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107 THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará AS DIFICULDADES EM ESTABELECER UM CRITÉRIO ÉTICO NA CONTEMPORANEIDADE Flávio José Moreira Gonçalves Professor da UFC e UNIFOR Assessor Pedagógico da ESMEC Mestre em Direito (UFC) e Mestre em Filosofia (UECE) Doutorando em Educação (UFC) “(...) as conseqüências da intervenção das ciências na ecosfera e na biosfera e da emergência dos mercados globais, que deixaram grande parte da população do mundo em condições subumanas, condenada à pobreza, à fome e à miséria, são de uma tal abrangência na vida dos povos que não se deve deixar ao arbítrio e ao simples poder a solução dos conflitos humanos. Como se posicionar frente a esta situação? Não se põe hoje, para a humanidade, a tarefa de assumir a responsabilidade por seu destino coletivo, pela construção de uma nova ordem mundial?” (CIRNE-LIMA, Carlos R. V e OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Apresentação à obra Ética do Discurso e Verdade em Apel do professor Regenaldo da Costa, pág. xiv) Sumário: 1 Problematização: os desafios da contemporaneidade. 2 O conhecimento científico e as v.8 n.1 jan/jul 2010

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107THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará

AS DIFICULDADES EM ESTABELECER UMCRITÉRIO ÉTICO NA CONTEMPORANEIDADE

Flávio José Moreira GonçalvesProfessor da UFC e UNIFOR

Assessor Pedagógico da ESMECMestre em Direito (UFC) e Mestre em Filosofia (UECE)

Doutorando em Educação (UFC)

“(...) as conseqüências da intervenção dasciências na ecosfera e na biosfera e daemergência dos mercados globais, quedeixaram grande parte da população domundo em condições subumanas,condenada à pobreza, à fome e à miséria,são de uma tal abrangência na vida dospovos que não se deve deixar ao arbítrio eao simples poder a solução dos conflitoshumanos. Como se posicionar frente a estasituação? Não se põe hoje, para ahumanidade, a tarefa de assumir aresponsabilidade por seu destino coletivo,pela construção de uma nova ordemmundial?” (CIRNE-LIMA, Carlos R. V eOLIVEIRA, Manfredo Araújo de.Apresentação à obra Ética do Discurso eVerdade em Apel do professor Regenaldoda Costa, pág. xiv)

Sumário: 1 Problematização: os desafios dacontemporaneidade. 2 O conhecimento científico e as

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incertezas às quais os pesquisadores foram conduzidosapós a crise do positivismo. 3 A exaustão do paradigmamecanicista. 4 Os riscos representados pelo relativismo,ceticismo e niilismo ético. 5 Algumas teorias que estão emjogo na construção da hegemonia do novo paradigma nasciências. 6 As diferenciadas interpretações do problemapelos eticistas contemporâneos sob a ótica dos modelosontológico e transcendental: as orientações teleológicas edeontológicas da ética.

Palavras-chave: Ética. Contemporaneidade. Riscos.Mecanicismo. Superação.

1 Problematização: os desafios da contemporaneidade

Seria possível a construção de uma éticauniversal, não-antropocêntrica, pela qual a ciência pudesseorientar-se para ajudar a edificar, com a ajuda de todos osoutros saberes, as bases de uma nova relação do homemcom a natureza, da qual o homem deixou de sentir-seintegrante desde a modernidade? É ainda sustentável, emnossos dias, o projeto de uma ética para a civilizaçãotecnológica que, fundada à base de uma metafísica racional1 ,

1 OLIVEIRA, Manfredo., Os Desafios da Ética Contemporânea inTHEMIS: Revista da ESMEC, Fortaleza: 2008, p. 34 (“Para Hans Jonas,um filósofo que pretende articular uma ética, deve, em primeiro lugar,admitir a possibilidade de uma metafísica racional, se com racional nãose entende necessariamente o que é determinado de acordo com oscritérios da ciência positiva. O ético então precisa ir até a última (primeira)pergunta da metafísica”)

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promova uma ruptura definitiva com os paradigmasmecanicista e positivista, colaborando para superar a crisede percepção2 na qual estamos inseridos?

Indagações desta natureza permeiam o debatecontemporâneo, levantando questionamentos acerca daprópria instrumentalização da linguagem científica,responsável por situar a natureza fora do âmbito da eticidade.Afastadas dos domínios objetivos da ciência, não restariaàs normas morais outra alternativa para legitimar-se, a nãoser na esfera da subjetividade, operando-se uma cisão quesepara e isola a ciência da ética. Não é sem razão queManfredo Oliveira identifica a polaridade sujeito-objeto comoa “polaridade específica da consciência tecnológica”3 , apartir da qual tudo é pensado pela racionalidade moderna.

Os ideais de neutralidade, pureza e objetividade pelosquais tanto combateram e ainda combatem os adeptos dopositivismo estão sendo vencidos pelas circunstâncias

2 CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação: a ciência, a sociedade e acultura emergente, 25ª edição, trad. Álvaro Cabral, Ed. Cultrix, São Paulo,2002, p. 19 (“As últimas décadas de nosso século vêm registrando umestado de profunda crise mundial. É uma crise complexa,multidimensional, cujas facetas afetam todos os aspectos de nossavida – a saúde e o modo de vida, a qualidade do meio ambiente e dasrelações sociais, da economia, tecnologia e política. É uma crise dedimensões intelectuais, morais e espirituais: uma crise de escala epremência sem precedentes em toda a história da humanidade. Pelaprimeira vez, temos de nos defrontar com a real ameaça de extinção daraça humana e de toda a vida no planeta”)3 OLIVEIRA, Manfredo. Ética e Racionalidade Moderna. São Paulo:Loyola, 1993, p. 123

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históricas reais e, paradoxalmente, pelo próprio progressodas ciências. Como ressalta Gilberto Dupas:

Após a Segunda Guerra Mundial, cresceuo número de pessoas, incluindo cientistase filósofos, que passaram a se preocuparcom os efeitos, nem sempre favoráveis, douso das modernas tecnologias. Percebeu-se que as crescentes práticas capitalistasestavam se apossando completamente dosdestinos da tecnologia, desvinculando-a dequalquer preocupação de ordem metafísica,ontológica ou religiosa, orientando-a únicae exclusivamente para a criação de valoreconômico. As conseqüências dessaautonomia da moderna tecnologia, emrelação aos valores éticos e morais, teriamsido, entre outras, o aumento daconcentração de renda, a exclusão social eo perigo da destruição do habitat humano4

Há um problema fundamental no âmago de todo equalquer avanço científico e tecnológico. E este problema éde ordem ética. Deixar de formulá-lo é ignorar asconsequências às quais já fomos levados pela adoção deuma ciência sem consciência, alheia a necessidade devalorar o saber, abstendo-se de dizer acerca de sua

4 DUPAS, Gilberto. Ética e poder na sociedade da informação: decomo a autonomia das novas tecnologias obriga a rever o mito doprogresso, 2ª edição ver. e ampl., São Paulo: Ed. UNESP, 2001, p. 14

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utilização e limitando-se a produzi-lo para atender adeterminadas diretrizes do mercado e responder àsperguntas de quem financia as pesquisas.

É muito importante sabermos ainda que boa parte dapesquisa científica no mundo é financiada por organizaçõesmilitares, o que direciona suas linhas de investigação oupotencializa sua utilização para fins bélicos.

A história da ciência tem revelado e os própriospesquisadores apontam o uso militar do conhecimentocientífico, não sendo novidade a trágica declaração deOppenheimer de que tinha sangue nas mãos, após aexplosão dos artefatos nucleares lançados sobre Hiroshimae Nagasaki. Os exemplos remontam à Antiguidade, pois

É freqüentemente evocado que Arquimedesteria queimado navios inimigos na Gréciafocalizando sobre eles a luz do sol refletidapor superfícies espelhadas. Teria sido estaa primeira aplicação militar da ciência oudo saber da filosofia da natureza? O casoé polêmico, pois, segundo Thuillier, não épresumível que tal façanha pudesse serrealizada com os meios disponíveis naGrécia Antiga. Entretanto, são inúmeros osexemplos de desenvolvimento da físicavoltados às aplicações bélicas. São maisnítidos os exemplos dos fundadores damecânica no século XVII. Galileu escreveuum tratado sobre técnicas militares einventou um compasso para esse fim. Nosegundo livro dos Principia de Newton, há

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vários tópicos com nítidas aplicações àtécnica militar da sua época5

Como se não bastassem todas estas dificuldadesdecorrentes da utilização bélica dos resultados da pesquisacientífica, outras ameaças, menos explícitas, avolumam-seem nossos dias (clonagem, eugenia, reengenharia genética,distanásia etc), todas oriundas do aumento extraordináriodo poder humano sobre a natureza6 , algumas das quaisensejando promessas “redentoras” para o gênero humano.

Diante do cenário mundial, repleto das incertezas eparadoxos nos quais mergulham as reflexões filosóficas nosúltimos tempos, a ausência de preocupações mais efetivascom estas questões na comunidade de investigadores,sobretudo nas chamadas “ciências da natureza”, causa atéestranheza.

5 ROSA, Luiz Pingueli. A Física entre a Guerra e a Paz – reflexões sobrea responsabilidade social da ciência in Revista da Sociedade Brasileirapara o Progresso da Ciência, Ano 57, nº 3 – julho/agosto/setembrode 2005, p. 40

6 Em sua obra Ética, Medicina e Técnica, Hans Jonas comenta algumasdestas extensões do poder humano sobre a natureza e o próprio homem,tratando da engenharia biológica, da eugenia negativa ou preventiva pormeio do acasalamento controlado e dos exames fetais, da eugeniapositiva ou de melhoramento e seus modos futurísticos (clonagem,arquitetura do ADN etc), bem como da potencialidade manipuladora dabiologia molecular, da experimentação com seres humanos etc

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A reflexão ética do passado, fundada no paradigmaantropocêntrico tradicional7 e lastreada na ideia deeternidade da ordem natural (kosmos, physis) era incapazde antever as profundas alterações hoje promovidas pelaintervenção humana na ecosfera, sendo a natureza vista nopassado apenas como fonte inexaurível de recursos.

Por isso, há de se proceder, examinadas as condiçõeshodiernas, a uma crítica do antropocentrismo que vem seafirmando desde a Antiguidade Clássica e tem seu pontoculminante na modernidade. Tal antropocentrismo já seachava refletido na ideia da “terra infatigável”, proclamadapelo coro da tragédia de Sófocles. Deste referencial antigo,de cunho antropocêntrico e que é objeto da crítica de HansJonas, a célebre passagem da obra Antígona é um reflexoliterário que vale a pena recordar para perceber arepresentação que o homem fazia de si mesmo e da suacapacidade de dominar as forças da natureza, bem comode seus limites naturais (vida/morte), à época tidos comointransponíveis e imodificáveis:

7 Para Jonas as éticas tradicionais são antropocêntricas na medida emque, nelas, “a atuação sobre objetos não humanos não formava umdomínio eticamente significativo”, “a significação ética dizia respeito aorelacionamento direto de homem com homem, inclusive o de cada homemconsigo mesmo” e, por conseguinte, “a ética tinha a ver com o aqui eagora, como as ocasiões se apresentavam aos homens, com as situaçõesrecorrentes e típicas da vida privada e pública” (JONAS, Hans. O PrincípioResponsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica.Trad. do original alemão Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio deJaneiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, p. 35-6)

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Há muitas maravilhas, mas nenhumaé tão maravilhosa quanto o homem.Ele atravessa, ousado, o mar grisalho,impulsionado pelo vento sultempestuoso, indiferente às vagasenormes na iminência de abismá-lo;e exaure a terra eterna, infatigável,deusa suprema, abrindo-a com o aradoem sua ida e volta, ano após ano,auxiliada pela espécie eqüina.Ele captura a grei das aves lépidasE as gerações dos animais selvagens:e prende a fauna dos profundos maresnas redes envolventes que produz,homem de engenho e arte inesgotáveis.Com suas armadilhas ele prendea besta agreste nos caminhos íngremese doma o potro de abundante crina,pondo-lhe na cerviz o mesmo jugoque amansa o fero touro das montanhas.Soube aprender sozinho a usar a falae o pensamento mais veloz que o ventoe as leis que disciplinam as cidades,e a proteger-se das nevascas gélidas,duras de suportar a céu aberto,e das adversas chuvas fustigantes;ocorrem-lhe recursos para tudoe nada surpreende sem amparo;somente contra a morte clamaráem vão por um socorro, embora saiba

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fugir até de mares intratáveis.Sutil de certo modo na inventivaalém do que seria de esperar,e na argúcia, às vezes para o bem,se é reverente às leis de sua terrae segue sempre os rumos da justiçajurada pelos deuses ele elevaà máxima grandeza a sua pátria.Nem pátria tem aquele, ao contrário,que adere temerariamente ao mal;jamais quem age assim seja acolhidoem minha casa e pense igual a mim!8

Para Jonas, essa passagem de uma tragédia doséculo V a.C. revela o espírito que movia as éticastradicionais e o encantamento do homem com o seu poderque, embora grandioso, não suplantava a morte e deveriaater-se aos estreitos limites da lei da cidade (nomos), alémdas quais não poderia ou deveria agir.

O nomos (norma, lei da cidade) poderia ser alteradopela vontade humana, mas a physis (natureza, lei danatureza) não estava na sua esfera de ação, a não ser paraservir às suas necessidades básicas.

As leis eternas, da vida e da morte, concebidas comonaturais, seriam inalteráveis pela vontade ou deliberaçãohumana. Para Jonas, “o coro de Antígona, falando sobre o

8 SÓFOCLES. A Trilogia Tebana: Édipo-Rei, Édipo em Colono eAntígona. Trad. Mário da Gama Kury, 9ª edição. Rio de Janeiro: JorgeZahar, 2001, p. 216

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fantástico poder do homem, soaria bem diferente em nossosdias; e a exortação dirigida ao indivíduos para querespeitassem as leis não seria mais suficiente”9 .

Comentando a conhecida passagem de Antígona, emque é exaltada a inesgotabilidade e eternidade da ordemnatural, Hans Jonas assinala a mentalidade dominante nohorizonte do antropocentrismo antigo:

Ainda que ele atormente ano após ano aterra com o arado, ela é perene eincansável; ele pode e deve fiar-se napaciência perseverante da terra e deveajustar-se ao seu ciclo. Igualmente pereneé o mar. Nenhum saque das suas criaturasvivas pode esgotar-lhe a fertilidade, osnavios que o cruzam não o danificam, e olançamento de rejeitos não é capaz decontaminar suas profundezas. E, nãoimporta para quantas doenças o homem

9 JONAS, Hans. Le Principe Responsabilitè: une éthique pour lacivilisation technologique, 3ª edição, trad. Jean Greisch, Paris: Flamarion,1998, p. 30 (Na tradução do alemão para o francês, a primeira a qualtivemos acesso: “le choeur d’Antigone, évoquant l’inquiétant pouvoir del’homme, devrait aujurd’hui être formulé différeremment sous le signe del’inquiétant tout autre; et l’exhortation adressée à l’individu de respecterles lois ne serat plus suffissante” )

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ache cura, a mortalidade não se dobra àsua astúcia10

Hoje, porém, há necessidade urgente e inadiável deconstrução de uma ética universal solidária que penseseriamente sobre a nossa intervenção na natureza e nodomínio da vida, a qual se ampliou para além do que podiamprojetar os modelos éticos do passado, causando danosirreversíveis à biosfera.

Esta necessidade de uma ética, porém, esbarra nadificuldade de fundamentação na contemporaneidade, antea crise da concepção de razão herdada dos gregos, criseampliada pela destruição da categoria do sagrado, operadapelo Iluminismo. A racionalidade moderna passou a exigirprova objetiva de todo saber para afirmar sua legitimidadedentro do novo modelo de razão instaurado e, por isso,

Também a velha ontologia torna-seimpossível, já que não-testável. Se umaética ainda é pensável na idade dasciências, ela se reduz à metaética, meradescrição teórico-científica da linguagemética: trata-se de analisar logicamente odiscurso ético, o que, aliás se faz comqualquer discurso científico. Qualquer

10 JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma éticapara a civilização tecnológica. Trad. do original alemão Marijane Lisboae Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006,p. 32

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empenho em superar essa análise lógicada linguagem é considerado uma tentativade deduzir normas de fatos, o que desdeHume é tido por impossível11

A velha metafísica12 ocidental achar-se-iaimpossibilitada, assim, de fornecer, com sua pretensão deuniversalidade, as categorias a partir das quais seria possívelpensar critérios de verdade em face do novo modelo deracionalidade instaurado na modernidade. Instaurava-se um

11OLIVEIRA, Manfredo. Ética e Racionalidade Moderna. São Paulo:Loyola, 1993, p. 11

12 Convém lembrar aqui que, a despeito das posições positivistas eneoposivistas, claramente contrárias à legitimidade da metafísica, háentre os epistemólogos contemporâneos, quem defenda a existênciade teorias metafísicas sensatas e racionais, pois de teorias, outrorametafísicas, se desenvolveram teorias científicas, sendo as teoriasmetafísicas controláveis pelo critério de falsificabilidade (Popper), sejaem face de resultados lógico-matemáticos, empíricos das ciências oude outras idéias metafísicas consolidadas,. Há também aqueles queapresentam a metafísica como física do futuro (Agassi) ou reconheçama existência de metafísicas influentes (Watkins) no própriodesenvolvimento da ciência, como o foram o determinismo, omecanicismo, as doutrinas a priori da conservação, concepções decampo etc. Tais concepções epistemológicas abrem espaço para quesurjam novas concepções metafísicas, reconhecendo sua legitimidade(Cf. REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia: deFreud à atualidade. São Paulo: Paulus, 2006, v. 6, p. 172-5)

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dualismo aparentemente insuperável entre o ser e o deverou, como afirma Manfredo Oliveira, entre “o objetivismo neutrodas ciências e o subjetivismo existencial dos atos de fé edas decisões éticas”13 , dualismo agravado pela situaçãoepocal superveniente de uma sociedade mundializada emulticultural, na qual emerge um gigantesco e novíssimoobjeto do agir humano, antes impensado: a ecosfera.

Para alguns, como Habermas e Apel, não seria maispossível desvelar a verdade no ser, mas apenas construí-lapelo consenso, sempre retificável. A própria reflexãotranscendental, porém, não há de se excluir do critério queoferece para construção da verdade. Portanto, ao examinara teoria consensual da verdade com isenção, devemos terem mente que o que esta procura edificar “não se trata deum saber absoluto, de uma fundamentação última, à qual ohomem não tem acesso por ser um ser histórico (...) Sendode caráter hipotético e não absoluto, a reflexãotranscendental não está isenta de uma revisão posterior”14 .

A constatação da repercussão de incertezas eperplexidades atuais verifica-se também âmbito das ciênciasda natureza, a ponto de Edgar Morin afirmar:

Hoje em dia podemos dizer: não há umfundamento único, último, seguro doconhecimento. Mas, em ciências, o

13 OLIVEIRA, Manfredo. Ética e Racionalidade Moderna. São Paulo:Loyola, 1993, p. 11-12

14 OLIVEIRA, Manfredo. Ética e Racionalidade Moderna. São Paulo:Loyola, 1993, p. 164

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fundamento era a experiência, aobservação e a razão, isto é, oprocedimento empírico-racional (...) A partirdo início do século ocorre algo de realmenterevolucionário no campo da ordem e dacerteza: é o surgimento da desordem e daincerteza15

Ora, se não é mais possível desvelar a verdade, sendoesta o resultado de uma construção histórica mediadalinguisticamente, a pergunta pela verdade passa a serfundamentalmente a pergunta pelo sentido da verdade emdado contexto, reconhecendo-se que o nosso horizontehistórico acaba influenciando as nossas formas de pensar ede agir, o nosso ethos, pois “a ação comunicativadeterminada já se faz sempre dentro do mundo-de-vidaespecífico, horizonte de sentido, que se foi formando atravésdas experiências históricas da comunidade humanadeterminada”16 . A historicidade de toda compreensão é,portanto, ineliminável. Assim, como ressalta Javier Herrero:

Quando argumentamos, não o fazemos noponto zero da história, como Kant parecesupor, mas nós já estamos na história e na

15 MORIN, Edgar apud PENA-VEGA, Alfredo e NACIMENTO, ElimarPinheiro do (orgs.). O Pensar Complexo: Edgar Morin e a crise damodernidade, 3ª edição, Rio de Janeiro: Garamond, 1999, pp. 22-3

16 OLIVEIRA, Manfredo. Ética e Racionalidade Moderna. São Paulo:Loyola, 1993, p. 163

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razão moral descoberta na argumentaçãotambém tem já sua história, isto é, nósargumentamos numa situação históricadeterminada do mundo da vida. Istosignifica: junto com o a priori(transcendental) da argumentaçãoencontramos o a priori da situação, que nósjá sempre temos que pressupor para o ser-no-mundo do homem e que igualmente teráque ser considerado, porque ele é opressuposto real do discursoargumentativo17

Basta lembrar, para reforçar com fatos a historicidadeda argumentação e suas consequências no plano damoralidade da ação que, como demonstram os antropólogos,em algumas sociedades determinadas formas de agir sãoestimuladas, enquanto em outras as mesmas atitudes sãoconcebidas como a face mais severa da maldade e punidascom toda a severidade.

O costume esquimó de oferecer a esposapara dormir com um visitante, a poliandria,o canibalismo ritual, são exemplos quelevam-nos a concluir que o que no Ocidenteconsideramos como um conjunto de fatores

17 F. JAVIER HERRERO. Ética do Discurso in OLIVEIRA, Manfredo(org.) Correntes Fundamentais da Ética Contemporânea. 2ª edição.Petrópolis, RJ: Vozes, p. 175

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patológicos, em sociedades diferentes danossa é, pelo contrário, consideradoperfeitamente normal18

Após a reviravolta linguístico-pragmática e nocontexto da primeira sociedade planetária19 de que se temnotícia histórica, na qual a revolução tecnológica tratou dedar contornos inéditos, toda a existência humana passa areconhecer-se como constituída e constituidora de sentido,tudo passa a ser simbolicamente mediado pelo sentido eeste, constituído pela linguagem.

Ora, se a linguagem é um construto coletivo, nãoexistindo linguagem privada20 ou exclusiva, a construção dosentido de uma nova ética, universal e solidária, haveria depressupor, nestas novas condições, a participação de todos

18 FERREIRA, Simone Simões. Enlouquecer para Sobreviver:manipulação de uma identidade estigmatizada como estratégia desobrevivência, Revista de Psicologia, 2(2), Universidade Federal do Ceará(UFC), 1984, pág. 50

19 Cf. OLIVEIRA, Manfredo. Ètica e Racionalidade Moderna. SãoPaulo: Loyola, 1993, p. 115 (“Técnica, tecnologia, são palavras queexprimem a forma da consciência do homem de nossos tempos. Isso éválido não só para o mundo cultural, em que a técnica surgiu, mas exprimeo próprio modo da civilização planetária”)

20 PINTO, Paulo Roberto Margutti. A Questão da Continuidade doPensamento de Wittgenstein in Colóquio Wittgenstein. Fortaleza:Edições UFC, 2006, p. 39. No mesmo artigo, é possível ler a afirmação,a título de observação final, segundo a qual “Wiittegenstein é, acima detudo, um filósofo com intenções religiosas” (p. 48)

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os usuários da linguagem, daqueles mesmos que ajudam aconstruí-la como tal, consensualmente21 .

Como faremos ressaltar no desenvolvimento daargumentação aqui construída, a qual não pode ignorar aÉtica do Discurso, é importante que se tenha em mente oseguinte: o pressuposto da participação dos argumentantesna constituição da comunidade de argumentação torna talcomunidade responsável pela a ideia de que uma talcomunidade possa existir no futuro. É razoável, dito de outromodo, que esta comunidade queira tornar possível nãosomente sua continuidade, mas também a continuidade defuturas comunidades de comunicação. Ou seja, é somentesob o argumento de que a humanidade deva continuarexistindo ou que as gerações futuras subsistam que épossível sustentar os seus interesses vitais destas sejamlevados em consideração na presente roda do discurso.

21 Jonas deixa claro, porém, que mesmo nestes casos, “de acordo comestes (mecanismos que são próprios dos governos representativos), sóos interesses presentes se fazem ouvir e sentir e forçam a que se lhespreste atenção. É perante eles que as iniciativas públicas sãoresponsáveis e é por esta via que se concretiza na prática o respeito dedireitos (o que se distingue do seu reconhecimento abstracto). Porém, ofuturo não se acha representado, não é força que se faça sentir o seupeso nas escalas de valores. Aquilo que não existe não tem lobby eaqueles que ainda não nasceram são desprovidos de poder (...) Queforça há-de representar o futuro no presente?” (JONAS, Hans. Técnica eresponsabilidade: reflexões sobre as novas tarefas da Ética. In: Ética,medicina e técnica, Lisboa: Vega Passagens, 1994, p.57)

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Porém, nenhuma das éticas tradicionais precisoulevar a sério o futuro da humanidade e da ecosfera emconsideração, os quais eram dados como certos eindiscutíveis. Nas condições hodiernas, porém, não nosparece que tenhamos o direito de continuar a fazê-lo.

Na perspectiva da ecologia profunda22 , da qual precisapartir o novo modelo de eticidade a se construir, somosresponsáveis pela preservação de todas as formas de vida,pois

todo o Ser vivo é seu próprio fim, e não temnecessidade de outra justificativa qualquer.Desse ponto de vista, o homem não temnenhuma outra vantagem em relação aosoutros seres viventes, exceto a de que sóele também pode assumir a

22 Para Tomás Domingo Moratalla, “a ecologia profunda é aquela éticaecológica que defende um direito da natureza a sua própria conservação,com independência do ser humano. A proteção do meio ambiente seriaalgo que reclama a própria biosfera, e não porque ao ser humano afete.Trata-se de um enfoque biocêntrico, na qual se sobressai a vida da biosferaem seu conjunto como mais importante que a vida dos indivíduos ouespécies que a compõem. Pois bem, a ética de Jonas pode sercaracterizada como defensora da ecologia profunda, crítica de toda atradição antropocêntrica moderna, defensora e recuperadora de umconceito de natureza pré-moderno e religioso” (MORATALLA, TomásDomingo. La Ética Antopológica de Hans Jonas en el Horizonte de laFenomenología Hermenéutica in Thémata Revista de Filosofía, nº 39,2007, p. 373)

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responsabilidade de garantir os finspróprios dos demais seres23

Mesmo que a natureza ou as gerações futuras, porrazões óbvias, não possam manifestar-se na construçãodesta ética universal solidária que hoje pretendemosconstruir, participando da “comunidade de comunicação”, nãoseriam a sua ausência, a inexistência física ou de um códigolinguístico no qual pudessem expressar-se que os tornariamenos dignos de ter o seu interesse em existir ou subsistirlevado em consideração.

Para uma ética da responsabilidade, a nova sabedoriaem relação à natureza exige muito menos que tenhamospoderes para dominá-la e nela interferir como se fizera antes,desde a modernidade, e muito mais disposição parainteragir com ela em sinergia plena, a fim de preservá-la dadestruição.

Tornamo-nos responsáveis pelo que hoje é vulnerávele, portanto, pode deixar de ser, mas que, no passado, aséticas tradicionais conceberam como eterno e imutável. “Porisso, nós, contemporâneos, cujo Ser se encontra sob o signode uma constante mudança que se auto-engendra, cujoproduto ‘natural’ são sempre coisas realmente novas e quenunca existiram, não podemos imitar a sabedoria política

23 JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma éticapara a civilização tecnológica. Trad. Do original alemão Marijane Lisboae Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006,p. 175)

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dos antigos”24 , ressaltará Hans Jonas.Em nossos dias, também a aproximação entre culturas

e formas de vida muito diferentes umas das outras, fenômenoacentuado pela globalização, acabou gerando anecessidade de repensar os padrões tradicionais de nossopróprio ethos, tudo sob o influxo do inevitávelmulticulturalismo que passou a caracterizar a sociedadeglobal como ela agora se nos apresenta, gerando tambémuma gigantesca desconfiança na razão, especialmenteaquela ideia de razão universal herdada dos gregos. ParaCirne-Lima,

Nossa geração é marcada por umaprofunda desconfiança na razão, o queconduz a um ceticismo e um relativismodifusos na cultura contemporânea erefletidos na produção filosófica de nossosdias (...) O clima espiritual de nosso tempoconstitui para Apel um dilema básico paraa filosofia: a) Ou ela aceita a historificaçãototal do pensar, ou seja, a dependência dejogos contingentes de linguagem e deformas de vida socioculturais econseqüentemente renuncia a toda postura

24 JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma éticapara a civilização tecnológica. Trad. Do original alemão Marijane Lisboae Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006,p. 211

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universalista, tornando-se assim incapaz dedizer qualquer palavra responsável sobre onosso mundo; b) Ou leva a sério o desafioda historificação para mostrar que ela nãosó não elimina a pergunta propriamentefilosófica, isto é, a problemática davalidade, mas a torna mais aguda, pois setrata de tematizar as condiçõesintranscendíveis do discurso humanoenquanto tal25

Veremos, no item 1.6, como alguns dos filósofos daética contemporâneos interpretam o desafio permanente depensar a ética na era da ciência, da tecnologia e da técnica,confrontados com este dilema básico.

Entretanto, antes de fazê-lo, é oportuno discutir umpouco mais acerca da pretensão hegemônica dametodologia das ciências naturais e como tal pretensão foise exaurindo à medida que os pesquisadores desenvolviamseu trabalho, demonstrando porque uma diferenciaçãoradical entre compreensão e explicação já não é maispossível26 .

25 CIRNE-LIMA, Carlos R. V e OLIVEIRA, Manfredo Araújo de.Apresentação à obra Ética do Discurso e Verdade em Apel, doprofessor Regenaldo da Costa, Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. xvi

26 BRAIDA, Celso. Apresentação in SCHELEIERMACHER, Friedrch.Hermenêutica: arte e técnica da interpretação. Petrópolis, RJ: Vozes,1999, p. 8

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2. O conhecimento científico e as incertezas às quaisos pesquisadores foram conduzidos após a crise dopositivismo

As pretensões de neutralidade, objetividade pura euniversalidade do discurso científico caíram por terra com acrise do positivismo, o qual durante muito tempo serviu – esurpreendentemente ainda tem sido invocado para servir -de sustentáculo ideológico ao desenvolvimento da ciência eda tecnologia, impulsionando e sendo impulsionado pelaRevolução Industrial e pelas demais transformaçõeseconômicas e sociais que a ela se seguiram.

Os traços comuns do positivismo, embora se reconheçaque este se insere no desenvolvimento de tradições culturaise filosóficas bastante diversificadas que vão do racionalismocartesiano e Iluminismo na França à tradição empirista,utilitarista e evolucionista na Inglaterra, passando pelonaturalismo renascentista na Itália, são identificados porGiovanni Reale e Dario Antiseri:

O positivismo reivindica o primado daciência: o único conhecimento válido é ocientífico; o único método para adquirirconhecimento é o das ciências naturais; estemétodo consiste no encontro de leis causaise em seu controle sobre os fatos; tal métododeve ser aplicado também ao estudo dasociedade, isto é, à sociologia. Passo apasso, com o primado da ciência comoinstrumento cognoscitivo, temos a exaltaçãoda ciência como único meio capaz de

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resolver, no curso do tempo, todos osproblemas humanos e sociais anteriormentesofridos pela humanidade27

O positivismo foi também o pensamento que esteve nabase ideológica das grandes transformações econômicas esociais ocorridas nas sociedades humanas na era daindustrialização, conhecida como Revolução Industrial, a qualse estende de 1750 e alcança nossos dias, com a RevoluçãoTecnológica e Informacional. Como acentua David Landes,ao tratar deste irrefreável desenvolvimento,

Os aumentos quantitativos de produtividade,naturalmente, são apenas parte do cenário.Além de a tecnologia moderna produzir maise com maior rapidez, ela produz objetos quenão poderiam ser fabricados pelos métodosartesanais do passado (...). Esses avançosmateriais, por sua vez, provocaram epromovem um complexo de mudançaseconômicas, sociais, políticas e culturais,que influenciaram reciprocamente avelocidade e o curso do desenvolvimentotecnológico28

27REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia: doromantismo ao empiriocriticismo. São Paulo: Paulus, 2005, v. 5, p. 287

28 LANDES, David S. Prometeu Desacorrentado: transformaçãotecnológica e desenvolvimento industrial na Europa Ocidental, desde1750 até os dias de hoje. Trad. Marisa Motta, 2ª edição, Rio de Janeiro:Elsevier, 2005, p. 5

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Curiosamente, é possível afirmar que, em uma etapaposterior, a qual já estamos a vivenciar, todas as certezasque a modernidade erigiu à condição de verdadesinsofismáveis, paradoxalmente, foram abaladas pelo próprioprogresso do saber científico acerca da natureza.

Exatamente dos domínios das ciências naturais, cujametodologia o positivismo pretendeu alçar à condiçãohegemônica em relação às demais ciências e saberes,viriam as maiores incertezas e perplexidades que hojedesconstituem e põem em crise o projeto da modernidade,bem como a pretensão de hegemonia da metodologia dasciências naturais. Se não quisermos falar da contribuiçãoda hermenêutica romântica de Schleirmacher (1768-1834),em cujo modelo de compreensão todos os determinantesda hermenêutica já se faziam vislumbrar29 , praticamente

29 “Isso se mostra nas determinantes específicas desse modelo: ainseparabilidade entre sujeito e objeto, uma vez que a compreensãohermenêutica se dá pela inserção daquele que compreende no horizonteda história e da linguagem, as quais são aquilo mesmo que deve sercompreendido; o condicionamento de toda expressão do humano a umdeterminado horizonte lingüístico, o que inclui também o resultado dacompreensão, portanto, a própria ciência; a circularidade entre o todo eo particular, ou a mútua dependência constitutiva entre a parte e atotalidade, que impossibilita a compreensão por mera indução; e, porfim, a referência a um ponto de vista, ou pré-compreensão, a partir doqual se institui todo conhecimento, que estabelece a prioridade dapergunta sobre a resposta e problematiza a noção de dado empíricopuro” (BRAIDA, Celso. Apresentação in SCHELEIERMACHER, Friedrch.Hermenêutica: arte e técnica da interpretação. Petrópolis, RJ: Vozes,1999, p. 8)

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todos os abalos nas certezas científicas e filosóficas damodernidade foram provocados pelo desenvolvimento daprópria ciência.

Para Giovanni Reale e Dario Antiseri, foi exatamenteo advento das geometrias não-euclideanas que ajudou a pôrem xeque “a idéia de que os axiomas são verdadesevidentes, auto-evidentes, incontroversíveis e verdadeiras,para além de qualquer discussão”30

Prosseguem Giovanni Reale e Dario Antiseri,afirmando:

As geometrias não-euclideanas mostraramque os que eram considerados “princípios”nada mais eram do que “começos” e queas proposições vistas então como sehouvessem sido escritas para toda aeternidade nada mais eram do queconvenções (...) Ademais, a física do séculoXIX levou ao apogeu a imagem (filosófica)mecanicista do universo para depois recriar,antes do fim do século, os dados epressupostos que levarão essa imagem auma crise irreversível31

30 REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia: doRomantismo aos nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991, v. 3, p. 353

31 REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia: doRomantismo aos nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991, v. 3, p. 354

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Entretanto, no projeto da modernidade, do qual partiuo positivismo de Comte, a ciência e tecnologia eramclaramente vislumbradas como instrumentos de certezas,veículos de poder do homem sobre a natureza. Filósofoscomo Descartes e Bacon não deixaram de acentuar estarelação de domínio, acreditando nos benefícios que delapoderiam advir, mas sempre pensado o homem como sujeitoda técnica, nunca vislumbrando a possibilidade do homemtornar-se o seu objeto.

Além do mais, a distinção cartesiana e mecanicistaentre res cogitans e res extensa que aparece nasMeditações Metafísicas32 e perpassa todo o sistema deDescartes, permitiu que, com Kant, se aprofundasse aseparação entre homem e natureza, entre alma e corpo, entremente e matéria, tudo isto servindo a um propósito muitoclaro, de acordo com o horizonte de sentidos da época.

Ao dividir o mundo em matéria e mente, aintenção de Descartes era estabelecer umacordo tácito: não atacaria a religião, quereinaria suprema em questões relativas àmente, em troca da supremacia da ciência

32 Cf. DESCARTES, René. Meditações Metafísicas, trad. MariaErmantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 68 (“Assim,para começar esse exame, observo aqui, primeiramente, que há umagrande diferença entre o espírito e o corpo, pelo fato de o corpo, por suanatureza, ser sempre divisível e de o espírito ser inteiramente indivisível”)

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sobre a matéria. Durante mais de 200 anoso acordo foi observado33 .

Esta distinção entre mente e matéria, operada porDescartes, nutria de fundamentos científicos, de certo modo,a pretensão de autonomia da ética kantiana. Séculos maistarde seria, paradoxalmente, a própria ciência na qual seapoiava a visão kantiana de mundo (a Física) que seencarregaria de demonstrar este equívoco, isto porque oadvento das geometrias não-euclidianas e as descobertasda física quântica na primeira metade do século XX levariama Física ao inevitável questionamento dos postulados damecânica clássica.

Espaço e tempo, tidos e havidos como categoriasabsolutas na época de Kant seriam repensados a partir deoutras bases pela Nova Cosmologia. Ademais,desenvolviam-se pesquisas no mundo do infinitamentepequeno (microfísica, física de partículas) e do infinitamentegrande (astrofísica) que, se não solapavam definitivamente,pelo menos punham em xeque a clássica distinção entrematéria e energia, assim como a diferenciação entreobservador (sujeito) e observado (objeto).

Resumidamente, poderíamos afirmar que os princípiosbásicos da filosofia do realismo materialista (objetividadeforte, determinismo causal, localidade, monismo físico ou

33 GOSWAMI, Amit et alii. O Universo Autoconsciente: como aconsciência cria o mundo material, trad. Ruy Jungmann, 3ª edição. Riode Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 2000, p. 37

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materialista e epifenomenalismo), sustentados pelamecânica clássica, de inspiração cartesiano-newtoniana,passam a ser questionados em face do advento da físicaquântica, regida por outros pressupostos (objetividade fraca,incerteza quântica, monismo idealista, não-localidade etc).

Para Jonas, foi também surpreendente que

A tese deduzida da teoria, de que asmatemáticas ocidentais tinham esgotado oseu potencial, foi feita justamente nomomento em que começava um dosdesenvolvimentos mais criativos dessasmatemáticas, abrindo horizontesinteiramente novos34

Baseados na ideia de certezas, às quais conduziriamas metodologias das ciências naturais, Descartes e Baconvislumbraram, porém, um futuro promissor para o projeto damodernidade, pelo qual o homem exerceria definitivamenteseu domínio sobre a natureza, da qual deixaria de ser refémpara transformar-se em senhor.

Como assevera Ivan Domingues,

No início da era moderna, séculos XVI-XVII,Descartes e Bacon formularam aquilo queserá o grande lema da técnica nos novostempos e que até hoje ainda conserva suaatualidade, a saber: nas palavras de

34JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 200

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Descartes, a idéia de que pela ciência epela técnica o homem se converterá emsenhor e possuidor da natureza (algoparecido vamos encontrar em Bacon, autorde uma fórmula não menos famosa,segundo a qual saber é poder)35

De sentir contrário, apenas Rousseau não sedeixou seduzir pelo argumento da utopia progressista ecientificista. Em seu artigo, laureado pela Academia de Dijon,embora reconheça a importância do conhecimento e dasinstituições a ele dedicadas, Rousseau argumenta que “oprogresso material gerado pela ciência e a técnica não setraduz em progresso moral (melhora dos costumes) e noaperfeiçoamento do gênero humano”36 .

A verdade é que a modernidade operou tamanhacisão entre a ética, por um lado e a ciência e tecnologia, deoutro, que só a muito custo conseguiríamos restabelecer oselos perdidos, rearticulando-os em favor de umahumanização da tecnociência, hoje inteiramente dominadapela ideia de progresso e reorientada quase exclusivamentepara o desenvolvimento econômico, tornando-se tecnológica

35 DOMINGUES, Ivan. Ética, Ciência e Tecnologia in Kriterion, BeloHorizonte, nº 109, Jun/2004, p. 160

36 Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso Sobre as Ciências e asArtes. Trad. Lourdes Santos Machado, Coleção Os Pensadores, NovaCultural: São Paulo, 1997

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a própria “forma de relacionamento do homem com arealidade”37 .

Se Rousseau já alertava para os riscos de umprogresso científico-tecnológico desacompanhado deevolução moral, coube a Marx a tematização dos malefíciosaos quais pode conduzir o emprego da ciência numasociedade capitalista, voltada exclusivamente para a lógicado lucro e nutrida pela prática desenfreada do consumo.Para Ivan Domingues, não é outra a visão do autor de OCapital:

Karl Marx, mantendo a idéia da ciência eda técnica como ferramenta ou instrumento,descobre uma novidade e mesmo umaperversidade no seu emprego no mundomoderno: ao se integrarem às forçasprodutivas da economia (maisprecisamente da economia capitalista, emque se colocam a serviço do capital e doaumento da riqueza), em vez de permitirema dominação da natureza e aumentarem aliberdade do homem, a ciência e a técnicaconvertem-se em instrumento dedominação do homem pelo homem einstalam a maior das tiranias, que é o jugo

37 OLIVEIRA, Manfredo. Ética e Racionalidade Moderna. São Paulo:Loyola, 1993, p. 117

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do capital, ao qual está submetida a própriaburguesia38

Quando se trata de pesquisa científica, não são rarosos casos nos quais se identifica o uso de uma terminologiaque disfarça os verdadeiros interesses presentes no debateético sobre a produção do conhecimento e sua utilização.Como constata acertadamente a médica e geneticista ElianeAzevedo,

em países de ciência avançada, as revistascientíficas sérias estão a cada momentorelatando escândalos envolvendo nãoapenas pesquisadores isolados, pesquisasmulticêntricas, mas também tradicionaisinstituições públicas de pesquisa. Aganância de lucro, a ambição de poder e oinsaciável desejo de prestígio pessoal estãocausando cegueira moral em pessoas einstituições e, conseqüentemente,causando danos à ciência por perda decredibilidade39

38 DOMINGUES, Ivan. Ética, Ciência e Tecnologia in Kriterion, BeloHorizonte, nº 109, Jun/2004, p. 161

39 AZEVEDO, Eliane. Terminologia do Disfarce no Debate Ético põe emRisco a Honestidade Intelectual na Informação Científica in Jornal daCiência, publicação da SBPC, Ano XX, nº 566, p. 9

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Em outro artigo, a mesma pesquisadora constata avulnerabilidade da ciência a interesses espúrios e práticasdesonestas, provocada pela sua capacidade de mobilizarmercados gigantescos e ter influências diretas na economia.Ressalta que “a tradicional ética científica, inerente ao próprioaprendizado da boa metodologia científica, tornou-se ineficazpara assegurar à ciência a honestidade que deveria conferir-lhe identidade”40 . Cita vários casos e dados importantes:

Em 1981, a má condução científica tornou-se problema de ordem pública nos EUA,após a comprovação no ano anterior, depesquisas fraudulentas em quatro grandescentros de pesquisa no país, além de 12pesquisas isoladas no período de 1974 a1981. Em 1985, através de atosadministrativos, o governo norte-americanodeterminou a Universidades e instituições depesquisa a revisão administrativa de relatosde fraudes em pesquisa e, em 1986, instruiuo Instituto Nacional de Saúde (NationalInstitutes of Helth – NIH) a receber e atenderos relatos de fraudes. Ao longo dos anos, aconstrução do controle social da má condutaem ciência consolidou-se através,principalmente da criação do Escritório deIntegridade Científica (Office of ResearchIntegrity – ORI) e de Comissões sobre

40 AZEVEDO, Eliane. Integridade Científica no Brasil in Jornal daCiência, publicação da SBPC, Ano XX, nº 555, p. 10

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Integridade em Pesquisa. Em recentepublicação, de março de 2005, o referidoescritório relatou, para o período de 1994 a2003, a ocorrência de 133 casos de mácondução científica. Desses, 53% foram porfalsificação de dados, 29% por fabricaçãode resultados, 36% por ações conjuntas defabricação/falsificação, entre outrasdesonestidades ocorridas com menoresfreqüências (ORI Newsletter, vol. 12, nº 2,2005)

Por estas e outras razões, há de se observar anecessidade de resguardar a importância de determinadosvalores que precisam ser pressupostos na obtenção dequalquer consenso, sobretudo na comunidade científica, poiscomo acentua Glauco Filho,

Até mesmo a obtenção do consenso numacomunidade de cientistas da natureza quecuidam de verdades empíricas, pressupõeo reconhecimento de certas normas moraisque exigem lealdade nas pesquisas ehonestidade na exposição dos seusresultados sob o argumento de que sãocondições para a obtenção da própriaverdade empírica procurada41

41 MAGALHÃES FILHO, Glauco B. Teoria dos Valores Jurídicos: umaluta argumentativa pela restauração dos valores clássicos. Belo Horizonte:Mandamentos, 2006, p. 75

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Embora com visões distintas acerca da ciência e dacivilização tecnológica que esta engendrou, todos osfilósofos aos quais nos referimos neste contexto daracionalidade moderna, sejam os otimistas em relação a taisprogressos (Descartes e Bacon), sejam aqueles quechegaram a vislumbrá-los com certa dose, maior ou menor,de pessimismo teórico (Rousseau e Marx), abordaram aquestão tomando como parâmetro um viés antropocêntricode análise. Por este viés, passaram a compreender todasas questões relacionadas à ciência tomando o homem comoo destinatário de suas descobertas e o único afetadodiretamente, de forma positiva ou negativa, por elas. Assim,como ressalta mais uma vez Ivan Domingues,

O ponto é que todos eles, em maior oumenor grau, seja para combater, seja paraendossar ou apoiar, falam da ciência e datécnica a partir de um mesmo lugar ou pontode vista e com base no mesmo parâmetro:o lugar é o homem e o ponto de vista, ohomem; o parâmetro é a ciência e técnicacomo instrumento e meio do poder, e, comotal, vinculada ao homem e a suas ações,seja para libertá-lo e oferecer-lhe uma novamorada, seja para manipulá-lo e sujeitá-lo

Em nenhum momento, estavam ou poderiam estar nohorizonte dos filósofos modernos a autonomização da técnicae a instrumentalização do homem, com a consequentesujeição deste ao objeto de seu engenho, sujeição estapatrocinada pelo próprio progresso científico-tecnológico,

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hoje capaz de desenvolver, entre outras coisas, amanipulação genética, seja para o bem ou para o mal.

Na filosofia contemporânea, encontramos passagemcélebre de Heidegger, em cuja fonte contemporânea HansJonas foi certamente inspirar-se. Nela, encontra-se tal ordemde preocupações. Trata-se de trecho do opúsculo Superaçãoda Metafísica, publicado em 1954:

Uma vez que o homem é a mais importantematéria-prima, pode-se contar que, combase nas pesquisas químicas atuais, serãoinstaladas algum dia fábricas paraprodução artificial de material humano. Aspesquisas do químico Kuhn, distinguidoneste ano com o prêmio Goethe na cidadede Frankfurt, já abrem a possibilidade dedirigir a produção de seres vivos machos efêmeas planificadamente de acordo com asnecessidades42

Para Heidegger, “a ameaça ao ser humano não vemem primeiro lugar das máquinas e aparelhos possivelmentemortais da técnica. A verdadeira ameaça já atacou o serhumano em sua essência”43 .

42 HEIDEGGER, Martin apud DOMINGUES, Ivan. Ética, Ciência eTecnologia in Kriterion, Belo Horizonte, nº 109, Jun/2004, p. 164

43 HEIDDEGGER, Martin apud SAFRANSKY, Rüdiger. Heidegger: ummestre da Alemanha entre o bem e o mal. Trad. Lya Lett Luft. SãoPaulo: Geração Editorial, 2005, p. 465

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E será precisamente contra esta “morte essencial” dohomem que o filósofo Hans Jonas lançará como alerta a<<heurística do temor>>, a fim de evitá-la. A humanidade,décadas depois da fala de Heidegger, assistiria ao debatefilosófico sobre a experimentação com seres humanos e seuslimites éticos, patrocinado exatamente pelo ex-discípulo do autorde Ser e Tempo, cujo pensamento revela ainda umasurpreendente atualidade.

Em seu livro Ética, Medicina e Técnica, Jonas discutetemas que vão da eugenia à engenharia biológica,estabelecendo inicialmente o diferencial de sua proposta emrelação às éticas tradicionais que a antecederam:

Todas as éticas hoje conhecidas – quer asque formulam inequivocamente injunções defazer certas coisas e não fazer outras, queras que definem princípios para tais injunções,ou ainda as que estabelecem o fundamentoda obrigação que leva à obediência àquelesprincípios – tinham em comum as seguintespremissas interdependentes: que a condiçãohumana, determinada pela natureza dohomem e pela natureza das coisas, era umdado intemporal; que nessa base, o bemhumano era imediatamente determinável; eque o âmbito da acção e, logo, daresponsabilidade humanas, se encontravacuidadosamente delimitado44

44JONAS, Hans. Ética, Medicina e Técnica, Lisboa: Vega Passagens,1994, p. 26

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Para Jonas, “a natureza qualitativamente nova de certasdas nossas acções abriu uma dimensão inteiramente novade significado ético, para a qual não existe precedente nosmodelos e cânones da ética tradicional”. Justifica talafirmação citando os novéis poderes advindos doagigantamento do braço humano sobre o mundo natural e,consequentemente, sobre si mesmo, ampliandoconsideravelmente o domínio para além daqueles limitesantes tidos como inteiramente naturais e indetermináveispela ação humana, os limites da vida e da morte. Taisampliações, sob o aspecto fenomênico, se manifestam naspráticas da eutanásia e da distanásia, da criação de novasespécies pela manipulação genética de organismosgeneticamente modificados ou pela extinção de espéciesvivas decorrente de práticas predatórias.

Situação bem diferente, ressalta Jonas, viviam asteorias éticas do passado, para as quais a imunidade dotodo mantinha-se praticamente “imperturbada do seu âmagopelas importunidades do homem”45 , cujo poder de intrusãonos domínios da ordem cósmica eram mínimos oupraticamente inexistentes.

Vivemos numa época muito problemática, um períodode tempo no qual as incertezas dominam as investigaçõescientíficas, alimentando um relativismo moral que podeconduzir a resultados nefastos se tais incertezas não serviremsimplesmente para revelar as insuficiências do discursocientífico, por vezes apresentado erroneamente pelos

45JONAS, Hans. Ética, Medicina e Técnica, Lisboa: Vega Passagens,1994, p. 31

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positivistas como a única linguagem capaz de descrever einterpretar a realidade.

Se por um lado, o relativismo moral ao qual poderiamconduzir as investigações científicas é desaconselhável, seuoutro extremo (o fundamentalismo moral) é outro perigoiminente, apresentado muitas vezes como refúgio àsincertezas. E aqui me refiro a todas as formas defundamentalismo, sejam elas políticas, religiosas, filosóficasou éticas. O próprio cientificismo é uma forma defundamentalismo, já denunciada por Paul Feyerabend, aosustentar ser a ciência a mais dogmática e intolerante detodas as religiões.

Fugir a estes dois extremos é o grande desafio da éticana contemporaneidade. Incorrer em um deles, o risco comumao qual estamos todos submetidos. A construção de umaética solidária e universal depende, em larga escala, doenfrentamento destas incertezas e da fuga destes extremosaos quais poderia conduzir a investigação filosófica emnosso tempo.

Há de se concordar com a tese de Apel quando estese mostra inimigo das posturas relativistas, mas sem incorrerem fundamentalismos religiosos, filosóficos, científicos oude qualquer outra natureza. Como demonstra muito bem oautor dos Estudos de Moral Moderna,

se você argumenta em favor do relativismo,então, ao mesmo tempo, está apelandopara uma comunidade ideal. Quem ageassim pressupõe coisas que nega, comopor exemplo, uma noção de validadeuniversal, a existência de normas morais

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universais, pelo menos quandoargumenta46 .

As incertezas às quais o pensamento científico e filosóficofoi conduzido não podem, portanto, conduzir a um labirinto deceticismo no qual aprisionemos qualquer possibilidade deenfrentamento da questão ética, qualquer possibilidade deconhecimento.

Aliás, o próprio Descartes já demonstrou na SegundaMeditação, ao reduzir ao absurdo a dúvida dos céticos, que oceticismo absoluto tornar-se-ia logicamente contraditório einsustentável, uma vez que, como afirma “o espírito, que, usandode sua própria liberdade, supõe que não existem todas ascoisas, da existência das quais tem ele a menor dúvida,reconhece que é absolutamente impossível que, entretanto, elemesmo não exista”47 .

Além do ceticismo, outra tentação da atualidade é orelativismo, pelo qual toda ação do homem seria justificável,ante a inexistência de princípios morais absolutos ou até mesmoo niilismo, ensejador da crítica irresponsável e inconsequentea todas a formas ou padrões da moralidade, sem que seapresente qualquer outro para substituí-los.

Não se trata, portanto, de substituir um dogmatismo poroutro, mas de reconhecer as limitações do discurso metafísico

46APEL apud ASSIS, Jesus de Paula. Karl-Otto Apel: a raiz comumentre ética e linguagem in Estudos Avançados, vol. 6, nº 14, USP: SãoPaulo, 1992, p. 179

47 DESCARTES, René. Meditações Metafísicas, trad. Maria ErmantinaGalvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 24

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clássico sem tomar como absoluto o relativismo que, levadoao extremo, conduziria a certo imoralismo, extremamenteinsustentável diante do quadro que temos oportunidade devivenciar na civilização tecnológica.

Julgamos ser possível enfrentar as incertezas quepoderiam conduzir ao relativismo, ao ceticismo ou ao niilismoético, construindo os parâmetros de uma ética universal esolidária, que leve em conta igualmente o interesse primordialdas futuras gerações à existência autêntica.

A Declaração de Veneza, fruto deste esforço de fazerdialogarem saberes que antes eram tidos e havidos comoopostos e excludentes, representa uma primeira grandetentativa de perceber que

o conhecimento científico, devido a seupróprio movimento interno, chegou aos limitesonde pode começar o diálogo com outrasformas de conhecimento. Neste sentido,reconhecendo os diferenças fundamentaisentre a ciência e a tradição, constatamos nãosua oposição mas sua complementaridade.O encontro inesperado e enriquecedor entrea ciência e as diferentes tradições do mundopermite pensar no aparecimento de uma novavisão da humanidade, até mesmo num novoracionalismo, que poderia levar a uma novaperspectiva metafísica48

48 Cf. DECLARAÇÃO DE VENEZA apud CREMA, Roberto. Introduçãoà Visão Holística: breve relato de viagem do velho ao novo paradigma,São Paulo: Summus Editorial LTDA, 1989, p. 103-5.

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Neste aspecto, a Ética da Responsabilidade, quepressupõe pensar em funções muito mais que em estruturas,percebendo o conjunto e a totalidade dos seres vivos emsua dinâmica interacional presente e futura, apresenta-secomo um importante referencial para repensar a ética nacrise da modernidade. Trata-se de uma forma mais sistêmica,ecológica ou holística de pensar a ética.

Se depois da reviravolta linguístico-pragmática, tornou-se praticamente impossível retroceder à sustentação integralde valores clássicos, valores estes que eram apresentadoscomo objetivos e imutáveis e excluiriam a priori outrosmodelos, a base da nova ontologia não está mais naimutabilidade da essência, mas naquilo que nós mesmosdenominamos realidade em sua mais profundavulnerabilidade.

3 A exaustão do paradigma mecanicista

Durante toda a modernidade, a interpretaçãomecanicista e dualista praticamente dominou o pensamentofilosófico e científico sem que sofresse contestaçõessignificativas49 .

O método cartesiano, proposto no Discurso sobre oMétodo, que passou a ser considerado uma espécie de“magna carta” da nova filosofia, conduzia toda e qualquerreflexão independente da complexidade de assuntos sobre

49 Vejam-se, apenas a título de exemplificação daqueles quecompreenderam o mundo como máquina, as figuras exponenciais deGalileu, Descartes, Newton e muitos outros, cujo pensamento repercutiuem vários domínios do saber científico

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os quais versava. Assim, o modelo de pensamento moregeométrica demonstrata50 foi praticamente absolutizado,fazendo escola nas filosofias posteriores, inclusive comreflexos no pensamento de Leibniz, para quem os escritosde Descartes constituíam

vestíbulo da verdadeira filosofia, já que,embora ele não tenha alcançado seu núcleoíntimo, foi quem dele se aproximou mais doque qualquer outro antes dele (...) Quem lerGalileu e Descartes se encontrará emmelhores condições de descobrir a verdadedo que se houvesse explorado todo ogênero de autores comuns51

Adotando caminho que considerava seguro e capazde conduzir às ideias claras e distintas, Descartes propunha

50 No Discurso sobre o Método, é possível ler a descrição desteprocedimento na seguinte passagem: “aquela longa cadeia de raciocínios,todos simples e fáceis, de que os geômetras têm o hábito de se servirpara chegar às suas difíceis demonstrações, me havia possibilitadoimaginar que todas as coisas de que o homem pode ter conhecimentoderivam do mesmo modo e que, desde que se abstenha de aceitar comoverdadeira uma coisa que não o é e respeite sempre a ordem necessáriapara deduzir uma coisa da outra, não haverá nada de tão distante quenão se possa alcançar, nem de tão oculto que se não possa descobrir”

51 LEIBNIZ apud REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História daFilosofia: do humanismo a Descartes. Trad. Ivo Storniolo. São Paulo:Paulus, 2004, v. 3, p. 283

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à comunidade de investigadores de seu tempo o seguinteprocedimento metodológico:

1) jamais receber por verdadeiro o que osujeito não percebe evidentemente comotal; 2) dividir cada uma das dificuldades aserem examinadas em tantas parcelasquantas forem possíveis e necessárias paramelhor resolvê-las; 3) conduzirordenadamente os pensamentos, acomeçar pelos objetos mais simples e maisfáceis de conhecer, a fim de elevar-se,pouco a pouco, por graus sucessivos, até oconhecimento dos mais complexos; 4)proceder a enumerações completas erevisões gerais, de modo a assegurar-sede que nada foi omitido nessa análise52

Obviamente, este modelo proposto deixa muito adesejar quando se trate do exame das sociedades humanas,ou da justiça, ou ainda da complexidade dos sistemas vivose suas relações. Por esta razão, sobejam contra-propostas53 , algumas das quais já revelam a tendência de

52 DESCARTES, René. Discours de la méthode, texto e comentáriopor Etienne Gilson, Paris, Librarie Philosophique J. Vrin, 1987, pp. 18-9

53 Cf. FEYERABEND, Paul. Contra o Método. (“A idéia de um métodoque contenha princípios firmes, imutáveis e absolutamente vinculantescomo guia na atividade científica se embate em dificuldadesconsideráveis quando é posta em confronto com os resultados dapesquisa histórica”)

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uma visão integradora, a despontar em várias áreas doconhecimento diferentes, desafiando inclusive a filosofia apensar sobre elas.

Como ressalta Fábio Konder Comparato,

Após séculos de interpretação unilateral dofenômeno societário, o pensamentocontemporâneo parece caminhar,convergentemente, para uma visãointegradora das sociedades e dascivilizações. No passado, com rarasexceções, prevaleceu uma concepçãoreducionista, segundo a qual o elementogerador da convivência social estaria, comexclusividade, nos valores ou ideaiscoletivos, no conjunto das instituições depoder, ou então nas condições materiais desubsistência dos grupos humanos.Tínhamos, assim, organizadas em escolasmutuamente excludentes, três formas deinterpretação da vida social, quepoderíamos denominar de modosimplificado, a idealista, a realista e amaterialista54 .

Além de Descartes, a construção do discurso científicoda modernidade também encontra na obra de Francis Bacon

54 COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundomoderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 18

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sua estruturação metodológica fundamental. Na medida emque se consolidava, o saber científico procuraria demonstraras possibilidades infinitas de domínio da natureza. O saberera apresentado claramente como uma forma de poder, naperspectiva mais instrumental possível: este poder deveriaser exercido sobre a natureza e, consequentemente, sobreos outros homens.

Outro marco histórico que delimita bem o surgimentodesta forma de pensar a relação homem-natureza,instrumentalizada pelas ciências, é a publicação da obraNovum Organum, de Francis Bacon. Esta obra teveimportância decisiva na construção do paradigmamecanicista na modernidade, razão pela qual passaremosa comentá-la para discutir como e por que se verificou aexaustão deste modelo mecanicista.

Não é possível compreender qualquer obra, entretanto,sem inseri-la em determinado horizonte histórico. O modocomo viveu seu autor é igualmente importante, até paracompreender o tipo de preocupação predominante na época,a fim de fazer uma adequada interpretação do texto pelasua correta contextualização, procurando reconstituir aindaque parcialmente e de modo incompleto o seu sentidooriginal, quase sempre perdido pela inclinação que leva alê-la a partir de nossa própria cosmovisão e dasparticularidades de nosso tempo histórico.

O Novum Organum, publicado em 1620 na Inglaterragovernada por Jaime I, é uma das obras mais importantesde Francis Bacon, lançando as bases da ciênciaexperimental moderna. Nela, o paradigma mecanicista acha-se representado pelo desejo de suplantar todos osobstáculos psicológicos ou ideológicos (idola) para garantir

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o progresso das ciências, à semelhança do que fizeram asartes mecânicas, as quais, na visão de Bacon, encontraram“uma maneira segura e mais perfeita de pôr em ação oentendimento humano”55 .

Bacon viveu numa época na qual a ReformaProtestante já havia iniciado a sua crítica à concepção cristãtradicional, representada pela fé católica, crítica quepressupunha denominar como idolatria a veneração deimagens, assunto que foi objeto de um concílio56 e que levariamais tarde à prática da iconoclastia por determinados gruposprotestantes.

Por sua vez, na época de Francis Bacon, oRenascimento (1350-1600), caracterizado pela retomada dacultura clássica greco-romana, já se difundia por toda aEuropa e a Revolução Científica (1500-1750) era o fenômenosocial e cultural de maior repercussão na vida cotidiana, oque de certa forma permite vislumbrar as razões das suaspreocupações filosóficas e científicas. Este filósofo passa aver no vertiginoso progresso das ciências a possibilidadede redenção do gênero humano, um meio de prolongar avida e mitigar a dor, como na imaginária Bensalém57 ,

55BACON, Francis apud HUISMAN, Denis. Dicionário de ObrasFilosóficas. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes,2000, p. 405-6

56 O II Concílio de Nicéia de 787 d.C., concílio “ecumênico” que reuniraas igrejas cristãs da época aceitou a veneração de imagens, admitindoesta prática

57Cf. HUISMAN, Denis. Dicionário de Obras Filosóficas. Trad. IvoneCastilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 398-9

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concebida em outra de suas obras, intitulada Nova Atlântida.A doutrina dos ídolos exposta no Novum Organum foi

apresentada exatamente como uma teoria que trata dasprincipais causas do erro nas ciências, a fim de evitá-las egarantir, assim, o progresso do saber científico. A evoluçãodo saber científico conduziria a humanidade a um podersobre a natureza, à guisa das ideias expostas na sua utopiaimaginada em Nova Atlântida. Esta última obra é umaverdadeira metáfora visionária dos progressos científicosque seriam empreendidos no futuro, que hoje se faz presente.Senão, vejamos dela um pequeno trecho:

Temos também meios de fazer nasceremdiversas plantas sem sementes, tãosomente pela mistura de terras e,igualmente, de criar diversas plantas novas,diferentes das comuns, e, ainda, detransformar árvores e plantas em umaespécie diferente (...) Temos ainda lugaresapropriados para o cultivo e a geração dasespécies de vermes e moscas que têmalguma utilidade (...)58

Em toda a obra, a exaltação dos feitos doscientistas é a utopia de que o progresso das ciênciasconduziria a um bem-estar sem precedentes. Em nenhummomento, Bacon questiona acerca das repercussões éticas

58 BACON, Francis. Nova Atlântida, 2ª edição, trad. José Aluysio Reisde Andrade, São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 265

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de tais conquistas e progressos. È natural, como ressaltaJonas, que em virtude dos extraordinários progressosalcançados pela ciência e a técnica, sejamos “tentados acrer que a vocação dos homens se encontra no contínuoprogresso desse empreendimento, superando-se semprea si mesmo, rumo a feitos cada vez maiores”59 .

À medida que o poder da ciência se ampliava e estalançava seus tentáculos no mundo natural, alargavam-se asdificuldades das éticas tradicionais em dar conta da novaordem de problemas que suscitavam intervenções cada vezmais constantes e velozes do homem nos domínios danatureza. E, se à época de Descartes (1561-1626) e Bacon(1517-1648), tais investidas ainda eram e podiam ser bemrecebidas como reflexo do gênio e do engenho humano,posteriormente passaram a representar uma séria ameaçaà subsistência da própria biosfera.

Apesar da indisfarçável admiração de seuscontemporâneos pela cultura clássica, Bacon fazia suasreflexões se voltarem para o futuro das ciências, jamais lhesquestionando a orientação ética. Rejeitou a teoria das ideiasde Platão, assim como o inatismo e procurou superar a visãoque entendia ser ainda muito restrita presente no Organonde Aristóteles. Rejeitara com igual veemência o platonismoe o aristotelismo para tentar construir um discurso maismoderno sobre o método das ciências experimentais.

59 JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma éticapara a civilização tecnológica. Trad. Do original alemão Marijane Lisboae Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006,p. 43

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Bacon desenvolverá a indução amplificadora, a qualpermite fazer inferências de proposições lógicas universaisafirmativas a partir de proposições particulares afirmativas,o que se afigura bastante problemático, sobretudo seconsideramos as críticas que a indução sofreriaposteriormente60 .

Tendo constituído a base do método experimentalmoderno, com a pretensão de aplicá-lo apenas às ciênciasda natureza, Bacon preocupa-se não somente em eliminaros erros na pesquisa científica. Neste espírito, elabora aTeoria dos Ídolos, por meio da qual recomenda várias formasde evitar o erro e alcançar o conhecimento nas ciências. Hojehá quem defenda a possibilidade da teoria dos ídoloselaborada por Bacon aplicar-se às ciências humanas esociais. Mais recentemente, há estudos acerca de suaaplicação à sociologia do conhecimento, especialmente no

60 Mais tarde, David Hume demonstraria as falhas e equívocos aos quaispode conduzir a indução, ao afirmar: “em vão pretendereis ter conhecidoa natureza dos corpos a partir de vossa experiência passada. Sua naturezaoculta e, por conseguinte, todos os seus efeitos ... podem mudar, semque haja qualquer modificação em suas qualidades sensíveis ... Quallógica... vos assegura contra esta conjectura? Minha prática, dizeis,refuta minhas dúvidas. Mas, neste caso, confundis o significado de minhaquestão ...; como filósofo dotado de alguma curiosidade – não direiceticismo – quero saber o fundamento desta inferência”, tecendo assimuma forte crítica à indução amplificante e caracterizando-a comoproblemática (cf. BARRETO, José Anchieta Esmeraldo e VERLAINE,Rui. O Problema da Indução: o cisne negro existe, Edição dos Autores:Fortaleza, 1993, pp. 106-7)

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que concerne à análise do papel da ideologia narepresentação conceitual que as teorias científicas fazemda realidade.

Ressalve-se que, a despeito da busca baconiana porcerta objetividade, neutralidade e certeza da ciência, cujoconhecimento prévio da doutrina dos ídolos ajudaria a atingir,epistemólogos contemporâneos como Karl Popper têmreconhecido a importância do erro61 para o progresso dasciências. Também há um certo reconhecimento da presençainafastável da ideologia na constituição mesma das basessociais do conhecimento científico por expressivos nomesda sociologia do conhecimento, o que não implica a adoçãodo relativismo.

Há, atualmente, inegável equívoco em aceitaracriticamente a tese baconiana segundo a qual “saber époder”. A sua imaginária Nova Atlântida62 , sobretudo após

61 OLIVEIRA, Newton Kepler de. Problema da Demarcação em KarlPopper. Dissertação de Mestrado em Filosofia (UFC), 2004. Nela lemosa seguinte conclusão: “A proposta de aprendizagem com os próprios errostalvez seja a grande contribuição do pensamento popperiano para a filosofiae para a ciência. Isso se deve ao esforço de Popper para afastar de umavez por todas a pretensão de acesso à certeza absoluta e definitiva dasorigens e das finalidades das coisas da natureza (...) para Popper oconhecimento científico é especificamente conjectural” (p. 104)

62 Obra de Bacon publicada postumamente em 1627 e na qual apresentade forma visionária a ciência como uma espécie de redentora do gênerohumano, responsável pelo advento de uma nova civilização, na qual dominara natureza seria o principal objetivo do homem para garantir a felicidadedo gênero humano

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os maléficos efeitos da energia nuclear, da radiação e dasdesastradas intervenções do homem no afã de dominar anatureza, não passa de uma malograda falácia quandoafastada das preocupações de ordem ética que devemnortear, com prudência, toda e qualquer pesquisa. Comoressalta Jonas,

O que chamamos de programa baconiano– ou seja, colocar o saber a serviço dadominação da natureza e utilizá-la paramelhorar a sorte da humanidade – nãocontou desde as origens, na sua execuçãocapitalista, com a racionalidade e a retidãoque lhe seriam adequadas; porém, suadinâmica de êxito, que conduzobrigatoriamente aos excessos daprodução e consumo, teria subjugadoqualquer sociedade, considerando-se abreve escala de tempo dos objetivoshumanos e a imprevisibilidade real dasdimensões de êxito (uma vez que nenhumasociedade se compõe de sábios)63

Assim, a necessária preocupação com a preservaçãodos ecossistemas, se não poderia estar no horizonte dosideais de Bacon, deve permear hodiernamente todas as

63 JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma éticapara a civilização tecnológica. Trad. Do original alemão Marijane Lisboae Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006,p. 235

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pesquisas científicas e algo como o princípioresponsabilidade, de Hans Jonas, não pode ser olvidado.É, no mínimo, recomendável alguma prudência para que asconsequências do agir humano ampliado pela técnica nãose tornem prejudiciais ao meio ambiente, ameaçando ofuturo das próximas gerações de seres vivos.

No passado, como acentua Hans Jonas, “a naturezanão constituía objeto da responsabilidade humana, cuidandoela de si própria”64 . Hoje, porém, é mais salutar e atéimprescindível, adotarmos de forma prudente a sua heurísticado temor, mantendo-nos atentos às transformações pelasquais passa a biosfera e suas imprevisíveis consequências,dando prioridade aos piores diagnósticos e inserindo ofuturo das gerações seguintes como grandeza deontológicaem nossas reflexões. Isto é preferível a adotar um otimismoinconsequente e até ingênuo diante das últimas descobertasda ciência, otimismo pelo qual se deixou levar o utopismobaconiano.

A este propósito, a imprensa, geral e a especializada,local e de todo o mundo, tem relatado as consequênciasnefastas da adoção pela civilização tecnológica de uma visãomecanicista de progresso que não levou em consideraçãoa sobrevivência e sustentabilidade das futuras gerações deseres vivos. As notícias têm dado conta de ameaças reaisao ecossistema planetário:

UM PLANETA COM FEBRE. AlertaAmbiental. O aquecimento global e as

64 JONAS, Hans. Ética, Medicina e Técnica, Lisboa: Vega Passagens,1994, p. 32

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mudanças climáticas já são realidade, comameaças de derretimento de grandesmassas de gelo e aumento do nível médiodo oceano, podendo gerar exiladosambientais (...) QUARTO RELATÓRIO DAONU SOBRE MUDANÇA CLIMÁTICA.Uma bomba–relógio política está prestes aexplodir na próxima semana com apublicação em 2 de fevereiro, do primeirocapítulo do quarto relatório do PainelIntergovernamental sobre MudançaClimática (IPCC, na sigla em inglês), amaior autoridade científica da ONU sobreas causas e os efeitos do aquecimentoglobal. Entre os principais itens do relatório,devem constar os seguintes: o aquecimentoglobal, sobretudo provocado pela queimadescontrolada de combustíveis fósseis, estáse acelerando; a mudança climática, cominício esperado para começar dentro dealgumas décadas, já está ocorrendo, o quepode ser observado no derretimento dasgeleiras, no afinamento da calota polar noÁrtico e no recuo das áreas de subsolopermanentemente congelado; umaconseqüência imediata para a humanidadeserá a mudança nos padrões de chuva,levando a uma intensificada pressão sobreas águas, com secas prolongadas e cheias;se as temperaturas se elevarem demais,isto aumentará o acúmulo de gases de

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efeito estufa, correntemente armazenadosno solo, na atmosfera, acelerando assim oaquecimento global; entre as potenciaisameaças, dependendo do nível de poluiçãofuturo, estão níveis marinhos mais elevadose tempestades violentas mais freqüentes65

Nunca em toda a história da humanidade, atingimostamanho grau de desenvolvimento científico-tecnológico. Aomesmo tempo, nunca estivemos tão ameaçados de nosextinguir e de destruir o planeta. Seria um paradoxo que aera da nanotecnologia, da clonagem e da manipulação dopatrimônio genético dos seres vivos viesse a se tornar,também, a era de completa destruição da vida.

O pensamento moderno, representado pelomecanicismo, conduziu-nos a este labirinto e somente areflexão ética de todos, em um amplo debate público sobreas consequências do progresso científico-tecnológico, podenos fornecer, talvez a tempo de evitar o pior, um fio de Ariadneque nos resgate deste destino-labirinto comum. É precisosuperar, como fizera Apel, a ideia de ciência que funcionede forma endógena, isto é, voltada simplesmente àcomunidade dos investigadores ou especialistas, a qual sereferia Pierce, a fim de ampliar o debate público sobre asrepercussões éticas da ciência.

Encontramo-nos em plena exaustão do paradigmamecanicista, o qual se firmou na modernidade e, agora, entra

65Jornal O Povo, Ciência e Saúde (encarte), Fortaleza-CE, 28 de janeiroa 3 de fevereiro de 2007, p. 1. Fonte: agência AFP

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em crise, já não sendo mais possível afastar a ciência dosdomínios da eticidade. A crise da modernidade é, portanto,a crise do homem e, em última instância, a crise dos modeloséticos antropocêntricos que se revelam insuficientes paraenfrentar os novos desafios. Na contemporaneidade, aconcepção de natureza como máquina entra em crise e aséticas tradicionais não serão capazes de dar conta da novaordem de problemas gerada pelo desenvolvimento técnico-científico.

Como enfatiza o astrofísico Christian Magnan,

na realidade, se considerarmoserroneamente o discurso de que a naturezaé constituída como uma máquina, issopoderá fazer com que algumas pessoas sesintam confortáveis com a idéia de que tudofunciona segundo um tal modelo, incluindoo próprio homem66

Como ressaltou Thomas Kuhn, entretanto, é próprio deum paradigma dominar as discussões e a produçãocientífico-filosófica de uma época, para logo em seguida sersuplantado por outro paradigma a partir do momento em queas novas teorias acerca da realidade não mais se encaixemno paradigma hegemônico. Assinala ainda o físico PierrePapon:

66 MAGNAN, Christian apud PESSIS-PASTERNAK, Guitta. A Ciência:deus ou o diabo? Trad. Edgard de Assis Carvalho, Mariza Perassi Bosco,São Paulo: Editora UNESP, 2001, p. 198

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É evidente que, em certas épocas, umaconcepção particular do mundo,ligeiramente colorida pelas temáticascientíficas dominantes, exprime-se por umalinguagem científica. Foi assim que a “visãomecanicista” do Universo, herdada damecânica de Newton, dominou por muitotempo a atividade científica e social doséculo XIX, ao passo que, no século XX, afísica quântica e a relatividade levaram àadoção das noções de “descontinuidadeestrutural” da matéria67

Portanto, a exaustão do paradigma mecanicista fezcom que ruíssem muitas das certezas da modernidade,obrigando-nos a repensar com ela, os modelos de eticidadedos quais se serviu. Não é à toa que Hans Jonas proclamaa humildade como “a virtude hoje necessária como antídotopara a ruidosa arrogância tecnológica”68 , pois sem tal virtude,dificilmente poderemos enfrentar a crise da razão e doconhecimento.

Evidentemente, vivenciamos uma crise doconhecimento. Esta crise decorre do fato de não ser possível

67 PAPON, Pierre apud PESSIS-PASTERNAK, Guitta. A Ciência: deusou o diabo? Trad. Edgard de Assis Carvalho, Mariza Perassi Bosco, SãoPaulo: Editora UNESP, 2001, p. 163-4

68 JONAS, Hans. Ética, Medicina e Técnica, Lisboa: Vega Passagens,1994, p. 65

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enquadrar a complexidade dos sistemas sociais e biológicosnos limites do mecanicismo. Não é outra a visão deComparato, embora ainda dotada de certo teorantropocêntrico:

Os seres vivos e, em especial, os sereshumanos, que são o que de mais complexoexiste no Universo, só podem sercompreendidos, na totalidade integradorado conjunto dos elementos que oscompõem, mediante a consideraçãoconjunta de sua dinâmica interna e de suafuncionalidade externa. Em outras palavras,para que possamos entender qualquerelemento da biosfera, e em especial ohomem, é indispensável enxergá-loholisticamente (holos, na língua grega, é umadvérbio que significa em sua totalidade);portanto, não apenas sob o aspectoestrutural, mas também funcional. Em vezde decompor as partes do todo e analisá-las em separado, é preciso considerar atotalidade em sua organização completa,bem como entender o seu relacionamentocom o mundo exterior; vale dizer, desvendaro seu organograma e o seu programa69

69 COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundomoderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 19

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Porém, fragmentando para conhecer e adotandoalógica de dividir para conquistar, a ciência tornou-se umsaber meramente instrumental e, portanto, perigoso.Comentando a instrumentalidade do saber científico, EdgarMorin chega a afirmar que “a ciência tornou-se muitoperigosa para ser deixada nas mãos dos estadistas e dosEstados. Dizendo de outra forma, a ciência passou a serum problema cívico, um problema dos cidadãos”70 .

É preciso resguardar as gerações futuras dasconsequências de um saber irresponsável, de uma ciênciaproduzida sem consciência, de uma sociedade que pretendesubstituir integralmente o ethos pela técnica e a qualquercusto. Morin está certo ao afirmar a periculosidade da ciênciaquando destituída de uma orientação axiológica mais ampla.Ademais, sendo a ciência um problema social e político denossos dias, o debate acadêmico acerca de seus eventuaislimites éticos torna-se urgente, sobretudo na universidade,locus privilegiado no qual tem sido produzida.

Lamentavelmente, a discussão destas questõesrelativas às repercussões sociais e políticas doconhecimento ou de seus limites éticos não é frequente,inobstante os problemas de bioética e ciberética, hojesuscitados em face das inúmeras, crescentes, velozes e,muitas vezes, até irreversíveis transformações tecnológicas.

70 MORIN, Edgar. Ciência com Consciência, 4ª edição, trad. Maria D.Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,2000, p. 133

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Como ressalta o próprio Habermas,

é nessa situação que nos encontramoshoje. O progresso das ciências biológicase o desenvolvimento das biotecnologiasampliam não apenas as possibilidades deação já conhecidas, mas tambémpossibilitam um novo tipo de intervenção (...)As novas tecnologias nos impingem umdiscurso público sobre a corretacompreensão da forma de vida culturalenquanto tal. E os filósofos não têm maisnenhum bom motivo para abandonar esseobjeto de discussão dos biólogos e dosengenheiros entusiasmados pela ficçãocientífica71

Entretanto, a preocupação com os conflitos moraisoriundos dos avanços da ciência e da tecnologia, atualmenteobjeto de discussão pela bioética e outras disciplinas, nãodeve efetivar-se apenas em face da necessidade depreservação ambiental ou limitar-se a orientar taisprogressos a uma destinação positiva, pois como ressaltaPe. Vaz:

71 HABERMAS, Jürgen. O Futuro da Natureza Humana: a caminhode uma eugenia liberal? Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes,2004, pp. 17-22

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A simples preservação do ecossistemanatural perderia toda significação humanase não se operasse a partir de umaconcepção ética da vida e não fosseentendida como pressuposto necessário,mas não suficiente para a satisfação dasnecessidades não apenas físicas, massobretudo espirituais do homem72

Este é, portanto, o grande desafio contemporâneo,desafio para o qual o pensamento científico e filosófico temprocurado apresentar respostas satisfatórias, mesmocorrendo o risco de esbarrar no fundamentalismo ou norelativismo, extremos aos quais poderia conduzir umainvestigação que, à maneira do solipsismo metódico,tentasse resolver sozinha e de modo definitivo os problemaséticos advindos dos avanços da ciência e da tecnologia.

Primeiramente, convém que tenhamos a claraconsciência de que o saber científico e a tecnologia deleadvinda não constituem, necessariamente, um mal ou umbem, tampouco poderão ser apresentados como panaceia,solução para todos os problemas da humanidade em seuestágio atual de desenvolvimento. Como ressalta o filósofoLuc Ferry em entrevista:

72 VAZ, Pe. Henrique C. de Lima. VAZ, Pe. Henrique C. de Lima. Escritosde Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica 1, 2ª edição, São Paulo:Loyola, 2002, p. 40

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Duas atitudes contraditórias dividem, hoje,o monopólio do discurso midiático sobre aciência: uma consiste, como acabamos dever em diabolizá-la; a outra, em divinizá-la.No último caso, tentamos identificar a figurado “cientista” à do “sábio”. Essa é, em parte,a tendência que domina os comitês deética, bem como as emissões de televisãode grande popularidade. Tudo se passacomo se o fato de possuir aptidões emmatemática, em física e em biologiaconferisse, ipso facto, uma sabedoriaaplicável ao campo da ética e da política.Essa tendência tornou-se ainda mais fortequanto mais as questões como a origemdo mundo, ou da vida, que antigamentepareciam valorizar a religião e a metafísica,tornaram-se o apanágio da ciência. Noentanto, é necessário ter consciência deque a aptidão não é jamais, por si só, umagarantia de sabedoria. Para nosconvencermos disso, seria suficiente refletirsobre o fato de que, em se tratando devalores, a comunidade científica encontra-se tão dividida quanto as outras73

73 FERRY, Luc apud PESSIS-PASTERNAK, Guitta. A Ciência: deus ouo diabo? Trad. Edgard de Assis Carvalho, Mariza Perassi Bosco, SãoPaulo: Editora UNESP, 2001, p. 193-4

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4 Os riscos representados pelo relativismo, ceticismoe niilismo ético

Ao comentar acerca do projeto da modernidade, dereconstrução utópica do saber, orientando sobretudo pelasideias de Descartes e Bacon, Hans Jonas torna ainda maisvisível o paradoxo no qual acabou incorrendo odesenvolvimento ulterior deste projeto, produzindo um vácuoético sem precedentes:

Exatamente o mesmo movimento que nospôs de posse daquelas forças cujo uso deveser agora regulamentado por normas – omovimento do saber moderno na forma dasciências naturais -, em virtude de umacomplementaridade forçosa, erodiu osfundamentos sobre os quais poderiamestabelecer normas e destruiu a própriaidéia de norma como tal

Vendo os riscos que pode representar o niilismo,sobretudo numa época como aquela em que vivemos, HansJonas ressalta com clareza a dificuldade que consiste emestabelecer um critério absoluto de eticidade, sobretudo antea proclamada impossibilidade de restabelecer a categoriado sagrado, em face as contestações promovidas pelacultura laica, representada sobretudo pelo Iluminismo. Paraele,

Agora trememos na nudez de um niilismono qual o maior dos poderes se une ao

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maior dos vazios; a maior dascapacidades, ao menor dos saberes sobrepara que utilizar tal capacidade. Trata-se desaber se, sem restabelecer a categoria dosagrado, destruída de cabo a rabo peloAufklärung [Iluminismo] científico, é possívelter uma ética que possa controlar ospoderes extremos que hoje possuímos eque nos vemos obrigados a seguirconquistando e exercendo74

Hans Jonas destaca, em face da ameaçaiminente de destruição essencial do homem e de seu mundo,a necessidade de uma ética que se estruture não somentena lógica e na razão, mas também no pathos do medo(heurística do temor), pois estamos diante da ameaçaconstante que aponta para a possibilidade do não-Ser nohorizonte da humanidade, sendo pedagógico manter-sealerta e agir com prudência.

Ao invés de apresentar uma razão exclusivamentelógica (logos), tenta legitimar sua escolha por este sentimento(pathos) como elemento passional de sua ética, aquele queexerceria uma função pedagógica e, por que não dizê-lo,retórica de persuasão, de convencimento.

74 JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma éticapara a civilização tecnológica. Trad. Do original alemão Marijane Lisboae Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006,p. 65

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Argumenta, em defesa deste elemento presente emsua ética, que também sempre existiu algo análogo nas éticastradicionais. Assim, o fato do conceito de Bem também jáestar, de algum modo, vinculado a um desejo do melhor natradição filosófica do pensamento de outros eticistas e deque tais eticistas também identificaram o Bem com umpathos, com a diferença de que se tratava sempre de umsentimento positivo, que representava a ideia do Bem,justificaria a adoção do medo como fundamento do agir.Esses eticistas, que tomaram o Bem como norte, poderiamtambém, na sua ótica, ter partido do temor. E prossegue,afirmando que a filosofia moral recorreu ao desejo:

Na procura do conceito do bem, e isto é oque lhe importa, ela tendeu a consultarnosso desejo (sob o pressuposto socráticode que o que mais se deseja deve sertambém o melhor), embora o nosso temorfosse um indicativo melhor. O eros emPlatão, o appetitus em Agostinho, que pornatureza procura um bonum e em últimainstância, o bonum, são exemplos dessainvocação do desejo75

Assim, Jonas admite que tal heurística do medo possaconstituir-se em pressuposto pedagógico na reflexão acerca

75 JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma éticapara a civilização tecnológica. Trad. Do original alemão Marijane Lisboae Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006,p. 71

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do novo agir humano, aceitando que este sentimento detemor venha a se constituir, na ausência de uma virtude ousabedoria possíveis, num substituto para elas, a fim de tornarpersuasivo o seu apelo. Nas suas palavras: “diante deameaças iminentes, cujos efeitos ainda podem nos atingir,frequentemente o medo constitui o melhor substituto para averdadeira virtude e sabedoria”.76

Jonas ressalta a necessidade mais do que nuncade uma ética universal que nos evite cair no niilismo,ceticismo ou relativismo, sendo imprescindível que tal éticase constitua, pois

Da religião, pode-se dizer que ela existe ounão existe como fato que influencia a açãohumana, mas no caso da ética, é precisodizer que ela tem de existir. Ela tem de existirporque os homens agem, e a ética existepara ordenar suas ações e regular seupoder de agir. Sua existência é tanto maisnecessária, portanto, quanto maiores foremos poderes de agir que ela tem de regular77

O certo é que vivemos tempos muito difíceis, nos quaisas certezas, antes apodíticas, das ciências são substituídas

76 JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma éticapara a civilização tecnológica. Trad. Do original alemão Marijane Lisboae Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006,p. 65

77 JONAS, Hans. Op. cit., p. 65-6

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pela perplexidade, a intervenção humana se agiganta sobrea natureza, apesar da imprevisibilidade das consequências.A irreversibilidade da ação humana convive com apraticidade e velocidade das transformações de um contextono qual as máximas que moveram as éticas do passadosão insuficientes para dar conta.

Para Jonas, porém, a necessidade premente de agira fim de regular as novas ameaças representadas pelo poderincontrastável da ciência e datécnica, cuja autonomia já põeem xeque o mundo humano, revela ser preciso compreenderem que sentido o medo das consequências nefastas, masem longo prazo, destes novos poderes e do que eles têmproduzido, pode levar à sua necessária limitação. Para ele,

É somente sob a pressão de hábitos deação concretos, e de maneira geral do fatode que os homens agem sem que para talprecisem ser mandados, que a ética entraem cena como regulação desse agir,indicando-nos como uma estrela-guia aquiloque é o bem ou o permitido78

Portanto, apesar de todas as dificuldades defundamentação última revelada pela era pós-metafísica emque vivemos, Hans Jonas deixa claro que confia na

78JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma éticapara a civilização tecnológica. Trad. Do original alemão Marijane Lisboae Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006,p. 66

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capacidade do homem de suplantar os riscos representadospela ausência de uma ética exatamente no momento em quemais precisamos dela e vislumbra alguma possibilidade deconstruí-la à base de uma nova ontologia.

5 Algumas teorias que estão em jogo na construção dahegemonia do novo paradigma nas ciências

A despeito de toda a crise do saber científico e de suascertezas, a qual entendemos ser apenas a crise de umadeterminada forma de ver a ciência e, portanto, a crise demodelos ultrapassados (positivismo e mecanicismo),diversas teorias têm se apresentado como possíveiscolaboradoras na construção deste novo paradigma, a pontode verificarmos a proliferação de uma prática muito salutar,a qual denominaremos pluralismo teórico-metodológico.

Entretanto, é bom que se ressalte, nenhuma destasteorias científicas apresenta mais a pretensão de seconstituir com exclusividade absoluta o modelo porexcelência para interpretar a natureza, para pensar a ciênciaou a relação homem-natureza, como faziam os modelosteóricos do passado.

Um certo anarquismo metodológico, à maneira doproposto por Paul Feyerabend, aquele que já alertou para ofato da ciência ter se transformado na “mais recente, maisagressiva e mais dogmática instituição religiosa”,79 parece

79 FEYERABEND, Paul. Contra o Método, 2ª edição, trad. Octanny S.da Mota e Leônidas Hegenberg, Rio de Janeiro, Ed. Francisco Alves,1977, p. 3

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hoje constituir-se no cenário científico e filosófico. Aproliferação de teorias é democrática e constitui fatobastante saudável para o progresso científico.

No plano sócio-político, a decadência de todas aspropostas de modelos absolutizantes, refletida no embatesem vitória entre modos de produção econômicos, religiõese culturas diversas, aponta neste mesmo sentido. Assim, paraThompson,

a hipótese Gaia de Lovelock e Margulis, abiologia cognitiva de Maturana e Varela, ea ecologia de Jackson e Todd apontam maisna direção do anarquismo moderado deKropotkine do que para o socialismocientífico de Trotsky e Lenin (...) a noçãofundamental é a de que a Verdade nãoexiste a não ser no relacionamento entre osopostos. Portanto, toda ideologia é parciale demasiado incompleta em sua mais puraelaboração (...) Um novo sistema global teráque ser uma ecologia da consciência, naqual os opostos deverão interagir atravésde formas não aniquiladoras80 .

Por outro lado, a inclusão da consciência como objetoda investigação científica, antes afastada pelas razõesmecanicistas que já apontávamos, está permitindo umasalutar reaproximação extraordinária entre os diversos

80THOMPSON, William Irwin (org). Gaia: uma teoria do conhecimento,3ª edição, trad. Silvio Cerqueira Leite, São Paulo:Gaia, 2001, p. 26

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saberes científicos, a filosofia e as mais antigas erespeitáveis tradições espirituais da humanidade, o que seevidenciou por ocasião da Declaração de Veneza (1986),cujo texto fizemos questão de inserir como anexo destadissertação.

Por sua vez, na teoria holística, a compreensão do todopassa a ser, com o advento do pensamento sistêmico, umpressuposto para a compreensão das partes e vice-versa.Ademais, a complexidade dos sistemas vivos desafia ossaberes a dialogarem entre si em busca de respostascriativas para os desafios da crise que enfrentamos. Nestesentido, Morin ressalta que

Assim, o objeto da ciência se transforma:não é mais algo isolado. O objeto da ciênciaé o sistema. É isso que a ecologia-ciênciadescobriu espontaneamente no final dosanos 30 e que, na minha opinião, vamosdescobrir cada vez mais nas ciências quenão fizeram esta revolução: a biologia, asociologia, e, é claro, a economia81

Fritjof Capra também tem enfatizado a necessidadede pensarmos em termos mais sistêmicos ou holísticos,superando definitivamente o modelo mecanicista que setornou responsável pelas maiores crises enfrentadas naatualidade, entre elas, a crise ambiental. Para ele,

81 PENA-VEGA, Alfredo e NACIMENTO, Elimar Pinheiro do (orgs.). OPensar Complexo: Edgar Morin e a crise da modernidade, 3ª edição,Rio de Janeiro: Garamond, 1999, PP. 28-9

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O antigo conceito de Terra como mãenutriente foi radicalmente transformado nosescritos de Bacon e desapareceu porcompleto quando a revolução científicatratou de substituir a concepção orgânicada natureza pela metáfora do mundo comomáquina. Essa mudança, que viria a ser desuprema importância para odesenvolvimento subseqüente dacivilização ocidental, foi iniciada ecompletada por duas figuras gigantescasdo séc. XVII: Descartes e Newton82

Atualmente, uma nova concepção da natureza eda vida representada pelas concepções autopoiéticas deMaturana e Varela desafia o modelo mecânico herdado deDescartes e Newton. Capra ressalta ainda que “uma dasmais importantes consequências filosóficas dessa novacompreensão da vida é uma concepção inaudita da naturezada mente e da consciência que finalmente supera o dualismocartesiano entre mente e matéria”83 .

Jonas sustenta exatamente a ideia de unidade entre oorgânico e o espiritual e, procurando superar a fragmentação

82CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação: a ciência, a sociedade e acultura emergente, 25ª edição, trad. Álvaro Cabral, São Paulo: Ed. Cultrix,2002, p. 52

83 CAPRA, Fritjof. As Conexões Ocultas: ciência para uma vidasustentável, 6ª edição, trad. Marcelo Brandão Cipolla, São Paulo: Ed.Cultrix, 2006, p. 49

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patrocinada pelo mecanicismo cartesiano, afirma que“mesmo em suas estruturas mais primitivas, o orgânico jáprefigura o espiritual, e mesmo em suas dimensões maiselevadas o espírito permanece parte do orgânico”84 . ParaJonas, a vida é um convite à reflexão tanto quanto ou atémais que a morte e, em sua ótica não-materialista, notestemunho da vida, há um convite a repensar o própriomodelo dominante de cientificidade, pois

o pensador que esteja livre dedogmatismos não irá reprimir o testemunhoda vida; antes ele há de deixar-se desafiarnos dias de hoje a submeter a uma análiseo modelo convencional da realidade,assumido da ciência, modelo este quetalvez já esteja começando a ser superadopor esta mesma ciência85

Em seguida, ressaltando a presença da dimensão daliberdade na mais elementar das formas de vida, Hans Jonasabandona definitivamente o dualismo cartesiano parasustentar, em tom de desafio e quase conclamação àcompreensão integral da vida:

84 JONAS, Hans. O Princípio Vida: fundamentos para uma biologiafilosófica, trad. Carlos Almeida Pereira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004, p.11

85 JONAS, Hans. O Princípio Vida: fundamentos para uma biologiafilosófica, trad. Carlos Almeida Pereira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004, p. 12

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o segredo dos inícios continua cerrado paranós. A hipótese que me parece maisconvincente é admitir que já a própriapassagem de substância inanimada parasubstância viva, a primeira organização damatéria em direção à vida, foi motivada poruma tendência a estes mesmos modos deliberdade que se manifestam no maisprofundo do ser, e a que esta passagemabriu as portas86

Jonas pensa desta maneira e, assim, julga possível aligação entre ser e dever ser a partir de uma concepçãoontológica da vida. Tal concepção precisa ser tomada a sérioem seus propósitos básicos, quem sabe possa constituiruma nova ética capaz de dar ao saber científico na sociedadetecnológica uma orientação axiológica condizente ecompatível com o atual progresso da técnica, tornando-ocapaz de perceber as conexões ocultas existentes entretodas as coisas87 .

A ética de Jonas propõe uma releitura filosófica do textobiológico, para compreendê-lo além da explicação fornecidapelo dualismo cartesiano que entende ser inadequada. Paratanto, ressalta:

86 JONAS, Hans. O Princípio Vida: fundamentos para uma biologiafilosófica, trad. Carlos Almeida Pereira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004, p. 14

87 Cf. CAPRA , Fritjof. As Conexões Ocultas: ciência para uma vidasustentável, 6ª edição, trad. Marcelo Brandão Cipolla, São Paulo: Ed.Cultrix, 2006

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Uma releitura filosófica do texto biológicopode reconquistar para a compreensão dascoisas orgânicas a dimensão interior – aque nos é melhor conhecida -, e assimreconquistar para a unidade psicofísica davida o lugar que ela perdeu na teoria apósa separação estabelecida por Descartesentre o material e o imaterial. Nesse caso oganho para a compreensão do orgânico háde constituir um lucro também para acompreensão do ser humano88

Vivemos uma época muito curiosa e atésurpreendente, na qual há um grau de aproximaçãoconsiderável, já demonstrado, entre a física e a metafísica.Esta afirmação pode ser percebida pelas construções maisrecentes da própria física de partículas, em especial nasobras de Amit Goswami e Fritjof Capra, representantivas dacrise do materialismo e do mecanicismo nesta área do saber.Goswami tem sustentado, por exemplo, em suas obrasafirmações como estas:

Há séculos Descartes descreveu mente ecorpo como realidades separadas. Essecisma dualístico ainda impregna a maneiracomo vemos a nós mesmos (...) ummonismo baseado na matéria é incapaz de

88 JONAS, Hans. O Princípio Vida: fundamentos para uma biologiafilosófica, trad. Carlos Almeida Pereira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004, p. 7

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exorcizar o demônio do dualismo. O que defato lança uma ponte sobre o cisma éciência idealista – uma aplicação da físicaquântica interpretada de acordo com afilosofia do idealismo monista (...) a ciênciaidealista não só elimina o cisma mente-corpo mas responde também a algumasperguntas que confundiram os filósofosdurante numerosas eras89

Depois de quase um século de aplicaçãoda física quântica na investigação dossegredos da matéria, ficou claro que a físicaquântica não é completa em si mesma; énecessário que haja um observadorconsciente para completá-la. Assim se abrea janela visionária, introduzindo na ciênciaa idéia de consciência como fundamentode todo ser e a base metafísica de um novoparadigma – o de uma ciência dentro daconsciência90

89 GOSWAMI, Amit et alii. O Universo Autoconsciente: como aconsciência cria o mundo material, trad. Ruy Jungmann, 3ª edição. Riode Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 2000, p. 181

90 GOSWAMI, Amit. A Janela Visionária: um guia para a iluminaçãopor um físico quântico. Trad. Paulo Salles, 2ª edição. São Paulo: EditoraCultrix, 2005, p. 12

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Essa visão monista da realidade, à qual dou o nomede idealismo monista, é bastante antiga e constitui a basedas grandes tradições espirituais do mundo, motivo pelo qualàs vezes é chamada filosofia perene. No cristianismoesotérico, a base da existência é chamada de Mente deDeus, o mundo arquetípico transcendental é o Céu e o mundoda experiência, a Terra (...) O novo paradigma de uma ciênciadentro da consciência, às vezes chamada ciência idealista,começou quando estes conceitos ganharam credibilidadecientífica91

Na perspectiva destas novas teorias, a lançarempontes sobre as tradicionais fronteiras estabelecidas entreos saberes, a própria doutrina do abismo, que estabelece aintransitividade entre ser e dever, também não há de subsistir,inexistindo razão para que continuemos a sustentá-la comofazia Hume, temeroso de incorrer no que muitos consideramuma falácia naturalista.

6 As diferenciadas interpretações do problema peloseticistas contemporâneos sob a ótica dos modelosontológico e transcendental: as orientaçõesteleológicas e deontológicas da ética

Hans Jonas articula, sob a influência de Heidegger eBultmann, uma ética da responsabilidade fundada em novo

91 GOSWAMI, Amit. A Física da Alma. Trad. Marcello Borges. SãoPaulo: Aleph, 2005, p. 23-4

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modelo ontológico92 , que não receia enveredar pelametafísica para construir sua estrutura argumentativa.Interpreta o problema ético fundamental da civilizaçãocientífico-tecnológica como resultado do ideal moderno deBacon, este último representado pela identificação entresaber e poder. Tal ideal baconiano subordina a natureza aosfins humanos por meio de um utopismo tecnológico e deuma escatologia secularizada. Este ideal, antropocêntrico,presente no utopismo tecnológico da ciência moderna, fezcom que a tecnociência se constituísse em um tipo de saberque, nas palavras de Manfredo Oliveira:

se entende como possibilitação dedominação sobre a natureza em função damelhoria das condições de vida do serhumano, ou mais radicalmente ainda, emfunção da emergência do homem autênticocomo fruto de um processo conduzido pelasforças do próprio homem93

92Convém ressaltar aqui que, para Jonas, “a ontologia já não é mais amesma. Nossa ontologia não é a da eternidade, mas a do tempo. Não éa perpetuação do mesmo que é a medida da perfeição, mas justamenteo contrário (...) Só se é responsável por aquilo que é mutável, ameaçadopela deterioração e pela decadência” (JONAS, Hans. O PrincípioResponsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica.Trad. Do original alemão Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio deJaneiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, p. 212)

93 OLIVEIRA, Manfredo., Os Desafios da Ética Contemporânea inTHEMIS: Revista da ESMEC, Fortaleza: 2008, p. 19-20

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Para Jonas, somente uma ética não-antropocêntrica, voltada ao futuro, poderia superar esta visãobaconiana de dominação da natureza, levando-nos a pensarnas repercussões de nossas ações e omissões nasgerações futuras, em todos os seres que ainda-não-são, sema exigência de reciprocidade que caracteriza as éticastradicionais. Tal responsabilidade encontra seu arquétipoprimordial na responsabilidade dos pais em relação aosfilhos (responsabilidade parental).

Emanuel Lévinas, por sua vez, compreende a crise darazão como um esvaziamento completo do sentido,provocado pela identificação entre ser, poder e saber,identificação esta refletida nas traumáticas experiênciashistóricas representadas pelas guerras e pelo totalitarismodo século XX. Em sua ética da alteridade, o ser humanoapenas pode ser intuído, mas jamais alcançado94 . ParaLévinas, que frequentou as aulas de Husserl e também partedo modelo ontológico identificável em Heidegger, filósofodo qual dizia ter dificuldades em perdoar pela adesão desteao nazismo, a experiência da alteridade proporciona avivência ética fundamental. Em Lévinas, a face do Outro “mefala e me convida a uma relação que não tem medida comum

94 “Nas codificações éticas construídas em nossa história o humano doser humano é apenas intuído, mas não é alcançado uma vez que tem,na raiz, uma interpretação da vida humana como ser dinâmico espontâneono horizonte da compreensão do ser como expansão. Nossas crisestestemunham o fiasco deste homem” (OLIVEIRA, Manfredo. Os Desafiosda Ética Contemporânea, mimeo, p. 6)

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com um poder que se exerce, ainda que fosse prazer ouconhecimento”95 . Em sua ótica, a minha responsabilidadeem relação ao Outro exige que eu me deva sentirresponsável também pela responsabilidade dos outros, oque implica sérias repercussões na filosofia política, no queconcerne à construção das instituições e do Estado, pois opróprio “termo Eu significa eis-me aqui, respondendo portudo e por todos”96 .

Alasdair MacIntyre nega que possuamos, propriamenteuma ética, mas “apenas fragmentos de um esquemaconceitual que não constituem um todo coerente”97 .Procurando entender a hipertrofia da problematização éticaem nossos dias, desconfia destas exigências éticas maisamplas que se esforçam por tematizar as razões que tornama ética “disciplina central nas discussões filosóficascontemporâneas”98 , presente em todos os domínios da vida.Critica a superabundância de meios teóricos e a competição

95 LÉVINAS apud REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História daFilosofia: de Nietzsche à Escola de Frankfurt. São Paulo: Paulus, 2006,v. 6, p. 425

96LÉVINAS apud REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História daFilosofia: de Nietzsche à Escola de Frankfurt. São Paulo: Paulus, 2006,v. 6, p. 425

97 OLIVEIRA, Manfredo., Os Desafios da Ética Contemporânea inTHEMIS: Revista da ESMEC, Fortaleza: 2008, p. 21

98 CARVALHO, Helder Buenos Aires de. Alasdair Macintyre e o Retornoàs Tradições Morais da Pesquisa Racional in OLIVEIRA, Manfredo (org.)Correntes Fundamentais da Ética Contemporânea. 2ª edição.Petrópolis, RJ: Vozes, p. 31

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desenfreada entre diferentes teorias morais, tentandodemonstrar que tais circunstâncias conduzem a “um cinismogeneralizado quanto à legitimidade da discussão racionalna qual os argumentos deixam de ser reconhecidos comoexpressão da racionalidade e se transformam em armas,em técnicas retóricas para se dominar opositores”99 , o queteria conduzido o problema da racionalidade da ação morala dilemas insolúveis.

Para MacIntyre, “somos hoje herdeiros da culturailuminista moderna e de seu projeto fracassado de justificarracionalmente a moralidade, ou seja, independente da tutelateológica, para lhe dar plena autonomia na forma deprincípios morais universais”100 . Disto, teria resultado oesvaziamento da capacidade do homem moderno e,principalmente, contemporâneo de captar essências.

Na sua ótica, porém, há um consenso entre todas asdiferentes abordagens das éticas contemporâneas. E esteconsenso reside na rejeição a toda postura essencialista,ou seja, a toda perspectiva que apresente o homem comoportador de uma essência imutável que defina seu verdadeirofim101 .

99 CARVALHO, Helder Buenos Aires de. Alasdair Macintyre e o Retornoàs Tradições Morais da Pesquisa Racional in OLIVEIRA, Manfredo (org.)Correntes Fundamentais da Ética Contemporânea. 2ª edição.Petrópolis, RJ: Vozes, p. 33

100 OLIVEIRA, Manfredo., Os Desafios da Ética Contemporânea inTHEMIS: Revista da ESMEC, Fortaleza: 2008, p. 23

101 OLIVEIRA, Manfredo., Os Desafios da Ética Contemporânea inTHEMIS: Revista da ESMEC, Fortaleza: 2008, p. 22

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Vivemos uma era que se auto-proclama “pós-metafísica”. E os abalos na concepção de razão herdadado Iluminismo e da cultura grega transformaramprofundamente o debate em torno das questões éticas.

Diferentemente dos modelos ontológicos anteriormenteapresentados, Jürgen Habermas, considera as diferentesformas de moralidade com as quais passamos a conviverna sociedade mundializada e secularizada e, a partir de seuexame, não julga mais possível fundamentar a ética emtermos metafísicos ou ontológicos, o que permite situar suaética do discurso, apresentada em termos pós-metafísicos,no modelo transcendental.

Ainda que tenha atenuado o interdito estabelecido porHume, admitindo que os enunciados prescritivos sujeitam-se à crítica e à corroboração, o que aliás também defendemepistemólogos contemporâneos como Popper102 , Habermascontinua aceitando a inafastabilidade do dogma segundo o

102 Para Popper, fica claro, pelo critério de falsificabilidade, ser possívelrefutar a sensatez de certas teorias metafísicas, o que teria permitido aoepistemólogo sustentar as seguintes teses: “a) as metafísicas sãosensatas; b) algumas delas constituíram historicamente programas depesquisa e, com o crescimento do saber de fundo, se transformaram(como o caso do atomismo antigo) em teorias controláveis; c) do pontode vista psicológico, a pesquisa é impossível sem a fé em idéias denatureza metafísica; d) embora não sendo falsificáveis, as metafísicassão criticáveis,a partir do momento que podem chocar-se em algumpedaço do mundo (uma teoria científica, um resultado matemático, umteorema da lógica etc), na época bem consolidado e ao qual não estamosdispostos a renunciar” REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História daFilosofia: de Freud à atualidade. São Paulo: Paulus, 2006, v. 7, p. 172-3)

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qual não é possível deduzir normas de fatos.Para Habermas, “o ético emerge da interação de

sujeitos, mas aponta para a superação de qualquerparticularismo: só se pode falar propriamente de norma moralquando se leva em conta a pretensão de validadeuniversal”103 . Para a Ética do Discurso, nas condições emque hoje se encontra a tematização ética, somente normasmorais validadas intersubjetivamente em um processo deconsenso racional no qual os sujeitos, reconhecendo-secomo livres e iguais, possam participar de sua discussão eelaboração, seriam capazes de alcançar o grau deuniversalização apto a vincular todos os participantes dacomunidade de comunicação.

A ética do discurso representa uma das tentativasteóricas de salvar a ética da crise que enfrenta na atualidade.Ela pressupõe exatamente o diálogo e a discussão comoelementos constitutivos da nova universalidade ética, semprepassível de reconstrução por meio de procedimentosargumentativos e racionais, filtrando, no cadinho do debate,os interesses de natureza meramente instrumental paradeixar fluir apenas aqueles realmente universalizáveis. Nainterpretação de Cirne-Lima, “Apel e Habermas recomendamque cada membro da roda do discurso pegue seu interesseparticular, concreto e histórico, e faça uma tentativa deuniversalizá-lo. Caso consiga, seu interesse é ético. Nistoconsiste a Ética do Discurso”.104

103 OLIVEIRA, Manfredo. Ètica e Racionalidade Moderna. São Paulo:Loyola, 1993, p. 19

104CIRNE-LIMA, Carlos. Dialética para Principiantes, 2ª edição, PortoAlegre: EDIPUCRS, 1997, p. 182

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A ética do discurso representa também, em largamedida, uma tentativa contemporânea de fugir aos extremosrepresentados pelo relativismo e fudamentalismo éticos,procurando uma validação intersubjetiva das normas morais.

Karl-Otto Apel, diante do dilema anteriormente referido,parte do pressuposto, já também identificado por ManfredoOliveira, segundo o qual “a ética a ser construída hoje temque ser uma ética profundamente diferente tanto das éticastradicionais como das morais historicamente hegemônicas,porque ambas se situaram na esfera das relações privadasou das comunidades políticas nacionais”105 .

Apel propõe a análise do discurso para revelar seuspressupostos transcendentais e, a partir daí, tentar edificaras bases desta ética universal e solidária. Na sua ótica,“filosofia é então necessariamente reflexão transcendentaldo discurso humano sobre si mesmo a fim de demonstraras condições necessárias da teoria e da práticahumanas”106 , o que o identifica até certo ponto com o projetode Habermas, embora ponha em discussão o conceito

105OLIVEIRA, Manfredo. Os Desafios da Ética Contemporânea,mimeo, p. 8

106 CIRNE-LIMA, Carlos R. V e OLIVEIRA, Manfredo Araújo de.Apresentação à obra Ética do Discurso e Verdade em Apel, doprofessor Regenaldo da Costa, Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. xviii

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habermasiano de racionalidade comunicativa107 .Filiando-se ao modelo transcendental, Apel viu na

fenomenologia hermenêutica108 um instrumento propiciadorde uma dupla emancipação, tanto em relação aodogmatismo metafísico como no que concerne aocientificismo e procurou fazer da teoria do conhecimento umareflexão sobre a compreensão. Para ele, diferentemente doque propõe Pierce, não há identidade entre comunidade dosargumentantes e comunidade dos cientistas, pois “no a priorida argumentação está a pretensão de justificar não só todas

107 Cf. MOREIRA, Luís (org.). Com Habermas, contra Habermas: direito,discurso e democracia. Trad. dos textos de Apel Claudio Molz. SãoPaulo: Landy Editora, 2004, p. 18 (“Karl-Otto Apel, nos textos que seseguem, nega ou ao menos rechaça fortemente o conceito habermasianode racionalidade comunicativa, articulado em Direito e democracia: entrefacticidade e validade. Basicamente, para Apel, o problema de Habermasdecorre do emprego da racionalidade comunicativa e sua conexão como mundo da vida e a neutralidade do princípio do discurso. SegundoApel, o recurso habermasiano incorre em perda profunda de criticidade)

108 Para Tomás Domingo Moratalla, também a ética de Hans Jonas situa-se no horizonte da fenomenologia hermenêutica, passando a ser até“trivial e ingênua se perdemos de vista a filosofia da religião que a sustenta,a tradição fenomenológica na qual se embasa, a herança heideggeriana,a leitura da ciência moderna ou a antropologia que a fundamenta”(MORATALLA, Tomás Domingo. La Ética Antopológica de Hans Jonasen el Horizonte de la Fenomenología Hermenéutica in Thémata Revistade Filosofía, nº 39, 2007, p. 373)

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as ‘afirmações’ da ciência, mas além delas, todas aspretensões humanas”109 . Não é outra a concepção que daética discursiva tem o neurobiologista Jean-Pierre Changeux:

O debate, pleno de argumentos de umaética da comunicação tal qual propõemKarl-Otto Apel ou Jürgen Habermas,retoma, de outros pontos de vista, ostermos do debate científico com suapretensão em relação à objetividade e àuniversalidade, mas distingue-se delas poruma outra característica: a da validaçãointersubjetiva das normas morais no seio dacomunidade “ideal” de comunicação110 .

Apel adotou uma postura crítica em relação às filosofiashermenêuticas de Heidegger e Gadamer, das quais semanteve até certo ponto afastado. Aliás, a proposta apelianade transformação pragmático-transcendental da filosofiatoma como pressuposto a crítica à própria hermenêuticaexistencial e à semiótica de Pierce, mas não tem como negá-las como ponto de partida.

Especificamente sobre a questão que oraexaminamos, referente à exigência de uma ética da

109 APEL, Karl-Otto. Estudos de moral moderna, Petrópolis: Vozes,1994, p. 145

110 CHANGEUX, Jean-Pierre apud PESSIS-PASTERNAK, Guitta. ACiência: deus ou o diabo? Trad. Edgard de Assis Carvalho, MarizaPerassi Bosco, São Paulo: Editora UNESP, 2001, p. 20

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responsabilidade solidária para a civilização técnico-científica, Apel assim se pronuncia:

A partir da perspectiva de uma teoriasistêmica funcional, orientadabiologicamente, mostrou-se que até agoranós nos omitimos em larga escala, deixandode pôr pessoalmente nossasdeterminações subjetivas de fins emconexão com os quase finalísticossistemas funcionais que, sem nossacontribuição, subsistem na natureza e co-condicionam a vida da espécie humana.(O triunfo do pensamento mecanicista naera contemporânea e a acusação deheretização de todo pensar teleológico-objetivo não deveria ser inocentado nestaomissão). À omissão de pôr asdeterminações humanas de fins emconexão com os sistemas funcionaisnaturais correspondeu a omissão de refletirtambém sobre os condicionantes funcionaisbiológico-ecológicos de sistemas sociaishumanos, mesmo em perspectivaseconômicas e jurídicas111

A necessidade de uma fundamentação racional daética que repercuta adequadamente na era das ciências,

111APEL, Karl-Otto. Estudos de moral moderna, Petrópolis: Vozes,1994, p. 71

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permitindo-lhes reencontrar a perspectiva integral da qualse afastaram desde o racionalismo moderno, aspectodiscutido por Apel nos Estudos de Moral Moderna, leva-nosa reconhecer com ele, que

as conseqüências tecnológicas da ciênciaproduziram, nos dias de hoje, uma talextensão e alcance para as ações eomissões humanas, a ponto de não sermais possível contentar-se com normasmorais, que regulamentem a convivênciahumana em pequenos grupos e confiem asrelações entre os grupos à luta pelasobrevivência, no sentido darwiniano112

O que se pode observar, na aguda observação deManfredo Oliveira, é que “desde o início do século XX, areflexão ética se concentrou nos problemas dos fundamentossemânticos, metodológicos e epistemológicos, um conjuntoteórico que recebeu da filosofia analítica a denominação deMetaética”113 . Embora necessária, tal linha investigativa nãopode esvaziar a discussão acerca do conteúdo mesmo dasnormas cuja universalidade pressupõe e suas consequênciasdo ponto de vista da razão prática.

112 APEL, Karl-Otto. Estudos de moral moderna, Petrópolis: Vozes,1994, p. 71

113 OLIVEIRA, Manfredo. Os Desafios da Ética Contemporânea inTHEMIS: Revista da ESMEC, Fortaleza: 2008,, p. 24

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Além dos modelos acima referidos, o ontológico e otranscendental, é possível identificar, com Manfredo Oliveira,duas orientações básicas na ética contemporânea: as éticasdeontológicas e as éticas teleológicas:

O que caracteriza então uma éticadeontológica é que o correto, que é aqui acategoria fundamental, não depende dobem e tem prioridade sobre ele,conseqüentemente as ações são em simesmas boas ou más independente dasconseqüências que provocam (...) Numaética teleológica a qualidade moral dasações depende das conseqüênciasproduzidas (daí porque se falar aqui de“conseqüencialismo”) e seu conceito centralé o de bem de tal modo que aqui se põe,em primeiro plano, uma ordem objetiva debens e valores114

Entre os autores contemporâneos cujo pensamentopassamos em revista, é possível identificar como éticadeontológica apenas a Ética de Discurso (Habermas eApel), enquanto situam-se no plano das éticas teleológicasas propostas de MacIntyre, Levinas e Jonas, esta últimarepresentada pela Ética da Responsabilidade, a qualpassaremos a examinar mais detidamente nos capítulos

114OLIVEIRA, Manfredo. Os Desafios da Ética Contemporânea inTHEMIS: Revista da ESMEC, Fortaleza: 2008, p. 25

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seguintes, por ser o objeto específico desta dissertação.Manfredo apresenta ainda como exemplo de ética

deontológica o contratualismo de Rawls e, como éticasteleológicas, a ética da libertação de Dussel e o utilitarismo,ressaltando que há tentativas de síntese destas orientaçõesteleológicas e deontológicas, representadas pelo quedenomina “éticas sintéticas”, entre as quais destaca a Éticada Coerência Universal (Cirne Lima) e a ÉticaIntencionalista-teleológica (Vittorio Hösle)115 .

A centralidade da discussão sobre a possibilidade defundamentação dos juízos morais e a ausência de umaresposta positiva corre o risco de conduzir a reflexão éticaao labirinto do decisionismo, o qual “reduz os juízos moraisa puras decisões individuais”116 .

A razão moderna, inibida de qualquer tentativaidentificatória de verdadeiro fim na natureza humana e,consequentemente, deixando à vontade os agentes moraispara fazê-lo, mesmo sob o risco de transformar as regrasmorais em escolhas arbitrárias não pode mais omitir-se datarefa de buscar alternativas viáveis aos dilemas éticosgerados pelo progresso científico-tecnológico, pois daconstrução de critérios éticos que norteiem as aplicaçõesdo conhecimento depende a subsistência da própriahumanidade enquanto tal.

115 Cf. OLIVEIRA, Manfredo. . Os Desafios da Ética Contemporânea inTHEMIS: Revista da ESMEC, Fortaleza: 2008

116 OLIVEIRA, Manfredo. Os Desafios da Ética Contemporânea inTHEMIS: Revista da ESMEC, Fortaleza: 2008, p. 25

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Feitas estas distinções, cabe examinar maisdetidamente como se efetivará a superação das éticastradicionais na perspectiva da ética da responsabilidade,de Hans Jonas, a fim de identificar a maneira pela qual aideia do princípio responsabilidade tem enfrentado osdesafios suscitados pelo problema ecológico e o adventodas novas tecnologias, as quais ampliaramconsideravelmente a intervenção humana na biosfera,atingindo limites sequer imagináveis pelas éticas anteriores,o que demandaria uma reflexão mais ampla e será feita emoutro artigo, mais específico.

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