artista do fim do mundo -...
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Inhumas, ano 4, n. 16, jul. 2016
ISSN 2316-8102
ARTISTA DO FIM DO MUNDO
Renan Marcondes
Soltei os tigres e os leões nos quintais Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer Caetano Veloso e Gilberto Gil
Imaginem o seguinte corpo: um homem nu, bêbado e melancólico está
de pé em uma prisão. Nesse espaço, que também é a casa de sua mãe, ouvem-
se constantemente chorinhos cadenciados e árias de Bach. Há, ao lado desse
homem, um prato completo de moqueca, nunca tocado. Falando um português
embaralhado por causa da bebida, ele sempre emite sons e se relaciona com seu
público, explicando o que deseja expressar e dançando passos de balé a fim de
chamar a atenção. Separado do chão por algum tipo desconhecido de proteção,
ele segue uma linha onde esse público – que o observa – consegue ler sua
pronúncia e o que ele deseja interpretar. Aparentemente, ele deve sair do útero
de sua mãe e renascer para o mundo, ressurgindo, ressignificando, expandindo-
se, soltando-se no caos mundo-terra-universo.
Fotografia de Artur Kon
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Essa descrição apresenta o corpo mais artístico, agradável e brasileiro
possível, a partir do olho de sete pessoas que preencheram um contrato e uma
declaração no projeto Forma Infinita1 – processo coreográfico sujeito à ação
pública que atualmente está em residência no SESC Santana (São Paulo, Brasil).
Nesse trabalho, ao invés de propor uma forma concebida por um diretor (que
passa pelo corpo de um intérprete e é apenas recebida pelo público), a
proposição é de que o público interfira diretamente em uma forma coreográfica,
dirigindo-a e moldando-a de acordo com sua perspectiva.
Assim, a interpretação do público vira proposta ativa de transformação, e
a suposta ação criativa do artista vira exercício de interpretação, abrindo espaço
para diálogo, mediação e discussão. Essa relação é mediada por um contrato, a
partir do qual o público participante vira criador conjunto da obra. Esse contrato
é acessado pelo público que deseja participar através da figura de uma mesária-
cantante (ação realizada pelas bailarinas Carolina Callegaro e Clarissa Sachelli),
que explica as condições de participação e canta, esporadicamente, a música
Panis et circenses (autoria de Gilberto Gil e Caetano Veloso).
Forma Infinita é abertura performativa do desejo de criar uma coreografia
de inúmeras – e infinitas – assinaturas. Forma Infinita é, no dia 27 de junho de
2016, um trabalho de Artur Sartori Kon, Elizabeth Marcondes, Maria de Carvalho,
Marcos Pereira da Silva, Renan Marcondes, Selma Marcondes, William Aguiar
Guilherme e Wilson Roberto Correa.
Acredito que esse trabalho se configura no espaço entre uma abertura
incansável de processo; uma tentativa de burilar algo que se perde; uma
aceitação absoluta e cega das falas; um trabalho constante de melhora e
esquecimento; um espaço de poder dissolvido e compartilhado: e um produto
que nunca é final. Penso em Forma Infinita como a sujeição de um processo
artístico à ação pública, cujas horas de trabalho acumulam autores e dividem
responsabilidades, valores e escolhas.
Trago esse trabalho recente para esse breve texto com o intuito de
introduzir e dar imagem a como tenho pensado meu trabalho em performance
1 Forma Infinita é um processo do polo de produção em dança contemporânea e performance Pérfida Iguana, o qual é dirigido por Renan Marcondes e Carolina Callegaro.
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nos últimos anos. Não me interessam alguns lugares muito recorrentes da arte
performática como a potência de um corpo vivo, noções de presença,
irreprodutibilidade, inserção direta no real e efetividade de transformação no
mundo. Apesar de serem noções que transitam entre importantes autores e
artistas que se debruçaram sobre a performance, penso que cada vez mais esses
lugares levam para exacerbações cegas das potencialidades do corpo; para uma
ideia de que o acontecimento performático “pode mais”, é “melhor” ou “mais
potente” que outras linguagens e procedimentos mais antigos; e para uma
crença no corpo como um meio mais transformador que outros. Esses
problemas se apresentam não apenas na produção performática específica das
artes visuais, mas também em seus desdobramentos em outras linguagens.
Grande parte do teatro contemporâneo, por exemplo, se autointitula como
“Teatros do Real”, e se caracteriza – ou melhor, se qualifica – por apresentar em
cena questões, procedimentos e resultados que são mais “reais” que outros.
Talvez por isso, em minha produção, sempre que me debruço sobre a
questão do corpo, percebo que, ao invés de me perguntar “o que um corpo pode
fazer?”, as perguntas que me faço são: “o que um corpo não pode fazer?” ou
ainda “o que um corpo não pode deixar de fazer?”, uma vez que estamos
inseridos em um tipo de organização simbólica ocidental do mundo, na qual nos
entendemos como sujeitos ativos que agem sobre objetos passivos, ou seja,
seres que fazem coisas, que realizam. Meu interesse, portanto, incide muito
mais sobre os limites dessa organização e nos momentos em que os
dispositivos e organizações de corpos – que supostamente nos tornam sujeitos
(como polegares ou cadeiras) –, na verdade nos objetificam, tornando um corpo
um objeto passivo, que sofre ou recebe uma ação. Corpos como objetos
museológicos, como nas situações construídas de Tino Sehgal; corpos como
carne e paredes de museu, como nas ações e imagens propostas por Laura Lima;
corpos como fluxos e excreções, como nos cabelos infinitos das instaurações de
Tunga... São esses os corpos que me interessam. Mas nunca o corpo como
indivíduo. Sempre o corpo em relação e sempre distanciado de uma
humanização.
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Por isso sempre penso – ao criar um trabalho – em propor uma situação que
possua limites claros para o corpo do performer, de modo a mostrar como esse
limite necessariamente constrói um corpo, molda gestos e determina atitudes.
Em um dos meus mais recentes trabalhos, intitulado Como um Jabuti Matou
uma Onça e fez uma Gaita de um de Seus Ossos, apresentava ao público a
imagem de um corpo masculino subjugado por um objeto: um sapato de salto
alto laranja cujo salto é uma estaca de 30 centímetros. Impossibilitado pelo
sapato de ficar em pé e ocupar uma posição ereta, masculina e dominadora,
esse corpo transitava lentamente pelo plano horizontal através de uma
coreografia que condensava imagens referentes a uma objetificação da mulher.
Nada a fazer além de rolar de um lado para outro, passando lentamente por
essas imagens, como uma vitrine viva. Em outro trabalho, de 2014, também com
um longo título, É Certamente Muito Trabalhoso Dizimar o que Existe e Ajustar
o que É Injusto, vestido de garçom segurava em meus braços uma bandeja cheia
de um doce gigante de aproximadamente 11kg durante a abertura de uma
exposição. Nesse caso, o meu corpo já precisava da ação pública – o gesto de
servir o doce mesmo tendo que sujar a mão para isso – para aliviar uma situação
problemática – o excesso de peso do doce na bandeja. Agora, em Forma Infinita,
o contrato é que é o dispositivo em evidência, que media relações de poder entre
corpos. Sapatos, bandejas com doces, contratos: todos objetos que se tornam
monstruosos, que ganham vida, que deslocam a relação de dominação do
homem.
Como sempre, esses trabalhos me colocam problemas aparentemente
sem solução. Em Forma Infinita, percebo-me em relação com um recorte
completamente diferente de público, que possui outras expectativas e modos
de relação com um trabalho dessa natureza. Grande parte dos pedidos estão
relacionados a uma explicação do trabalho ou a um vínculo com um “imaginário
comum” da dança e do teatro (estar de pé, dançar balé, olhar para o público,
estar sobre um palco etc.). Porém, a simples justaposição dessas demandas com
outras de ordem bastante subjetiva cria um estranhamento que é logo
entendido como uma inacessibilidade da obra. Penso em como deixar claro que
a estranheza da ação tem antes de tudo a ver com a sobreposição das
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demandas e desejos pessoais sobre meu corpo, e em como obter, com esse
trabalho, a noção de que toda ação pública é dissensual e problemática. Penso
também na delicadeza em construir um trabalho em conjunto com um público
“passante” e, porventura, tendo que colocá-lo em um espaço ou situação
específicos (como uma mostra de performance ou um festival de dança), pois é
quase como colocar dois mundos e interesses em choque. Apesar da potência
que pode surgir disso, é preciso cuidado e atenção para não transformar a
relação entre esses dois interesses em um puro exercício de exotismo, circo do
imaginário de não iniciados na arte.
No mais, acredito que Forma Infinita me coloca ainda mais na direção de
um corpo que não é individual ou que se debruça sobre questões pessoais, mas
que é um corpo-reflexo imperfeito do outro, um tipo estranho de androide.
Penso nesse corpo como espelho – primeiro reconhecimento do corpo da criança
– e como cadáver. A palavra corpo aparece pela primeira vez na Grécia, com
Homero, que a usou para designar cadáveres. É graças a eles, coloca Foucault,
que nossos corpos ganham unidade de imagem, mas, paradoxalmente, eles
jamais farão parte de nós. Jamais poderemos estar onde está o cadáver e nem
onde está a imagem refletida pelo espelho. É, fora de nós, portanto, que o
entendimento de um corpo se configura.
Nesse movimento duplo de reconhecimento e inacessibilidade do corpo
em relação à sua própria imagem, vejo uma possibilidade de se pensar em uma
prática de si que corresponderia também a um desapego de si, que desbancaria
o sujeito e sua fundação, abrindo-o à própria dissolução. Com isso volto a
ressaltar a importância de experienciar coisas que nos lembram existir em
processos e forças muito sutis sobre as quais perdemos o controle. Acredito que
ao evidenciar e exagerar essas experiências, podemos nos tornar conscientes de
problemas e pensar sobre suas mudanças, a partir de novas imagens, gestos e
temporalidades.
Acho que penso parecido com a seguinte ideia presente em um texto da
coreógrafa Marcela Levi: o corpo do performer não é cavaleiro, ele é cavalo.
Imagino que o artista – na condição de performer – é como um replicante de
Blade Runner: um duplo imperfeito, que aparentemente possui mais
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capacidades que os humanos, mas que apenas busca, sem descanso, uma noção
vaga e sempre distante de humanidade. Vejo ainda esse mesmo artista como
um ilegal na Terra, que deseja a simplicidade de uma vida mais longa (vejam
Marina Abramović ensaiando sua própria morte e buscando a quarta dimensão
em terras brasileiras). Esse artista, por não entender bem sua própria
humanidade, também acredita que é preciso abdicar dos corpos, do indivíduo,
da ideia de poder, dos desejos, principalmente do desejo de mudar o mundo com
a intenção de lançar-se no desejo de construir outro. Ao contrário do que
comumente se imagina, esse tipo de artista não deseja se mascarar como um
humano, mas sim aceitar o fato de ser um produto, uma planta, um corpo
passível, um espantalho, um manequim, um corpo dado ao entretenimento, um
tamagotchi, um espelho do fracasso de um projeto de humanização, um jabuti,
pedaços de cérebro, uma cor quente, robô de pilha...
O artista poderia ser tudo que sobra no mundo depois do apocalipse que
dará fim aos humanos. O artista poderia ser um alienígena desfocado, um mar
de baratas, a escuridão total, fragmentos explodidos de corpos, tsunamis sobre
prédios, folhas rasgadas de revistas. Tudo isso, menos o humano sobrevivente
dos filmes de Hollywood.
Texto escrito a partir de fala realizada em 23 de junho de 2016,
no Ciclo de Pesquisas da Casa Tomada, em São Paulo/Brasil.
PARA CITAR ESTE TEXTO
MARCONDES, Renan. “Artista do Fim do Mundo”. eRevista
Performatus, Inhumas, ano 4, n. 16, jul. 2016. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2016 eRevista Performatus e o autor