artigos do patrimonio o restauro na atualidade e a atualidade dos restauradores juliamiranda

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“O RESTAURO NA ATUALIDADE E A ATUALIDADE DOS RESTAURADORES” Julia Miranda Aloise Nota biográfica: Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela UFRGS, Mestre pelo Mestrado Profissional em Conservação e Restauro de Monumentos e Sítios Históricos – MP-CECRE/UFBA (2015), com o trabalho “Revitalização do núcleo histórico de Mostardas, RS”, abordando arquitetura vernacular, centros históricos e diretrizes de reabilitação. Interesse especial nas teorias de proteção ao patrimônio a partir da metade do século XX, com ênfase em sítios históricos e patrimônio urbano. Resumo: A noção de patrimônio atual mudou muito – óbvia e naturalmente – em relação aos primórdios de sua elaboração e desenvolvimento. Também é natural que, no seu ensejo, tenham se modificado as teorias e práticas de preservação e restauração daquele. Jamais há de convir deixar de lado a produção dos grandes teóricos da história do restauro como Viollet-le-Duc, Ruskin, Riegl e Brandi, e os discursos (que não chegaram a configurarem-se em teorias) de técnicos como Boito, Giovannoni, Roberto Pane e outros. Ainda assim, a ampliação desta noção de patrimônio - tão calcado na instância histórica e artística até meados do século XX – para um patrimônio cultural, aliada à ampliação do alcance desta noção em função do fenômeno da globalização (LAGUNES, 2011), faz necessária uma interpretação cuidadosa e readequada para a contemporaneidade – e para as especificidades locais - deste repertório, a cada ocasião de intervenção. Palavras chave: Teoria do restauro, teóricos, patrimônio, atualidade

Author: mel-rosa

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Artigo sobre patrimônio cultural

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  • O RESTAURO NA ATUALIDADE E A ATUALIDADE DOS RESTAURADORES

    Julia Miranda Aloise

    Nota biogrfica:

    Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela UFRGS, Mestre pelo Mestrado Profissional em

    Conservao e Restauro de Monumentos e Stios Histricos MP-CECRE/UFBA (2015), com o

    trabalho Revitalizao do ncleo histrico de Mostardas, RS, abordando arquitetura vernacular,

    centros histricos e diretrizes de reabilitao. Interesse especial nas teorias de proteo ao

    patrimnio a partir da metade do sculo XX, com nfase em stios histricos e patrimnio urbano.

    Resumo:

    A noo de patrimnio atual mudou muito bvia e naturalmente em relao aos primrdios de

    sua elaborao e desenvolvimento. Tambm natural que, no seu ensejo, tenham se modificado

    as teorias e prticas de preservao e restaurao daquele. Jamais h de convir deixar de lado a

    produo dos grandes tericos da histria do restauro como Viollet-le-Duc, Ruskin, Riegl e

    Brandi, e os discursos (que no chegaram a configurarem-se em teorias) de tcnicos como Boito,

    Giovannoni, Roberto Pane e outros. Ainda assim, a ampliao desta noo de patrimnio - to

    calcado na instncia histrica e artstica at meados do sculo XX para um patrimnio cultural,

    aliada ampliao do alcance desta noo em funo do fenmeno da globalizao (LAGUNES,

    2011), faz necessria uma interpretao cuidadosa e readequada para a contemporaneidade e

    para as especificidades locais - deste repertrio, a cada ocasio de interveno.

    Palavras chave: Teoria do restauro, tericos, patrimnio, atualidade

  • Ressignificao e dinamismo da noo de patrimnio

    A obra de arte e isso inclui todas as suas formas tem a notvel capacidade de

    transcender a mortalidade humana, de ser produo de histria e de ser ressignificada e

    reapropriada para cada poca e cada fruidor. Independentemente do julgamento do que torna

    algo uma obra de arte, o fato de esta ter mltiplas temporalidades1 e de ser capaz de se

    ressignificar a torna dinmica, e portanto merecedora de julgamentos constantemente revisados

    principalmente no que tange sua conservao e restauro.

    A noo de valor atribuda arquitetura menor2 um bom exemplo deste fenmeno da

    ressignificao. Depois da 2 Guerra Mundial, vrias cidades europias se deparam com a

    destruio blica de vastas reas urbanas, chegando s vezes a 80% da extenso de certas cidades,

    como Berlim, Stuttgart, Nuremberg ou Varsvia. A preocupao de at ento com os

    monumentos isolados passa a dividir atenes com uma indita comoo pela perda de grandes

    conjuntos urbanos. De acordo com Maria Margarita Segarra Lagunes3,

    precisamente a partir da constatao da perda irreparvel de um enorme patrimnio compacto, homogneo, no necessariamente monumental e sim cotidiano, domstico, familiar, que constitua desde sempre o entorno imediato dos habitantes dos centros antigos, que desperta essa componente emocional e psicolgica, ao comprovar a definitiva desapario de bens e de memrias coletivas, que cada um possua tanto a nvel consciente como inconsciente (LAGUNES, 2011, p. 24).

    Se nos ativermos idia da componente emocional e psicolgica, podemos debat-la

    dentro da prpria noo de monumento, e reiterar o dinamismo de sua percepo e significao

    que queremos explicar. A palavra monumento vem do latim monere recordar e portanto

    interpela a memria. Franoise Choay, em seu Alegoria do Patrimnio, diz que a

    especificidade do monumento prende-se (...) com seu modo de ao sobre a memria. No s ele

    a trabalha, como tambm a mobiliza pela mediao da afetividade, de forma a recordar o

    1 Para Cesare Brandi, existem trs acepes do tempo histrico da obra de arte: Como durao ao exteriorizar a obra de arte enquanto formulada pelo artista; (...) como intervalo inserido entre o fim do processo criativo e o momento em que a nossa conscincia atualiza em si a obra de arte; (...) como timo dessa fulgurao da obra de arte na conscincia. (BRANDI apud KUHL, 2004, p.54) 2 O aspecto tpico das cidades ou povoados e o seu essencial valor de Arte e de histria com frequncia residem, sobretudo, na manifestao coletiva dada pelo esquema topogrfico, nos agrupamentos construtivos, na vida arquitetnica expressa nas obras menores. Gustavo Giovanonni, Vecchie Citt ed Edilizia Nuova, Milano-Torino, Citt Studi, 1995 [1 Ed. 1931], p. 176. APUD Rufinonni, Manoela, Gustavo Giovanonni e o Restauro Urbano IN: KHL, Beatriz Mugayar, Gustavo Giovanonni: Textos Escolhidos, Cotia-SP, Ateli Editorial, 2013, p. 63-90. 3 Todas as citaes foram traduzidas do espanhol para o portugus pela prpria autora.

  • passado, fazendo-o vibrar maneira do presente (CHOAY, 2010, p.17). Este passado

    invocado de maneira seletiva, segundo o fruidor e sua experincia pessoal seja ele indivduo ou

    coletividade. Choay elabora sobre isso:

    Tanto para os que o edificam, como para aqueles que dele recebem as advertncias, o monumento uma defesa contra o trauma da existncia, um dispositivo de segurana. O monumento assegura, sossega, tranquiliza, ao conjurar o ser do tempo. garantia das origens e acalma a inquietude que dera a incerteza dos princpios. Desafio entropia, ao dissolvente que o tempo exerce sobre todas as coisas naturais e artificiais, o monumento procura apaziguar a angstia da morte e da aniquilao. (CHOAY, 2010, p.18).

    Disso se pode compreender a ressignificao de bens durante a Revoluo Francesa de

    1789 motivadora da precursora noo de preservao do patrimnio nacional e pelo Estado

    ou a j citada comoo pela perda de conjuntos urbanos durante a 2 Guerra Mundial. Estes

    eventos so divisores de guas, representantes pontuais e muito conhecidos de um processo de

    apropriao do patrimnio que de fato amplo e contnuo, repleto de exemplos e que se atualiza

    at hoje.

    O passado do patrimnio

    A atualizao da noo de patrimnio do que tem valor de patrimnio - implica na

    atualizao das noes de conservao e restauro. E existente a ressignificao do monumento,

    existe consequentemente - como j foi dito - um dinamismo das formas de interveno neste.

    Independentemente disto, primeiramente parece vlido retomar a idia de Cesare Brandi sobre a

    relao da obra e de seu tempo histrico; faz-se sempre necessrio

    (...) estabelecer os momentos que caracterizam a insero da obra de arte no tempo histrico para poder definir em qual desses momentos podem ser produzidas as condies necessrias a essa particular interveno a que se chama restauro, e em qual desses momentos lcita tal interveno (BRANDI, 2004, p. 59).

    Portanto, toda interveno pressupe um conhecimento profundo de seu histrico, de suas

    estratificaes (no que diz respeito a conjuntos urbanos principalmente). Brandi fala ainda de

    presentes histricos, que permeiam o perodo intermedirio entre as duas historicidades da obra:

    Aquela que coincide com o ato de sua formulao, o ato da criao, e se refere, portanto, a um artista, a um tempo e a um lugar; e uma segunda historicidade que provm do fato de insistir no presente de uma conscincia, e portanto, uma

  • historicidade que se refere ao tempo e ao lugar que est naquele momento (BRANDI, 2004, p. 32).

    Estes presentes histricos, correspondentes trajetria da obra entre a imagem que

    chega a ns na atualidade e ao tempo de sua conformao, se tornaram passados, mas podem ter

    deixado traos de seu trnsito na obra; e justamente a contemporizao entre as duas instncias

    que representa a dialtica da restaurao(...) (BRANDI, 2004, p.33).

    Portanto, a teoria e a prtica do restauro atual vm carregadas de passado, e devem levar

    em considerao seu desenrolar at ento. Isso significa dizer que cada um dos tericos e crticos

    de restauro tm sua atualidade e que, como fizeram eles prprios, o atual tcnico deve lev-los

    em considerao segundo o olhar de seu prprio contexto de ao.

    Resultam aqui crticas ao arquiteto modernista, que nega o passado e o interrompe para se

    afirmar propositalmente de maneira diferente: ora, o novo pressupe o antigo e vice-versa;

    nenhum dos dois conceitos existe absolutamente, mas sim um em contraposio ao outro. A

    noo do que moderno de cada poca pressupe uma ruptura com algo que passa a ser

    considerado antigo. E dessa noo decorre que o moderno de cada tempo parte do antigo de cada

    tempo, seja complementando-o ou refutando-o, como ocorre com a histria do patrimnio at os

    dias de hoje.

    Breve periodizao e a relao antigo-novo

    No perodo Renascentista por exemplo, a Antiguidade Clssica retomada como bela em

    detrimento do antigo perodo medieval, que passa a ser negado a favor da imitao e

    instrumentalizao da primeira. Assim faz Brunelleschi na cpola de Santa Maria del Fiore,

    Alberti em seu De re aedificatoria 4 e os demais tericos e tcnicos da poca.

    O perodo Barroco faz do prprio restauro uma modernizao d a clebres

    edifcios antigos entendendo por antigos os renascentistas, os romnicos e tantos outros a

    montante vestes barrocas. Posteriormente, em meados do sculo XVIII, a descoberta das runas

    de Pompia e Herculano permitiram elucidaes sobre o dia-a-dia das cidades antigas (diga-se

    Imprio Romano), e o Neoclassicismo vigora com base nestes modelos fsicos de antiguidade.

    4 Sobre a arte de construir", em latim, um tratado arquitetnico clssico escrito por Leon Battista Alberti entre 1443 e 1452. Partindo do De architectura de Vitrvio (sculo I a.C), foi o primeiro livro terico sobre o assunto escrito no Renascimento e em 1485 tornou-se o primeiro livro impresso sobre arquitetura. FONTE: Disponvel em: http://pt.wikipedia.org/wiki/De_re_aedificatoria. Acesso em 13/11/2014.

  • Seguindo-se a este, outros revivalismos surgem durante o Iluminismo, inspirados em modelos

    mas ao mesmo tempo pretendendo uma noo de novidade (DOURADO. Notas de aula, 2014).5

    Os perodos citados exemplificam portanto o processo de apropriao de certos modelos

    em detrimento de outros. Consequentemente, disso decorre tambm a destruio daqueles

    exemplares antigos que no condizem com o modelo moderno vigente. No Renascimento muito

    se destruiu do patrimnio medieval, e no perodo Barroco e Iluminista muito se modificou em

    prol de uma nova esttica. A Revoluo Francesa tambm, em seu ensejo nacionalista, procura

    destruir a simbologia do Antigo Regime.

    Mas a Revoluo Francesa particularmente importante divisor de guas, como dito

    anteriormente em funo de ter convertido os bens do clero, dos emigrantes e da Coroa

    disposio da nao, numa indita ao de conservao real6, cunhando um patrimnio

    nacional que classificado (surge o inventrio) e protegido, mvel ou imvel (CHOAY, 2010,

    p. 105). Por fim, durante esta que se estrutura a noo de restauro, a partir da necessidade de

    proteger-se o que do povo.

    Eugne Emmanuel Viollet-le-Duc versa sobre o desenvolvimento do restauro, at chegar-

    se acepo do termo de ento. Na publicao de seu verbete Restauro7, afirma que a palavra e

    a coisa so modernas (...) nenhuma civilizao, nenhum povo, em pocas passadas, pretendeu

    fazer restauros como ns o compreendemos hoje (VIOLLET-LE-DUC, 1996, p.7). Ele cita o

    caso asitico, onde o templo que se arruinasse era abandonado s aes dos sculos, que dele se

    apoderaria e um outro templo seria construdo a seu lado; e cita o Imprio Romano, donde se

    reconstrua, no se restaurava. Continua versando sobre o desenvolvimento das prticas de

    interveno, quando descreve a atribuio de dados falsos a fragmentos durante a Idade Mdia,

    com as inseres e substituies de partes e ornamentos ao gosto do momento (VIOLLET-LE-

    DUC, 1996, p.8). Num contnuo de casos que cita ao longo de seu texto, incluindo intervenes

    prprias, Viollet-le-Duc exemplifica a ao que se pretende do restaurador at hoje de

    5 Por revivalismos entendem-se tendncias estilsticas como o neogtico, neoromntico e assim por diante, incentivados inicialmente por Quatremre de Quincy (1755-1849), filsofo e historiador de arte e autor do Dictionnaire Historique de l'Architecture (1833). Aquelas eram resultado da vontade de existncia de uma arquitetura da nova nao, um estilo nacionalista que surgia no ensejo que culminaria com a Revoluo Francesa. 6 Choay compara a conservao real conservao iconogrfica feita pelos antiqurios: estudos detalhados dos vestgios greco-romanos como iconografia, raramente se convertendo em proteo in situ (CHOAY, 2010, p.88). 7 O verbete vem inicialmente publicado em VIOLLET-LE-DUC, Eugne Emmanuel. Dictionnaire raisonn de larchitecture franaise du XIe au XVIe sicle. Paris: Bance, Morel, 1854/1869, 10v. Neste trabalho tomou-se como base a traduo e crtica do mesmo, por DOURADO, Odete. Restauro. Salvador: Pretextos/PPGAU-UFBA, 1996.

  • considerar a prtica pregressa e filtr-la segundo seu tempo, mas sempre levando em

    considerao o contexto de sua conformao.

    O passado do restauro

    Situada, ainda que brevemente, parte progresso de eventos que levou ao surgimento do

    restauro ocidental, pode-se passar ao desenvolvimento do mesmo, sempre em paralelo ao

    desenvolvimento do prprio conceito de patrimnio e, obviamente, levando em considerao os

    contextos envolvidos. Isto , como dito anteriormente, o pensamento dos grandes tericos da

    histria do restauro deve ser interpretado cuidadosamente, e levando sempre em considerao o

    tempo de sua elaborao.

    O comparativo entre essas teorias evidentemente deve comear com o discurso de Viollet-

    le-Duc, terico responsvel pela elaborao de uma nova relao com o passado, relao essa

    eminentemente moderna (VIOLLET-LE-DUC, 1996, p.5)8. Seu Dictionnaire raisonn de

    larchitecture franaise du XIe au XVIe sicle, traz em si o j citado verbete Restauro,

    considerado o texto inaugural da Conservao e do Restauro enquanto disciplina (VIOLLET-

    LE-DUC, 1996 p.5)9. Sua obra se insere no contexto francs de meados de 1830, de valorizao

    da novidade em detrimento da Histria de at ento, associada ao Antigo Regime pr-Revoluo.

    Embora tenha sido mal-interpretado como um revivalista do Gtico, Viollet-le-Duc procura em

    verdade elaborar uma nova arquitetura, baseada neste estilo justamente por crer na

    funcionalidade e racionalismo de suas estruturas e at de seus ornamentos. Sua idia era combater

    as contradies tpicas do sculo XIX, to ligadas s descobertas que se faziam e s retomadas

    estilsticas que destas decorriam, propondo justamente a procura de uma nova linguagem em

    consonncia com seu prprio tempo (VIOLLET-LE-DUC, 1996 p.4)10, uma arquitetura prpria

    do sculo XIX.

    Viollet-le-Duc dedicou-se portanto modernizao da prtica da arquitetura, e ao

    restauro como fim para transmisso desta arquitetura que tanto lhe foi referncia ao futuro.

    Incentivou o uso do ferro nas novas construes e a abordagem mecanicista e cientfica da

    arquitetura gtica como base, em ntida consonncia com a Revoluo Industrial que estava em

    curso.

    8 Referente apresentao do texto por DOURADO, Odete. 9 Referente apresentao do texto por DOURADO, Odete. 10 Referente apresentao do texto por DOURADO, Odete.

  • John Ruskin11, por outro lado, representa uma vertente contempornea de Viollet-le-

    Duc, mas oposta: o ingls presencia a mesma Revoluo Industrial que este, mas com os olhos

    do Romantismo Ingls pitoresco, sublime, ambiental a quem a preciso do mecanicismo e

    desumanizao do trabalho revoltam. Sua paixo pelo gtico no cientfica como a de Viollet-

    le-Duc: advm da percepo de sua singeleza, capaz de fazer revelar as nuances do trabalho

    humano. E sua abordagem em relao ao patrimnio portanto tambm romntica, em que a

    arquitetura um acidente na paisagem e o edifcio testemunho da passagem do tempo: arte pelo

    que sugere e evoca, sem o racional-funcionalismo de Viollet-le-Duc (DOURADO. Notas de aula,

    2014). Enquanto este chamava o patrimnio de livros de pedra ou seja, objeto de estudo

    Ruskin o via como livros com pginas faltantes (DOURADO. Notas de aula, 2014), cuja

    beleza residia justamente no mistrio sobre o contedo destas pginas, e no valor que se deveria

    dar quelas que restaram ou seja, valorizar a arquitetura do passado no nosso tempo, sem visar

    a reconstituio de sua inteireza.

    Portanto o prprio antagonismo entre as teorias de Viollet-le-Duc e John Ruskin em

    meados do sculo XIX fortemente atrelado ao contexto de elaborao das mesmas e, mesmo

    assim, estas so portadoras de uma atualidade, a ser analisada adiante. Sobre isto, Lagunes

    escreve:

    Isto , com uma atitude passiva e contemplativa do transcorrer do tempo contraposta a uma deliberada vontade de cancelar as pegadas que este deixou impressas sobre a matria. E essa dicotomia hoje, distante j 150 anos, segue condicionando o debate sobre a restaurao e marca, de fato, os limites extremos da discusso atual (LAGUNES, 2011, p.19).

    Camillo Boito12 foi responsvel por abordar essa dicotomia em tom conciliativo. Formado

    em Veneza, viveu a influncia de Ruskin - atrado cidade por suas runas deixadas pelas

    batalhas de independncia contra a ustria13 - e a de Viollet-le-Duc ao mesmo tempo, em funo

    11 O ingls John Ruskin (1819 1900) foi poeta, pintor e crtico de arte de famlia londrina abastada. Escreve As Sete Lmpadas da Arquitetura (The Seven Lamps of Architecture) em 1849, no qual o sexto captulo, A Lmpada da Memria versa sobre sua viso em relao conservao e restauro de arquitetura. Neste trabalho tomou-se como base a traduo e crtica do mesmo, por DOURADO, Odete. A Lmpada da Memria. Salvador: Pretextos/PPGAU-UFBA, 1996. 12 Camillo Boito (1836 1914) foi arquiteto, restaurador, crtico, historiador, professor, terico, literato e um analista dos mais argutos de seu prprio tempo (...); como restaurador e terico, tem um lugar consagrado pela historiografia da restaurao, sendo a ele reservada uma posio moderada e intermediria entre Viollet-le-Duc (...) e Ruskin, sintetizando e elaborando princpios que se encontram na base da teoria contempornea de restaurao. FONTE:Apresentao de Beatriz Mugayar Khl em BOITO, Camillo. Os restauradores; [I restauratori: Conferenza tenuta allEsposizione di torino il 7 giugno 1884] Traduo de Beatriz Mugayar KHL,. Cotia, SP: Ateli Editorial, 2008, p.9). 13 John Ruskin publicaThe Stones of Venice sobre o tema, em 1853.

  • da difuso de sua teoria enquanto professor honorrio em Florena e Milo. Boito no formou

    uma teoria propriamente dita; mas entre refutar, apoiar e complementar certos pontos defendidos

    pelos citados tericos do sculo XIX, foi capaz de elaborar uma srie de critrios de interveno

    acerca da conservao e restaurao de monumentos histricos, atentando principalmente para o

    valor documental destes.14 Ainda que com os aspectos falhos naturalmente decorrentes de se

    querer conciliar duas teorias muito dspares, sua obra procurou atualizar o debate e afast-lo da

    teoria em prol da prtica15, incentivando uma arquitetura ambientada com cuidados sua

    insero no entorno e compatibilidade com o programa moderno e sem mimese, buscando nas

    lies de arquitetura do passado os subsdios para uma criao contempornea (DOURADO.

    Notas de aula, 2014).

    Para romper com este contnuo de teorias baseadas em estilos e historiografia, o terico

    Alis Riegl surge para abordar o monumento segundo seus valores. Se insere no contexto do

    Liberalismo em Viena a partir da segunda metade do sculo XIX, materializado pelo grande

    projeto do Ringstrasse e do ecletismo urbano das construes (DOURADO. Notas de aula,

    2014). Foi justamente esse contexto de mudanas que encorajou sua teoria liberalista, pouco

    atenta a datas e estilos e mais atenta aos juzos de valor feitos para o monumento histrico-

    artstico. Designado presidente da Comisso de Monumentos Histricos da ustria em 1902, foi

    encarregado de empreender a reorganizao da legislao de conservao dos monumentos

    austracos, e seu livro O Culto Moderno dos Monumentos foi a base terica para tal empreitada

    (CUNHA, 2006). Sua definio de monumento passa pela percepo do mesmo a partir de seu

    fruidor e do contexto que o frui portanto, a definio mais pelo significado do monumento

    seu valor que pelo monumento em si; passa portanto pela afetividade, pela noo de memria

    coletiva, e no engloba portanto necessariamente somente aqueles monumento que chama

    intencionais. Ainda que no caiba aqui esmiuar tais valores, cabe ressaltar que a abordagem de

    Riegl importante por fundar uma nova prtica para basear as escolhas de preservao e restauro:

    no cabe ao restaurador tentar hierarquizar ou separar os valores atribudos ao monumento, que

    se condicionam mutuamente. O objetivo da tutela ser, portanto, evitar o conflito entre estes

    14 As premissas de Boito contriburam para a consolidao do dito restauro filolgico na Itlia. De acordo com Carsalade, o restauro moderno de Boito, tambm sob o suposto manto da cientificidade, muito calcado em um empirismo que lhe abre enormes brechas no resolvidas, como o caso, por exemplo, do impasse sobre qual perodo do edifcio preservar (...). A soluo, para ele, seria a opo por um perodo (CARSALADE, 2014, p.343). 15 A partir de 1880, Boito esforou-se em criar diretrizes para a conservao e restauro, que se difundiram na Itlia atravs de sua eventual adoo pelo Ministrio da Educao. (FONTE: Apresentao de Beatriz Mugayar Khl em BOITO, Camillo. Os restauradores; traduo de KHL, Beatriz Mugayar. Cotia, SP: Ateli Editorial, 2008, p.21).

  • valores. Isto , dentre os valores histrico, artstico, de antiguidade, de uso, de novidade e suas

    combinaes, o que prevalecer em dado momento histrico do monumento nortear sua

    preservao (RIEGL, 2013).

    O ltimo nome que nos servir de referncia seguramente o que cremos no somente ter

    sintetizado melhor a teoria ocidental do restauro de monumentos ainda que se creia que sua

    teoria seja um pouco falha no que tange aos stios histricos mas tambm o que melhor dialoga

    com as prticas atuais de restauro. Trata-se de Cesare Brandi (1906-1988), historiador e crtico de

    arte nascido em Siena, Itlia. Juntamente com Giulio Carlo Argan, esteve frente do Instituto

    Central de Restaurao (ICR) de Roma, do qual foi diretor por duas dcadas (1939 1960);

    coordena a restaurao de inmeras obras de arte destrudas nos bombardeios da 2 Guerra

    Mundial e constitui a Teoria da Restaurao16: uma tentativa de pensar nos monumentos

    destrudos no apenas como documentos, considerando sua existncia como obras figurativas

    com significao social e simblica, em detrimento do restauro filolgico giovannoniano que se

    fazia no imediato ps-guerra. Os preceitos tericos que elabora serviro de embasamento

    prtica do restaurador a partir de ento, guardadas as ressalvas em relao obra de arte em que

    se intervm17.

    Os postulados brandianos desempenham um papel indiscutvel no desenvolvimento

    posterior da teoria e prtica da restaurao. Retomam a herana dos debates precedentes sobre a

    necessidade de distino entre novo e antigo, e rechaam as integraes estilsticas ou analgicas

    (LAGUNES, 2011, p.25). Sua ateno dialtica esttica e histrica do monumento e a

    separao entre imagem e matria na obra de arte constituem premissas de restauro que norteiam

    as aes at os dias de hoje, e que pretendemos abordar mais adiante.

    O presente do restauro e de seus tericos

    O sculo XX assistiu, principalmente a partir da Carta de Atenas de Restauro de 1931, a

    ampliao do leque de objetos da restaurao (PEREIRA, 2011, p. 103). Os conceitos de

    16 Publicado pela 1 vez como BRANDI, Cesare. Teoria del Restauro. Roma, Edizioni di Storia e Letteratura, 1963. A edio a que referimos neste trabalho a de BRANDI, Cesare. Teoria da Restaurao; traduo de KHL, Beatriz Mugayar. Cotia, SP: Ateli Editorial, 2004. 17 A teoria de Brandi est muito baseada no restauro de obras de arte pictricas, o que pode, ao nosso ver, resultar na necessidade de interpretao cautelosa quando aplicada ao monumento arquitetnico ou stio histrico-artstico como monumento.

  • monumento histrico, artstico e arqueolgico de ento so hoje ladeados por stios histricos e

    arredores, grupos de edifcios, colees, assentamentos urbanos ou rurais, arqueologia

    subaqutica, jardins e paisagens naturais, at chegar s grandes escalas, como paisagem cultural

    ou o prprio patrimnio imaterial, um campo extremamente amplo e complexo por si s. Portanto

    natural que tambm as teorias de restauro dos sculos XIX e XX, aqui brevemente explanadas,

    tenham elas mesmo se modificado e atualizado por projetos de conservao e restauro

    compatveis com a contemporaneidade.

    Num contexto contemporneo de questionamento da arquitetura, no qual a palavra de ordem parece ser significado, os paradigmas ou as solues tpicas to caras ao determinismo cientfico do Modernismo parecem no mais atender s demandas de um mundo com problemas sempre novos e com uma pluralidade enorme de manifestaes (CARSALADE, 2014, p. 19).

    pertinente a crtica do autor s chamadas solues tpicas e ao determinismo

    cientfico do Modernismo. Pelas primeiras entendemos a prtica oriunda de teorias, generalista e

    globalizada, que no servem de maneira alguma escala que tomou o patrimnio mundial. Os

    contextos geogrficos, sociais e polticos da estruturao das clebres teorias aqui expostas

    anteriormente evidenciam, seja por suas ocasionais concordncias ou pelas suas disparidades, que

    cada caso um caso. Por mais Viollet-le-Ductiano que um restaurador se considere, jamais ele

    ignorar a singeleza do tempo que preconiza Ruskin ao deparar-se com uma runa; Assim como o

    mais conservadorista dos restauradores enfrentar seus desafios ao deparar-se com uma

    necessidade de refuncionalizao agressiva, mas com um potencial social extremamente benfico

    a seu contexto.

    Da mesma maneira, no que tange ao patrimnio, criticamos o Modernismo e sua falsa

    premissa de um moderno absoluto. Conforme j explicamos, o moderno pressupe um antigo e

    vice-versa. Portanto, no h credibilidade no projeto de restauro que no leve em considerao a

    preexistncia ou simplesmente aquilo que veio antes. A cartilha que o Modernismo incentiva,

    atravs dos CIAMs da primeira metade do sculo XX e de receitas como os Cinco Pontos da

    Arquitetura de Le Corbusier no podem ser seguidas cegamente. Portanto, assim como no se

    deve seguir risca o que versam os tericos, no se deve eximir de regras na busca por uma

    soluo indita que jamais existir.

  • Logo, hoje principalmente, existentes as conexes e a acessibilidade do mundo

    globalizado e a cada vez mais crescente difuso das teorias de restauro, nenhuma soluo de

    restauro ser indita e nem universal.

    Prova disto que Viollet-le-Duc, o arauto do Movimento Moderno (DOURADO, 1996,

    p.3), parte suas clebres concluses da anlise detalhada da arquitetura gtica; Ruskin tambm o

    faz, para chegar a teoremas distintos. Posteriormente, Boito usa ambas as teorias para formular os

    princpios adequados a seu contexto italiano; e Brandi parte com sua teoria de todos os anteriores,

    incluindo Riegl e Gustavo Giovannoni, nutrindo-a a partir dos aportes convergentes nos temas

    da conservao, mas em si plenamente autnomos da experincia crtica pessoal do autor, bem

    como de suas elaboraes e pesquisas no campo filosfico e esttico (BRANDI, 2004, p.9)18.

    Comprovada a continuidade ou a simples existncia de relaes de semelhanas e

    diferenas entre as teorias na historiografia do restauro, pode-se concluir que certamente h uma

    atualidade destas teorias do passado.

    Analisando segundo a ordem da prpria historiografia do restauro, comeamos portanto

    por Viollet-le-Duc. Ao nosso ver, a atualidade do terico reside em sua abordagem racional-

    funcionalista: a cuidadosa anlise dos elementos compositivos do monumento e a busca de sua

    justificativa funcional e tecnolgica para guiar as decises de restauro; o pensamento sistmico,

    que faz ponderar cuidadosamente a consequncia da adio e principalmente da remoo de

    elementos; e o pensamento de que a forma consequncia dos materiais e da estrutura, numa

    ao de restauro que configura absoluto respeito pela matria prima como diretriz fundamental.

    A ns parece crucial esse respeito, justamente por ele ser responsvel por tolher possveis

    intervenes muito invasivas e irreversveis, que possam prejudicar permanentemente a leitura de

    um monumento. o caso por exemplo das runas da Igreja de San Francisco em Mendoza,

    Argentina, cujo restauro de 2013 tornou-o mais espetculo que testemunho histrico; a adio de

    estruturas para contemplao do espao no foi capaz de remeter planta original, tornando-se a

    runa mero espao cnico.

    A segunda atualidade que vemos no discurso de Viollet-le-Duc est em considerar o

    restauro imperioso na eventualidade de uma lacuna ou para reaver o uso do monumento. Cremos

    que atualmente, principalmente em se tratando de monumentos inseridos em meios urbanos,

    18 Referente apresentao do texto por CARBONARA, Giovanni.

  • crucial o restauro em detrimento de um pensamento conservadorista. Tomamos como exemplo

    centros histricos como o de Salvador, Bahia, que por motivos diversos que no cabem aqui

    salientar hoje tm em si um enorme nmero de fachadas protegidas e desatreladas de plantas

    internas h muito destrudas, e que constituem um potencial enorme de revitalizao destas reas,

    que clamam pela insero de funes diversas e muito benficas ao seu meio.

    Cremos que o discurso de John Ruskin seja o menos passvel de uma atualidade

    propriamente dita, justamente por seu conservadorismo. senso comum que, como difundiu

    Boito, consolidar melhor que reparar e depois reparar que restaurar (BOITO, 2008) e

    justamente por isso a prtica d menos margem para uma atualidade muito diversa da poca de

    sua conformao. Ainda assim, atual a sua viso do tempo como diretriz projetual, como

    falaremos a seguir, e a importncia que ele confere ao do mesmo como um valor esttico

    isto , a ptina como elemento importante leitura do monumento e da dimenso histrica que

    nele est impressa. Parece-nos que h um af atual de conferir um valor de novidade aos

    monumentos histricos, e restaur-los a uma condio de arestas retas e cores vibrantes

    principalmente no patrimnio ecltico, numa espetacularizao que o ameaa. Exemplo disso so

    usualmente edifcios eclticos, como aqueles do Circuito Cultural Praa da Liberdade, em Belo

    Horizonte: estes vm regularmente pintados, descartando completamente a ptina do tempo e

    cunhando o mote popular velhinho em folha.

    A atualidade de Camillo Boito est, primeiramente, emsua oposio ferrenha

    apropriao acrtica dos variados estilos do passado. O que para Boito era resultado da

    insatisfao pela ausncia de um estilo de poca, hoje pode ser vista como importante premissa

    de restauro: o estilo (se cabvel) do objeto da restaurao deve ser familiar ao interventor, para

    saber intervir criticamente, mas no para fazer mmese. So problemas recorrentes nos centros

    histricos brasileiros, principalmente aqueles coloniais, de falsos histricos e preenchimentos de

    lacunas em estilo patrimnio um restauro que sequer chega a ser tipolgico, que cegamente

    feito por analogia.

    A outra atualidade esta, problemtica - do discurso boitiano que julgamos pertinente

    ressaltar parte da sua mxima de que vergonha enganar os contemporneos; vergonha ainda

    maior enganar os que vierem (BOITO, Questione Pratiche delle Belle Arti. IN: DOURADO;

    Notas de aula, 2014). Boito portanto atenta para as restauraes que constituam falsos histricos

  • ou falsos artsticos. Se pensarmos na Rua das Flores de Ouro Preto em Minas Gerais, veremos

    um casario que aparenta ser colonial, tendo sido construdo j no incio do sculo XX; o

    Pelourinho de Salvador teve suas vestes eclticas removidas a partir dos anos 1970 em prol de

    uma unidade estilstica jamais existente. E assim continua-se fazendo, por esta noo equivocada

    uma ao leiga que remete noo de inteireza de Viollet-le-Duc19 de uma unidade

    estilstica. O trabalho que hoje desenvolvemos para o ncleo histrico da cidade de Mostardas,

    Rio Grande do Sul, nos traz desafios referentes muito equivocada noo da existncia de um

    estilo aoriano, que at resulta em remoo de vestes modernas de arquitetura menor em prol

    de uma unidade estilstica inexistente20. O resultado das aes exemplificadas que a obra que

    vemos hoje, com a sua remoo (ou adio) de partes, sequer com vistas distinguibilidade,

    resultam falsos histricos e falsos artsticos. Boito afirma ainda que prefere os restauros mal-

    feitos aos bem-feitos, pois os primeiros se permitem distinguir em sua ignorncia; enquanto que o

    segundo se mimetiza e fere a autenticidade da obra (BOITO, 2008).

    Dando prosseguimento, a atualidade de Alis Riegl parece crucial por pressupor que o

    valor mais significativo do monumento dite a interveno que este deve sofrer. Isto , se seu

    valor mais significativo for o valor de uso o que recorrente nos dias de hoje, dada a

    necessidade de ocupao dos tecidos histricos em funo das dinmicas urbanas, por exemplo

    o restauro ser completamente diferente de um monumento cujo valor mais marcante o de

    antiguidade ou seja, cuja conservao e simples consolidao so as nicas aes cabveis. O

    adequado julgamento de valores importante na medida em que norteia instrumentos de gesto

    na elaborao de normativas, polticas de preservao e as prprias aes protetivas (ou

    destrutivas).

    Por fim, chegamos anlise da teoria de Cesare Brandi. O consideramos o mais atual

    justamente por sua teoria no s vir baseada em um mtodo cientfico (como fizeram outros antes

    dele), mas principalmente por ter traduzido tal teoria em princpios operativos vlidos at hoje. A

    noo base que percorre sua obra a de que condiciona o ato de restaurao compreenso e

    experimentao da obra de arte enquanto tal: 19 Conforme Viollet-le-Duc: Restaurar um edifcio no conserv-lo, repar-lo ou refaz-lo restitu-lo a um estado de inteireza que pode jamais ter existido em um dado momento (VIOLLET-LE-DUC, 1996, p.7) 20 O ncleo histrico da cidade de Mostardas um dos remanescentes da ocupao aoriana no Rio Grande do Sul a partir da segunda metade do sculo XVIII, e guarda em si uma morfologia urbana e arquitetura verncula de tipologia colonial caractersticas. Baseado em uma equivocada noo de que tudo fosse colonial, a gesto vem promovendo desde a dcada de 90 a iseno de IPTU s edificaes que passassem por restauros estilsticos ou fossem construdas no estilo aoriano, configurando falsos histricos das preexistncias e das obras novas.

  • A restaurao constitui o momento metodolgico do reconhecimento da obra de arte, na sua consistncia fsica e na sua dplice polaridade esttica e histrica, com vistas sua transmisso para o futuro. (BRANDI, 2004, p.30).

    Tal noo resulta na prevalncia do esttico sobre o histrico - diferencia a obra de arte de

    outros produtos da ao humana. Tal colocao refuta as teorias precedentes que preconizavam a

    manuteno dos monumentos apenas como documentos histricos, relegando a um segundo

    plano sua imagem figurativa, embora no exclua a importncia do valor histrico, intrnseco a

    todo monumento. Isto , a mxima brandiana de que se restaura somente o que se considera obra

    de arte e que desta se restaura somente a matria (BRANDI, 2004, p. 31) fundamental pois guia

    o princpio de qualquer interveno restaurativa at hoje nenhum restauro pode ser feito se

    configurar dano imagem (caso em que s se far consolidao e conservao). Por mais que a

    separao entre matria e imagem - estrutura e aspecto - seja difcil em certos casos, justamente

    por ser oriunda da arte pictrica, a capacidade de distinguir o objeto do restauro da imagem

    fundamental a todo interventor.

    portanto o estado de conservao da obra de arte no momento da restaurao que ir

    condicionar e limitar a ao restauradora, a qual dever limitar-se quilo que pode ser

    depreendido da instncia histrica, do testemunho que chegou at ns.

    Sobre outras duas premissas brandianas se podem tirar outras concluses:

    A integrao dever ser sempre e facilmente reconhecvel; mas sem que por isso se venha a infringir a prpria unidade que se visa a reconstruir (...), a integrao dever ser invisvel distncia de que a obra de arte deve ser observada, mas reconhecvel de imediato, e sem necessidade de instrumentos especiais, quando se chega a uma viso mais aproximada (BRANDI, 2004, p.47)

    Com esses pontos, mantm-se, como j havia sido posto desde o sculo XIX por Boito

    ou Giovannoni, a regra da reversibilidade e distingibilidade das intervenes contemporneas

    nos monumentos do passado, datando a restaurao como fato histrico indissocivel do presente

    histrico que o produziu (CUNHA, 2004). Ou seja, Brandi capaz de nos situar em uma postura

    passiva em relao obra de arte que nos cabe restaurar o que fizermos deve ser reversvel e

    dinstinguvel, declaradamente diverso do que original e servindo somente a melhorar a leitura

    deste, jamais pretendendo uma maior importncia que a preexistncia.

    A mais importante de suas proposies, ao nosso ver, a idia do restauro como ato

    crtico. De acordo com Giovanni Carbonara, dirigido ao reconhecimento da obra de arte (...);

  • voltado reconstituio do texto autntico da obra; atento ao juzo de valor necessrio para

    superar, frente ao problema especfico das adies, a dialtica das duas instncias, a histrica e a

    esttica (BRANDI, 2004, p.12).21

    Conclui-se disto que a restaurao deve ser vista hoje como ato crtico, baseada sempre

    na relao de fatores estticos e histricos que esto presentes na obra, mas excedendo tais

    aspectos para abordar tambm seu fator cultural: ou seja, levar em considerao a teoria do

    restauro e sua historiografia at hoje, conforme brevemente explanada anteriormente, juntamente

    com a conjuntura em que se encontra a obra, em termos de significado, simbologia, valor social e

    econmico, funcionalidade, gesto e vises sua transmisso ao futuro as demandas de um

    mundo com problemas sempre novos e com uma pluralidade enorme de manifestaes, como

    citou Carsalade. Alm disso, ela deve ser ato criativo, o que implica obrigatoriamente na anlise

    do projeto envolvido.

    A importncia do projeto

    Tanto Viollet-le-Duc quanto Ruskin j abordavam aquela que a questo mais atual de

    todas o projeto. Enquanto que para o primeiro o patrimnio objeto de estudo para a

    construo nova racional, funcional e competente (os j citados livros de pedra), para o

    segundo ele serve a provar que o projeto se faz com a passagem do tempo em mente, como valor

    e diretriz: deve-se projetar para a posteridade, um edifcio capaz de envelhecer com nobreza e

    valor esttico, capaz de evocar.

    A evocao dos tericos em relao ao projetual aqui fundamental pois em qualquer

    nvel que o arquiteto trabalhe, ele se deparar com a preexistncia. Desde uma edificao at a

    paisagem, o arquiteto deve estar sempre ciente da existncia prvia sua interveno, e do fato

    de que esta se configurar em uma nova temporalidade para aquela obra ou stio. Portanto, os

    temas cabveis ao restauro devem ser levados sempre extenso do projeto em qualquer escala e

    contexto. Isto , o arquiteto contemporneo deve partir do princpio brandiano de que

    A ao de restauro (...) no se dever colocar como secreta e quase fora do tempo, mas dever ser pontuada como evento histrico tal como o , pelo fato de ser ato humano e de se inserir no processo de transmisso da obra de arte para o futuro (BRANDI, 2004, p.61).

    21 Referente apresentao do texto por CARBONARA, Giovanni.

  • Em relao prtica do restauro atual e principalmente ao projeto de restauro atual,

    portanto, pertinente abordar a questo do bom senso. Afinal, se observarmos as recomendaes

    dos tericos, elas orientam mas deixam margem s j citadas variveis crtica e criativa. So

    vrios os restauros rendidos equivocados no por descumprimento s principais teorias, mas

    porque se fez mau julgamento da liberdade possibilitada pela mxima do cada caso um caso.

    Sendo o restauro fruto das decises pessoais do restaurador, ele portanto resultado de uma

    dentre vrias possveis leituras que se pode fazer de um objeto.

    Parece que aqui cabe relembrar a mxima do minimo intervento, isto , a interveno

    mnima, que nos parece a ao crtica mais pertinente e pode-se dizer, sempre segura a levar

    em considerao no projeto de conservao e restauro. Se tomarmos o exemplo de um renomado

    restaurador da contemporaneidade, Marco Dezzi Bardeschi, sua posio extremamente

    conservadora, evocando a mxima boitiana do conservar, no restaurar22: ele considera

    restaurar um refazimento, e portanto a nica possibilidade autntica de transmisso do passado

    para o presente e o futuro estaria na conservao da matria (CARSALADE apud

    BARDESCHI, 2014, p.339), que o que existiria realmente. No compartilhamos desta viso por

    acreditar que a conservao integral da matria, sem que haja ao restaurativa, pode por vezes

    no ser suficiente para garantir a utilidade de um edifcio ou prevenir sua museificao; mas em

    casos como runas por exemplo, cuja autenticidade no pode ir alm da forma que se apresenta,

    a melhor ao a tomar. A interveno mnima, portanto, sempre uma ao de bom senso,

    guardadas as corretas escolhas tcnicas, pois garante o mximo da autenticidade da obra. Mesmo

    assim, cremos que o bom senso que de fato aplicado em qualificar o projeto em vez de em

    evit-lo sempre mais pertinente.

    Ainda sobre a idia da conservao como ao melhor que restaurao com a qual

    concordamos e cremos ser uma das premissas mais frequentes dos tcnicos atuais devemos

    apontar a atualidade de Boito em seu racicnio de que se teoricamente era fcil distinguir a

    conservao da restaurao, na prtica isso no era to fcil assim (CARSALADE, 2014,

    p.339). Afinal, o grande desafio do projeto de restauro continua sendo o julgamento dos estratos

    do monumento a atribuio de valores que nos permite distinguir o que deve ser mantido e o

    22 Boito cr na manuteno peridica para a conservao do monumento e evitar a restaurao, mas admite que este pode ser necessrio para no se abdicar do dever de preservar a memria. A restaurao encarada por ele como um mal necessrio (FONTE: Apresentao de Beatriz Mugayar Khl em BOITO, Camillo. Os restauradores; traduo de KHL, Beatriz Mugayar. Cotia, SP: Ateli Editorial, 2008, p.25).

  • que deve ser descartado. Por mais que a conservao seja a mxima, entramos em conflito se

    pensarmos que a remoo do que considerarmos exprio j uma interveno que nega esta

    mxima; e a situao torna-se mais contraditria ainda se pensarmos que o juzo de valor do que

    exprio para o especialista pode ser distinto do juzo de outrem cujo significncia , se pensa-

    se em memria coletiva, a mesma. Isto , o projeto de conservao pressupe ateno igual a

    ou maior que o projeto em que a necessidade de restaurao evidente, e s vezes a prpria

    interveno mnima torna-se um objetivo difcil.

    Exemplificamos a situao do projeto de restauro atual com o caso do projeto de

    expanso e readequao do museu da Galeria degli Uffizi em Florena, Itlia. Este fora feito em

    1995, refeito em 2004 e teve de passar por correes no mbito do consolidamento das estruturas

    em 2009, em funo da aprovao das Diretrizes para valorizao e reduo do risco ssmico do

    patrimnio cultural, com referncia s normas tcnicas para a construo e do Decreto do

    Presidente do Conselho de Ministros pela valorizao e reduo do risco ssmico do patrimnio

    cultural, com referncia s normas tcnicas para a construo, (DIR. P.C.M. 12 OTTOBRE

    2007), aprovados posteriormente abertura do canteiro. Ele prev o restauro de pinturas murais,

    ampliao dos espaos de exposio e rearranjo destes com as funes administrativas e

    institucionais em planta.23

    A reviso do projeto de consolidamente previu a garantia dos necessrios coeficientes de

    segurana, com vistas a conservar no s a matria mas tambm o funcionamento estrutural

    originrio, equilibrando valores de segurana e conservao. A insero de elementos estruturais

    no-compatveis existiu, mas foi feita de modo a no modificar as preexistncias. Alguns tensores

    de ferro foram colocados transversalmente s abbadas para evitar abertura de paredes, e a

    estrutura interna das mesmas foi reforada de maneira menos invasiva e mais reversvel para o

    funcionamento esttico da construo: em madeira laminada para susteno das voltas

    secundrias e fibra de carbono para reforo estrutural e unificao do comportamento estrutural

    das voltas principais, em relao ao concreto armado que estava previsto no projeto anterior. O

    feito louvvel por se tratar de uma poro da estrutura que no visvel, por encontrar-se

    escondido pelos forros decorados. Aqui meritoso o bom-senso na opo pela reversibilidade e

    interveno mnima, em um caso em que princpios tericos muito voltados ao restauro de obra

    23 Disponvel em: Acesso em 10/11/2014.

  • de arte por sua instncia esttica poderiam dar margem a um restauro crtico, criativo e no

    entanto mais danoso preexistncia.

    Nos casos em que as exigncias da possibilidade de sismos eram demasiadamene altas, as

    intervenes foram mais invasivas. Algumas das paredes que sustentariam as voltas reforadas

    com fibra receberam estruturas metlicas treliadas intramuros. A necessidade de implantao de

    infraestruturas lgica, eltrica e hidrulica tambm significaram intervenes mais impactantes

    preexistncia; no entanto, estas so vlidas a partir do momento em que se fazem necessrias

    funo do edifcio, e foram feitas enquanto tirando proveito da necessidade de restauro das

    estruturas internas24.

    Isto , o projeto Nuovi Uffizi compreende diversas aes restaurativas, desde a

    impactante consolidao estrutural at o singelo restauro parietal a partir de anlise estratigrfica,

    visando no s a restaurao do edifcio como a sua preservao e sua compatibilizao s

    expectativas funcionais atuais. Percebe-se que premissas de restauro foram usadas remetendo a

    Viollet-le-Duc, Boito e Brandi, por exemplo mas em momento algum fazendo o uso ipsis literis

    do discurso de um mesmo terico. Alm disso, a diversidade de solues de restauro estrutural,

    por exemplo, mostra que crucial a constante noo de que todo restauro crtico e criativo

    que os casos tm sempre particularidades que no podem ser respondidas somente com o

    conhecimento da teoria do restauro, e sim com o conhecimento profundo da preexistncia, da sua

    insero no mundo atual e do bom-senso projetual (imagens 01 a 04).

    Imagem 01: Reforo estrutural das voltas principais em fibra de carbono.

    Imagem 02: O espao entre voltas e contravoltas antes do reforo estrutural, com a passagem de dutos de

    infraestrutura.

    Imagem 03: Arcos em madeira para resistncia contra sismos das contravoltas.

    Imagem 04: Reforo estrutural de paredes (portantes) com trelia metlica.

    Concluso

    Por fim, cremos que independente da adeso ou no de uma ou outra tendncia, a teoria

    brandiana continua sendo a mais contempornea em termos de restauro de monumentos, e que

    24 Disponvel em: Acesso em 10/11/2014.

  • talvez merea um olhar mais atento talvez combinado perspectiva de Giovannoni ou Roberto

    Pane no que tange ao restauro de centros histricos. No entanto, provamos tambm que h

    atualidade nas demais teorias de restauro que se desenvolveram ao longo dos sculos XIX e XX,

    e que estas tm sua pertinncia hoje, justamente por virem se complementando na concordncia

    ou na contradio mtua para se atualizarem. Algumas destas premissas cotinuam norteando os

    fundamentos dos projetos atuais de conservao ou restauro devidamente filtrados pela crtica

    fundamentada, espera-se. Concluimos tambm que o grande mrito do arquiteto projetista de

    conservao e restauro justamente a interpretao crtica dessas teorias, para de fato permitir

    que estas se atualizem ao fazerem uso da criatividade com bom senso.

    Alm disso, a facilidade de acesso teoria do restauro, a casos de estudo, a normativas e

    demais medidas referentes preservao de patrimnio mundialmente nos dias de hoje permite,

    sem dvida, o enriquecimento do restaurador em termos tericos e projetuais. Mas de nada serve

    isso se o conhecimento da preexistncia desde uma permanncia arquitetnica a um stio que

    jamais tenha sofrido interveno no seja aprofundado o suficiente. A interpretao de teorias

    de restauro j crucial e delicada no meio europeu, onde elas de fato tomaram forma; mas se

    aliarmos isso adequao destas aos dias atuais e mais delicadamente ainda ao deslocamento

    dessas teorias para contextos no-europeus, mais arriscada fica sua compatibilizao com o

    conhecimento da dita preexistncia, e mais crucial esta se torna.

    Cremos que a beleza pitoresca e singela que John Ruskin tanto apreciava nas runas deva

    estar nos olhos de todo restaurador, para que este possa ao menos se permitir delongar na

    contemplao da obra em que pretende intervir, garantindo que aquele patrimnio tenha de fato

    exercido seu poder de encantar e fazer parte de sua memria. Somente o restaurador crtico,

    criativo, sensvel, atualizado e, mais importante, de fato conectado sua obra, capaz de intervir

    satisfatoriamente no patrimnio material.

    Referncias bibliogrficas

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    VIOLLET-LE-DUC, Eugne Emmanuel. Restauro [Restauration]; traduo de DOURADO,

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    Notas de aula. Disciplina ARQ 506 Histria e Teoria da Conservao e do Restauro, Prof.

    Odete Dourado. Mestrado Profissional em Conservao e Restaurao de Monumentos e Ncleos

    Histricos UFBA. Segundo semestre de 2014.

  • Imagem 01: Reforo estrutural das voltas principais em fibra de carbono. (FONTE: . Acesso em

    10/11/2014).

    Imagem 02: O espao entre voltas e contravoltas antes do reforo estrutural, com a passagem de dutos de infraestrutura.

    (FONTE: . Acesso em 10/11/2014).

  • Imagem 03: Arcos em madeira para resistncia contra sismos das contravoltas. (FONTE: . Acesso

    em 10/11/2014).

    Imagem 04: Reforo estrutural de paredes (portantes) com trelia metlica. (FONTE: . Acesso em

    10/11/2014).

    ARTIGO IPHANARTIGO IPHAN_imagens