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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE ARTES
DEPARTAMENTO DE ARTES DRAMÁTICAS
!!!!
!O ONÍRICO E O DELÍRIO: UMA ANÁLISE DOS ELEMENTOS
APOLÍNEOS E DIONISÍACOS EM AS BACANTES
!!!!
JÉSSICA DE SOUZA BARBOSA
!Porto Alegre
2014
RESUMO
O presente estudo debruça-se sobre a questão proposta por Nietzsche,
a qual a tragédia teria sido construída com base na tensão de dois importantes
e antagônicos pilares que regiam a cultura grega: o dionisíaco e o apolíneo.
Para tanto, será utilizada, como objeto de estudo, a obra do poeta trágico
Eurípides, As Bacantes. Parte-se, portanto, do princípio de que o apolíneo e o
dionisíaco configuram-se e apresentam-se como duas forças opostas, mas que
ao coexistirem no trágico somam-se e entrelaçam-se, constituindo, assim, a
totalidade da obra de arte, neste caso, da tragédia. Desta forma, será realizada
uma breve análise, a fim de detectar o modo com o qual estes elementos
contrastantes se apresentam na dramaturgia euripidiana.
PALAVRAS - CHAVE: As Bacantes. Dionisíaco. Apolíneo. Tragédia.
!ABSTRACT
The current study parts from a statement posed by Nietzsche, according
to which tragedy is built on the tension between two important and antagonistic
pillars guiding the Greek culture; the Apollonian and the Dionysian. To that end,
a notable work of the tragic poet Euripides, The Bacchae, will be drawn upon. I
start from the principle that the Apollonian and Dionysian present themselves as
two opposing forces, which in their coexistence within the tragic become
intermingled and intertwined, composing through this process the totality of art,
or in this case, tragedy. Thus, I will conduct a brief analysis aiming at identifying
the way by which these contrasting elements are presented in the Euripidean
dramaturgy.
KEY WORDS: The Bacchae. Dionysia. Apollonian. Tragedy.
!!
1. O sonho e a embriaguez: a dualidade do Apolíneo e do Dionisíaco em Nietzsche
Nietzsche apropria-se, em sua obra "O Nascimento da Tragédia", da
duplicidade entre dois elementos primordiais para a cultura e filosofia gregas:
os impulsos apolíneos e dionisíacos. Ambos resultam em conflitos incessantes
e em constantes reconciliações, para, assim, comporem o quadro que resulta
na arte, sobretudo, na tragédia clássica. Para ilustrar este antagonismo gerado
por essas duas forças ambivalentes, Nietzsche (2013, p. 27), resgata o
pensamento de Schopenhauer, em O mundo como vontade e representação , 1
e remete à imagem de um barco sobre o mar o mar enfurecido. O mar,
imponente e misterioso, profundo e descontrolado, impõe sua força
devastadora e impulsiva. Os ventos acompanham o mar em sua fúria, ao passo
que a tempestade demonstra toda a impetuosidade e furor da natureza. Já a
pequena embarcação, simplesmente sobrevoa as ondas, tentando, por si só
persuadir o mar a domesticar-se. Em sua técnica, em seu comedimento, em
sua insistente flutuação sobre a superfície marítima ele segue seu destino
deslizando sobre o mar em direção ao norte, à trajetória já então pré-
estabelecida pelo barqueiro. O dionisíaco (o mar) e o apolíneo (o barco)
coexistem nesta pequena metáfora do processo criativo, no qual o barco não
poderia navegar sem a presença do mar, enquanto o mar não teria sentido de
existir sem que houvesse um barco que o percorresse em sua trajetória.
Nietzsche descreve como o elemento dionisíaco se apossa do homem,
despertando nele os diferentes aspectos que caracterizam a figura do deus:
Se a esse terror acrescentarmos o delicioso êxtase que, à ruptura do principium individuationis, ascende do fundo mais íntimo do homem, sim, da natureza, ser-nos-á dado lançar um olhar à essência do dionisíaco, que é trazido a nós, o mais perto o possível, pela a analogia da embriaguez. Seja por influência da beberagem narcótica, da qual todos os povos e homens primitivos falam em seus hinos, ou com a poderosa aproximação da primavera a impregnar toda a natureza da alegria, despertam aqueles transportes dionisíacos, por cuja
� “Tal como, em meio ao mar enfurecido que, ilimitado em todos os quadrantes, ergue e afunda 1
vagalhões bramantes, um barqueiro está sentado em seu bote, confiando na frágil embarcação; da mesma maneira, em meio a um mundo de tormentos, o homem individual permanece calmamente sentado, apoiado e confiante no principium individuationis [princípio de individuação]”. (SCHOPENHAUER apud NIETZSCHE, 2013, p. 27).
intensificação o subjetivo se esvanece em completo auto esquecimento. (NIETZSCHE, 2013, p.27)
!Deste modo, o Dionisíaco é caracterizado essencialmente pelo êxtase,
pelo transe e pela embriaguez. Assim, Nietzsche acende a questão da ruptura
com o segmento individual, ou seja, o homem, quando integrado ao impulso
dionisíaco, passa a pertencer ao âmbito do coletivo. Não é mais o homem que
existe, com todos os seus valores e idiossincrasias, pois, assim, transmutou-se
em outro ser. Transfigurou-se na própria divindade dionisíaca, e
consequentemente, passa a coabitar em todo o séquito que envolve este deus.
Ele não é mais o artista que constrói a arte, ele passa a ser a própria arte. O
deus do vinho, da dança, da música e da tragédia evoca os instintos mais
primitivos dos seres humanos, impregnando-os de energia criadora, mas ao
mesmo tempo, submergindo-os em impulsos até então desconhecidos, o que
faz com que a própria sabedoria dionisíaca também seja cercada de estímulos
violentos e caóticos.
O Apolíneo, por sua vez, surge em referência ao deus Apolo, deus que
remonta ao individual, às formas, à medida, à perfeição, ao belo, à razão, ao
sonho e à racionalidade. Assim, Apolo, o deus do Sol, reina sobre as coisas
que prevalecem sob a superfície. Ele simboliza a busca pela perfeição,
presente na simetria das artes plásticas do período helenístico e perfaz tudo
àquilo que é estético e consciente.
Apolo, na qual idade de deus dos poderes configuradores, é ao mesmo tempo o deus divinatório. Ele, segundo a raiz do nome o "resplandecente", a divindade da luz, reina também sobre a bela aparência do mundo interior da fantasia. A verdade superior, a perfeição destes estados, na sua contraposição com a realidade cotidiana tão lacunarmente inteligível, seguida da profunda consciência da natureza, reparadora e sanadora do sono e do sonho , é simultaneamente análogo e simbólico da aptidão divinatória e mesmo das artes, mercê das quais a vida se torna possível e digna de ser vivida. (NIETZSCHE, 2013, p. 26)
!Então, para Nietzsche, o apolíneo é portanto a própria representação
simbólica da individuação, uma transmigração do caos para o inteligível, pois
"Apolo deveria esconder das pessoas a angústia, a dor, os sofrimentos e
lamentos que sustentam, ou que seriam a base de tudo, a Vontade, e erguê-los
ao plano ideal de individuação, de iluminação, indo do caos para a
ordem" (CANDELORO; KOEHLER, 2012, p. 25).
As aparências apolíneas, nas quais Dionísio se objetiva, não são mais um mar perene, um tecer-se cambiante, um viver ardente", como é a música do coro, não são mais aquelas forças apenas sentidas, incondensáveis em imagens, em que o entusiástico servidor de Dionísio pressente a proximidade do deus: agora lhe falam, a partir da cena, a clareza e a firmeza da concepção épica, agora Dionísio não fala mais através de forças, mas como herói épico, quase com a linguagem de Homero. (NIETZSCHE, 2013, p.60)
Considera-se, portanto, o mito trágico como uma representação
simbólica e imagética da sabedoria dionisíaca. O conjunto de arquétipos e
nuances que corroboram a divindade dionisíaca, bem como a sua aproximação
e identificação com os mortais são traduzidos e expressos, por meio da
tragédia grega, alicerçados sobre uma comunidade de símbolos e signos que
compõem a própria linguagem em que a tragédia fora escrita.
!2. As Bacantes, o ritual dionisíaco e a tragédia grega como
metáforas da democracia ateniense
Provavelmente estreada na Macedônia em 405 a.c, a peça de
Eurípedes As Bacantes revela os primeiros indícios do culto ao deus Dionísio,
cuja figura aparece em cena constituindo-se como um personagem ativo da
obra. A ação se passa em Tebas, diante do Palácio de Penteu e próximo ao
tumulo da mãe de Dionísio, Sêmele. Dionísio pretende se fazer reconhecido
pelos tebanos. Para isso, trama vingança contra todos que não se submetem e
não admitem sua divindade, Àgave, Cadmo, Harmonia e o rei tebano Penteu.
Diante da incredibilidade que o cercava, Dionísio retorna para se vingar,
depois de ter reunido um conjunto de seguidoras, as Mênades ou as Bacantes,
ao viajar para a Ásia e outras regiões. O séquito de Dionísio é delineado em As
Bacantes de Eurípedes, e, deste modo, é possível compreender os aspectos
que caracterizavam os cultos dedicados à esta divindade, fazendo-se
compreensível "a identidade de Dionísio na Atenas Clássica e como seus
elementos identitários foram apropriados por homens e mulheres, enquanto
instrumento de legitimação de poder e pertencimento à comunidade" (DA
MATA, 2010, p. 93).
Em cena, Dionísio transfigurava-se como personagem que reunia
diversas faces e dimensões. O próprio deus interagia com os mortais e fazia-
se mutante, elencando em sua personalidade o divino e o heroico, o masculino
e o feminino, o sagrado e o profano. As festividades realizadas em homenagem
à Dionísio emanavam não somente o transe, a embriaguez, o êxtase e a
possessão, mas através da alegria e do equilíbrio vivenciados, faziam-se
presente nos cidadãos da polis o sentimento de liberdade e afirmação do
indivíduo. "Ele se conectava ao homem e simultaneamente cidadão, quando
sua imagem associada ao Falo transmitia a ideia de virilidade, força e
autoridade que operava especialmente pelas vias culturais e políticas" (DA
MATA, 2010, 95). Sob esta perspectiva, Dionísio representava o próprio poder
político do cidadão na Democracia Ateniense e a tragédia grega configurava-se
como a própria metáfora da polis e do exercício da cidadania na Atenas
Clássica.
!3. O Apolíneo e o Dionisíaco em As Bacantes
Motivado pelo seu desejo de vingar-se, Dionísio compeliu todas as
mulheres a deixar as suas casas. Eurípedes descreve o delírio dionisíaco, por
meio da voz do coro, composto pelas menades.
É doce para nós nos altos montes, quando saímos da corrida báquica, ficar deitadas na relva abundante sob a pele de corça, e capturar um bode para ser sacrificado, e devorar a sua carne crua, Extasiadas, enquanto corremos pelos montes lídios levadas por Brômio! Gritemos todas Evoé! (Eurípedes, 2003, p. 213-214) !
A poesia contida nesta descrição aparentemente pertence ao terreno do
dionisíaco. No entanto, ao transpor-se em palavras, através da dramaturgia de
Eurípedes, a orgia dionisíaca rompe suas fronteiras aterrissando nas clareiras
do apolíneo. Conforme analisa Nietzsche (2013, 41): "O artista já renunciou à
subjetividade no processo dionisíaco: a imagem, que lhe mostra a sua unidade
com o coração do mundo, é uma cena de sonho, que torna sensível aquela
contradição e aquela dor primordiais, juntamente com o prazer primigênio da
aparência." Consiste, assim, o processo da tragédia, em uma tradução
apolínea do ditirambo.
!O dialogo inicial entre Tirésias e Cadmo revela uma das facetas de
Dionísio: a do entusiasmo. O sentimento de pertencimento e de retorno à
juventude aparece na fala de Tirésias: "Teu pensamento é igual ao meu, e
como tu volto a ser jovem". E também, Cadmo exalta esta alegria provinda da
divindade dionisíaca: "pois quero de agora em diante, noite e dia, ferir o chão a
todo instante com meu tirso. Sinto-me tão feliz esquecendo a velhice".
!Penteu encarna a defesa do ideal grego apolíneo. O rei de Tebas deseja
a perfeição, a castidade e a certeza de que as regras e a moralidade vigente
prevaleça e não seja transgredida. Para isso condena o vinho, que por sua vez,
convoca as Bacantes a entrarem no estado de embriaguez: "Digo que não há
pureza em festas onde o vinho é servido às mulheres "(p. 219).
! Tirésias que embora tenha ouvido o chamado de Dionísio, exprime
também em seu discurso, aspectos que se afinam com a natureza apolínea.
"Quando algum homem sábio em suas falas trata de assuntos elevados, sem
esforço sua linguagem é naturalmente bela (p. 219)". Neste trecho, Tirésias
exalta a racionalidade grega, dando vasão à perseguição da perfeição formal,
do belo e do contemplativo. No entanto, Tirésias disserta também sobre o
delírio dionisíaco, único capaz de transportar as almas repletas de agonias e
males da existência para o aconchego e a fuga da embriaguez, o que faz com
que o próprio elemento dionisíaco assuma as dimensões do heroico.
!
para curar de suas muitas amarguras a triste raça humana; a simples ingestão do néctar tirado das uvas, nos concede o esquecimento dos males cotidianos, graças a paz do sono, único remédio (Eurípedes, 2003, p. 219) !
Penteu, que em nome da racionalidade própria do apolíneo, tomado de
arrogância, acaba sendo tomado pela hybris, acaba por ultrajar um deus. O
próprio Tirésias o repreende: "Jamais me persuadirão os teus discursos a
combater os deuses, eu simples mortal! É louco, é irremediavelmente louco,
quem corrompeu a tua alma desta forma! "(p. 221). Neste trecho do texto,
percebe-se o paradoxo que acerca o conflito, pois Tirésias acaba por defender
Dionísio com artifícios racionais, apelando para a sabedoria do mito e do
respeito aos deuses, e, ao mesmo tempo, Penteu, que reprime Dionísio está
repleto de descontrole e fúria. "Ah! Que furor! Ah! Que rancor exala este neto
da terra - Sim, Penteu! -, o filho do dragão assustador gerado por Equíon,
monstro horrível de olhar feroz e em nada parecido com a raça das criaturas
humanas, que tal como um gigante sanguinário… (p. 232-233)". Nestes versos
do coro, percebe-se claramente que Penteu, na defesa do apolíneo, assume a
face agressiva e violenta do impulso dionisíaco.
!Em toda a obra As Bacantes é possível encontrar o paradoxo
representado pelo apolíneo e o dionisíaco, tanto pela própria presença de
Dionísio em cena e dos caracteres pertencentes ao seu culto, quanto pela
própria dualidade das atitudes dos personagens que oscilam, em diferentes
momentos e situações, agindo em nome destas duas tensões antagônicas.
Além disso, é preciso reiterar que a própria tragédia em si, como obra de arte,
tem sua existência marcada por esta dualidade, seja pela sua origem
dionisíaca, seja pela sua, expressão e superfície formal, apolíneas.
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Referencial Teórico:
EURÍPIDES. As Bacantes. Trad. Trajano Vieira. São Paulo:
Perspectiva, 2003.
!DA MATA, Giselle Moreira. As Bacantes de Eurípedes: Menadismo e
Falocentrismo na Pólis Ateniense Clássica. Alétheia: Revista de estudos sobre Antiguidade e Medievo, v.1, p. 92-103, jan./ jul. 2010. Disponível em:
<http://revistaale.dominiotemporario.com/doc/MOREIRA,_Giselle.pdf> Acesso
em: 25 mai. 2014.
CANDELORO, Rosana Jardim; KOEHLER, Rafael. O Problema da
Origem da Tragédia em Nietzsche. Griot – Revista de Filosofia, v.6, n.2, p.
122-137, dez. 2012. Disponível em: <http://www.ufrb.edu.br/griot/images/vol6-
n2/9-O_PROBLEMA_DA_ORIGEM_DA_TRAGEDIA_EM_NIETZSCHE.pdf >
Acesso em: 25 mai. 2014.
!NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia: ou Helenismo e
pessimismo. Trad. Jacó Guinsburg. São Paulo: Companhia de Bolso, 2013.
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