as crônicas de wardstone 1 - o aprendiz do mago - joseph delaney

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  • JOSEPH DELANEY

    O APRENDIZ DO MAGO

    Traduo de Maria Georgina Segurado

    EDITORIAL PRESENA

  • FICHA TCNICA Ttulo: The Spooks Apprentice Autor: Joseph Delaney Edio original publicada por Random House Chil-drens Books Traduo: Maria Georgina Segurado Capa: Tiago da Silva Composio, impresso e acabamento: Nlultitipo Artes Grficas, Lda. 1a edio, Lisboa, Novembro, 2005 Depsito legal n. 233 575/05

  • A Marie

  • UM MISTRIO ENVOLVE O PONTO MAIS E-LEVADO DO CONDADO, DIZEM QUE MOR-

    REU UM HOMEM L DURANTE UMA GRANDE

    TEMPESTADE, ENQUANTO APRISIONAVA UM MAL QUE AMEAAVA O MUNDO INTEIRO,

    DEPOIS O GELO VOLTOU E, QUANDO DESA-PARECEU, AT AS FORMAS DAS COLINAS E OS

    NOMES DOS LUGARES NOS VALES TINHAM

    MUDADO, AGORA, NO RESTA QUALQUER VESTGIO DO QUE ACONTECEU H TANTO

    TEMPO NAQUELE PONTO MAIS ELEVADO

    DOS CAMPOS, MAS O SEU NOME PERDUROU, CHAMAM-LHE...

    A PEDRA VIGILANTE.

  • CAPTULO 1 UM STIMO FILHO

    Quando o Mago chegou, a luz j comeava a diminuir. Fora um dia longo e duro e eu estava pronto para a ceia.

    Tem certeza de que ele um stimo filho? perguntou. Mirava-me de alto a baixo e abanava a cabea, cheio de dvidas.

    O meu pai anuiu. E voc tambm um stimo filho? O meu pai voltou a anuir e comeou a bater impa-

    cientemente com os ps, salpicando-me as calas de got-culas de lama e estrume. A chuva escorria-lhe pela pala do bon. Chovera durante a maior parte do ms. Havia folhas novas nas rvores, mas o tempo primaveril ainda tardava muito.

    O meu pai era agricultor, tal como o pai dele tam-bm fora, e a primeira regra da agricultura manter a terra unida. No pode ser dividida pelos filhos, seno vai fi-cando menor a cada gerao, at no restar nada. Por isso, um pai deixa a fazenda ao filho mais velho. Depois arranja ocupaes para os restantes. Se possvel, tenta encontrar um ofcio para cada um.

    Para tal, precisa de muitos favores. O ferreiro local uma opo, em especial se a propriedade for grande e ele lhe tiver solicitado bastante trabalho. Ento, provvel que o ferreiro oferea um aprendizado, mas ainda s fica com um filho arrumado na vida.

    Eu era o stimo e, quando chegou a minha vez, ti-nham-se esgotado os favores. O meu pai estava to de-

  • sesperado que tentou mesmo convencer o Mago a acei-tar-me como seu aprendiz. Ou, pelo menos, foi o que pensei na altura. Devia ter desconfiado que a mo da mi-nha me andava ali.

    Ela estava por trs de muitas coisas. Muito antes de eu nascer, fora o dinheiro dela que comprara a nossa fa-zenda. De que outra forma poderia um stimo filho t-la adquirido? E a minha me no era do Condado. Vinha de uma terra distante, do outro lado do mar. A maioria das pessoas no reparava, mas por vezes, se escutasse com muita ateno, havia uma ligeira diferena na maneira como ela pronunciava certas palavras.

    Mas no julguem que eu estava sendo vendido co-mo escravo ou algo assim. Fosse como fosse, estava farto de agricultura e aquilo que chamavam a vila pouco mais era do que uma aldeota para l do Sol poente. No era certamente um lugar onde quisesse passar o resto da mi-nha vida. Por isso, de certa forma, agradava-me bastante a idia de ser Mago; era bem mais interessante do que or-denhar vacas ou fertilizar a terra.

    Mas sentia-me bastante nervoso, porque era um trabalho assustador. Iria aprender a proteger fazendas e aldeias das coisas que andam por a noite. Lidar com fantasmas, demnios e todo o tipo de seres malficos, tu-do faria parte de uma rotina normal. Era o que o Mago fazia e eu ia ser seu aprendiz.

    Quantos anos ele tem? perguntou o Mago. Far treze em Agosto prximo. um bocado baixo para a idade. Sabe ler e es-

    crever?

  • Sim respondeu o meu pai. Sabe ambas as coisas e tambm sabe grego. A minha me ensinou-o e j conseguia falar antes mesmo de andar.

    O Mago anuiu e olhou para o caminho enlameado que se estendia do porto em direo casa da fazenda, como se escutasse algo. Depois encolheu os ombros.

    J uma vida bastante dura para um homem, quanto mais um rapaz disse. Acha que ele est altura?

    Ele forte e ser to grande quanto eu quando chegar idade adulta retorquiu o meu pai, endireitando as costas e erguendo-se em toda a sua altura. Mesmo as-sim, o alto da sua cabea ficava exatamente ao nvel do queixo do Mago.

    De repente, o Mago sorriu. Era a ltima coisa que eu estava esperando. O seu rosto era grande e parecia ter sido esculpido em pedra. At ali achara-o um bocado mal-encarado. A sua capa preta e comprida e o capuz fa-ziam lembrar um padre, mas quando ele nos olhava dire-tamente, a sua expresso sinistra fazia-o assemelhar-se mais a um carrasco a avaliar-nos por causa da corda.

    O cabelo que aparecia sob a parte da frente do ca-puz condizia com a barba, que era grisalha, mas tinha so-brancelhas pretas e muito espessas. Saam-lhe tambm uns plos pretos das narinas, e os seus olhos eram verdes, a mesma cor dos meus.

    Reparei ento em algo mais nele. Trazia um bordo comprido. Claro que o vira mal ele aparecera, mas no percebera at quele momento de que o segurava na mo esquerda.

    Quereria dizer que era canhoto como eu?

  • Fora algo que me trouxera muitos problemas na escola da aldeia. At tinham chamado o proco local para me observar e ele abanara constantemente a cabea e dis-sera-me que teria de contrariar o hbito antes que fosse tarde demais. No entendi ao que se referia. Nenhum dos meus irmos era canhoto nem tampouco o meu pai. No entanto, a minha me canhota e isso nunca pareceu in-comod-la sobremaneira, por isso, quando o professor ameaou fazer-me perder a mania pancada e me amar-rou a caneta mo direita, ela tirou-me imediatamente da escola e daquele dia em diante ensinou-me em casa.

    Quanto quer para aceit-lo? perguntou o meu pai, interrompendo os meus pensamentos. Agora que estvamos verdadeiramente a negociar.

    Dois guinus por um ms, como experincia. Se ele tiver jeito, voltarei no Outono e ficar me devendo outros dez. Se no, trago-o de volta e ser s mais um guinu pelo incmodo que tive.

    O meu pai voltou a anuir e o negcio se fez. Fomos at ao celeiro e pagaram-se os guinus, mas no houve aperto de mos. Ningum queria tocar num Mago. O meu pai era um homem corajoso, ao estar ali a menos de dois metros dele.

    Tenho um assunto a tratar aqui perto disse o Mago , mas virei buscar o rapaz ao raiar do dia. Ele que esteja pronto. No gosto que me deixem esperando.

    Quando ele se foi, o meu pai bateu-me no ombro. Agora uma vida nova para voc, filho dis-

    se-me. V se lavar. Acabou-se a agricultura para voc. Quando entrei na cozinha, o meu irmo Jack en-

    volvia a mulher Ellie com um brao e ela sorria.

  • Gosto muito de Ellie. calorosa e amiga de uma forma que sentimos que ela gosta realmente de ns. A minha me diz que foi bom para Jack casar com Ellie porque o ajudou a ficar menos agitado.

    Jack o mais velho e o maior de todos ns e, como o meu pai diz s vezes na brincadeira, o mais bonito de um grupo feioso. certo que ele grande e forte, mas, apesar dos seus olhos azuis e sadias faces coradas, as suas sobrancelhas farfalhudas quase se juntam no meio, pelo que sempre discordei dessa opinio. Algo que nunca pus em causa o fato de ter conseguido atrair uma mulher boa e bonita. Ellie tem o cabelo da cor da palha da melhor qualidade trs dias aps uma boa colheita e uma pele que brilha realmente luz da vela.

    Vou embora amanh de manh anunciei bruscamente. O Mago vem me buscar ao raiar do dia.

    O rosto de Ellie iluminou-se. Quer dizer que ele resolveu aceit-lo? Anu. Vou ficar um ms como experincia. Oh, muito bem, Tom! Fico realmente satisfeita

    por voc disse ela. No acredito! zombou Jack. Voc, apren-

    diz de um Mago! Como pode exercer semelhante ofcio, se no consegue adormecer sem uma vela acesa?

    Ri da piada dele, mas tinha razo. s vezes via coi-sas no escuro e uma vela era a melhor maneira de man-t-las afastadas para poder dormir um pouco.

    Jack veio direto a mim e, com uma gargalhada, prendeu-me a cabea e comeou a arrastar-me em volta da mesa da cozinha. Era a sua idia de brincadeira. Ofereci apenas a resistncia suficiente para satisfaz-lo e passados

  • alguns segundos ele me soltou e deu-me uma palmada nas costas.

    Muito bem, Tom disse ele. Vai fazer uma fortuna com esse ofcio. No entanto, s h um problema...

    Qual ? indaguei. Vai precisar de todos os cntimos que ganhar.

    Sabe porqu? Encolhi os ombros. Porque os nicos amigos que vai ter sero aque-

    les que comprar! Tentei sorrir, mas havia um grande fundo de ver-

    dade nas palavras de Jack. Um Mago trabalhava e vivia sozinho.

    Oh, Jack! No seja cruel! admoestou Ellie. Foi s uma piada replicou Jack, como se no

    compreendesse a razo de tanto desagrado de Ellie. Mas Ellie olhava para mim e no para Jack e vi o

    seu rosto de repente esmorecer. Oh, Tom! lamentou-se. Isto quer dizer

    que no estar aqui quando o beb nascer... Parecia realmente desapontada e fiquei triste por

    no estar em casa para ver a minha nova sobrinha. A mi-nha me dissera que ia ser uma menina e ela nunca se en-ganava nestas coisas.

    Virei fazer uma visita assim que puder pro-meti.

    Ellie fez um esforo para sorrir, e Jack aproxi-mou-se e apoiou o brao nos meus ombros.

    Ter sempre a sua famlia disse. Estare-mos sempre aqui, se precisar de ns.

    Uma hora depois, sentei-me mesa para jantar, sa-bendo que partiria de manh. O meu pai deu graas como

  • fazia todas as noites e todos ns murmuramos Amm exceto a minha me. Limitara-se a olhar para a comida como sempre, esperando educadamente at terminar. Quando a prece acabou, a minha me esboou-me um pequeno sorriso. Foi um sorriso caloroso e especial e no creio que mais algum tivesse percebido. Fez-me sentir melhor.

    O fogo continuava aceso na lareira, enchendo a co-zinha de calor. No centro da nossa grande mesa de ma-deira havia um candelabro de lato, que fora polido at se conseguir ver nele o rosto. Era uma vela cara, feita de cera de abelha, mas a minha me no permitia sebo na cozinha, por causa do cheiro. O meu pai tomava a maior parte das decises sobre a fazenda, mas em algumas coisas ela leva-va a sua por diante.

    Quando atacamos os nossos prates de guisado fumegante, ocorreu-me que o meu pai parecia envelhecido naquela noite envelhecido e cansado e havia uma expresso que se estampava no seu rosto de tempos em tempos, uma pontinha de tristeza. Mas animou-se um pouco quando comeou a trocar impresses com Jack sobre o preo da carne de porco e se era ou no o mo-mento certo para chamar o matador de porcos.

    melhor esperarmos mais um ms ou dois afirmou o meu pai. Com certeza o preo vai subir.

    Jack abanou a cabea e comearam a discutir. Era uma discusso amigvel, daquelas que as famlias tm com freqncia, e poderia se dizer que o meu pai estava gos-tando. No entanto, eu no participei. Tudo aquilo chegara ao fim para mim. Como dissera o meu pai, acabara-se a agricultura para mim.

  • A minha me e Ellie riam baixinho. Tentei escutar o que diziam, mas entretanto Jack estava todo entusias-mado, a sua voz subindo cada vez mais de tom. Quando a minha me olhou para ele, vi que estava saturada do ba-rulho que ele fazia.

    Ignorando os olhares da minha me e continuando a discutir sonoramente, Jack estendeu a mo para o saleiro e, sem querer, derrubou-o, entornando um pequeno cone de sal no tampo da mesa. Logo em seguida, pegou uma pitada e atirou-a por cima do ombro esquerdo. uma ve-lha superstio do Condado. Com este gesto, estaremos afastando o azar adveniente do seu derramamento.

    Jack, a verdade que nem precisa de pr sal ralhou a minha me. Estraga um bom guisado e um insulto cozinheira!

    Desculpe, me justificou-se Jack. Tem ra-zo. Assim est perfeito.

    Ela sorriu, depois indicou-me com um gesto de ca-bea.

    E depois, ningum est dando ateno a Tom. No deve ser tratado assim na sua ltima noite em casa.

    Eu estou bem, me assegurei-lhe. J me satisfaz estar aqui sentado ouvindo.

    A minha me anuiu. Bem, tenho algumas coisas a dizer-te. Depois da

    ceia fique na cozinha para termos uma conversinha. Assim, depois que Jack, Ellie e o meu pai terem ido

    se deitar, sentei-me numa cadeira junto lareira e aguardei pacientemente para ouvir o que a minha me tinha a dizer.

    A minha me no era mulher de grandes espalha-fatos; a princpio no disse muito, alm de explicar o que estava preparando para eu levar: um par de calas de re-

  • serva, trs camisas e dois pares de meias boas que s ti-nham sido cerzidas uma vez cada.

    Olhei para as cinzas da lareira batendo com os ps nas lajes, enquanto a minha me se levantava da cadeira de balano e a posicionava de modo a ficar bem de frente para mim. O seu cabelo preto apresentava alguns fios brancos, mas alm disso, parecia-me praticamente igual a quando eu comeara a dar os primeiros passos, mal lhe chegando aos joelhos. Os seus olhos continuavam bri-lhantes e, exceo da pele plida, parecia vender sade.

    Esta a ltima vez que vamos poder conversar um pouco disse ela. um grande passo sair de casa e iniciar uma vida nova. Por isso, se quiser dizer alguma coisa, se precisar perguntar alguma coisa, agora o mo-mento para faz-lo.

    No me ocorreu uma s pergunta. Na verdade, no conseguia sequer pensar. S de ouvi-la dizer tudo aquilo, senti as lgrimas comearem a atormentar-me os olhos.

    O silncio continuou durante um bom tempo. A-penas se ouvia o rudo dos meus ps nas lajes. Por fim, a minha me soltou um pequeno suspiro.

    O que se passa? perguntou-me. O gato comeu sua lngua?

    Encolhi os ombros. Pare com esse desassossego, Tom, e concen-

    tre-se no que estou dizendo advertiu a minha me. Em primeiro lugar, est ansioso para que chegue o dia de amanh, para comear a aprender o seu novo ofcio?

    No tenho certeza, me disse-lhe, recordan-do a piada de Jack a respeito de ter de comprar os amigos. Ningum quer se aproximar de um Mago. No terei amigos. Estarei sozinho o tempo todo.

  • No ser to mau quanto julga redarguiu a minha me. Ter o seu mestre com quem conversar. Ele ser o seu professor, e sem dvida acabar por se tor-nar seu amigo. E estar ocupado o tempo todo. Ocupado a aprender coisas novas. No ter tempo para se sentir sozinho. No acha toda esta novidade entusiasmante?

    Entusiasmante , mas o ofcio assusta-me. Quero segui-lo, mas no sei se sou capaz. Uma parte de mim quer viajar e conhecer outros lugares, mas ser difcil deixar de viver aqui. Vou sentir saudades de todos. Vou sentir falta de estar em casa.

    No pode ficar aqui disse a minha me. O seu pai est velho demais para trabalhar e no prximo In-verno vai entregar a fazenda a Jack. Ellie ter o beb em breve, sem dvida o primeiro de muitos; acabar por no haver espao para voc aqui. No, o melhor se acostu-mar antes que isso acontea. No pode voltar para casa.

    A voz dela pareceu fria e um pouco sacudida, mas ao ouvi-la falar comigo daquela maneira, senti subitamente uma dor profunda no peito e na garganta, a ponto de mal conseguir respirar.

    S queria ir para a cama, mas ela tinha muito que dizer. Raramente a ouvira usar tantas palavras de uma s vez.

    Tem um trabalho a fazer e vai faz-lo dis-se-me em tom austero. E no s faz-lo; faz-lo bem. Casei com o seu pai porque ele era um stimo filho. E dei-lhe seis filhos para poder ter a voc. Voc sete ve-zes sete e possui o dom. O seu novo mestre ainda forte, mas j no o que era e um dia vai finalmente chegar a sua hora. H quase sessenta anos que percorre as linhas do Condado cumprindo o seu dever. Fazendo o que tem

  • de ser feito. Em breve ser a sua vez. E, se no o fizer, quem o far? Quem olhar pela gente comum? Quem a proteger do mal? Quem tornar as fazendas, aldeias e vilas seguras, para que as mulheres e as crianas possam andar nas ruas e veredas sem receio?

    No soube o que dizer e no consegui olh-la nos olhos. Esforcei-me apenas por reprimir as lgrimas.

    Gosto muito de todos nesta casa prosseguiu ela, a voz agora mais branda mas, em todo o Condado, voc a nica pessoa realmente como eu. E, no entanto, no passa de um menino que ainda tem muito que crescer, mas o stimo filho de um stimo filho. Possui o dom e a fora para fazer o que tem de ser feito. Sei que vai me en-cher de orgulho.

    Ora ainda bem concluiu a minha me, pon-do-se em p que resolvemos isto. Agora v se deitar. Amanh um grande dia e quero que esteja no seu me-lhor.

    Levei um abrao e um sorriso caloroso e esfor-cei-me realmente por me mostrar animado e retribuir o sorriso, mas assim que cheguei ao meu quarto, sentei-me na beira da cama, de olhar vago e a pensar no que a minha me me dissera.

    A minha me muito respeitada na vizinhana. Sa-be mais de plantas e remdios caseiros do que o mdico local, e quando h dificuldade em fazer nascer um beb, a parteira manda sempre cham-la. A minha me perita no que ela chama de partos plvicos. s vezes, um beb tenta nascer com os ps para a frente, mas a minha me sabe vir-lo enquanto ainda est na barriga. H dzias de mu-lheres no Condado que lhe devem a vida.

  • Pelo menos era o que o meu pai estava sempre di-zendo, mas a minha me era modesta e nunca mencionava semelhantes coisas. Limitava-se a fazer o que era preciso e eu sabia que ela esperava o mesmo de mim. Por isso que-ria ench-la de orgulho.

    Mas era mesmo verdade que s se casara com o meu pai e tivera os meus seis irmos para poder me dar luz? No parecia possvel.

    Depois de pensar muito bem em tudo, fui at a ja-nela virada para o norte e sentei-me na velha cadeira de vime durante alguns minutos, olhando l para fora.

    A lua brilhava, banhando tudo com a sua luz pra-teada. Conseguia ver para l do ptio da fazenda, os dois campos de feno e a pastagem norte, e mesmo at o limite da nossa fazenda, que terminava a meio da Colina do Carrasco. Gostava da paisagem. Gostava da Colina do Carrasco ao longe. Gostava que fosse a coisa mais distante que se conseguia avistar.

    Durante anos, fizera isto antes de subir para a ca-ma, todas as noites. Costumava olhar para aquela colina e imaginar o que haveria do outro lado. Na realidade, sabia que eram apenas mais campos e a seguir, trs quilmetros mais adiante, o que era considerado a aldeia local meia dzia de casas, uma pequena igreja e uma escola ainda menor , mas a minha imaginao criava outras coisas. s vezes imaginava penhascos altos com um oceano do outro lado, ou quem sabe uma floresta ou uma grande cidade com torres altas e luzes a cintilar.

    Mas agora, ao contemplar a colina, recordei tam-bm o meu medo. Sim, era bonita, vista de longe, mas no era um local de que eu quisesse me aproximar. A Colina

  • do Carrasco, como j tero adivinhado, no obtivera o seu nome em vo.

    Trs geraes antes, alastra uma guerra por toda a terra e os homens do Condado tinham participado dela. Fora a pior de todas as guerras uma guerra civil amarga em que as famlias haviam ficado divididas e em que, por vezes, irmo chegara a lutar contra irmo.

    No ltimo Inverno da guerra, houvera uma grande batalha cerca de quilmetro e meio a norte, exatamente nos arredores da aldeia. Quando finalmente terminou, o exrcito vitorioso trouxe os prisioneiros at esta colina e enforcou-os nas rvores da vertente setentrional. Enfor-caram igualmente alguns dos seus homens, invocando a-tos de covardia perante o inimigo, mas circulava outra verso daquela histria. Diziam que alguns destes homens tinham se recusado a lutar contra pessoas que considera-vam seus vizinhos.

    Nem mesmo Jack gostava de trabalhar perto da vedao confinante, e os ces no queriam avanar mais que alguns passos na mata. Quanto a mim, em virtude de conseguir sentir coisas que os outros no sentem, no era sequer capaz de trabalhar na pastagem norte. Sabem, que eu os ouvia dali. Ouvia as cordas chiando e os ramos gemendo sob o peso deles. Ouvia os mortos serem es-trangulados e sufocarem do outro lado da colina.

    A minha me dizia que ramos iguais. Bem, ela era sem dvida igual a mim num aspecto: eu sabia que ela tambm via coisas que os outros no conseguiam ver. Num Inverno, eu era muito jovem e todos os meus ir-mos viviam em casa, os rudos na colina eram to fortes noite que os ouvia at do meu quarto. Os meus irmos no davam por nada, mas eu sim, e no conseguia dormir.

  • A minha me vinha ao meu quarto sempre que eu cha-mava, apesar de ter que se levantar ao raiar do dia para efetuar as tarefas domsticas.

    Por fim, disse que ia resolver o assunto e, uma noi-te, subiu sozinha Colina do Carrasco e foi at junto das rvores. Quando regressou, estava tudo calmo e assim ainda se mantinha depois de meses.

    Por isso, havia um aspecto em que divergamos. A minha me era muito mais corajosa do que eu.

  • CAPTULO 2 PELA ESTRADA FORA

    Levantei-me uma hora antes da aurora, mas a minha me j se encontrava na cozinha, a preparar o meu desjejum preferido, toucinho defumado com ovos.

    O meu pai veio para baixo quando eu limpava o prato com a ltima fatia de po. Quando nos despedimos, ele tirou algo do bolso e colocou-o em minhas mos. Era a pequena caixa de mechas que pertencera ao pai dele e, antes disso, ao av. Um dos seus objetos pessoais prefe-ridos.

    Quero que fique com isto, filho disse ele. Pode vir a ser til no seu novo ofcio. E venha nos visitar em breve. S porque vai sair de casa, isso no significa que no possa regressar para uma visita.

    Est na hora de ir, filho observou a minha me, aproximando-se de mim para um ltimo abrao. Ele est ao porto. No o faa esperar.

    ramos uma famlia que no gostava de demasiadas efuses e, como j tnhamos nos despedido, sa sozinho para o ptio.

    O Mago encontrava-se do outro lado do porto: uma silhueta escura recortada na luz cinzenta da aurora. Tinha o capuz sobre a cabea e erguia-se em toda a sua altura, o bordo na mo esquerda. Encaminhei-me para ele, levando a minha pequena trouxa de pertences, sen-tindo-me muito nervoso.

    Para minha surpresa, o Mago abriu o porto e en-trou no ptio.

  • Bem, rapaz disse ele , siga-me! Agora, po-deramos comear pelo caminho que tencionamos tomar.

    Em vez de se dirigir para a estrada, rumou para o norte, direito Colina do Carrasco, e no tardamos a a-travessar a pastagem norte, o meu corao j comeando a bater forte. Quando chegamos vedao confinante, o Mago escalou-a com a agilidade de um homem da metade de sua idade, mas eu fiquei esttico. Assim que apoiei as mos na extremidade superior da vedao, ouvi os sons das rvores a estalar, os seus ramos vergados e curvados sob o peso dos enforcados.

    O que se passa, rapaz? perguntou o Mago, virando-se para me olhar. Se est com medo de algo bem sua porta, me ser de pouca serventia.

    Respirei fundo e passei por cima da vedao. Su-bimos penosamente, a luz da aurora escurecendo medi-da que penetrvamos na sombra das rvores. Quanto mais subamos, mais frio parecia ficar, e no tardou que come-asse a tremer. Era o tipo de frio que nos deixa a pele ar-repiada e faz com que os plos se ericem na nuca. J o sentira antes, quando algo que no pertencia a este mundo se aproximava.

    Assim que chegamos ao alto da colina, pude v-los por baixo de mim. Deviam ser no mnimo uma centena, por vezes dois ou trs pendurados na mesma rvore, ves-tindo uniformes de soldados com cintures de couro lar-gos e botas altas. Tinham as mos atadas atrs das costas e cada um deles se comportava de maneira diferente. Al-guns debatiam-se desesperadamente, pelo que o ramo por cima deles se agitava e sacudia, ao passo que outros ape-nas rodavam lentamente na extremidade da corda, apon-tando primeiro numa direo, depois na outra.

  • Enquanto observava, senti subitamente um vento forte no rosto, um vento to frio e intenso que no podia ser natural. As rvores curvaram-se at o cho e as suas folhas encarquilharam-se e comearam a cair. Numa questo de momentos, todos os ramos ficaram despidos. Quando o vento cessou, o Mago apoiou a mo no meu ombro e guiou-me at o enforcado que estava mais perto. Paramos a poucos passos do mais prximo.

    Olhe para ele disse o Mago. O que v? Um soldado morto respondi, a minha voz

    comeando a tremer. Que idade aparenta? Dezessete anos, no mximo. timo. Muito bem, rapaz. Agora, diga-me, ainda

    sente medo? Um pouco. No gosto de estar to prximo de-

    le. Por qu? No h nada a temer. Nada que possa

    te fazer mal. Pense no que deve ter sido para ele. Concen-tre-se nele e no em si. Como ter se sentido? O que seria a pior coisa?

    Tentei pr-me no lugar do soldado e imaginar co-mo deveria ter sido morrer daquela maneira. A dor e a falta de ar deviam ter sido terrveis. Mas talvez tivesse a-contecido algo ainda pior.

    O fato de saber que ia morrer e que nunca mais poderia ir para casa. Que nunca mais voltaria a ver a fam-lia disse ao Mago.

    Ditas aquelas palavras, invadiu-me uma onda de tristeza. Depois, no exato momento em que isso aconte-ceu, os enforcados comearam a desaparecer lentamente,

  • at ficarmos sozinhos na vertente da colina e as folhas voltarem s rvores.

    Como se sente agora? Ainda com medo? Abanei a cabea. No respondi. Sinto-me apenas triste. Muito bem, rapaz. Est aprendendo. Ns somos

    os stimos filhos de stimos filhos e possumos o dom de ver coisas que os outros no conseguem. Mas, por vezes, esse dom pode ser uma maldio. Se tivermos medo, pode haver coisas que vm alimentar-se desse medo. O medo s torna tudo pior para ns. O segredo concentrar-se naquilo que consegue ver e parar de pensar em si mesmo. Funciona sempre.

    Foi uma viso terrvel, rapaz, mas so apenas imagens fantasmagricas prosseguiu o Mago. No h muito que possamos fazer por elas e com o tempo a-cabaro sumindo. Daqui a cem anos ou mais, no restar nada.

    Queria dizer-lhe que a minha me fizera em tempos algo por eles, mas calei-me. Contradiz-lo teria sido um mau comeo para ambos.

    Agora, se fossem fantasmas, j seria diferente afirmou o Mago. Pode-se falar com os fantasmas e es-clarec-los sobre o que se passa. S o fato de lhes fazer ver que esto mortos um ato de enorme bondade e um passo importante para que se vo embora. Normalmente, um fantasma um esprito desorientado, preso a esta ter-ra, mas sem saber o que aconteceu. Por isso, frequente estarem atormentados. E no s: h outros que esto aqui com uma finalidade concreta e podem ter algo a dizer. Mas uma imagem fantasmagrica no nada mais do que um fragmento de uma alma que alcanou uma situao

  • melhor. Estes eram somente isso, rapaz. Apenas imagens fantasmagricas. Viu as rvores mudarem?

    As folhas caram e era Inverno. Bem, as folhas agora esto de volta. Por conse-

    guinte, estava apenas olhando para algo do passado. Ape-nas uma lembrana das coisas ms que por vezes aconte-cem nesta terra. Por norma, se for corajoso, no conse-guem v-lo e no sentem nada. Uma imagem fantas-magrica apenas como um reflexo num lago que fica para trs quando a pessoa a quem pertence seguiu cami-nho. Compreende o que estou dizendo?

    Acenei com a cabea. Bom, este assunto j est resolvido. De vez em

    quando, iremos lidar com os mortos, para que fique bem acostumado a eles. De qualquer forma, vamos comear. Temos um longo caminho a percorrer.

    Tome, a partir de agora vai levar isto. O Mago entregou-me o seu enorme saco de couro

    e, sem olhar para trs, continuou a subir a colina. Segui-o at o alto, depois desci por entre as rvores em direo estrada, que era uma cicatriz cinzenta distante a serpentear para sul atravs da manta de retalhos verde e castanha dos campos.

    Viajou muito, rapaz? O Mago falou por cima do ombro. Viu grande parte do Condado?

    Respondi-lhe que nunca me afastara mais de dez quilmetros da fazenda do meu pai. O mais longe que vi-ajara fora at o mercado local.

    O Mago murmurou algo entre dentes e abanou a cabea; pude ver que no ficara muito satisfeito com a minha resposta.

  • Bem, as suas viagens comeam hoje dis-se-me. Vamos para sul, em direo a uma aldeia cha-mada Horshaw. Fica apenas a vinte e cinco quilmetros em linha reta e temos de chegar l antes de escurecer.

    Ouvira falar de Horshaw. Era uma aldeia mineira e possua os maiores depsitos de carvo do Condado, re-cebendo a produo de dzias de minas circundantes. Nunca esperara ir l e fiquei curioso em relao ao que o Mago poderia querer de um lugar daqueles.

    Caminhava a bom ritmo, dando grandes passadas sem esforo. No tardei a ter dificuldade em acompa-nh-lo; alm de carregar a minha prpria trouxa de roupas e outros pertences, tinha tambm que levar o saco enorme dele, que parecia ficar mais pesado a cada instante. De-pois, para piorar as coisas, comeou a chover.

    Cerca de uma hora antes do meio-dia, o Mago pa-rou subitamente. Virou-se e olhou-me com dureza. Nesta altura, eu estava cerca de dez passos atrs. Doam-me os ps e j comeara a mancar ligeiramente. A estrada pouco mais era do que uma trilha de terra batida que rapida-mente se transformou em lama. Exatamente quando o alcancei, dei uma topada, escorreguei e quase perdi o equi-lbrio.

    Ele manifestou impacincia. Sente-se tonto, rapaz? perguntou. Abanei a cabea. Queria dar um pouco de descanso

    ao brao, mas no me pareceu correto pousar o saco dele na lama.

    Isso bom comentou o Mago com um li-geiro sorriso, a chuva a escorrer da orla do seu capuz para a barba. Nunca confie num homem que se desequili-bra. Eis algo que convm mesmo no esquecer.

  • No estou tonto protestei. No? indagou o Mago, arqueando as so-

    brancelhas espessas. Nesse caso, devem ser suas botas. No sero muito teis nesta ocupao.

    As minhas botas eram iguais s do meu pai e s de Jack, suficientemente fortes e adequadas para a lama e o esterco do ptio da fazenda, mas daquelas a que levva-mos tempo a acostumar-nos. Um novo par custava-nos por norma quinze dias de bolhas, antes dos ps se adap-tarem.

    Olhei para as do Mago. Eram feitas de couro forte, de boa qualidade, e possuam solas muito espessas. De-viam ter custado uma fortuna, mas calculo que, para al-gum que caminhava muito, valiam cada cntimo. Flexio-nam-se quando ele andava e percebi que haviam sido confortveis desde o primeiro momento em que as calou.

    Um bom par de botas importante neste ofcio anunciou o Mago. No dependemos nem do ho-mem nem dos animais para nos levarem aonde queremos ir. Se contar com as suas duas pernas boas, elas no te de-cepcionaro. Por conseguinte, se eu resolver aceit-lo, ar-ranjarei um par de botas iguais s minhas. At l, ter que se arrumar o melhor que puder com essas.

    Ao meio-dia, paramos para uma breve pausa, abri-gando-nos da chuva num alpendre para gado abandonado. O Mago tirou um pedao de pano do bolso e desembru-lhou-o, revelando um grande naco de queijo amarelo.

    Partiu um pedao e entregou-me. J vira pior e es-tava com fome, por isso engoli-o vorazmente. O Mago comeu apenas um pequeno pedao antes de embrulhar o resto e enfi-lo de novo no bolso.

  • Uma vez abrigado da chuva, empurrou o capuz pa-ra trs, pelo que tive finalmente a oportunidade de v-lo bem. Alm da barba comprida e dos olhos de carrasco, o seu trao fisionmico mais perceptvel era o nariz, sinistro e pronunciado, com uma curvatura que fazia lembrar o bico de uma ave. A boca, quando fechada, ficava quase escondida pelo bigode e a barba. A primeira vista, julga-ra-a grisalha, mas, quando olhei melhor, tentando ser o mais discreto possvel para que ele no se desse conta, reparei que parecia irradiar dela a maior parte das cores do arco-ris. Havia tonalidades de vermelho, negro, castanho e, obviamente, muito cinzento, mas, como vim a perceber mais tarde, tudo dependia da luz.

    Queixo pequeno, carter fraco, costumava dizer o meu pai, e ele acreditava tambm que alguns homens usa-vam barba apenas para ocultar esse fato. No entanto, ao olhar para o Mago, podia ver-se, apesar da barba, que ti-nha um queixo comprido e, quando abria a boca, revelava uns dentes amarelos que eram muito aguados e mais a-dequados para devorar carne vermelha do que mordiscar queijo.

    Com um arrepio, percebi subitamente de que ele me fazia lembrar um lobo. E no era apenas a forma co-mo olhava. Ele era uma espcie de predador porque per-seguia o escuro; vivia unicamente de mordiscadas de queijo que o deixariam sempre esfomeado e o tornariam ruim. Se conclusse o meu aprendizado, acabaria igualzi-nho a ele.

    Ainda tem fome, rapaz? inquiriu, os seus o-lhos verdes cravando-se intensamente nos meus at co-mear a sentir-me um pouco tonto.

  • Estava encharcado at os ossos e doam-me os ps, mas tinha sobretudo fome. Ento anu, pensando que ele fosse me oferecer um pouco mais, mas limitou-se a abanar a cabea e a murmurar algo para si mesmo. Depois, e mais uma vez, olhou-me intensamente.

    A fome algo a que vai ter que se acostumar disse. No comemos muito quando estamos traba-lhando e, se for um trabalho muito difcil, no comemos nada seno depois. O jejum a coisa mais segura porque nos torna menos vulnerveis ao escuro. Deixa-nos mais fortes. Por isso pode comear a treinar desde j, pois quando chegarmos a Horshaw vou submet-lo a um pe-queno teste. Vai passar uma noite numa casa assombrada. E vai faz-lo sozinho. Assim, poderei avaliar realmente a sua fibra!

  • CAPTULO 3 O NMERO 13 DE WATERY LANE Chegamos a Horshaw quando o sino da igreja comeou a se ouvir ao longe. Eram sete horas e comeava a escure-cer. Uma chuva forte batia-nos diretamente no rosto, mas ainda havia luz suficiente para eu poder ver que este no era um lugar onde quisesse viver e ao qual at uma curta visita seria de evitar.

    Horshaw era uma mancha negra nos campos ver-des, um lugarzinho lgubre e feio com cerca de duas d-zias de filas de casas humildes de costas umas para as ou-tras, amontoando-se principalmente na vertente sul de uma colina mida e inspita. Toda a zona estava crivada de minas e Horshaw ficava no meio delas. Bem acima da aldeia via-se um enorme monte de escrias que assinalava a entrada de mais uma mina. Por detrs do monte de es-crias ficavam os depsitos de carvo, que armazenavam combustvel suficiente para aquecer as maiores cidades do Condado, mesmo durante os Invernos mais longos.

    No tardamos a percorrer as estreitas ruas empe-dradas, mantendo-nos junto das paredes enegrecidas a fim de evitarmos as carroas carregadas de bocados de carvo preto, molhado e brilhante da chuva. Os enormes cavalos de tiro que as puxavam esforavam-se sob as suas cargas, os cascos escorregando no empedrado reluzente.

    Havia poucas pessoas no exterior, mas as cortinas de renda agitavam-se nossa passagem, e at nos cruza-mos com um grupo de mineiros carrancudos, que subia penosamente a colina para iniciar o turno da noite. Os

  • homens iam falando em voz alta, mas calaram-se subita-mente e colocaram-se em fila nica a fim de passarem por ns, mantendo-se sempre do outro lado da rua. Um deles chegou mesmo a se benzer.

    V se habituando, rapaz resmungou o Mago. Somos necessrios, mas raramente bem-vindos, e al-guns lugares so piores do que outros.

    Por fim, dobramos uma esquina para a rua mais in-ferior e com pior aspecto de todas. Ningum vivia ali via-se logo. Em primeiro lugar, algumas das janelas esta-vam quebradas e outras vedadas e, apesar de ser quase noite, no se viam luzes acesas. Num extremo da rua fica-va um armazm de comrcio de cereais abandonado, as duas enormes portas de madeira escancaradas e pendendo das dobradias enferrujadas.

    O Mago parou junto da ltima casa. Era a que fi-cava na esquina mais prxima do armazm, a nica casa na rua que tinha nmero. Esse nmero fora feito em me-tal e pregado na porta. Era o treze, o pior e mais nefasto de todos os nmeros, e havia uma tabuleta com o nome da rua no alto da parede, pendendo de um nico rebite enfer-rujado e apontando quase verticalmente para o empedra-do. Nela, lia-se, WATERY LANE.

    Esta casa tinha vidraas, mas as cortinas de renda estavam amarelas e cheias de teias de aranha. Devia ser a casa assombrada de que o meu mestre me falara.

    O Mago tirou uma chave do bolso, abriu a porta e seguiu na frente at a escurido l dentro. A princpio, at fiquei contente por me abrigar da chuva, mas quando ele acendeu uma vela e a colocou no cho mais ou menos no meio da pequena diviso da frente, soube que ficaria mais confortvel num estbulo abandonado. No se via uma

  • nica pea de mobilirio, apenas o cho lajeado despido e um monte de palha suja debaixo da janela. A diviso tam-bm estava mida, o ar muito desagradvel e frio, e podia ver o vapor da minha respirao luz tremulante da vela.

    Se aquilo que via j era suficientemente mau, o que ele disse foi bem pior.

    Bom, rapaz, tenho uns assuntos a tratar, por isso vou andando, mas voltarei mais tarde. Sabe o que tem a fazer?

    No, senhor respondi, observando o tremu-lar da vela, receoso de que pudesse apagar-se a qualquer instante.

    Bem, o que te disse antes. No estava ouvin-do? Tem que ficar acordado, e no sonhando. De qual-quer forma, no muito difcil explicou, coando a barba como se algo andasse a rastejar nela. S tem que passar a noite aqui sozinho. Trago todos os meus novos aprendizes a esta casa velha na sua primeira noite, para avaliar a fibra deles. Oh, mas h uma coisa que ainda no te disse. meia-noite, quero que desa cave1 e enfrente o que quer que se esconde l. Se conseguir agentar, estar no bom caminho para ser aceito em carter permanente. H alguma pergunta que queira fazer?

    Perguntas no me faltavam, mas estava assustado demais para ouvir as respostas. Por isso abanei a cabea e tentei evitar que meu lbio superior tremesse.

    Como saber que meia-noite? inquiriu ele. Encolhi os ombros. Eu me desvencilhava bastante

    bem adivinhando as horas pela posio do sol ou das es-trelas e, se por acaso acordasse no meio da noite, sabia

    1 Poro, adega ou diviso subterrnea

  • quase sempre que horas eram, mas aqui no tinha tanta certeza. Em alguns lugares o tempo parece passar mais lentamente e tinha a sensao de que esta casa velha iria ser um deles.

    De repente, lembrei-me do relgio da igreja. Deram h pouco as sete afirmei. Ouvirei

    as doze badaladas. Bem, pelo menos agora est acordado disse o

    Mago com um leve sorriso. Quando o relgio der a meia-noite, pegue o toco da vela e sirva-se dele para en-contrar o caminho para a cave. At l, durma, se for ca-paz. Agora, oua com ateno h trs coisas im-portantes para no esquecer. No abra a porta da rua para ningum, por mais insistentemente que bata, e no se a-trase para descer cave.

    Deu um passo em direo porta da rua. Qual a terceira coisa? perguntei em alto e

    bom som no ltimo instante. A vela, rapaz. Faa o que fizer, no deixe que ela

    se apague... A seguir, foi-se, fechando a porta atrs de si, e fi-

    quei completamente sozinho. Cautelosamente, peguei a vela, fui at porta da cozinha e espreitei l para dentro. Estava completamente vazia, com exceo de uma pia de pedra. A porta dos fundos encontrava-se fechada, mas o vento soprava ainda por baixo dela. Havia duas outras portas direita. Uma estava aberta e deixava ver as esca-das de madeira que conduziam aos quartos no piso de ci-ma. A outra, a mais prxima de mim, estava fechada.

    Algo me deixou inquieto a respeito daquela porta fechada, mas decidi ir dar uma espreitadela rpida. Cheio de nervosismo, agarrei o puxador e dei um puxo na por-

  • ta. No se deslocou e por um momento tive a arrepiante sensao de que algum a mantinha fechada do outro la-do. Quando lhe dei um puxo ainda mais forte, abriu-se bruscamente, fazendo-me perder o equilbrio. Recuei al-guns passos e quase larguei a vela.

    Uma escada de pedra conduzia escurido; estava negra do p de carvo. Curvava para a esquerda, pelo que no pude ver diretamente a cave, mas subiu por ela uma corrente de ar frio, fazendo a chama da vela danar e tre-mular. Fechei rapidamente a porta e voltei para a diviso da frente, fechando igualmente a porta da cozinha.

    Pousei cuidadosamente a vela no canto mais dis-tante da porta e da janela. Assim que me certifiquei de que no tombaria, procurei um lugar no cho onde pudesse dormir. No havia muito por onde escolher. Certamente no ia dormir na palha mida, por isso instalei-me no meio da diviso.

    As lajes eram duras e frias mas fechei os olhos. Mal adormecesse, me afastaria daquela casa velha e lgubre e estava confiante de que acordaria bem antes da mei-a-noite.

    Normalmente, no tenho dificuldade em adorme-cer, mas ali era diferente. No parava de tremer de frio e o vento comeava a sacudir as vidraas. Havia tambm sus-surros e rudos que vinham das paredes. So apenas ratos, disse para mim mesmo diversas vezes. Estvamos sem dvida acostumados a eles, na fazenda. Mas depois, re-pentinamente, chegou um novo som perturbador l de baixo, das profundezas da cave escura.

    A princpio foi fraco, levando-me a apurar o ouvi-do, mas depois cresceu gradualmente at deixar de ter d-vidas a respeito do que conseguia ouvir. Acontecia algo l

  • em baixo, na cave, que no deveria estar acontecendo. Algum cavava ritmicamente, revolvendo terra pesada com uma p pontiaguda de metal. Primeiro ouviu-se o raspar da extremidade de metal numa superfcie pedrego-sa, seguido de um som suave de esmagar e sugar na altura em que a p se cravava fundo no barro pesado e o liber-tava da terra.

    Continuou por vrios minutos at o barulho parar to subitamente quanto comeara. Reinava o silncio. At os ratos pararam com os seus rudos. Era como se a casa e tudo nela sustivesse a respirao. Sei que era o que eu es-tava fazendo.

    O silncio terminou com uma pancada surda res-soante. Depois toda uma srie de pancadas, bem ritmadas. Pancadas que aumentavam de intensidade. Mais sonoras ainda. E mais prximas tambm...

    Algum subia as escadas, vindo da cave. Peguei rapidamente na vela e encolhi-me no canto

    mais distante. Pum, pum, o som de botas pesadas cada vez mais prximo. Quem poderia ter estado a cavar l em baixo, no escuro? Quem poderia vir neste momento su-bindo as escadas?

    Mas talvez no devesse perguntar quem subia as es-cadas. Seria talvez mais correto perguntar o qu...

    Ouvi a porta da cave abrir-se e o som de botas na cozinha. Encolhi-me todo ao canto, tentando tornar-me o menor possvel, espera de que a porta da cozinha se a-brisse.

    E abriu-se, muito devagarinho, com enorme chia-deira. Entrou algo na sala. Senti ento o frio. Verdadeiro frio. O tipo de frio que me dizia que estava prximo de

  • mim algo que no pertencia a esta terra. Era como o frio na Colina do Carrasco, s que muito, muito pior.

    Levantei a vela, a sua chama projetando sombras misteriosas que danaram pelas paredes acima, at o teto.

    Quem est a? perguntei. Quem est a? A minha voz tremia ainda mais do que a mo que se-gurava a vela.

    No obtive resposta. At o vento l fora se silenci-ara.

    Quem est a? tornei a perguntar. Novamente nenhuma resposta, mas botas invisveis

    rasparam nas lajes ao avanarem na minha direo. Esta-vam cada vez mais prximas e conseguia ouvir agora uma respirao. Algo grande respirava com dificuldade. Parecia um enorme cavalo de tiro que acabara de puxar uma carga pesada por uma colina ngreme.

    Naquele exato momento, os passos se afastaram de mim e estacaram perto da janela. Sustive a respirao e a coisa junto janela pareceu respirar por ambos, inalando grandes golfadas para os pulmes como se nunca conse-guisse ar em quantidade suficiente.

    Exatamente quando j no conseguia mais agen-tar, aquilo soltou um grande suspiro que pareceu cansado e triste ao mesmo tempo, e as botas invisveis rasparam mais uma vez nas lajes, passos pesados que se afastavam da janela, voltando para a porta. Quando comearam a descer ruidosamente as escadas da cave, pude voltar fi-nalmente a respirar.

    O meu corao comeou a desacelerar, as minhas mos pararam de tremer e me acalmei gradualmente. Ti-nha que me recompor. Ficara assustado, mas se aquilo era o pior que ia acontecer naquela noite, conseguira ultra-

  • pass-lo, passara no meu primeiro teste. Se ia ser aprendiz do Mago, ento teria que me acostumar a lugares como esta casa assombrada. Ossos do ofcio.

    Depois de mais ou menos cinco minutos, comecei a me sentir melhor. Pensei at em tentar dormir mais um pouco, mas, como costuma dizer o meu pai, Os maus nunca tm descanso. Bem, no sei que mal fizera, mas outro novo som sbito veio me perturbar.

    A princpio foi tnue e distante algum batendo em uma porta. Seguiu-se uma pausa, depois voltou a ou-vir-se. Trs pancadas distintas, mas um pouco mais pr-ximas, desta vez. Outra pausa e mais trs pancadas.

    No demorei muito a perceber o que se passava. Algum batia com fora a cada porta da rua, aproximan-do-se cada vez mais do nmero treze. Quando chegasse finalmente casa assombrada, as trs pancadas na porta da rua seriam suficientemente sonoras para acordar os mortos. Iria a coisa na cave subir as escadas para respon-der ao chamamento? Senti-me aprisionado entre ambos: algo l fora querendo entrar; algo l em baixo que queria libertar-se.

    E depois, repentinamente, ficou tudo bem. Uma voz chamou-me do outro lado da porta da rua, uma voz que reconheci.

    Tom! Tom! Abra a porta! Deixe-me entrar! Era a minha me. Fiquei to contente de ouvi-la

    que corri para a porta da rua sem pensar. Chovia l fora e ela estava se molhando.

    Depressa, Tom, depressa! gritava a minha me. No me deixe esperando.

  • J levantava a tranca para abri-la, quando me lem-brei do aviso do Mago: No abra a porta da rua a ningum, por mais insistentemente que bata...

    Mas como eu poderia deixar minha me ali no es-curo?

    Vamos, Tom! Deixe-me entrar gritou de novo a voz.

    Lembrando-me do que o Mago dissera, respirei fundo e tentei pensar. O senso comum dizia-me que no podia ser ela. Por que motivo me seguira at ali? Como podia ter sabido para onde amos? O meu pai ou Jack t-la-iam acompanhado.

    No, era qualquer outra coisa espera, l fora. Algo sem mos que mesmo assim conseguia bater porta. Algo sem ps que conseguia erguer-se no passeio.

    As pancadas fizeram-se ouvir com maior intensi-dade.

    Por favor, deixe-me entrar, Tom suplicava a voz. Como pode ser to insensvel e cruel? Estou ge-lada, molhada e cansada.

    Por fim comeou a chorar e soube ento com cer-teza que no podia ser a minha me. A minha me era forte. A minha me nunca chorava, por pior que fosse a situao.

    Decorridos alguns momentos, os sons diminuram e depois cessaram por completo. Deitei-me no cho e procurei dormir novamente. Virava-me constantemente, primeiro para um lado e depois para o outro, mas, por mais que tentasse, no conseguia adormecer. O vento comeou a abanar as vidraas cada vez com mais fora, e o relgio da igreja foi dando as horas e as meias horas, aproximando-me cada vez mais da meia-noite.

  • Quanto mais perto estava a hora de eu descer as escadas da cave, mais nervoso ia ficando. Queria passar no teste do Mago, mas, oh, como ansiava estar de novo em casa, na minha rica caminha segura e quente!

    E depois, assim que o relgio deu uma nica bada-lada onze e meia recomearam as escavadelas...

    Mais uma vez ouvi o lento pum, pum de botas pesa-das a subirem as escadas da cave; mais uma vez a porta se abriu e as botas invisveis vieram at diviso da frente. Nesta altura, a nica parte de mim que se mexia era o meu corao, que batia com tanta fora que parecia prestes a partir-me as costelas. Mas desta vez as botas no se enca-minharam para a janela. Continuaram a avanar Pum! Pum! Pum! , vindo na minha direo.

    Senti-me levantado bruscamente pelos cabelos e a nuca, tal como uma gata transporta os gatinhos. Depois, um brao invisvel enrolou-se volta do meu corpo, prendendo-me os braos aos lados. Tentei encher os pulmes de ar, mas era impossvel. O meu peito estava a ser esmagado.

    Era transportado na direo da porta da cave. No conseguia ver o que me levava mas ouvia a sua respirao asmtica e debati-me, em pnico, porque de certa forma sabia exatamente o que ia acontecer. Sabia por que motivo se ouvira cavar l em baixo. Levavam-me pelas escadas da cave para a escurido e sabia que uma sepultura me aguar-dava ali. Ia ser enterrado vivo.

    Estava aterrado e tentei gritar, mas era pior do que ser apenas agarrado com toda a fora. Ficara paralisado e no conseguia mover um msculo.

    De repente, senti-me cair...

  • Encontrei-me de quatro, a olhar pela porta aberta que dava para a cave, a escassos centmetros do degrau de cima. Em pnico, o meu corao to acelerado que nem conseguia contar os batimentos, pus-me em p e fechei com fora a porta da cave. Ainda a tremer, voltei para a diviso da frente, constatando que desrespeitara uma das trs regras do Mago.

    A vela apagara-se... Quando me encaminhava para a janela, um claro

    sbito de luz iluminou a diviso, seguido de um forte ri-bombar de trovo mesmo por cima do telhado. A chuva fustigava a casa, sacudindo as janelas e fazendo a porta da rua chiar e gemer como se algo tentasse entrar.

    Espreitei l para fora durante alguns minutos, mui-to infeliz, vendo os relmpagos. Estava uma noite pssi-ma, mas, apesar de os relmpagos me apavorarem, teria dado tudo para estar l fora, a andar nas ruas; tudo para evitar descer quela cave.

    Ao longe, o relgio da igreja comeou a dar horas. Contei as badaladas e foram exatamente doze. Agora tinha de enfrentar o que estava na cave.

    Foi ento, quando um relmpago voltou a iluminar a sala, que reparei nas grandes pegadas no cho. A princ-pio julguei que tivessem sido deixadas pelo Mago, mas eram negras, como se as botas enormes que as tinham feito estivessem cobertas de p de carvo. Vinham da di-reo da porta da cozinha, iam quase at janela e davam meia volta, regressando pelo caminho que haviam trazido. Voltavam para a cave. Para o escuro aonde eu tinha de ir!

    Obrigando-me a avanar, tentei encontrar no cho o toco de vela. Depois, procurei s apalpadelas a minha

  • pequena trouxa com as roupas. Embrulhada no meio dela estava a caixa de mechas que o meu pai me dera.

    Remexendo s escuras, despejei a pequena pilha de mechas no cho e servi-me da pedra e do metal para fazer saltar fascas. Ateei aquela pequena pilha de madeira at irromperem chamas, apenas com a altura suficiente para acender a vela. Mal o meu pai sabia que o seu presente se iria revelar logo to til.

    Quando abri a porta da cave, houve outro relm-pago e um estrondo sbito de trovo que sacudiu toda a casa e ribombou nas escadas minha frente. Desci cave, a minha mo a tremer e o toco de vela a danar e a proje-tar estranhas sombras na parede.

    No queria ir l abaixo, mas, se no passasse no teste do Mago, provavelmente seria recambiado para casa assim que fosse dia. Imaginei a minha vergonha ao ter de contar me o que sucedera.

    Oito degraus e contornava j a esquina, ficando com a cave vista. No era uma cave grande, mas tinha sombras escuras nos cantos que a luz da vela no conse-guia alcanar plenamente e havia teias de aranha penden-do do teto em imundas cortinas frgeis. Viam-se peque-nos pedaos de carvo e grandes caixotes espalhados pelo cho de terra e havia uma velha mesa de madeira ao lado de um barril enorme de cerveja. Contornei o barril de cerveja e percebi algo no canto mais distante. Algo mesmo por detrs de alguns caixotes que me apavorou tanto que ia deixando cair a vela. Era uma forma escura, quase se-melhante a um monte de farrapos, e emitia um rudo. Um leve som rtmico, como a respirao.

    Dei um passo na direo dos farrapos; depois ou-tro, servindo-me de toda a minha fora de vontade para

  • obrigar as minhas pernas a andarem. Foi ento, quando me aproximei tanto que quase lhe podia ter tocado, que a coisa cresceu de repente. De uma sombra no cho, empi-nou-se diante de mim at ficar trs ou quatro vezes maior.

    Quase corri dali para fora. Era alta, escura, encapu-zada e aterradora, com olhos verdes brilhantes.

    S ento reparei no bordo que segurava na mo esquerda.

    O que o deteve? perguntou o Mago. Vem quase com cinco minutos de atraso!

  • CAPTULO 4 A CARTA

    Vivi nesta casa quando criana disse o Mago , e vi coisas que te deixariam todo arrepiado, mas eu era o nico que as conseguia ver e o meu pai costumava ba-ter-me por dizer mentiras. Era usual sair uma coisa da ca-ve. Deve ter acontecido o mesmo com voc. Acertei?

    Acenei com a cabea. Bem, no fique preocupado, rapaz. E s mais

    uma imagem fantasmagrica, um fragmento de uma alma perturbada que alcanou uma situao melhor. Se ele no deixasse para trs a sua pior parte, ficaria preso aqui para sempre.

    O que foi que ele fez? indaguei, a minha voz ecoando ligeiramente no teto.

    O Mago abanou a cabea pesarosamente. Tra-tava-se de um mineiro cujos pulmes estavam to doentes que teve de deixar de trabalhar. Passava os dias e as noites a tossir e com falta de ar, e a sua pobre esposa que ga-nhava para o sustento de ambos. Trabalhava numa pada-ria, mas, para mal dos dois, ela era uma mulher muito bo-nita. Poucas so as mulheres em quem se pode confiar e as bonitas so as piores de todas.

    Para complicar, ele era um homem ciumento e a doena tornou-o mais amargo. Uma noite, ela atrasou-se muito no regresso para casa, do trabalho, e ele ia constan-temente janela, andando de um lado para o outro, fi-cando cada vez mais furioso por pensar que ela estava com outro homem.

  • Quando a mulher finalmente chegou, ele estava numa fria tal que lhe rachou a cabea com um pedao grande de carvo. Depois deixou-a ali, nas lajes, moribun-da, e desceu cave para abrir uma sepultura. Ela ainda estava viva quando ele voltou, mas no conseguia se me-xer, nem sequer gritar. E o terror que se apodera de ns, pois foi exatamente assim que ela se sentiu quando ele lhe pegou e a levou para a escurido da cave. Ela ouvira-o cavar. Sabia o que ele ia fazer.

    Mais tarde, naquela noite, ele suicidou-se. uma histria triste, mas, apesar de agora repousarem em paz, a imagem fantasmagrica dele permanece aqui, assim como as ltimas lembranas dela, ambas suficientemente fortes para atormentarem pessoas como ns. Vemos coisas que os outros no conseguem ver, o que simultaneamente uma bno e uma maldio. Porm, algo muito til, no nosso ofcio.

    Estremeci. Sentia pena da pobre esposa que fora assassinada e sentia pena do mineiro que a matara. Sentia at pena do Mago. Imagine, ter de passar a infncia numa casa como esta!

    Olhei para a vela, que colocara no meio da mesa. Estava quase no fim e a chama iniciava a sua ltima dana tremulante, mas o Mago no deu mostras de querer voltar l para cima. No gostei das sombras no rosto dele. Pare-ciam ir mudando gradualmente, como se lhe estivesse a nascer um focinho de porco ou outra coisa qualquer.

    Sabe como venci o meu medo? perguntou. No, senhor. Uma noite, estava to aterrado que gritei antes

    de conseguir me conter. Acordei todo mundo e, num a-cesso de fria, o meu pai levantou-me pelo colarinho e me

  • trouxe pelas escadas abaixo at esta cave. Depois, foi bus-car um martelo e cravou pregos na porta, fechando-me aqui dentro.

    Eu no era muito crescido. Provavelmente, teria sete anos, no mximo. Subi as escadas e, gritando at re-bentar, raspei e bati na porta. Mas o meu pai era um ho-mem insensvel e deixou-me completamente sozinho no escuro e tive de ficar aqui horas, at muito depois da au-rora. Passados instantes, acalmei e, sabe o que fiz ento?

    Abanei a cabea, evitando olh-lo no rosto. Os seus olhos brilhavam com muita intensidade e pareceu-me mais do que nunca um lobo.

    Desci as escadas e sentei-me aqui nesta cave, s escuras. Depois respirei fundo trs vezes e enfrentei o meu medo. Enfrentei a prpria escurido, que a coisa mais aterradora de todas, especialmente para pessoas co-mo ns, porque h coisas que vm ter conosco no escuro.

    Procuram-nos com murmrios e assumem formas que s os nossos olhos conseguem ver. Mas sa-me bem e quando deixei esta cave, o pior passara.

    Naquele momento a vela derreteu por completo e depois apagou-se, mergulhando-nos na mais absoluta es-curido.

    Agora que , rapaz disse o Mago. S es-tamos voc, eu e o escuro. Consegue agentar? Est pre-parado para ser meu aprendiz?

    A voz dele parecia diferente, mais cava e estranha. Imaginei-o a caminhar nas quatro patas, plo de lobo a cobrir-lhe o rosto, os dentes a aumentarem de tamanho. Eu tremia e apenas consegui falar depois de respirar fundo pela terceira vez. S ento lhe dei a resposta. Era o que o

  • meu pai dizia sempre que tinha de fazer algo desagradvel ou difcil.

    Algum tem de o fazer retorqui. Portanto, posso ser eu.

    O Mago deve ter achado piada, porque a sua gar-galhada encheu toda a cave antes de ressoar pelas escadas ao encontro do prximo trovo, que vinha a descer.

    H quase treze anos afirmou o Mago , en-viaram-me uma carta lacrada. Era breve e concisa e estava escrita em grego. Foi a sua me que a mandou. Sabe o que dizia?

    No respondi tranqilamente, sentindo curi-osidade pelo que vinha a seguir.

    Acabei de dar luz um rapaz, escreveu ela, e o stimo filho de um stimo filho. Chama-se Thomas J. Ward e a minha ddiva ao Condado. Quando ele tiver idade suficiente, mand-lo-emos chamar. Prepare-o bem. Ser o melhor aprendiz que alguma vez teve, e tambm o seu ltimo.

    Ns no usamos magia, rapaz continuou o Mago, a sua voz pouco mais do que um murmrio na es-curido. As principais ferramentas do nosso ofcio so o bom senso, a coragem e proceder a registros rigorosos, para que possamos aprender com o passado. Acima de tudo, no acreditamos em profecias. No acreditamos que o futuro est determinado. Por isso, se o que a sua me escreveu se vier a concretizar, ento porque ns fizemos com que isso se concretizasse. Compreende?

    Havia um tom de raiva na voz dele mas sabia que no me era dirigida e, por isso, anu na escurido.

    Quanto a ser a ddiva da sua me ao Condado, cada um dos meus aprendizes era o stimo filho de um

  • stimo filho. Por isso no comece a julgar-se especial. Tem muito estudo e trabalho rduo pela frente.

    A famlia pode ser um estorvo prosseguiu o Mago aps uma pausa, a sua voz mais suave, j sem a rai-va. S me restam agora dois irmos. Um serralheiro e damo-nos bem, mas o outro no fala comigo h mais de quarenta anos, apesar de ainda viver em Horshaw.

    Quando abandonamos a casa, a tempestade dissi-para-se e havia luar. No momento em que o Mago fechou a porta da rua, reparei pela primeira vez no que fora ta-lhado na madeira.

    O Mago indicou-o com a cabea. Uso smbolos como este para avisar outros com

    capacidade para os lerem ou por vezes apenas para es-timular a minha prpria memria. Reconhecer a letra grega gama2. Tanto pode indicar um fantasma como uma imagem fantasmagrica. A cruz em baixo, direita, o numeral romano para dez, que o grau mais baixo de to-dos. Acima de seis apenas uma imagem fantasmagrica. No existe nada naquela casa que te possa fazer mal, des-

    2 Como os termos constantes do original, ghost e ghast comeam por g, o autor recorreu letra grega correspondente, gama. Entendeu-se por bem conservar o carter original. ( NT)

  • de que seja corajoso. Lembre-se, o escuro alimenta-se do medo. Seja corajoso e no h muito que uma imagem fantasmagrica possa fazer.

    Se ao menos eu o tivesse sabido desde o incio! Anime-se, rapaz disse o Mago. A sua cara

    chega quase s botas! Bem, talvez isto te alegre. Tirou do bolso um bocado de queijo amarelo, partiu um pe-queno naco e entregou-me. Mastigue-o advertiu , mas no o engula de imediato.

    Segui-o pela rua empedrada. O ar estava mido, mas pelo menos no chovia e a oeste as nuvens pareciam l de carneiro e comeavam a rasgar-se e a separar-se em faixas irregulares.

    Deixamos a aldeia e continuamos para sul. Mesmo no seu limite, quando a rua empedrada se transformava numa viela lamacenta, havia uma pequena igreja. Parecia abandonada: faltavam telhas de lousa no telhado e a tinta desprendia-se da porra principal. Quase no tnhamos a-vistado ningum desde que saramos da casa, mas estava ali um homem de p, porta. Tinha cabelo branco, escor-rido, gorduroso e desgrenhado.

    As roupas escuras indicavam tratar-se de um padre, mas, quando nos aproximamos dele, o que realmente despertou a minha ateno foi a expresso no seu rosto. Olhava-nos ameaadoramente, o semblante todo distor-cido. E depois, de forma dramtica, fez um enorme sinal da cruz, chegando mesmo a pr-se na ponta dos ps ao come-lo, estendendo o mais que podia o indicador da mo direita para o cu. J vira antes padres fazer o sinal da cruz, mas nunca com um gesto to exagerado, to cheio de raiva. Uma raiva que parecia ser-nos dirigida.

  • Calculei que tivesse alguma razo de queixa do Mago, ou talvez do trabalho que ele fazia. Sabia que o of-cio deixava a maior parte das pessoas nervosa, mas nunca vira semelhante reao.

    O que tem ele? inquiri, depois de o deixar-mos para trs e estarmos a uma distncia a que no sera-mos ouvidos.

    Padres! grunhiu o Mago, a raiva ntida na sua voz. Sabem tudo mas no vem nada! E aquele pior do que a maioria! o meu outro irmo.

    Teria gostado de saber mais coisas, mas por uma questo de bom senso, no continuei a question-lo. Pare-cia haver muito que saber sobre o Mago e o seu passado, mas parecia tambm que eram coisas que ele s me conta-ria quando se sentisse preparado.

    Assim, continuei a segui-lo para sul, carregando o seu pesado saco e pensando no que a minha me escreve-ra na carta. Nunca fora pessoa de se gabar ou de fazer a-firmaes precipitadas. A minha me s dizia o que tinha de dizer, por isso havia uma inteno em cada palavra sua. Normalmente, ela limitava-se a levar a vida a diante e a agir conforme as necessidades. O Mago dissera-me que no havia muito que se pudesse fazer pelas imagens fan-tasmagricas, mas uma vez a minha me silenciara as da Colina do Carrasco.

    Ser o stimo filho de um stimo filho no era nada por a alm, neste tipo de atividade bastava to-somente ser aceito como aprendiz do Mago. Mas eu sabia que havia algo mais que me tornava diferente.

    Eu tambm era filho da minha me.

  • CAPTULO 5 DEMNIOS E BRUXAS

    Dirigamo-nos para aquilo que o Mago chamava a sua Casa de Vero.

    Enquanto caminhvamos, as ltimas nuvens mari-nais dissiparam-se e percebi subitamente que o sol estava diferente. Mesmo no Condado, por vezes o sol brilha no Inverno, o que bom porque normalmente isso significa que no vai chover; mas h uma altura em cada novo ano em que percebemos pela primeira vez o seu calor. como o regresso de um velho amigo.

    O Mago devia estar pensando quase exatamente o mesmo porque de repente estacou, olhou-me de lado e brindou-me com um dos seus raros sorrisos.

    Este o primeiro dia de Primavera, rapaz disse , por isso vamos para Chipenden.

    Pareceu-me uma afirmao um tanto estranha. Ele ia sempre para Chipenden no primeiro dia de Primavera, e, se sim, porqu? Resolvi perguntar-lhe.

    Instalaes de Vero. Passamos o Inverno beira de Anglezarke Moor e desfrutamos do Vero em Chipenden.

    Nunca ouvi falar de Anglezarke. Onde fica? indaguei.

    No extremo sul do Condado, rapaz. o lugar onde nasci. Vivemos l at o meu pai se mudar para Hor-shaw.

    Bem, pelo menos ouvira falar de Chipenden, o que me deixou animado. Ocorreu-me que, na qualidade de

  • aprendiz do Mago, teria de viajar muito e precisava de a-prender a orientar-me.

    Sem mais delongas, mudamos de rumo, encami-nhando-nos para nordeste, na direo das colinas distan-tes. No fiz mais perguntas mas, naquela noite, quando nos abrigamos novamente num celeiro frio e a ceia se re-sumiu a mais algumas dentadas de queijo amarelo, o meu estmago comear a achar que me tinham cortado a gar-ganta. Nunca sentira tanta fome.

    Perguntei-me onde iramos ficar em Chipenden e se arranjaramos ali algo decente para comer. No conhecia ningum que l tivesse estado, mas ouvira dizer que era um lugar isolado e hostil em algum lugar nas Fells3 as distantes colinas de tom cinzento e prpura que apenas se vislumbravam da fazenda do meu pai. Sempre me tinham feito lembrar enormes animais adormecidos, mas prova-velmente a culpa era de um dos meus tios, que costumava me contar semelhantes histrias. noite, dizia ele, pu-nham-se em movimento, e s vezes, ao raiar do dia, desa-pareciam aldeias inteiras da face da terra, reduzidas a p sob o peso deles.

    Na manh seguinte, escuras nuvens cinzentas en-cobriam mais uma vez o sol e tudo indicava que amos ter de esperar algum tempo pelo segundo dia de Primavera. Estava tambm a levantar-se vento, sacudindo as nossas roupas medida que comevamos a subir e dispersando as aves por todo o cu, as nuvens precipitando-se para leste a fim de esconderem os cumes das Fells.

    3 Regio de charnecas rochosas ou terrenos acidentados no Norte de Inglaterra. ( NT)

  • O nosso ritmo era lento e dei graas por isso, visto ter uma bolha horrvel em cada calcanhar. Assim, estva-mos quase no final do dia quando nos aproximamos de Chipenden, a luz comeando j a diminuir.

    Nessa altura, apesar de o vento soprar ainda com intensidade, o cu limpara e as colinas prpura recortavam a linha do horizonte. O Mago no falara muito durante a viagem, mas agora parecia quase excitado, ao proferir um por um os nomes delas. Havia designaes como Parlick Pike4, a que ficava mais prxima de Chipenden; ou ento umas visveis, outras escondidas e distantes Mellor

    Knoll5, Saddle Fell e Wolf6 Fell.

    Quando inquiri o meu mestre sobre se existiam al-guns lobos em Wolf Fell ele sorriu sinistramente. As coisas mudam rapidamente aqui, rapaz disse ele , e temos de estar sempre atentos.

    Quando se avistaram os primeiros relhados da al-deia, o Mago apontou para um caminho estreito que partia da estrada, subindo a serpentear junto margem de um pequeno ribeiro gorgolejante.

    A minha casa fica nesta direo anunciou ele. um percurso ligeiramente mais longo, mas significa que escusamos de atravessar a aldeia. Gosto de manter uma certa distncia da populao que ali vive. E ela tam-bm prefere que assim seja.

    Lembrei-me do que Jack dissera sobre o Mago e caiu-me o corao aos ps. Era uma vida solitria. Acaba-va-se a trabalhar sozinho.

    4 Pico. ( NT) 5 Pequeno monte. ( NT) 6 Lobo. ( NT)

  • Havia algumas rvores atrofiadas em cada margem, agarrando-se vertente da colina por causa da fora do vento, mas depois, subitamente, mesmo l frente, avis-tou-se uma mata de sicmoros e freixos. Quando entra-mos nela, o vento reduziu-se a pouco mais do que um suspiro distante. No passava de um grande macio de rvores, talvez algumas centenas, que proporcionava a-brigo do vento fustigante, mas, aps alguns momentos, percebi que era mais do que isso.

    J antes reparara, de tempos em tempos, que algu-mas rvores eram ruidosas, com os ramos sempre a chiar ou as folhas a balanar, enquanto outras quase no emi-tiam qualquer som. Ouvia l em cima o sopro distante do vento, mas dentro da mata os nicos sons audveis eram os das nossas botas. Tudo o mais estava sossegado, toda uma mata cheia de rvores to silenciosas que at senti um arrepio subir e descer-me pela espinha. Cheguei quase a pensar que estivessem a ouvir-nos.

    Chegamos ento a uma clareira, e mesmo l frente vislumbrei uma casa. Encontrava-se rodeada por uma se-be alta de espinheiro-alvar, pelo que s se viam o piso su-perior e o telhado. Erguia-se uma coluna de fumaa bran-ca de uma chamin. Seguia direto para o ar, impassvel, at que, mesmo acima das rvores, o vento o empurrava para leste.

    A casa e o jardim, reparei ento, assentavam numa depresso na vertente da colina. Era como se um gigante amvel tivesse vindo retirar o solo com a mo.

    Segui o Mago ao longo da sebe at chegarmos a um porto de metal. Este era pequeno, no ultrapassava a minha cintura, e fora pintado de um verde-vivo, um tra-balho que parecia concludo to recentemente que me

  • perguntei se a tinta secara devidamente e se o Mago ficaria com a mo suja dela, uma vez que a estendia j para a tranqueta.

    Subitamente, sucedeu algo que me fez suster a res-pirao. Antes de o Mago tocar na tranca, ela levantou-se sozinha e o porto abriu-se lentamente, como se empur-rado por uma mo invisvel.

    Obrigado ouvi o Mago dizer. A porta da rua no se moveu sozinha porque pri-

    meiro foi preciso abri-la com a enorme chave que o Mago retirou do bolso. Parecia idntica que usara para abrir a porta da casa em Watery Lane.

    a mesma chave que usou em Horshaw? inquiri.

    , rapaz disse, olhando-me do alto enquanto abria a porta. O meu irmo, o serralheiro, deu-me esta. Abre a maior parte das fechaduras desde que no sejam demasiado complicadas. D muito jeito, na nossa ativida-de.

    A porta deslizou com uma sonora chiadeira e um gemido profundo e segui o Mago at um pequeno trio obscuro. Havia umas escadas ngremes direita e um cor-redor estreito e lajeado, esquerda.

    Coloque tudo no fundo das escadas disse o Mago. V l, rapaz. Deixe de moleza. No h tempo a perder. Gosto da comida a escaldar!

    Largando ento o saco dele e a minha trouxa no lugar que me indicara, segui-o pelo corredor em direo cozinha e ao apetitoso cheiro de comida quente.

    Quando l chegamos, no fiquei decepcionado. Fez-me lembrar a cozinha da minha me. Cresciam ervas aromticas em grandes vasos no parapeito da janela ampla

  • e o sol poente salpicava a diviso com as sombras das fo-lhas. No canto ao fundo ardia uma enorme fogueira, en-chendo a cozinha de calor e, mesmo no centro do cho lajeado, havia uma grande mesa de carvalho. Encontra-vam-se em cima dela dois pratos vazios enormes e, no seu centro, cinco travessas com comida at em cima, ao lado de um jarro cheio at borda de molho quente fumegan-te.

    Sente-se e coma vontade, rapaz convidou o Mago, e no precisei que me dissesse uma segunda vez.

    Servi-me de fatias grandes de frango e carne de va-ca, quase no deixando espao suficiente no prato para o monte de batatas assadas e legumes que se seguiu. Por fim, reguei tudo com um molho to saboroso que s a minha me teria feito melhor.

    Perguntei-me onde estava a cozinheira e como soubera que amos chegar naquele exato momento para ter a comida quente a postos na mesa. Todo eu era per-guntas, mas estava tambm cansado, pelo que guardei to-da a minha energia para a comida. Quando engoli final-mente a ltima bocada, o Mago limpara j o seu prato.

    Gostou? quis saber. Acenei com a cabea, quase cheio demais para falar.

    Senti-me ensonado. Depois de uma dieta de queijo, sempre bom

    chegar em casa e tomar uma refeio quente disse ele. Comemos bem, aqui. Compensa as vezes em que es-tamos a trabalhar.

    Voltei a acenar e comecei a bocejar. H muito que fazer amanh, por isso v para a

    cama. O seu quarto o da porta verde, no alto do primei-ro lance de escadas informou-me o Mago. Durma

  • bem, mas no saia do seu quarto e no ande a passear pela casa durante a noite. Ouvir tocar uma sineta quando o desjejum estiver pronto. Desa assim que a ouvir quando preparam comida boa, podem ficar aborrecidos se a deixar esfriar. Mas tambm no desa muito cedo, pois isso seria igualmente mau.

    Anu, agradeci-lhe a refeio e percorri o corredor em direo parte da frente da casa. O saco do Mago e a minha trouxa tinham desaparecido. Curioso sobre quem os teria levado, subi as escadas para me ir deitar.

    O meu quarto novo acabou por se revelar muito maior do que o de minha casa, que durante um curto pe-rodo tivera de partilhar com dois dos meus irmos. Neste novo quarto cabiam uma cama, uma pequena mesa com uma vela, uma cadeira e uma cmoda, mas havia tambm muito espao para caminhar. E ali, em cima da cmoda, a minha trouxa de pertences aguardava-me.

    Mesmo em frente da porta ficava uma janela de guilhotina grande, dividida em oito vidraas to espessas e irregulares que apenas conseguia ver espirais e volutas de cor l fora. Parecia que a janela no era aberta h anos. A cama fora colocada ao longo da parede por debaixo dela, pelo que descalcei as botas, ajoelhei-me na coberta e tentei abrir a janela. Apesar de estar um pouco enperrada, aca-bou por no ser to difcil quanto supusera. Servi-me do cordo para levantar a metade inferior da janela com uma srie de puxes, apenas o suficiente para pr a cabea de fora e apreciar melhor o que me rodeava.

    Consegui ver um amplo relvado por baixo de mim, dividido ao meio por um caminho de pedras brancas que desaparecia nas rvores. Por cima da linha das rvores, direita, ficavam as extenses rochosas, a mais prxima to

  • perto que quase me pareceu possvel estender a mo e tocar-lhe. Inspirei uma profunda lufada de ar fresco e sen-ti o cheiro da relva antes de meter a cabea para dentro e desatar a minha pequena trouxa de pertences. Couberam facilmente na gaveta de cima da cmoda. Quando a ia fe-char, reparei subitamente nas inscries na parede do fundo, nas sombras defronte dos ps da cama.

    Estava coberta de nomes, todos rabiscados a tinta preta no estuque branco. Alguns nomes eram maiores do que outros, como se quem os escrevera se tivesse em alta conta. Muitos haviam sumido com o tempo e pergun-tei-me se seriam os nomes dos outros aprendizes que ti-nham dormido neste mesmo quarto. Deveria acrescentar o meu prprio nome ou esperar at ao final do primeiro ms, altura em que talvez fosse aceite com carter perma-nente? No tinha caneta nem tinta, por isso seria algo a ponderar mais tarde, mas examinei a parede com mais a-teno para determinar qual o nome mais recente.

    Decidi que era BILLY BRADLEY parecia-me o mais ntido e fora comprimido num pequeno espao medida que a parede ia sendo preenchida. Durante alguns momentos, ansiei saber o que faria Billy agora, mas estava cansado e pronto para dormir.

    Os lenis eram lavados e a cama convidativa, e as-sim, sem perder mais tempo, despi-me e, no preciso ins-tante em que a minha cabea assentou na almofada, a-dormeci.

    Quando voltei a abrir os olhos, o sol entrava pela janela. Estivera a sonhar e fora acordado de repente por um rudo. Pensei que provavelmente seria a sineta do des-jejum.

  • Fiquei ento preocupado. Teria sido realmente a sineta a chamar-me para o desjejum ou um sino no meu sonho? Como podia ter a certeza? O que deveria fazer? Provavelmente teria problemas com a cozinheira, se des-cesse cedo ou tarde. Ento, decidindo que provavelmente ouvira a sineta, vesti-me e desci imediatamente.

    No caminho, ouvi um barulho de tachos e panelas vindo da cozinha, mas, assim que abri a porra, fez-se um silncio de morte.

    Cometi ento um erro. Devia ter voltado logo para cima, porque era bvio que o desjejum no estava pronto. Tinham sido levantados os pratos e travessas da ceia da vspera mas a mesa estava ainda vazia e a lareira cheia de cinzas frias. Na realidade, a cozinha estava gelada e, pior do que isso, parecia arrefecer mais a cada segundo.

    O meu erro foi dar um passo na direo da mesa. Assim que o fiz, ouvi algo emitir um som mesmo atrs de mim. Foi um som irado. No havia a menor dvida. Um ntido silvo de raiva muito prximo da minha orelha es-querda. To prximo que senti o seu sopro.

    O Mago avisara-me para que no descesse cedo e senti subitamente que corria verdadeiro perigo.

    Mal aquele pensamento me ocorreu, algo me atin-giu com fora na nuca; cambaleei na direo da porta, por pouco no perdendo o equilbrio e estatelando-me de comprido.

    No precisei de segundo aviso. Sa dali correndo e subi as escadas. Depois, a meio, fiquei esttico. Encontra-va-se um tanto no alto. Algum alto e ameaador, recor-tado na luz da porta do meu quarto.

    Estaquei, sem saber para que lado ir, at ser tran-qilizado por uma voz familiar. Era o Mago.

  • Era a primeira vez que o via sem a comprida capa preta. Vestia uma tnica negra e calas cinzentas e pude ver que, apesar de ser um homem alto com ombros lar-gos, o resto do seu corpo era magro, provavelmente por-que havia dias em que apenas conseguia dar umas mor-discadas no queijo. Fazia lembrar os melhores criados de lavoura quando ficam mais velhos. Alguns, claro, engor-dam apenas, mas a maioria como aqueles que o meu pai contrata para a ceifa, agora que quase todos os meus irmos saram de casa so magros, com corpos duros e secos. Magreza destreza, diz constantemente o meu pai e agora, ao olhar para o Mago, via por que razo ele conseguia caminhar a um ritmo to rpido e durante tanto tempo sem descansar

    Avisei-o para no descer cedo disse-me tranqilamente. Deve ter levado uns bofetes. Que te sirvam de lio, rapaz. Para a prxima capaz de ser bem pior.

    Pareceu-me ouvir a sineta respondi. Mas deve ter sido um sino no meu sonho.

    O Mago riu baixinho. Essa uma das primeiras e mais importantes li-

    es que um principiante tem de aprender disse ele : a diferena entre estar acordado e a sonhar. Alguns nunca chegam a aprender.

    Abanou a cabea, deu um passo na minha direo e bateu-me delicadamente no ombro.

    Venha, vou mostrar-lhe o jardim. Tem de co-mear por algum lado e sempre passa o tempo at o des-jejum estar pronto.

    * * *

  • Quando o Mago me levou at l fora, pela porta

    traseira da casa, vi que o jardim era muito grande, bem maior do que parecera do lado de fora da sebe.

    Encaminhamo-nos para leste, semicerrando os o-lhos por causa do sol do princpio da manh, at chegar-mos a um amplo relvado. No lusco-fusco da vspera, pa-recera-me que o jardim estava completamente rodeado pela sebe, mas percebia agora o meu engano. Havia inter-valos nela, e mesmo por cima ficava a mata. O caminho de pedras brancas dividia o relvado e desaparecia nas r-vores.

    Na realidade, existe mais de um jardim disse o Mago. Melhor dizendo, trs, alcanando-se cada um deles atravs de um caminho como este. Vamos ver pri-meiro o jardim oriental. bastante seguro quando h sol, mas nunca percorra este caminho depois de escurecer. Bem, a menos que tenha uma razo muito forte. Mas nunca se estiver sozinho.

    Segui o Mago, cheio de nervosismo, em direo s rvores.

    A erva era mais alta no extremo do jardim e estava salpicada de campainhas. Gosto das campainhas porque florescem na Primavera e me lembram sempre que os dias longos e quentes de Vero no tardam, mas naquele mo-mento mal as olhei uma segunda vez. O sol da manh es-tava escondido pelas rvores e de repente o ar ficou muito mais fresco. Fez-me lembrar a visita cozinha. Havia algo de estranho e perigoso naquela parte da mata e parecia fazer cada vez mais frio, medida que avanvamos para as rvores.

  • Havia ninhos de gralhas l no alto, por cima de ns, e os gritos desagradveis e zangados das aves ainda me causavam mais arrepios do que o frio. Eram quase to musicais quanto o meu pai, que comeava a cantar assim que terminvamos a ordenha. Sempre que o leite azedava, a minha me atribua-lhe as culpas.

    O Mago parou e apontou para o solo cerca de cin-co passos mais frente.

    O que aquilo? inquiriu, a sua voz pouco mais do que um murmrio.

    A erva fora limpa e no centro do grande pedao de terra estava uma pedra tumular. Era vertical, mas ligeira-mente inclinada para a esquerda. No cho diante dela, um metro e oitenta de solo estava cercado de pedras mais pe-quenas, o que era invulgar. Mas havia algo ainda mais es-tranho: por cima do pedao de terra, e presas s pedras exteriores por pernos, encontravam-se treze barras de ferro grossas.

    Contei-as duas vezes apenas para me certificar. Ento, rapaz, fiz-lhe uma pergunta. O que se

    passa? A minha boca estava to seca que mal conseguia

    falar, mas balbuciei trs palavras: uma sepultura... Muito bem, rapaz. Percebeu de primeira. Notou

    algo de invulgar? perguntou ele. Nesta altura no consegui de todo falar. Limitei-me

    a acenar com a cabea. Ele sorriu e bateu-me no ombro. No h nada a temer. apenas uma bruxa mor-

    ta e bastante fraca na sua arte. Enterraram-na em solo profano do lado de fora de um cemitrio, a no muitos quilmetros daqui. Mas ela insistia constantemente em vir

  • superfcie. Dei-lhe uma boa reprimenda mas ela no quis ouvir, por isso tive de traz-la para c. Faz com que as pessoas se sintam melhor. Dessa forma, podem prosseguir as suas vidas em paz. Nem querem pensar em coisas co-mo esta. a nossa funo.

    Acenei novamente e percebi de repente de que no respirava, por isso, enchi bem os pulmes de ar. O cora-o batia-me desalmadamente no peito, ameaando re-bentar a qualquer instante, e eu tremia da cabea aos ps.

    No, ela agora incomoda pouco prosseguiu o Mago. s vezes, na Lua cheia, consegue-se ouvi-la a agitar-se, mas no tem fora para vir superfcie e as bar-ras de ferro impedi-la-iam na mesma. Mas h coisas piores l mais adiante, nas rvores disse ele, apontando com o seu dedo ossudo para leste. D cerca de vinte passos e chegar ao local.

    Pior? O que podia ser pior? Fiquei intrigado, mas sabia que ele faria questo em me contar.

    H duas outras bruxas. Uma est morta e a ou-tra viva. A morta encontra-se enterrada verticalmente, de cabea para baixo, mas mesmo assim, uma ou duas vezes por ano temos de endireitar as barras por cima da sua se-pultura. Mantenha-se bem afastado do local, depois de escurecer.

    Porque foi enterrada de cabea para baixo? quis saber.

    Eis uma boa pergunta, rapaz observou o Mago. Sabe, o esprito de uma bruxa morta o que chamamos normalmente preso aos ossos. Encontra-se retido dentro dos ossos dela e, por vezes, elas nem sequer sabem que morreram. Primeiro, experimentamos colo-c-las de cabea para cima, e isso suficiente a maioria das

  • vezes. Todas as bruxas so diferentes, mas h algumas que so realmente teimosas.

    Apesar de presa aos ossos, uma bruxa como esta esfora-se ao mximo por voltar ao mundo. como se quisesse voltar a nascer, de maneira que temos de lhe criar dificuldades e enterr-la ao contrrio. No fcil sair pelos ps. s vezes, os bebs humanos tm o mesmo problema. Mas ela continua a ser perigosa, por isso mantenha-se bem longe.

    Certifique-se de que se mantenha afastado da que est viva. Seria mais perigosa morta do que viva, porque uma bruxa poderosa como aquela no teria dificuldade nenhuma em voltar ao mundo. Por esse motivo a mante-mos num poo. O nome dela Me Malkin e fala sozinha. Bem, na verdade, mais um murmrio. Ela to m quanto se pode ser, mas est no poo h muito tempo e a maior parte do seu poder escoou-se para a terra. Adoraria deitar as mos em um rapaz como voc. Por isso, mante-nha-se bem distante. Prometa-me agora que no vai se aproximar. Quero ouvir-te diz-lo...

    Prometo no me aproximar murmurei, sen-tindo-me desconfortvel com tudo aquilo. Parecia uma coisa terrvel e cruel manter qualquer criatura viva mesmo uma bruxa no solo, e no estava a ver a minha me a gostar muito da idia.

    Lindo menino. No queremos que se repitam mais acidentes como o desta manh. H coisas piores do que levar um bofeto. Bem piores.

    Acreditei nele, mas no queria ouvir falar do as-sunto. S que ele tinha outras coisas para me mostrar, por isso fui poupado de mais palavras assustadoras. Condu-ziu-me para fora da mata e percorremos outro relvado.

  • Este o jardim meridional anunciou o Mago. Tambm no venha c depois de escurecer. O sol foi rapidamente escondido por ramos densos e o ar ficou cada vez mais frio, pelo que soube estarmos a aproxi-mar-nos de algo mau. Parou a cerca de dez passos de uma pedra grande que fora colocada deitada no solo, perto das razes de um carvalho. Cobria uma rea um pouco maior do que um jazigo e, a avaliar pela parte que estava acima do solo, a pedra era tambm muito grossa.

    Quem acha que est enterrado ali debaixo? perguntou o Mago.

    Procurei mostrar-me confiante. Outra bruxa? No disse o Mago. No necessrio tanta

    pedra para uma bruxa. Por norma, o ferro funciona. Mas a coisa ali debaixo pode escapulir-se atravs das barras de ferro num abrir e fechar de olhos. Preste ateno na pe-dra. Consegue ver o que est gravado nela?

    Anu. Reconhecia a letra mas no sabia o que signi-

    ficava.

  • a letra grega beta disse o Mago. o si-nal que usamos para um demnio7. A linha diagonal signi-fica que se encontra preso artificialmente debaixo daquela pedra e o nome por baixo diz quem o fez. No canto infe-rior direito est o numeral romano para um. Quer dizer que um demnio da primeira categoria e muito perigoso. Conforme mencionei, usamos graus de um a dez. Lem-bre-se disso um dia poder salvar-lhe a vida. Um de grau dez to fraco que as pessoas nem sequer reparariam que estava l. J se for um de grau um poderia facilmente matar-te. Custou-me uma fortuna mandar trazer aquela pedra para c, mas valeu cada cntimo. Agora um dem-nio aprisionado. Encontra-se preso artificialmente e ficar ali at Gabriel fazer soar a sua trombeta.

    Tem de aprender muito sobre os demnios, rapaz, e vou iniciar a sua preparao logo a seguir ao desjejum, mas existe uma diferena significativa entre aqueles que esto presos e os que esto livres. Um demnio livre con-segue muitas vezes afastar-se quilmetros da sua casa e, se estiver predisposto a isso, fazer maldades infinitas. Se um demnio se tornar particularmente incmodo e no der ouvidos razo, compete-nos aprision-lo. Se o fizermos bem, fica o que chamamos aprisionado artificialmente. Desse modo no se consegue sequer mover. Claro, mais fcil dizer do que fazer.

    O Mago carregou subitamente o cenho, como se recordasse algo desagradvel.

    Um dos meus aprendizes meteu-se em srios apuros ao atentar aprisionar um demnio disse, aba-

    7 Mais uma vez, a letra grega escolhida no encontra correspondn-cia em portugus. O termo constante do original boggart . (NT)

  • nando pesarosamente a cabea , mas como apenas o seu primeiro dia, no vamos falar j disso.

    Precisamente naquele momento, vindo da direo da casa, ouviu-se o som da sineta. O Mago sorriu.

    Estamos acordados ou a sonhar? indagou. Acordados. Tem certeza? Acenei com a cabea. Nesse caso, vamos comer disse ele. Mos-

    trar-te-ei o outro jardim depois de termos enchido as bar-rigas.

  • CAPTULO 6 UMA MENINA COM SAPATOS

    BICUDOS A cozinha modificara-se desde a minha ltima visita. Fora acesa uma pequena fogueira na lareira e estavam dois pra-tos de toucinho defumado com ovos em cima da mesa. Havia tambm po acabado de assar e uma bola grande de manteiga.

    Coma, rapaz, antes que esfrie convidou o Mago. Ataquei de imediato e no demoramos muito a dar conta das duas pratadas e tambm de metade do po. O Mago recostou-se na cadeira, cofiou a barba e fez-me uma pergunta importante.

    No acha inquiriu ele, os seus olhos fitando diretamente os meus que foi o melhor toucinho defu-mado com ovos que comeu?

    No concordei. O desjejum fora bem preparado. Estava bom, sim, sempre era prefervel ao queijo, mas j comera melhor. J comera melhor todas as manhs quan-do estivera em casa. A minha me era muito melhor co-zinheira, mas de certa forma no me parecia que fosse a resposta pretendida pelo Mago. Ento, disse-lhe uma mentira inofensiva, o tipo de falsidade que realmente no faz mal nenhum e as pessoas ficam mais satisfeitas ao ou-virem-na.

    Sim referi , foi o melhor desjejum que al-guma vez saboreei. E peo desculpa por ter descido cedo demais. Prometo que no voltar a acontecer.

  • Ante aquelas palavras, o Mago esboou um sorriso to rasgado que julguei que o rosto se lhe fosse abrir ao meio; depois deu-me uma palmada nas costas e levou-me de novo ao jardim.

    S quando chegamos l fora que o sorriso desa-pareceu de vez.

    Muito bem, rapaz disse ele. H duas coi-sas que reagem bem lisonja. A primeira uma mulher e a segunda um demnio. Nunca falha.

    Bem, eu no vira qualquer sinal de uma mulher na cozinha, o que s vinha confirmar as minhas suspeitas que era um demnio que preparava as nossas refeies. O mnimo que posso dizer que foi uma surpresa. Toda mundo pensava que um Mago matava demnios, ou que os manipulava para que no pudessem fazer maldades. Quem iria acreditar que tinha um a cozinhar e