as figuras de argumentação como estratégias discursivas. um
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
As Figuras de Argumentao como estratgias discursivas. Um estudo em avaliaes no ensino superior.
Mrcia Regina Curado Pereira Mariano
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filologia e Lngua Portuguesa do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, tendo em vista a obteno do ttulo de Doutor em Letras.
Orientadora: Profa. Dra. Lineide do Lago Salvador Mosca
So Paulo 2007
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
As Figuras de Argumentao como estratgias discursivas. Um estudo em avaliaes no ensino superior.
Mrcia Regina Curado Pereira Mariano
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filologia e Lngua Portuguesa do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, tendo em vista a obteno do ttulo de Doutor em Letras.
Orientadora: Profa. Dra. Lineide do Lago Salvador Mosca
So Paulo 2007
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FOLHA DE APROVAO
Mrcia Regina Curado Pereira Mariano
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Filologia e Lngua Portuguesa do Departamento de
Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de
Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade
de So Paulo, tendo em vista a obteno do ttulo de
Doutor em Letras.
Banca Examinadora
Data da aprovao:
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituio:______________________________ Assinatura_____________________
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituio:______________________________ Assinatura_____________________
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituio:______________________________ Assinatura_____________________
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituio:______________________________ Assinatura_____________________
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituio:______________________________ Assinatura_____________________
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DEDICATRIA
A meus pais, Emlia e Manuel, pelo exemplo de fora e
superao de limites.
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AGRADECIMENTOS
A meus filhos Anne Caroline e Guilherme e a meu esposo Wenilson, pelo apoio
e compreenso durante todo este tempo.
A meus familiares e amigos pela fora e companheirismo.
Profa. Dra. Lineide do Lago Salvador Mosca pela orientao, compreenso e
disponibilidade.
Profa. Dra. Norma Discini, do Departamento de Lingstica, e ao Prof. Dr.
Luiz Antnio da Silva, do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas, ambos da
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas pelas orientaes oferecidas por
ocasio do Exame de Qualificao.
Aos professores e instituies que colaboraram com o material aqui analisado:
Profa. Dra. Alessandra Del R da Universidade Estadual de Araraquara, Prof. Dr. Luiz
Antnio da Silva da Universidade de So Paulo, Profa. Dra. Esmeralda Vailati Negro
(coordenadora do Departamento de Lingstica na poca em que fiz parte de seu corpo
docente como professora temporria, e que me autorizou a utilizar as provas aplicadas
no perodo), Faculdade de Taboo da Serra e Faculdade Associada de Cotia.
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No me importa a palavra, esta corriqueira. Quero o esplndido caos de onde emerge a sintaxe, os stios escuros onde nasce o "de", o "alis", o "o", o "porm" e o "que", esta incompreensvel muleta que me apia. Quem entender a linguagem entende Deus cujo Filho Verbo. Morre quem entender. A palavra disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada. Em momentos de graa, infreqentssimos, se poder apanh-la: um peixe vivo com a mo. Puro susto e terror.
Antes do nome Adlia Prado
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RESUMO
Este trabalho pretende levantar questes relativas ao uso e aos efeitos
provocados pela utilizao de estratgias argumentativas no discurso. Para exemplificar
a importncia de tais estratgias na construo da significao no uso da linguagem,
elegemos como objeto de anlise um discurso em especial, o pedaggico, e, dentro dele,
optamos pelo estudo das avaliaes no ensino superior, especificamente, das provas
escritas, representantes do poder da linguagem no processo ensino/aprendizagem e do
conflito existente na relao professor-aluno.
A partir deste recorte metodolgico, repensaremos, em especial, as figuras de
argumentao e retrica, estratgias discursivas inesperadas causam o efeito de
surpresa no discurso e privilegiadas, na medida em que permitem analisar no apenas
o fazer persuasivo do enunciador, bem como a construo do ethos dos sujeitos
envolvidos na situao comunicativa.
Acreditamos que em todos os tipos de discurso a linguagem pode ser utilizada
no apenas para convencer um interlocutor, mas para persuadi-lo. Tal fato nos leva a
buscar no discurso do aluno quais so as estratgias utilizadas para este fim, e a tentar
identific-las dentro de um quadro terico e metodolgico discursivo.
Para tanto, empreendemos um retorno s origens histrico-pedaggicas da
avaliao, recorremos Retrica Aristotlica e s Neo-Retricas, Teoria Semitica de
Greimas, Teoria dos Gneros do Discurso de Bakhtin, e a estudos sociossemiticos e
discursivos que privilegiam questes como a construo da identidade individual e
social dos sujeitos por meio do discurso e os aspectos interacionais envolvidos nas
relaes sociais.
PALAVRAS-CHAVE: argumentao; figuras; avaliao; retrica; anlise do discurso.
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ABSTRACT
The proposal of this work is to produce questions about the use of
argumentatives strategies in the discourse, as well as questions about the effect of this
use. To analyze the importance of these strategies during the construction of the
meaning, we choose a special type of discourse, the pedagogical discourse, and inside
of it, we have decided to analyze the proofs in the university, more specifically, the
written proofs, because they are representative of the languages power in the education
and learning process and of the existing conflict between professor and students.
From this method, we will analyze, in special, the argument and rhetoric figures
and the unexpected and privileged discoursive strategies because they cause surprise
in the discourse and allow to analyze the construction of the ethos of the involved
people in the communication situation.
We believe that the language can be used to persuade an interlocutor and to
convince him, not importing the type of discourse used. This fact makes us to search in
the students discourse the used strategies and trying to identify them into inside of a
theoretical, methodologic and discoursive frame.
With this objective, we made a visit to the historical and pedagogical origins of
the proofs, we appeal to the Aristotelian Rhetoric and the Neo-Rhetorical, to the
Greimas Semiotics Theory and the Bakhtins work, and to the sociossemiotic and
discoursive studies that privilege questions, as the construction, through the discourse,
of the individual and social identity of the people, and aspects that are involved in the
social relations.
KEYWORDS: argument; figures; proofs; rhetoric; discourse analysis.
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SUMRIO
Consideraes preliminares............................................................................................. 12
Captulo I Objeto de estudo e sujeitos da enunciao uma viso evolutiva da
educao, da avaliao, do professor e do aluno............................................................ 22
1- Voltando no tempo para situar a avaliao.......................................................... 23
1.1 A origem da linguagem................................................................................. 23
1.2 Linguagem e educao.................................................................................. 24
1.2.1 Linguagem e poder na educao.................................................... 25
1.3 A educao da Antigidade aos nossos dias em busca de indcios da origem
das avaliaes...................................................................................................... 27
1.3.1 A educao no Egito Antigo.......................................................... 27
1.3.2 A Grcia Antiga e o desenvolvimento de sistemas
educacionais............................................................................................ 28
1.3.3 A antiga educao romana e o modelo de educao grego em
Roma....................................................................................................... 31
1.3.4 A educao da Idade Mdia aos dias atuais................................... 33
2- Avaliao: definies e objetivos......................................................................... 42
2.1 A avaliao sob o ponto de vista das diferentes abordagens de ensino........ 42
2.2 A avaliao como prtica educativa e estruturante....................................... 46
3-Aspectos da interao verbal e sua importncia na sala de aula........................... 52
3.1 Dialogismo, interao verbal, dilogo, intertextualidade.............................. 52
3.2 Dialogismo e polifonia.................................................................................. 57
3.3 Enunciao, enunciado, texto e discurso em Bakhtin................................... 58
3.4 Os estudos interacionistas e os estudos do texto e do discurso..................... 60
3.5 Interao professor-aluno em sala de aula.................................................... 65
3.6 Argumentao em sala de aula...................................................................... 74
Cap. II A avaliao como manifestao discursiva..................................................... 78
1- A avaliao na teoria dos gneros do discurso de Bakhtin.................................. 78
1.1 Os gneros do discurso definio e reflexes............................................ 78
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1.2 A prova escrita como um gnero do discurso............................................... 81
1.3 Estilo, subjetividade, identidade e ethos....................................................... 85
2- A avaliao sob o ponto de vista da semitica greimasiana................................ 98
2.1 A semitica greimasiana noes gerais...................................................... 98
2.2 O PN da avaliao....................................................................................... 106
3- A avaliao no percurso da retrica e da argumentao.................................... 109
3.1 Aspectos da retrica antiga.......................................................................... 109
3.2 O sistema retrico........................................................................................ 113
3.3 A retrica aristotlica.................................................................................. 116
3.4 A retrica ps-aristotlica e o ensino retrico............................................. 119
3.5 A revitalizao da retrica as neo-retricas............................................. 122
3.6 Tipos de argumentos tcnicas argumentativas......................................... 128
4- As figuras de argumentao e retrica............................................................... 131
4.1 As figuras na retrica antiga........................................................................ 131
4.2 As figuras de argumentao e retrica de Perelman................................... 135
4.3 As figuras em outras abordagens................................................................. 139
4.4 Repensando as figuras................................................................................. 141
Cap. III O papel das figuras de argumentao e retrica nas avaliaes no ensino
superior
1- Tipologia de estratgias argumentativas............................................................ 145
1.1 Estratgias argumentativas narrativas......................................................... 148
1.2 Estratgias argumentativas discursivas....................................................... 149
2- Conhecendo o corpus........................................................................................ 150
3- Anlise das estratgias argumentativas utilizadas nas avaliaes..................... 153
3.1 O discurso oficial: as respostas................................................................... 154
3.1.1 A adequao................................................................................. 154
3.1.2 A adaptao.................................................................................. 165
3.1.3 A transgresso.............................................................................. 169
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3.1.4 A subverso.................................................................................. 179
3.2 O discurso oficioso: o paratexto................................................................. 194
3.2.1 A transgresso.............................................................................. 194
3.2.1 A subverso.................................................................................. 195
Consideraes finais..................................................................................................... 214
Bibliografia................................................................................................................... 217
Anexos
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CONSIDERAES PRELIMINARES
delicioso observar que a arte da palavra est ligada originariamente reivindicao de propriedade, como se a linguagem, enquanto objeto de uma transformao, condio de uma prtica, estivesse determinada a no partir de uma mediao ideolgica sutil (como pde ter acontecido a tantas formas de arte) mas a partir da sociedade mais declarada.
Barthes, 1975:152
Minha dissertao de mestrado, defendida em 2002 no Departamento de
Lingstica da FFLCH/USP na rea de Aquisio da linguagem e intitulada Produo
de definies por crianas ou diferentes formas de explicar as coisas, ocupa-se, como o
ttulo j indica, de um tipo particular de explicao: a definio. Entretanto, coube-me
durante seu desenvolvimento conceituar no apenas a definio, mas a explicao de um
modo geral, estabelecendo relaes entre o discurso explicativo e outras manifestaes
discursivas.
Observei, naquele momento, que no fcil definir a explicao, na medida em
que o campo recoberto pelo termo explicar muito vasto, englobando, dentre outras
manifestaes discursivas, o comunicar, o ensinar, o justificar, como aponta Borel,
1980:22-23:
1/. Le verbe expliquer a une composante interactionnelle 1. Communiquer exposer, formuler, exprimer, faire savoir... 2. Enseigner faire compendre, clairer, illustrer, montrer 3. Justifier excuser, disculper, motiver, dfendre, lgitimer
Ao tomar a justificativa como forma de explicao, os estudos do discurso
explicativo acabam por situar-se no mbito do conflito, da defesa de pontos de vista, ou
seja, da argumentao (id.: 23):
Vu sous cet aspect, le sens du verbe expliquer se situe sur un axe dont les extrmes sont, respectivement, une situation dchange verbal qui tend la transparence et lobjectivation, et une situation de violence ou de conflit ou lun des agents tend a dominer lautre (la limite en serait sortir pour sexpliquer (se battre)).
Essa relao entre a explicao e a argumentao mostrou-se importante nos
estudos do discurso em geral e assim, ainda na dissertao de mestrado, recorri a Ducrot
(1987), Ducrot e Anscombre (1988) e Mosca (2001), que mostraram que a
argumentatividade constitui um componente intrnseco linguagem. Desta forma, torna-
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se impossvel analisar o discurso sem falar em argumentao, em vrios nveis, sob
diferentes aspectos.
Como a argumentao no constitua meu objeto de estudo central na poca, no
houve a oportunidade de aprofundar esse assunto, mas iniciou-se a o interesse e a busca
por respostas que originaram o projeto responsvel por minha admisso no doutorado.
Esse projeto inicial foi se modificando de acordo com os colquios com a
orientadora, com novas leituras e novas experincias como docente e pesquisadora. O
encontro com a bibliografia especfica da Retrica e da Argumentao, o reencontro
com os conceitos e com as metodologias da Lingstica Geral e da Semitica vistos,
principalmente, na graduao -, e a descoberta de trabalhos na rea da Sociossemitica,
despertaram um interesse pelo discurso de um modo geral e pelas estratgias
argumentativas de um modo particular. Porm, como analisar a argumentao em todos
os discursos? Qual discurso escolher? Quais estratgias argumentativas analisar?
O incio de minhas atividades como docente no ensino superior, em 2002, levou-
me ao contato com textos dos alunos, como provas, trabalhos e resumos, dentre outros.
Nestas produes, dois aspectos em especial me chamaram a ateno e indicaram
caminhos possveis para delimitar minha pesquisa de doutorado:
a) a avaliao constitui um dos poucos momentos, em situaes de
enunciao em sala de aula, em que o aluno torna-se o destinador e o
professor o destinatrio;
b) o aluno utiliza estratgias persuasivas diferenciadas, e algumas
inesperadas, nas avaliaes, onde, teoricamente, se esperaria um discurso
demonstrativo, e no argumentativo.
O primeiro aspecto observado conduziu-me determinao do objeto de estudo
do projeto de doutorado: as avaliaes no ensino superior, em particular, as provas
escritas. Para delimitar esse objeto, parti da concepo de que avaliao todo tipo de
atividade que permita ao professor observar o aproveitamento e o desenvolvimento do
aluno: provas escritas, exerccios, seminrios, trabalhos em grupo, monografias em
geral, resenhas crticas etc, e, num plano mais profundo, que lhe permita reestruturar sua
prtica e planejamento a fim de corrigir possveis problemas na metodologia de ensino,
alm de explicitar quais as dificuldades dos alunos que precisam ser trabalhadas. A
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prova escrita um entre tantos possveis instrumentos avaliativos, e a partir do
momento que sirva no apenas para provar, classificar, aprovar e reprovar, mas para
promover mudanas e adequaes, mostra-se to vlida quanto qualquer outro tipo de
avaliao.
Por sua vez, a constatao de que as estratgias argumentativas esto presentes
em todo tipo de texto, inclusive nas provas, provocou outros questionamentos dirigidos
ao objeto de estudo: Quando a avaliao tomou as caractersticas discursivas que a
definem hoje? Qual sua importncia social? Quais so as estratgias utilizadas nas
avaliaes e como identific-las? O que essas estratgias dizem do professor, do
aluno, e at mesmo da instituio de ensino, revelando o ethos desses sujeitos da
enunciao?
Logo percebi o quo vasto seria examinar todas as estratgias argumentativas e
decidi, em conjunto com a orientadora, observar a utilizao das figuras de
argumentao e retrica a partir, principalmente, da tipologia oferecida por Perelman e
Olbrechts-Tyteca na obra Tratado da Argumentao, de 1958.
Perelman e Tyteca so alguns dos responsveis pela retomada dos estudos
retricos, ou seja, pelo surgimento das neo-retricas. No mesmo ano em que esses
autores lanaram o Tratado da Argumentao, foi lanado tambm o trabalho de
Toulmin - The uses of argument, que se caracteriza por uma viso substancial da lgica.
Esses dois trabalhos surgem em uma poca - fim dos anos 50 e incio dos anos 60 que
marca uma nova histria nos estudos da linguagem. A frase, que reinava como unidade
mxima de anlise nos estudos lingsticos, cede lugar s preocupaes com o texto e o
discurso. Surgem (ou desenvolvem-se) os estudos da enunciao, da pragmtica, da
argumentao, da semitica, e outros. , pois, nesse cenrio, que as figuras de
argumentao, muito estudadas na retrica antiga, voltam cena, colaborando para um
conhecimento maior do uso da linguagem.
A escolha pelo estudo das figuras deveu-se ao fato de as considerarmos
estratgias argumentativas privilegiadas, capazes de evidenciar no s o fazer
persuasivo do enunciador, bem como seu ethos (identidade) e a representao ou
imagem que ele faz do enunciatrio (alteridade).
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Ao longo do percurso, entretanto, percebemos que a tipologia oferecida pelos
autores no dava conta dos procedimentos argumentativos e de seus efeitos de sentido, e
que era necessrio repensar as figuras tendo em vista a flexibilidade do discurso, os
diferentes nveis de significao no texto, bem como outras tipologias e abordagens
sobre as figuras.
Observando as produes dos alunos e diferentes textos que fazem parte do dia-
a-dia do professor, nos demos conta de que gneros especficos pedem determinadas
estratgias argumentativas, e que, portanto, o que figura em um texto, no
necessariamente tambm o em outro. Assim, as estratgias inesperadas as figuras
relacionam-se subverso e podem nos falar muito mais sobre o enunciador e o
enunciatrio do que os argumentos tpicos/esperados de um dado discurso, j pr-
determinados em funo das caractersticas discursivas do enunciado. Tal observao
acabou por firmar-se nossa hiptese principal, a partir da qual aprofundaremos nossas
buscas neste trabalho.
Levamos, pois, em considerao, nessa opo por focalizar os argumentos
inesperados ou figuras, os seguintes fatores: a) a importncia histrica das figuras nos
estudos retricos; b) a importncia que tm recebido nos estudos neo-retricos, como
expresso de recortes, de pontos de vista; c) a necessidade de renovao diante dos
avanos alcanados nos estudos do uso da linguagem, principalmente a partir dos anos
60; e d) a possibilidade de importar colaboraes de outros estudos do texto e do
discurso.
No artigo Retrica, Pragmtica e Semitica, de 1988, a pesquisadora Diana
Pessoa de Barros j chamara a ateno para o valor dos estudos das figuras e para sua
necessidade de renovao. Para a autora, a retomada dos estudos retricos e as novas
abordagens sobre as figuras tm sua importncia, mas necessitam de uma atualizao e
de uma complementao junto a outras teorias do texto e do discurso, em especial, junto
teoria semitica greimasiana. Esse estabelecimento de relaes entre a Semitica de
Greimas e as figuras retricas, principalmente a partir de Perelman, exige uma reflexo
mais profunda, levando-se em conta os nveis do percurso gerativo de sentido. Segundo
ela, essa relao que falta tipologia perelmaniana, na medida em que o autor belga
no diferencia procedimentos narrativos em que se encaixariam, por exemplo, os
argumentos de autoridade -, de procedimentos discursivos relacionados situao de
enunciao. Desta forma, Barros situa a argumentao e as estratgias persuasivas no
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apenas no nvel discursivo, mas nos planos sintxicos tanto do nvel narrativo (sintaxe
narrativa), quanto do nvel discursivo (sintaxe discursiva). Tarefa que conta com a
possibilidade de se ver o texto de um modo global por meio da teoria semitica e
com a necessidade de se refletir sobre outras abordagens pragmticas e neo-retricas das
figuras.
Agradou-nos a possibilidade de desenvolver nossa tese a partir desse encontro
terico e metodolgico em que os dois componentes intrnsecos linguagem podem ser
examinados: a narratividade visto que todo texto mostra uma mudana de estado na
relao entre sujeitos e na relao entre sujeitos e objetos de valor - e a
argumentatividade na medida em que no h discurso neutro.
Essa aproximao entre Retrica e Semitica, entretanto, no algo recente nos
estudos da linguagem. A busca de relaes entre as duas reas intensificou-se nos anos
90 com trabalhos de Paul Ricoeur, Claude Zilberberg, Jacques Fontanille, Denis
Bertrand e outros, embora j se esboasse no artigo Rhtorique de limage de Roland
Barthes, de 1964, como afirma Lineide Mosca (2001:24) em Velhas e novas retricas:
convergncias e desdobramentos. Tal afinidade pode ser vista atualmente em pesquisas
tanto na rea da Anlise do Discurso, quanto na Sociossemitica, em que o nvel
discursivo do texto privilegiado.
Acreditamos que a prpria definio de retrica dada por Aristteles em Arte
Retrica e Arte Potica (s/d: 33), como a faculdade de ver teoricamente o que, em cada
caso, pode ser capaz de gerar persuaso, permite essa relao entre as duas reas. Se
por um lado, ao delegar Retrica a persuaso o filsofo a separa da Lgica Formal,
por outro lado, ele se compromete tanto com a construo da argumentao em
diferentes situaes, - ou seja, com a significao (que o objeto de estudo da Semitica
o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz) -, como com a possibilidade de
se obter ou no a persuaso, - ou seja, com a eficcia desse discurso.
Podemos conjeturar, pois, que h nessa definio aristotlica de Retrica uma
preocupao latente no s com o fazer persuasivo (presente na manipulao no nvel
narrativo e concretizado nas estratgias argumentativas do nvel discursivo, de acordo
com o percurso gerativo de sentido de Greimas), bem como com o fazer interpretativo
(presente na ao e na sano no nvel narrativo, e nos efeitos de sentido produzidos no
nvel discursivo).
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Os estudos da argumentao de base retrica costumam observar esses dois
lados da enunciao. Perelman e Tyteca j no Tratado da Argumentao (edio de
2002:137) assinalam o seguinte: O estudo da argumentao nos obriga, de fato, a levar
em conta no s a seleo dos dados, mas igualmente o modo como so interpretados, o
significado que se escolheu atribuir-lhes.
possvel apontar uma base comum entre a Retrica e a Semitica, como afirma
Klinkenberg no prefcio s Retricas de ontem e de hoje, organizado por Mosca
(2001:15):
Recolocando a lngua no seio do conjunto das prticas de comunicao e significao, a retrica no faz nada mais, portanto, seno empreender a realizao do programa de semitica proposto por Saussure: o de estudo da vida dos signos no seio da vida social.
Tomando a rea de Letras em toda a sua extenso, podemos afirmar que essa
aproximao no se d apenas entre Retrica e Semitica, mas entre elas e os estudos
lingsticos de um modo geral, marcados hoje no s pela preocupao com os fatos da
lngua e dos signos verbais que a veiculam e representam pontos de vista sobre o mundo
privilegiados por Saussure -, mas com os fatos da fala e do discurso (produo e uso,
ou seja, aspectos psico-fsico-fisiolgicos, e sociais) e com todos os tipos de signos.
Podemos, ainda, dizer que essa aproximao se d entre as duas disciplinas e as
cincias humanas de um modo geral, como a Sociologia, a Antropologia, a Educao
rea com a qual dialogaremos bastante ao longo do desenvolvimento desta tese -, a
Psicologia e outras, na medida em que estas ltimas podem oferecer subsdios para a
observao e a anlise da utilizao concreta dos signos na vida social dos sujeitos.
Essa complexidade da linguagem, que permite e exige a relao entre tantos
conhecimentos complementares, j havia sido apontada por Saussure quando indica a
necessidade da criao da Semiologia e da Lingstica da Fala (captulos III e IV do
Curso de Lingstica Geral). Ao chamar a ateno para a existncia de um lado
individual a parole - e de um lado social na linguagem verbal a langue -, o autor
destaca essa complexidade e instiga a busca por conhecimento lingstico, extrapolando
o pensamento estruturalista a ele relacionado. No nos cabe entrar na discusso sobre
quais os fatores que o levaram a privilegiar a lngua, mas nos cabe observar que a
Lingstica moderna, por ele fundada no incio do sculo XX, tem hoje espao tanto
para os estudos fonolgicos, morfolgicos, sintticos e semnticos, quanto para os
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estudos fonticos e para os estudos do uso, do texto e do discurso, em geral, para os
quais ele chamara ateno. Nestes ltimos, destaca-se ainda a observao das
linguagens no-verbais, no estudadas por Saussure, mas cuja essncia discursiva foi
tambm apontada por ele ao situar a Lingstica em um estudo geral da linguagem, a
Semiologia.
E este estudo geral que se transformou ainda nos anos 60 no que hoje
conhecemos como Semitica. Dentro dos estudos da linguagem, v-se, hoje, uma
crescente importncia e destaque da abordagem semitica do texto, em particular, da
Semitica greimasiana. Esta tem se mostrado um mtodo de anlise eficiente na
explorao da significao, ou seja, da construo do sentido, nos mais variados tipos de
texto. Tal eficcia se explica por sua amplitude metodolgica, que permite observar no
texto desde suas categorias semnticas bsicas (nvel fundamental) at a instaurao de
sujeitos e valores que realizam mudanas (nvel narrativo), e a instncia de enunciao
que envolve esses sujeitos (nvel discursivo).
A anlise deste ltimo nvel apontado, o nvel discursivo, exige uma mincia que
revele, a partir do prprio texto, a situao de enunciao, o contexto scio-histrico e
cultural em que esto inseridos os sujeitos, suas ideologias, crenas e paixes. nesta
direo que as pesquisas em Anlise do Discurso vo ao encontro da Semitica,
oferecendo o detalhamento necessrio para a anlise do nvel discursivo, como, por
exemplo, a observao das estratgias argumentativas, dentre elas das figuras de
argumentao e retrica.
Ao contrrio da abstrao e generalizao observadas nos dois primeiros nveis
do percurso gerativo de sentido (fundamental e narrativo) que nos apresentam uma
anlise interna do texto -, o nvel discursivo encontra-se muito mais prximo da
concretude, do uso efetivo da linguagem nas relaes sociais, oferecendo a
possibilidade de uma anlise externa do texto, porm, autorizada por ele.
Assim, a relao entre a semitica greimasiana e a AD Anlise do Discurso -
mostra-se, ao mesmo tempo, complementar e til, na medida em que possibilita uma
anlise global do texto.
Da mesma forma como ocorre com a semitica greimasiana, a retrica parte
integrante da AD - tambm tem se destacado nos estudos da linguagem nos ltimos
anos. Ouve-se falar muito em retrica, seja no meio acadmico, na mdia, no uso
cotidiano da linguagem, embora muitas vezes o termo seja utilizado de forma
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equivocada, com o nico significado de discurso vazio e florido, como discutiremos
adiante.
Porm, utilizada correta ou equivocadamente, a retrica parece, hoje, presente
em inmeras situaes; isto porque a persuaso seu objeto de estudo - est presente
em todos os discursos, e porque as pessoas se deram conta desse poder da linguagem,
que extrapola a situao de enunciao e pode modificar as relaes sociais.
Relacionada s situaes polmicas, aos conflitos e debates, a retrica d conta de
diversas estratgias utilizadas nos discursos que circulam na sociedade, e que so
responsveis pelas direes polticas, econmicas e ideolgicas que essa sociedade
assume. Todos querem, pois, conhecer mais sobre as estratgias de argumentao e
muito se fala sobre a retrica do Lula, do Papa, do presidente dos EUA, e da retrica de
outras personalidades cujos pronunciamentos e opinies afetam direta ou indiretamente
nossa vida.
Mosca (2005:02) assim justifica tal notoriedade alcanada pela retrica nos dias
de hoje:
Cabe, pois, destacar a diversidade de seu campo de atuao, uma das razes de sua fecundidade hoje, alm do fato de situar-se em pleno terreno da controvrsia, da discusso e do debate, portanto de estar sintonizada com os conflitos de nosso tempo.
A busca desta complementao entre retrica/neo-retricas e semitica na
reflexo sobre as figuras nosso ponto de partida terico ao qual adicionamos a teoria
dos gneros do discurso de Bakhtin. A prpria concepo de inesperado nos encaminha
para essa teoria, o que esperado em uma reportagem de jornal, pode no ser no sermo
do padre ou em uma prova escrita. Assim, conforme nossa linha de reflexo, o que em
um texto apenas uma estratgia argumentativa autorizada, esperada, em outro pode
transformar-se em uma figura de argumentao.
No decorrer do presente trabalho, outros autores foram se juntando a essas trs
teorias, auxiliando-nos em nossas reflexes. Autores que trabalham com a
Sociossemitica, como Discini e Landowski, colaboram de modo direto para a anlise
da identidade discursiva de professor, aluno e instituio. Outros estudiosos retomados
nos permitem traar um perfil das avaliaes histrica e pedagogicamente, a fim de
entendermos o verdadeiro papel social desse gnero discursivo.
A insero dessa parte histrica e pedaggica das avaliaes no fazia parte de
nosso projeto inicial, mas foi impossvel no dialogar com outros textos que cruzaram
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nosso caminho e versavam sobre nosso objeto de estudo, como os textos das reas de
Didtica, Histria da Lngua Portuguesa e Estilstica, disciplinas que lecionamos
durante este perodo. Somando-se s teorias principais, j destacadas, esses estudos
permitiram apresentar um panorama geral da avaliao, que comea com a origem da
linguagem, passa pelo poder da linguagem verbal, pelo poder institucional e social da
avaliao, para culminar com a anlise da subverso nas provas escritas por meio do uso
de argumentos inesperados.
Tendo em vista esse longo percurso at encontrarmos o ethos de nossa tese,
definimos como objetivo principal de nosso trabalho:
- repensar as figuras de argumentao e retrica de Perelman e Olbrechts-Tyteca
levando em considerao os nveis do percurso gerativo de sentido de Greimas e o
conceito de gnero discursivo de Bakhtin e apresentar, como resultado dessa reflexo,
uma tipologia de argumentos que auxilie na anlise do corpus estabelecido.
Como objetivos secundrios podemos citar:
a) traar um panorama histrico, pedaggico e social da avaliao, a fim de
compreender sua real importncia no processo ensino/aprendizagem e tambm na
sociedade;
a) demonstrar que o discurso elaborado pelos alunos em avaliaes e exerccios
avaliativos de um modo geral no um discurso demonstrativo, mas situa-se no campo
do conflito. Assim sendo, ele no tem como finalidade apenas convencer o professor,
mas persuadi-lo, j que o aluno busca conseguir a adeso do professor no s pelo uso
da razo, mas tambm por meio das paixes, do verossmil, dos fatores interacionais e
emocionais, da comunho dos espritos (termo utilizado por Perelman na obra
Retricas, de 1989 (edio de 1997));
b) buscar os indcios que se apresentam na construo do ethos do profissional
de Letras e das identidades sociais envolvidas na relao professor/aluno;
c) observar os efeitos da prtica discursiva analisada as avaliaes sobre a
prtica social que envolve os interlocutores professor e aluno.
Tendo em vista tais colocaes iniciais, resumimos o teor de cada captulo desta
tese. No primeiro captulo, Objeto de estudo e sujeitos da enunciao uma viso
evolutiva da educao, da avaliao, do professor e do aluno, pretendemos encontrar as
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razes do conflito inerente prtica da avaliao. Para tanto, voltamos nossa ateno
para a educao na Antigidade principalmente a partir de Manacorda - e procuramos
indcios de atividades avaliativas; situamos a avaliao na prtica educativa e traamos
seu carter interacional, recorrendo a autores como Bakhtin e Orecchioni.
No segundo captulo, A avaliao como manifestao discursiva, destacamos
os conceitos bsicos das trs teorias que nos norteiam Retrica (e neo-retrica de
Perelman), Teoria dos gneros do discurso de Bakhtin e Semitica discursiva de
Greimas e tentamos situar a avaliao em cada uma das reas indicadas.
O terceiro captulo, O papel das figuras de argumentao e retrica nas
avaliaes no ensino superior, apresenta uma tipologia de estratgias argumentativas e
sua aplicao nos dados coletados, permitindo observar o ethos dos sujeitos envolvidos
nessa situao comunicativa, bem como descreve o material e a forma como o corpus
foi definido.
Seguem-se as Consideraes finais, Bibliografia e Anexos.
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CAPTULO I Objeto de estudo e sujeitos da enunciao uma viso evolutiva da
educao, da avaliao, do professor e do aluno
Mas agora dize-me, estava dizendo Guilherme, por qu? Por que quiseste proteger este livro mais que muitos outros? Por que escondias, mas no a preo de um crime, tratados de nicromancia, pginas em que se blasfemava, talvez, o nome de Deus, mas por essas pginas danaste teus irmos e danaste a ti mesmo? H muitos outros livros que falam da comdia, muitos outros ainda que contm o elogio do riso. Por que este te incutia tanto medo?
Porque era do Filsofo. Cada livro daquele homem destruiu uma parte da sabedoria que a cristandade acumulara no decorrer dos sculos. [...] Cada uma das palavras do Filsofo, sobre as quais j agora juram tambm os santos e os pontfices, viraram de cabea para baixo a imagem do mundo. Mas ele no chegou a virar de cabea para baixo a imagem de Deus. Se este livro se tornasse[...] tivesse se tornado matria de livre interpretao, teramos ultrapassado o ltimo limite.
Umberto Eco, O nome da Rosa
CHANCELER Natureza, esprito no assim que se fala a cristos! por isso que os ateus morrem na fogueira: semelhantes discursos so extremamente perigosos. Natureza pecado, esprito coisa do Diabo, e da conjuno dos dois nasce a Dvida, esse bastardo. Longe de ns tais idias! Dos antigos pases do Imperador s surgiram duas castas, que sustentam seu trono dignamente: os santos e os cavaleiros; eles enfrentam todas as tempestades e, como recompensa, dispem da Igreja e do Estado. Mas nos espritos plebeus e nas mentes perturbadas surge aos poucos uma resistncia: so os hereges! Os feiticeiros! Eles corrompem cidade e campo. Agora, queres introduzi-los neste nobre crculo com artimanhas e gracejos insolentes; no vos deixeis levar por um corao corrompido: o herege parente do bufo.
MEFISTTELES bem assim que falam os eruditos! O que no tocais est a lguas de distncia, o que no concebeis no existe absolutamente, o que escapa a vossos clculos tomais por falso, no tem peso o que no pesais e de nada valem as moedas que vs mesmos no cunhastes!
Goethe, Fausto, parte II, primeiro ato
Os dois dilogos reproduzidos acima vm ilustrar o poder da linguagem que j
se mostrou historicamente e que faz parte de nosso imaginrio. esse poder,
representado na escola, dentre outros textos, pelas avaliaes, que nos faz iniciar este
trabalho remontando aos primrdios da linguagem, do ensino e dessa fora que
costumamos atribuir s palavras. Tal volta s origens tem por objetivo situar a avaliao
dentro de um quadro maior da histria, do ensino e da interao/comunicao entre as
pessoas.
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1 - Voltando no tempo para situar a avaliao
1.1 A origem da linguagem
Embora no saibamos ao certo quando a linguagem verbal surgiu, todos
podemos imaginar que, por viver em grupos, o homem sentiu a necessidade de se
comunicar e, embora no haja no ser humano um aparelho fonador propriamente dito,
adaptou partes do corpo que serviriam inicialmente para funes primrias de
sobrevivncia alimentar-se e respirar para a produo de sons, assim como utilizou
outras partes do corpo para desenvolver linguagens diversificadas, como os gestos e as
danas, como se v em Chau (2000:172): Gestos e vozes, na busca da expresso e da
comunicao, fizeram surgir a linguagem.
Deste modo, a linguagem verbal deve ter aparecido como necessidade
necessidade de sobrevivncia, necessidade de expressar os sentimentos -, da mesma
forma que surgiram as ferramentas, indispensveis para caar e preparar alimentos.
Alm da necessidade, a imitao dos sons da natureza e dos gestos dos prprios seres
humanos surge como outra resposta origem da linguagem. Essas teorias que envolvem
necessidade e imitao, no entanto, no so excludentes, e sua combinao aponta para
a inseparabilidade entre linguagem verbal e linguagens no-verbais na expresso e na
comunicao entre seres humanos.
Como j assinalava Saussure no Curso de Lingstica Geral publicado em
1916 (edio de 1991:15-25), linguagem algo mais geral que as lnguas naturais. A
linguagem, heterclita e multifacetada, abrange tanto as linguagens verbais - como as
lnguas naturais-, quanto as linguagens no-verbais; social e individual; envolve
aspectos fsicos, fisiolgicos e psquicos do homem, e sua complexidade faz com que s
a Lingstica no seja capaz de estud-la, mas que outras reas preocupem-se com ela,
como a Psicologia e a Sociologia.
A linguagem revela-se fundamental para o ser humano. Diramos at, que o
desenvolvimento da linguagem verbal articulada, segmentvel, complexa e aberta a
modificaes de acordo com as evolues da sociedade - foi o que diferenciou o homem
dos animais irracionais e lhe permitiu ser o dono do mundo.
No bastasse comunicar-se oralmente e por gestos, o homem tambm passou a
simbolizar de outras formas suas vivncias e experincias, talvez at antes do uso da
linguagem verbal. Um bom exemplo disso so os pictogramas encontrados em cavernas,
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herana de nossos ancestrais pr-histricos que acabaram, mesmo sem saber,
imortalizando rituais de caa e de sobrevivncia em geral. O aprimoramento dessas
simbologias levou ao desenvolvimento de linguagens no verbais como esculturas,
projetos arquitetnicos, pinturas e outras e ao desenvolvimento da escrita, por volta de
3.500 a.C., representao da linguagem verbal cuja importncia tanta que separa a Pr-
histria da Histria. Formava-se, ento, o conceito de cultura.
Desde seus primrdios, a escrita revelou-se smbolo do poder e instrumento do
ensino, mesmo quando o professor no se chamava professor, quando o aluno no se
chamava aluno, quando a escola no se chamava escola e a avaliao no se chamava
avaliao.
1.2 Linguagem e educao
O que significa educao? Em que momento histrico essa palavra toma
dimenses semnticas e sociais prximas quelas que carrega hoje?
Os povos mais primitivos j se preocupavam com educao; os mais velhos
eram os responsveis por transmitir para os mais novos os ensinamentos necessrios
para a sobrevivncia em suas sociedades: os conhecimentos de caa e pesca; as artes da
guerra; os rituais religiosos; lendas e histrias do povo. Tais formas de educao, no
entanto, no se encaixam no que compreendemos hoje por educao e muito menos no
que entendemos por sistema educacional ou ensino, que envolve hierarquias, normas,
leis de regncia e controle aplicadas s escolas, colgios, universidades de um
determinado pas, estado ou cidade.
Mas, o que se ensina? J que no mundo moderno no nos atemos simplesmente
transmisso de informaes importantes para a sobrevivncia (ser que no?), qual o
objeto do ensino? O que o ensino pretende, ou ainda, o que se pretende com o ensino?
Sodr (1989:122-123), define o ensino como uma forma de educao, como
o meio sistemtico mais usado e mais desenvolvido na transmisso da cultura 1.
Segundo o autor, em graus diferentes de desenvolvimento, sempre houve na histria dos
povos um aparelho de transmisso sistemtica dos conhecimentos. Esse grau de
1 Cultura definida, neste contexto, como um conjunto de valores materiais e espirituais criados pela humanidade (Sodr, 1989:03), ou ainda, como um conjunto de prticas e habilidades desenvolvidas por um determinado povo ao longo da histria em diversas reas do saber cincia, arte, filosofia, poltica, religio, dentre outras.
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desenvolvimento do ensino est relacionado intimamente ao grau de complexidade das
sociedades, assim, sociedades complexas, como as do capitalismo, demandam
complexos aparelhos de ensino, estruturas complexas de ensino. Como peas do
Estado, tais estruturas transmitem a cultura oficial, aquela que obedece caracterstica
social de que a cultura dominante a cultura dos dominantes.
Remontando histria da educao na civilizao ocidental, em especial aos
egpcios, gregos e romanos, podemos observar que tal definio passa intocvel pelos
grandes imprios antigos e continua vlida no quadro educativo atual, e que a
linguagem verbal o dominar a palavra - exerce um papel fundamental no ensino e na
sociedade.
Nas antigas civilizaes, mesmo sem uma estrutura educacional muito
desenvolvida, no tardou para que se percebesse a fora da linguagem, capaz de manter
no poder os dominadores, ou de destitu-los. Logo se percebeu que dominar a palavra
seja ela verdadeira ou falsa, se que existe uma verdade nica - dominar o poder.
Chau (2000:173-174) cita como maior exemplo do poder da palavra, neste caso, da
palavra mtica, a criao do mundo no Gnese, livro da Bblia judaico-crist, em que, a
partir de enunciados Deus cria o mundo do nada: E Deus disse: faa-se, e foi feito.
1.2.1 Linguagem e poder na educao
Sendo o domnio da palavra um dos grandes trunfos do poder advindo da
educao, devemos neste trabalho, mesmo que rapidamente, tocar em questes
polmicas que permeiam o ensino: a supremacia de uma lngua especfica ou de um
dialeto ou registro dentro de uma lngua; o preconceito lingstico; a excluso
lingstica, dentre outras.
Gnerre (1988) mostra que a legitimao de uma determinada lngua ou variedade
lingstica como sendo a lngua ou a variedade de prestgio resulta na excluso ou
discriminao daqueles que no se encaixam em tais padres. O autor assinala que a
linguagem no utilizada apenas para transmitir informaes, mas que por meio dela o
falante comunica o lugar social que ocupa de fato, ou que acha que ocupa. Um dos
grandes exemplos disso seria a aula, ao lado do discurso poltico e religioso.
O mesmo estudioso fala no apenas do poder da linguagem, mas da fora de
algumas palavras, como progresso, democracia e ditadura que carregam em si
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contedos ideolgicos facilmente identificados pelo homem ocidental atualizado, leitor
de jornais e revistas, estudado, como se diria. Para aqueles distantes dos meios que
propagam tais informaes, essas palavras nada significam. O acesso de poucos
tradio escrita e aos mais diversos meios de informao deficincia social j
arraigada, como veremos ao retomar a histria da educao desde a Antigidade -
garante a estes o domnio da variedade culta ou padro, considerada a variedade de
prestgio. No domin-la implica estagnar na pirmide social.
Podemos pensar: bem, diminuiu o nmero de analfabetos, mas h que se
discutir, em outras ocasies, o que se entende por analfabeto. No universo da
linguagem verbal, alm da linguagem oral e escrita (manuscrita, impressa, digitada etc.),
agora h a linguagem virtual, que, embora seja mais uma forma da linguagem escrita,
carrega marcas e caractersticas lingsticas peculiares, tanto fontico-fonolgicas,
quanto morfolgicas, sintticas, semnticas e discursivas. Por conseqncia, surgiu o
analfabeto virtual, aquele que no (re)conhece a linguagem da computao e da Internet,
e no acompanha as novidades dirias lanadas por esse mundo tecnolgico: Orkut,
MSN, Kazaa; Youtube e outras.
Isso sem nos aprofundarmos na questo da valorizao de uma lngua segundo a
influncia social e econmica do pas que a utiliza, como o caso do Ingls no cenrio
atual, em consonncia com o poder econmico dos EUA. No falar Ingls hoje em dia
, em algumas ocasies, ser analfabeto. O mesmo j aconteceu com o Francs nos
sculos XVIII e XIX, principalmente -, e at mesmo com o Grego, na Antigidade,
como veremos adiante. Especula-se, atualmente, qual ser a prxima lngua de status
que garantir o surgimento de novos analfabetos.
E assim a linguagem verbal e no verbal parece reciclar-se no tempo, pois
acompanha e promove as mudanas; e quem a domina em suas vrias faces, acompanha
essas mudanas, e sabe utiliz-la de modo adequado aos diferentes contextos, continua
frente daquele que no a domina, ou que no compreende seus mecanismos de uso e
persuaso. E amanh teremos outra forma de excluso permeada pela linguagem que,
por fim, tornou-se aliada do poder. Ou ser ela o prprio poder?
Como se sabe, a linguagem no tem poder em si, mas somos ns, homens, que
lhe atribumos poder a partir do momento que lhe atribumos significaes, smbolos e
valores que determinam o modo como interpretamos as foras divinas, naturais, sociais
e polticas e suas relaes conosco, no dizer de Chau (2000:174-175). A autora
relembra a fora de algumas expresses como, na missa crist: Este meu corpo, na
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feitiaria: Abracadabra; e ainda retoma o fato de algumas palavras serem proibidas de
se pronunciar em algumas sociedades, na crena de trazerem desgraas ou por terem
conotao sexual.
Nos estudos lingsticos, esse poder foi nitidamente revelado na Teoria dos
Performativos, de Austin, quando se percebeu que no s os inicialmente chamados
performativos, mas toda a linguagem acompanhada de uma ao, ou seja, quando
falamos, no apenas proferimos palavras ou discursos, mas agimos por meio da
linguagem.
Vemos, pois, que a questo do poder da linguagem j ocupou diversos
estudiosos, de diferentes reas, e constitui uma questo polmica, na medida em que se
define como uma preocupao social. E como esse poder se mostrou ao longo da
histria? Vejamos.
1.3 A educao da Antigidade aos nossos dias em busca de indcios da origem das
avaliaes
1.3.1 A educao no Egito Antigo
Comecemos pelo Egito, bero da cultura e grande responsvel por parte do
conhecimento que permitiu Grcia e depois Roma alcanarem o desenvolvimento e
o status que ainda as destacam na histria do mundo.
Segundo Manacorda (2006:09), vm de l os testemunhos mais antigos sobre
educao . Embora no haja indcios de uma escola organizada no Egito, sabe-se que
foram desenvolvidos conhecimentos em muitas reas matemtica, medicina,
astronomia, poltica e outras - alm de ofcios prticos como agricultura e agrimensura,
e que a transmisso dessas cincias era reservada s classes dominantes.
Documentos do Antigo Imprio egpcio (sc. XXVII a.C.), atestam a
transmisso de sabedoria de gerao a gerao, de pais para filhos, de fara-pai para
fara-filho o que no deixa de ser uma proto-pedagogia. Nada garante, no entanto, que
tal transmisso inclua o ler e o escrever, embora inclussem o falar bem e o respeito
palavra: como na vida poltica, tambm na formao para ela essencial o mais
absoluto respeito palavra (id.: 15).
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Testemunhos posteriores, datados da Idade Feudal (2190 a 2040 a.C.), do Mdio
Imprio (2133-1786 a.C.) e do Novo Imprio (1552-1069 a.C.), j indicam uma
organizao maior na educao. O acesso a ela permitia uma certa mobilidade social e
crianas no-nobres podiam ser preparadas desde a infncia para assumir cargos
polticos na idade adulta. Aos no-nobres e no destinados aos cargos polticos, como
aponta Manacorda (2006:17-40), outros ensinamentos eram oferecidos nos palcios,
mas no h detalhamentos sobre tais contedos nos documentos existentes dessa poca.
O uso do texto escrito e a consolidao de modelos educativos so descritos j
no final da Idade Feudal, e nas pocas posteriores, o uso do livro e do texto, como j
podemos cham-lo, torna-se cada vez mais freqente e generalizado . (id.:20)
O poder da linguagem j pode ser confirmado com o prestgio que gozavam os
escribas nessa sociedade. Partem destes intelectuais, detentores da arte de escrever por
meio dos hierglifos, os primrdios das avaliaes, que consistiam em disputas para
evidenciar quem era o mais sbio.
Nessa poca fala-se j em escola e cultura, embora haja uma distino entre
aquilo que aprendem as castas dominantes, os nobres e os funcionrios, e aquilo que
cabe ao resto do povo - no todo ele, mas queles cidados que exerciam algum tipo de
atividade ou arte: transmitir aos filhos ofcios prticos, menos valorizados. Os que
sobram no tm acesso educao, no sentido sobre o qual aqui refletimos.
1.3.2 A Grcia Antiga e o desenvolvimento de sistemas educacionais
Talvez na Grcia Antiga j se possa falar em sistemas educacionais. Os
historiadores dividem a histria da Grcia Antiga em quatro pocas: a homrica que
corresponde aos 400 anos narrados por Homero; a arcaica sc. VII ao V. a.C., quando
surgem as grandes cidades como Atenas e Esparta; a clssica, nos sculos V e IV a.C.,
que marca o apogeu intelectual de Atenas; e a helenstica, a partir do sc. IV a.C que
marca a passagem do poder para Alexandre da Macednia (Alexandre, o Grande) e
depois para o Imprio Romano.
A educao na Grcia era caracterizada pelo ensino intelectualista, verbalista,
dogmtico, e pela valorizao da memorizao e da repetio dos conhecimentos
transmitidos, como aponta Libneo (1994:57-71). Na Grcia arcaica, citam-se as
paidiai de Homero e de Hesodo, que separavam as sabedorias dos guerreiros e dos
camponeses. Os testemunhos sobre as disputas entre os dois poetas constituem uma
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fonte para nossa reflexo sobre a origem das avaliaes, como observamos na seguinte
citao extrada de Manacorda:
Procurando entre os testemunhos mais antigos sobre o contedo e os fins da educao -, poderamos citar, em primeiro lugar, o Torneio de Homero e Hesodo. Estamos na poca anterior escola dos grmmata; mas as provas daquele torneio quase se parecem aos exames escolares, com perguntas sobre moral, literatura e histria; por exemplo, o que era melhor para o homem, a recitao mnemnica de versos, o nmero dos gregos em Tria e, enfim, a declamao de versos prprios. Lembram um pouco as disputas entre os escribas egpcios.
(2006: 55-56)
No perodo clssico sculos V e IV a.C. - destacam-se as cidades de Creta,
Esparta e Atenas esta ltima conhecida como a capital da educao na Idade Antiga -
que ofereciam educao refinada e elitizada. O ensino, inicialmente privado, tornou-se
ainda neste perodo responsabilidade do Estado, graas s contribuies financeiras de
particulares, de cidades ou de soberanos (Manacorda, op.cit.:65).
A escrita alfabtica promove uma democratizao do ensino e junto aos mestres
de ginstica e de msica surgem os mestres gramticos e as escolas de letras
grmmata. O uso da palavra passou a ser mais valorizado do que os exerccios fsicos,
do que a espada e as artes de guerra em geral.
Com a democratizao poltica, o homem grego comeou a ter voz nas
assemblias e a educao antiga j no dava conta de suas novas necessidades: falar
bem e persuadir. neste cenrio que os sofistas surgem para ensinar a arte da
eloqncia, exibindo seu talento oratrio em lugares pblicos, como teatros e estdios,
sustentando opinies e argumentando.
Sofistas o nome pelo qual ficaram conhecidos os pensadores, filsofos e
professores gregos que exploravam a arte de persuadir pela palavra, mostrando,
geralmente em troca de altos pagamentos, como possvel, por meio do uso da
verossimilhana ou de raciocnios aparentemente vlidos os sofismas -, chegar
persuaso. a partir deles que se d popularizao da retrica como uma forma de
ensino da persuaso.
Apesar da democratizao da sociedade, da estatizao gradual do ensino, e da
expanso do acesso s escolas havia at alguns escravos (os pedagogos) que eram
alfabetizados para acompanhar a educao de seus donos - a elite ainda tinha assegurado
um direito maior educao e cultura, devido sua influncia poltica, o que no
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permitia muitas mudanas sociais. Chau (2000:172), observa uma afirmao de
Aristteles sobre o poder da linguagem e sua relao com o poder poltico:
Na abertura da sua obra Poltica, Aristteles afirma que somente o homem um animal poltico, isto , social e cvico, porque somente ele dotado de linguagem. Os outros animais, escreve Aristteles, possuem voz (phone) e com ela exprimem dor e prazer, mas o homem possui a palavra (logos) e, com ela exprime o bom e o mau, o justo e o injusto.2
A escola formal era aberta apenas para os homens, que ingressavam por volta
dos 6-7 anos de idade e eram acompanhados at os 18 ou at os 30 anos. Alm do
ensino de lgica, gramtica e retrica, havia ainda as aulas de desportos e das artes da
guerra. Para as mulheres existiam alguns poucos centros de iniciao (thasoi) que
ofereciam ensinamentos diferenciados, como assinala Manacorda, 2006, p.47.
O castigo fsico era comumente aplicado, tanto na educao familiar, quanto na
escolar. Sobre esse assunto discorre Manacorda (op.cit.:58): Embora as leis de Slon
prescrevessem O escravo no bata na criana livre, chicotes e varas, como entre os
egpcios e os hebreus, eram o meio principal da instruo.
O retor romano Quintiliano, j no sc. I d.c., se posicionava contra a aplicao
de castigos fsicos aos alunos, evidenciando a prtica comum das punies corporais,
conforme informao de Barthes (1975:159).
Documentos que descrevem a estatizao das escolas a partir do sculo V tratam
tambm de outras questes, como o calendrio escolar, as provas finais, as cerimnias,
as frias, os deveres e os salrios dos mestres e a abertura gradual da educao s
meninas e aos escravos. A partir dessa poca as escolas se expandiram e viraram centros
de cultura fsica e intelectual denominados ginsios, que eram destinados aos homens
livres. Paralelamente, algumas profisses consideradas de menor importncia eram
ensinadas aos escravos com vistas melhor servido.
O maior desenvolvimento da estrutura educacional grega levou difuso e
extenso das atividades olmpicas, guerreiras e intelectuais. As competies fsicas, as
Olimpadas, foram abertas aos adolescentes por volta dos anos 600 a.C., e as artes da
guerra deixaram de ser restritas aos aristocratas. Concomitantemente, as atividades
artsticas tambm progrediram e promoveram a mediao entre o fsico e o intelectual
2 Grifos da autora.
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por meio do canto, da dana, das competies poticas e teatrais. Em seguida,
paulatinamente [...] as exercitaes intelectuais tero a prevalncia isso aps os
sculos II ou III d.C., quando a Grcia j estava sob domnio do Imprio Romano e a
antiga unidade entre fsico e intelectual estar definitivamente perdida (Manacorda,
2006: 69).
1.3.3 A antiga educao romana e o modelo de educao grego em Roma
A educao romana pode ser dividida em duas etapas: a primeira, baseada no
paterfamilias, vigorou at a adoo do modelo de educao grego, e a segunda, da em
diante, baseada no mesmo verbalismo e dogmatismo que caracterizavam o ensino na
Grcia.
Marrou (1990) define a antiga educao de Roma situada entre o sculo VI
a.C. at a adequao progressiva civilizao helenstica aps a morte de Alexandre, o
Grande, em 323 a.C. como uma educao de camponeses. Todo o latim, segundo o
autor, pode ser definido como uma lngua de camponeses, desenvolvida por um povo
aristocrata que vivia da terra, de onde brotavam suas significaes.
Para compreend-la a antiga educao romana -, basta observar o que , ainda hoje, na sua essncia, a formao dos pequenos camponeses. A educao para eles antes de tudo a iniciao progressiva em um modo de vida tradicional. (op.cit.: 360)
Esse iniciar-se no modo de vida tradicional significava acompanhar a famlia
em suas atividades desde a mais tenra idade; imitar os mais velhos atravs das
brincadeiras; entrar aos poucos no mundo dos adultos ouvindo suas histrias e fazendo-
se ouvir; aprender os ofcios dos pais e dar continuidade a esse trabalho; acompanhar o
pai ao senado e aprender os segredos da vida poltica. Ou seja, a educao, pautada na
famlia, tinha um conceito todo particular de sabedoria, de ensino, de cultura, que
envolvia a vida do cidado de um modo geral.
A soberana autoridade do paterfamlias exalta a importncia da figura dos pais
e aqui se subentende pai e me, visto que em Roma, ao contrrio da Grcia, a mulher
exercia um papel importante na educao familiar. s mes cabia ensinar aos filhos
meninos e meninas as primeiras letras e incentivar seu desenvolvimento por meio de
brincadeiras e jogos em casa (Como tudo isso diferente da Grcia! [...] em Roma no
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um escravo, mas a prpria me quem educa o filho. - Marrou, 1990, p.360,
lembrando uma observao feita por Ccero na poca).
Aps os sete anos a responsabilidade do ensino passava para o pai, que devia
oferecer ao filho a possibilidade de acompanh-lo em todas as suas atividades da vida
pblica e profissional. Enquanto isso, as filhas permaneciam ao lado da me aprendendo
outras atividades, mais ligadas aos cuidados da casa e da famlia. No paterfamilias
romano os pais tinham total poder sobre os filhos, o que adiou o aparecimento da
educao pblica.
Foi sob a influncia da cultura grega que apareceram as primeiras escolas, e
assim como na Grcia, os primeiros mestres eram escravos. O ensino da retrica e da
gramtica encontrou em Roma alguma resistncia devido ao carter tradicionalista que
acompanhava a antiga forma de educao e ao nacionalismo dos mais velhos, mas foi
aceito por volta dos sculos I ou II d.C., o que garantiu a preservao da sabedoria grega
atravs dos tempos. Manacorda discorre sobre a importncia desse triunfo do modelo
grego de educao em Roma para a histria ocidental:
Esta vitria da escola do tipo grego em Roma representa, afinal, um fato histrico de valor incalculvel, mediante o qual a cultura grega tornou-se patrimnio comum dos povos do imprio romano e depois foi transmitida durante milnios Europa medieval e moderna e, enfim, nossa civilizao como premissa e componente indispensvel sua histria. (2006:83)
Embora a herana grega tenha sido bem-vinda no campo intelectual, - tendo em
vista a extensa produo dos filsofos e dos homens das cincias - no campo
pedaggico ela garantiu a continuidade de algumas prticas nem sempre produtivas. A
didtica repetitiva e mecnica, os contedos distantes da vida dos aprendizes e o medo
dos castigos fsicos afastavam os alunos, que no se interessavam pela escola. Apesar
das crticas, o modelo grego era o mais difundido pelo valor dado eloqncia,
importante para a vida em sociedade.
As escolas destinavam-se principalmente aos homens das famlias mais ricas,
que aprendiam poesia, geometria, msica, retrica e filosofia. s mulheres permitia-se,
de certa forma, o estudo da msica, a ttulo de arte recreativa, como relembra Marrou
(1990:383). J o gosto pelas atividades fsicas no fora herdado dos gregos e tal
costume nunca entrar para a educao romana da mesma forma como fora na educao
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grega. Todo o ensino baseava-se na leitura de textos da tradio literria e no em livros
didticos. Assim como na Grcia, alguns escravos eram levados a cursos
profissionalizantes ou alfabetizantes para que fossem mais valorizados na venda, mas
em geral s a aristocracia tinha acesso s escolas.
O primeiro livro de Quintiliano trata da educao inicial do aluno em Roma e da
sua relao com o gramtico. O domnio da palavra ainda era muito valorizado, por isso
o ensino da retrica devia ser iniciado cedo, por volta dos 14 anos de idade, depois de
outros ensinamentos, e o adolescente romano tinha algumas atividades obrigatrias a
partir das quais seu desenvolvimento e aproveitamento eram avaliados. Barthes
descreve abaixo tais atividades (1975: 159-160):
Os dois exerccios principais so: a) as narraes, resumos e anlises de argumentos narrativos, de acontecimentos histricos, panegricos, elementares, paralelos, ampliaes de lugares-comuns (tese), discursos conforme um plano estabelecido (preformata materia); b) as declamationes, ou discursos sobre casos hipotticos; o exerccio do racional fictcio (portanto, a declamatio j est mais prxima da obra). V-se como tal pedagogia fora a palavra. Esta, cercada por todos os lados, expulsa do corpo do aluno, como se houvesse uma inibio inata para falar e fosse necessria toda uma tcnica e educao para lev-lo a sair do silncio. Enfim, como se esta palavra assim aprendida, conquistada, representasse uma relao objetal com o mundo, um bom controle do mundo e dos outros.3
Apesar da valorizao da cultura da Grcia, a lngua grega no obteve o mesmo
status de uso ou a mesma funcionalidade comunicativa na educao em Roma e foi
suplantada pelo latim, que invadiu a Idade Mdia como uma grande fora lingstica. Os
latinos enxergavam uma maior complexidade lingstica no grego e o usaram como uma
lngua auxiliar, uma lngua de cultura. O romano culto deveria dominar o grego e o
latim. Na escola, as crianas faziam exerccios de traduo do grego para o latim, e do
latim para o grego.
O latim utilizado na escrita o latim clssico - era diferente da linguagem usada
pelo povo - o latim vulgar -, fenmeno que ocorre ainda hoje com as lnguas modernas,
onde a linguagem popular oral distancia-se consideravelmente da escrita culta.
1.3.4 A educao da Idade Mdia aos dias atuais
3 Grifos do autor.
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A queda do Imprio Romano do Ocidente marca o incio da Idade Mdia,
enquanto a queda do Imprio Romano do Oriente marca o incio da Idade Moderna. Tal
fato o suficiente para comprovar a importncia de Roma na histria mundial.
As primeiras escolas crists surgiram em Roma na metade do primeiro sculo
d.C. seguindo o modelo hebraico de educao das sinagogas s igrejas, - e eram
abertas a crianas das classes mais baixas. A educao em mosteiros era rgida,
hierarquizada e controlada pelos interesses da Igreja.
Uma das principais caractersticas da Idade Mdia a fuso entre a poltica e a
Igreja, centralizada na figura do papa. Fuso esta que garantia o monoplio do poder em
todas as reas da sociedade, inclusive no ensino. O poder poltico e o religioso
misturavam-se de tal forma que os que maior acesso tinham educao e, em especial,
escrita, eram os religiosos. Mesmo assim, nesta poca tambm entre os homens da
igreja verifica-se um processo de empobrecimento cultural, como aponta Manacorda
(2006:112), lembrando que alguns eclesisticos no dominavam a escrita, e que a
riqueza intelectual j no possua tanta importncia como outrora.
A sabedoria humana, cultivada e valorizada na Antigidade clssica,
transformou-se em ameaa sabedoria divina, proclamada como a nica verdade e
salvao. As mulheres eram vistas como seres imperfeitos e pecadores, e tinham um
papel secundrio na sociedade, visto que poderiam comprometer o poder econmico da
Igreja se os religiosos com elas se envolvessem.
Interessava ao alto clero que os religiosos e, em maior grau, o povo, tivessem
uma cultura empobrecida; por essa razo, eles eram proibidos de ler as obras clssicas.
Assim, evitava-se qualquer pensamento que pudesse ameaar tal supremacia divina. Era
importante que as pessoas continuassem desinformadas, alheias a novas idias e
incapazes de estruturar pensamentos mais elaborados que pudessem modificar a
sociedade. A obra O nome da Rosa, cujo original italiano Il nome della rosa foi
publicado em 1980, de Umberto Eco, descreve de forma talentosa tal contexto medieval.
Por volta do ano 1000, surgem as primeiras universidades na Europa e estas j
abrigavam alunos com caractersticas muito diferenciadas. As disputationes colocavam
prova a capacidade de mestres e alunos, como retoma Manacorda, a seguir:
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E j que entramos dentro da universidade, convm seguir agora os estudantes at o trmino dos estudos, quando realizam provas finais; para isso, nos valeremos de um testemunho excepcional, o de Dante. Tendo presente o dilogo entre Jav e J, ele, no Paraso, imagina ser examinado por trs apstolos, Pedro, Tiago e Joo [...] Ele se apresenta como um bacharel (baccalaurers) que, encorajado por Beatriz, prepara-se tacitamente para responder s perguntas [...]: O bacharel apresta-se e no fala T que o Mestre a questo haja ofrecido, Por aprova-la, no por termina-la, Assim, de todas as razes munido, Dispus-me, enquanto Beatriz se explica, A tal assunto, por tal Mestre argido. - Teu pensar, bom cristo, me significa: O que f? Presto, ouvindo, o rosto alava Para a luz, que a questo desta arte indica; Voltei-me a Beatriz: j me acenava Para que sem detena gua fizesse Brotar da interna fonte, onde a guardava. (Par., XXIV, 46-57) (2006:154-155)
Baseado neste e em outros textos, Manacorda (p.155) compara o exame
universitrio da poca aos exames de hoje, um interrogatrio, em que se pede uma
definio e se responde de acordo com o verbo do mestre. Neste texto, o bacharel nada
fala at que o mestre exponha a questo que ele deve responder O que f?
Apesar da rigidez na relao pedaggica, o autor admite que j naquela poca os
alunos burlavam as regras nos exames e ludibriavam seus mestres agora homens
livres, assalariados ou autnomos: E, como hoje, tambm naquela poca os estudantes
s vezes recorriam aos mais extraordinrios truques ( id.).
Neste perodo, passou-se a valorizar a educao prtica, profissional, ligada aos
diferentes ofcios impulsionados pelo desenvolvimento comercial. Surgiram, assim,
novos mestres e aprendizes, e, por conseguinte, novas formas de ensino e pedagogias
direcionadas para tais profisses, como evidencia o mesmo pesquisador da educao:
Interessantes so as provas de exame, no do ponto de vista didtico-pedaggico, mas do ponto de vista do costume. Eis, por exemplo, as dos padeiros: Quando o novo padeiro tiver cumprido dessa forma os quatro anos de sua aprendizagem, ele pegar uma tigela nova, de barro cozido, nela colocar cialdas e hstias, e ir casa do mestre dos padeiros, e ter a seu lado o caixeiro e todos os padeiros e os mestres valetes, isto , adjuntos (joindres). O novo padeiro entregar sua tigela e suas cialdas ao mestre e dir: Mestre, fiz e cumpri meus quatro anos. O mestre perguntar ao administrador se verdade; e se este disser que verdade, o mestre apresentar ao novo padeiro o vaso e as cialdas e lhe ordenar que os jogue contra a parede. Ento o
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novo padeiro jogar sua tigela e suas cialdase hstias contra as paredes externas da casa do mestre. Em seguida, os mestres administradores, os novos padeiros e todos os demais padeiros e ajudantes entraro na casa do mestre e este oferecer a todos fogo e vinho, e cada padeiro, e o novo, como tambm o mestre adjunto, oferecero um dinheiro ao mestre dos padeiros pelo vinho e pelo fogo que lhes deu. (2006:165)
Como assinala Manacorda, na mesma obra e pgina retomada acima, no se
pode dizer que a cerimnia tenha muito de pedaggico, mas o mais interessante
aquilo que ela mostra do costume e da cultura do povo, absolutamente influenciado
pelos ensinamentos religiosos. Tal exame parece mais um ritual cristo, a contar pela
utilizao de smbolos consagrados pela cultura crist: o po, o vinho e o fogo, do que
uma avaliao.
Principalmente por intermdio da Igreja, o latim tornara-se uma lngua poderosa.
Segundo Paiva (1988:09): O latim, na poca, funcionava como lngua internacional,
servindo de veculo de comunicao da filosofia, da cincia e das letras; por
conseqncia, foi um dos elementos mais relevantes da educao e da cultura.
A autora lembra que a expanso das universidades colaborou bastante tambm
para a divulgao do latim, e que o acesso ao ensino da lngua estendeu-se,
gradativamente, a leigos, principalmente nobres, e at a mulheres das classes
privilegiadas.
Por volta do sculo XIV, despontam na aristocracia os primeiros indcios do
humanismo, e suas idias alimentam o acesso da educao s classes mais altas. A elite
intelectual luta contra a educao vigente e prega a volta aos clssicos. Os problemas
do homem tornam-se centrais na educao, caracterizando o antropocentrismo. As
cincias exatas e biolgicas profissionalizam-se e so mais valorizadas, enquanto as
letras perdem terreno, apesar de serem ainda valorizadas nas escolas. Embora sem
causar mudanas significativas, pensa-se nas crianas como seres diferentes, que
precisam de formas diferentes de ensino do que aquelas destinadas aos adultos.
Os conceitos iluministas afetam as lnguas naturais. A Lngua Portuguesa, por
exemplo passa pelo fenmeno da latinizao, como mostra Spina (1987:10):
O deslumbramento da cultura clssica, suscitado pelo movimento humanstico da segunda metade do sculo XV, criou no s uma elite de eruditos[...]como propiciou o aparecimento das primeiras gramticas da
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lngua portuguesa: debruados na leitura dos modelos clssicos, sobretudo latinos, os escritores portugueses foram naturalmente levados a introduzir na lngua inmeros latinismos, aportuguesando as formas importadas e refazendo as formas arcaicas.
Essa latinizao ocorreu em diferentes nveis lingsticos na fontica (defensa
por defesa), na morfologia (superlativos em -rrimo, -limo e -ssimo), na sintaxe (em
casos de aposto), na semntica (parentes por pais) e na grafia (octavo por oitavo),
dentre outros exemplos.
Alm das influncias na educao, as idias humanistas que permearam o
Renascimento (1300-1650, aproximadamente) modificaram todas as bases sociais da
Europa, colocando em questo o Imprio Romano, a autoridade do Papa, a cavalaria, o
feudalismo, o sistema de comrcio vigente etc. O Renascimento permeia o fim da Idade
Mdia e o Incio da Idade Moderna, marcado por um turbilho de novidades advindas
da expanso comercial e martima europia. Na rea da educao, tais expanses
significavam novas necessidades de trabalho no mercado, e uma demanda por um
ensino profissionalizante.
Os movimentos da Reforma, por volta de 1400-1500, pregavam uma escola mais
democrtica e pragmtica, oferecida aos ricos e aos pobres, e que formasse pessoas teis
sociedade. Lutero, o maior expoente da Reforma, estabelece, pois, a relao instruo-
trabalho, e tenta mostrar a importncia social do trabalho manual e do trabalho
intelectual.
A Contra-reforma catlica, por sua vez, veio defender o controle da educao de
acordo com seus preceitos e intenes poltico-religiosas sua principal preocupao na
poca: deter a Reforma e o humanismo-, como mostra Manacorda s pginas 200 e 201,
transcrevendo, primeiramente, um trecho de um documento assinado pelo papa Leo X,
em 1515, e, em seguida, a opinio do bispo de Ragusa, Beccatelli, um dos mais
influentes no Conclio de Trento (1545-1564):
[...] julgamos nosso dever cuidar da impresso dos livros para que, junto s boas sementes, no cresam tambm os espinhos, nem aos remdios se misturem os venenos. Ningum [...] presuma imprimir ou mandar imprimir algum livro ou qualquer outro escrito, que antes no tenha sido diligentemente examinado[...] e aprovado pelo nosso vigrio ou por um bispo ou por outro que tenha competncia sobre o assunto do livro [...] ou por um inquisidor da maldade hertica.
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No h nenhuma necessidade de livros; o mundo, especialmente depois da inveno da imprensa, tem livros demais; melhor proibir mil livros sem razo, do que permitir um merecedor de punio.
Destacaram-se, na reorganizao do ensino pela Igreja, as escolas jesutas, que
eram dirigidas aos leigos. Essas escolas expandiram-se com as Cruzadas e com as
descobertas martimas, levando a novos povos e terras a educao catequtica, baseada
em perguntas e respostas. Para a formao do clero existiam os monastrios e
seminrios, cujos ensinamentos eram direcionados para a vida religiosa.
Sodr (1989:15) define o ensino levado para as novas colnias nessa poca de
explorao martima como uma transplantao da cultura e como alienao desses
novos povos contatados, especialmente nos pases colonizados para explorao, como
o caso do Brasil:
A expanso navegadora que decorreu do desenvolvimento mercantil, ao fim do medievalismo, contempornea da ciso religiosa definida com a Reforma. Como aquela expanso foi capitaneada pelas naes catlicas, colonizao e catequese religiosa confundiram-se. A catequese foi uma das manifestaes mais importantes da Contra-Reforma; e, nela distinguir-se-iam os jesutas, que se dedicam, desde logo, converso do gentio e, para isso, especializam-se na tarefa de conquistar as conscincias.
No Brasil os jesutas ficaram responsveis pela educao por dois sculos e
meio, perdendo esse poder com as reformas pombalinas no sc. XVIII, como informa
Sodr (ibid.). A educao jesutica tinha como objetivo principal a converso e foi
estruturada em dois planos: a escola era dirigida s crianas, inicialmente aos pequenos
indgenas, e tinha como finalidade ensin-los a ler, escrever e contar. J os colgios
eram dirigidos aos adolescentes, e se baseavam no aprofundamento do ensino jesutico.
A verdade que tanto as escolas, quanto os colgios, acabaram por acolher os filhos dos
senhores e neles inculcou uma cultura outra, que no a brasileira: a cultura dos
colonizadores.
J na Europa, nos anos de 1600, destaca-se o trabalho de Comenius, que se
esforou para alcanar uma sistematizao definitiva do saber a ser transmitido com
oportunos mtodos didticos s crianas atravs do velho instrumento da lngua latina,
alm de iniciativas das escolas inglesas de preparar os alunos para novas profisses
ligadas s mudanas que vinham acontecendo nos modos de produo (Manacorda,
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2006: 227). As novas escolas, de ideais iluministas, reformadores e revolucionrios,
tinham como objetivo levar a educao a todos os homens.
Em meados de 1700, h a continuidade das escolas crists, tanto catlicas quanto
reformadas, com novas experincias, como as escolas tcnico-profissionais. Segundo
Libneo (1994:58), data deste sculo XVIII - o aparecimento da Didtica como teoria
de ensino, surgida da necessidade de planejamento, estruturao e organizao. O
ensino do latim era obrigatrio, e o Francs passa a constituir matria das escolas no
mundo ocidental. O ler e o escrever demandam nas escolas mtodos prprios e
separados de ensino, e a escrita extremamente valorizada, em seus pormenores, como
descreve Manacorda (2006: 232):
Esta caracterstica prpria da aprendizagem escrita evidenciada, para ns at o paradoxo, pelos cuidados relativos ao instrumento do ofcio: duas pginas inteiras dedicadas s quatorze regras a serem observadas no apontar uma pena de ganso.
As mulheres j so aceitas nas escolas, mas no podem misturar-se aos meninos,
e os castigos fsicos ainda so praticados como formas de correo da disciplina,
valendo o chicote, a frula, os bastes.
No sculo XVIII a influncia da Igreja nas questes pedaggicas j no era a
mesma, assim como a influncia do humanismo. Como conseqncia, a importncia dos
clssicos e do latim foi diminuindo no ensino, levando ao descrdito as instituies
educativas tradicionais.
Um documento de 1731 relata notcias sobre a universidade de Sorbonne e seus
exames, Ele nos informa, por exemplo, que tambm as mulheres j eram admitidas a
assistir os exames de lurea (exames de formatura), porm num lugar parte
(Manacorda, 2006:237), que consistia em camarotes separados das salas de aula por
grades de madeira.
Ainda em meados de 1700, v-se o surgimento das enciclopdias e de novas
idias polticas, culturais, pedaggicas, religiosas, morais, entre outras - que nascem
na Europa, especialmente na Frana, onde culminam na Revoluo Francesa em 1789, e
se disseminam para todo o mundo por meio dos universitrios que l buscavam a fonte
dos novos conhecimentos. Nomes como Rousseau, Diderot e Pestalozzi mostram uma
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preocupao poltica, didtica e pedaggica com a escola e sua relao com a Igreja e o
Estado, e em 1773 a ordem dos jesutas suprimida.
Sobrinho (2002) lembra que a Revoluo Francesa foi responsvel pela
ampliao do acesso educao bsica e pela criao do sistema de classes. A escola
tinha, agora, a funo de preparar os indivduos para os servios pblicos que se
organizavam. A Revoluo Industrial, por sua vez, modificou as estruturas sociais,
criando novas hierarquias de poder baseadas na produo de servios. A avaliao
aparecia como forma de seleo para a demanda dos postos de trabalho.
O desenvolvimento da cincia e da cultura, a diminuio do poder da nobreza e
do clero e o aumento do poder da burguesia exigiam novas prticas escolares que
atendessem ao desenvolvimento industrial e comercial do mundo e oferecesse a
oportunidade de desenvolvimento das pessoas dentro dessas novas sociedades.
A Revoluo Industrial conduziu ainda institucionalizao das escolas
pblicas, das escolas infantis e escolas tcnicas e de ofcios e artes, mas,
contraditoriamente, ao mesmo tempo, tirou crianas da escola para o trabalho capitalista
que se processava nas fbricas, reiterando o acesso da cultura s classes privilegiadas.
A avaliao precisou se adaptar e se desenvolver tecnicamente. s provas orais
medievais e s disputas orais dos jesutas passou-se aos testes ou provas escritas e ao
sistema de notao, prprios da escola moderna, que pediam objetividade e
transparncia.
Para o autor (op.cit.), a avaliao faz parte do cotidiano dos homens antes
mesmo dessa institucionalizao das escolas. Ela est ligada s escolhas, seleo
social, distribuio dos indivduos nos lugares sociais e nas hierarquias de poder e
prestgio (p. 17-18). Entretanto, a avaliao, praticada de forma estruturada e constante,
como a conhecemos hoje, surge mesmo nessa poca - sculo XVIII -, especialmente na
Frana, com a institucionalizao das escolas modernas. Sobrinho destaca que em 1808
na Frana, foi criado o prottipo dos exames nacionais, o bacalaurat, ainda existente
hoje na passagem do ensino mdio para o superior.
De um lado, os instrumentos de testes, provas e exames trouxeram mais preciso e fora operacional ao sistema de medidas e de seleo. Por outro, determinaram uma concepo e uma prtica pedaggica que consistem basicamente na formulao dos deveres ou exerccios escolares e controle atravs dos testes. Assim, a avaliao interfere incisivamente na organizao dos contedos e das metodologias e vai legitimando saberes, profisses e
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indivduos, o que significa tambm produzir hierarquias de poder e privilgios. Como smbolo da legitimao de valores e privilgios sociais, os ttulos e diplomas so institudos formalmente, resultantes tambm eles da avaliao, e ganham grande importncia na determinao das hierarquias e na distribuio dos indivduos nos lugares que de direito e por mrito individual lhes corresponderiam na sociedade.
(Sobrinho, 2002: 19)
A metade do sculo XIX assiste ao nascimento das concepes socialistas de
Marx que fala em pedagogia social e na possibilidade de aproveitar o sistema de ensino
desenvolvido pela burguesia capitalista para o enriquecimento cultural e intelectual dos
homens. A educao pblica e gratuita e a abolio do trabalho infantil nas fbricas
constituem alguns itens do Manifesto Comunista que influenciam e modificam a histria
da educao.
Ainda no sculo XIX e tambm no sculo XX aumenta a participao das
mulheres na vida intelectual e a aparente democratizao da escola parece abranger os
pases desenvolvidos e em desenvolvimento.
Quanto s formas avaliativas, Perrenoud (1999:09), informa:
[...] a avaliao no uma tortura medieval. uma inveno tardia, nascida com os colgios por volta do sculo XVII e tornada indissocivel do ensino de massa que conhecemos desde o sculo XIX, com a escolaridade obrigatria.
Com o desenvolvimento social e pedaggico, as diferentes abordagens do ensino
tomam grande propulso nos sculos XX e XXI. Desenvolvem-se teorias didticas e
pedaggicas que visam solucionar antigos problemas e as formas e objetivos das
avaliaes seguem essas tendncias. Segundo Sobrinho (2002), at 1930 os testes
objetivavam medir a inteligncia e o desempenho, depois disso, passaram a tentar medir
o aproveitamento dos programas que eram transmitidos aos alunos. J nos anos 60, a
preocupao passou a ser a questo qualitativa, variando as metodologias de avaliao.
Ainda nesta poca anos 50 e 60 -, no Brasil, o ensino disseminava os ideais
compatveis com o regime militar e adotava uma corrente denominada Tecnicismo
educacional, cujo objetivo era a racionalizao do ensino, atravs do uso de meios e
tcnicas mais eficazes, como aponta Libneo, 1994: 68.
Com uma maior intensidade, pelo menos no Brasil, aps os anos 70, as novas
tecnologias passam a fazer parte do cotidiano dos alunos, pensando-se, inclusive, na
substituio parcial ou total do p