acima

de mim e a lei moral em meu interior... Associo-as

Page 24 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

diretamente à consciência de meu próprio existir."

E para que esta tonalidade religiosa, que tão intensamente

tingiu o próprio existir de Vilém Flusser, possa evocar a sua

memória e presença entre nós, nada mais adequado que

recorrer à Poesia, esta co-irmã da Religiosidade - e da

própria filosofia, na visão de Novalis: "A Poesia é o real

absoluto, é o cerne da minha filosofia. Quanto mais poético,

mais verdadeiro."

Nada mais oportuno para a abertura deste Seminário "Vilém

Flusser no Brasil: uma apresentação" que re-apresentá-lo

com o poema recente e inédito de Dora Ferreira da Silva, a

quem agradeço profundamente pela permissão e a

cumplicidade:

RETRATO DE AMIGO Dora Ferreira da Silva Olhavas - óculos na testa - e vias com a lupa da alma calando mistérios. Bastava a tarde que dizia a superfície das coisas. A luz se espreguiçava no terraço com seus dedos de sombra. Amigos iam chegando, a festa do pensamento se iniciara. Conceitos fugiam (ou símbolos ) e eram capturados na tapeçaria do dia quase findo. Cachimbo na mão investias contra argumentos vacilantes e os deitavas por terra. Amavas decifrar o sutil e ambíguo, erguias paradoxos cambaleantes. Nomes não davas acaso os suprimias e ao chão em que andavam - Bodenlos - assim olhavas o esvoaçar de gente, pensamentos. Bodenlos. Enfim te atiravas à poltrona segura - sorrindo - em silêncio.

Page 25 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm

* Maria Lília Leão: graduada em Direito, pós-graduação em produção e direção em TV Educativa. Atua desde a década de 1970 na área de comunicação voltada para educação, tendo participado de vários projetos na RTC/TV Cultura, Fundação Roberto Marinho, Escola do Futuro-USP, Secretaria de Educação à distância do MEC e do INEP. Editora do livro Filosofia da caixa preta (Hucitec, 1985), de Vilém Flusser, em cuja edição inclui-se seu texto Flusser e uma certa geração 60, primeiro ensaio no Brasil a traçar uma trajetória da obra do filósofo. Participa da publicação Über Flusser: die Fest-Schrift zum 70, sobre o autor, editada pela Bollmann Verlag em 1990, com o ensaio Flusser e a liberdade de pensar. Em 1998 lança, pela Edusp, com a colaboração de Milton Vargas, a coletânea de ensaios de Flusser Ficções filosóficas. Texto publicado no volume Vilém Flusser no Brasil, organizado por Ricardo Mendes & Gustavo Bernardo em 1999.

Page 26 of 26Dubito Ergo Sum: sítio cético de literatura e espanto

4/3/2009http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser47.htm