as grandes teses da filosofia tomista sertillanges

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    A. D. SERTILLANGES, O. P.

    As Grandes Tesesda

    Filosofia TomistaL. G. FERREIRA DA SILVA, S. J.

    LIVRARIA CRUZBraga Portugal 1951

    O ORIGINAL QUE SERVIU PARA ESTA TRADUO O DA 1 EDIO FRANCESA QUE TEMPOR TTULO: Les Grandes Theses de la Philosophie Thomiste

    NIHIL OBSTAT.Isidrus Pereira, S. J.

    IMPRIMATUR.Bracarae, 1 Januarii 1951

    +Antonius, Archiepiscopus Bracarensis

    Todos os direitos reservados em lngua portuguesaOficinas Grficas da Livraria Cruz Braga

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    As Grandes Teses da Filosofia Tomista

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    O NOSSO FILSOFO

    - SANTO TOMS VIVE TODO INTEIRO NA SUA DOUTRINA.- CARCTER CATLICO E HUMANO DESTA DOUTRINA.- SANTO TOMS POETA ABSTRATO.- A INTENO DESTA OBRA.- O NOSSO MODO DE VER JUSTIFICADO PELA NATUREZA DO TOMISMO E PELO

    ESPRITO DO SEU AUTOR.

    Santo Toms conquistou os aplausos de toda a gente. Se mesmo os que o no estudaram admiraramo seu valor, os que puderam sondar as profundidades atingidas pela sua inteligncia, sentem-se tentados aperguntar se haver algum que o suspeite. Ao primeiro contacto com o seu gnio, somos dominados por tal

    impresso de amplitude e agilidade ciclpicas, que apesar dos testemunhos da histria, essa impresso noschega a parecer totalmente indita semelhana da afeio que desabrocha sem ser notada por estranhos.Em geral, fica-se extasiado ao pensar que este criador de infinito era um bom homem, um monge

    simples e piedoso, sem excentricidades de espcie alguma, nem mesmo particularidades, excepo dasantidade; e no se vai mais longe na sua biografia. Esta vida mortal, em que se insere uma vitalidadepermanente, parece no ter despertado muita curiosidade; seria at justo perguntar se essa biografia j seescreveu, pois de facto no a possumos ainda. pena, porque as suas lies so abundantes, e bom ser quenos

    8no contentemos indefinidamente com brochuras e panegricos. Mas a prpria razo desta negligncia instrutiva. A vida de Santo Toms de Aquino est na sua doutrina, anda encarnada nas suas idias; porconseguinte, se lhe dominarmos as suas idias, dominamos o homem todo, mesmo o homem adormecido,

    porque Santo Toms at dormindo ditava. Pensa; pensa continuamente. O ser, que nele d origem aopensamento, no lhe interessa, e ns s de passagem nos damos conta dele; mas em compensao, mostra-see resplandece nos efeitos, como Deus no Cosmos.

    Os catlicos tm especial razo para amar Santo Toms, e estud-lo assiduamente: ele o seufilsofo; a sua obra um tesouro de famlia; Santo Toms o Doutor Catlico. Se ningum deve ignorar ato grande gnio, para o catlico inteligente, essa ignorncia equivaleria a uma desero. Entre ns todos osque so conscientes da sua responsabilidade declaram que a sua doutrina a de Santo Toms; que nele vohaurir a mais fecunda seiva os grandes pensadores catlicos, e por meio destes toda a Igreja; e por fim que perigoso afastar-se dele, designadamente em metafsica1.

    O homem piedoso e culto, dotado de curiosidade intelectual, e desejoso de examinar, com espritoreflexivo, o que implicitamente professa

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    pela sua adeso a um grupo, ter necessidade, pelo menos, de se deter um pouco sobre as doutrinas de SantoToms. claro que se no exige de todos um estudo em regra, pois em filosofia, especializar-se constituiexceo; quer-se apenas afirmar, que a todos seria prejudicial a ignorncia. E uma vez que isto se reconhece,fica-se na obrigao de contribuir na medida dos prprios recursos, para o conhecimento de Santo Toms.

    * * *

    No vamos fazer um resumo; h-os de sobra... Aos no-iniciados no interessaria, e aos iniciadosno faz falta. Mas tambm no temos em vista um estudo erudito, tanto mais que noutra obra j procuramosfazer uma exposio para pessoas de estudo2. No vamos portanto repetir esse trabalho. Acho que podemosainda seguir outro processo ao entrarmos em contacto com uma ideologia superior: podemos dirigir-nos a um

    pblico que nem propriamente constitudo por iniciados nem por no-iniciados, mas simplesmente por1 Pio X, EncclicaPascendi.2Saint Thomas dAquin, em Collection des Grands Philosophes, 2vol., in-8., Paris, Alcan.

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    homens; podemos falar singelamente a homens. Assim como o autor pode esquecer-se de que autor,conforme desejava Pascal, tambm se pode esquecer no leitor, a qualidade de

    10leitor, isto , de trabalhador em determinado nvel, e atender s humanidade que nele se representa. Ora emfilosofia, o homem simplesmente homem aquele que, acima de qualquer preocupao particular, traz para ocampo da cincia, a curiosidade inevitvel do ser vivo, a necessidade essencial do esprito, que o essencial dacincia dever satisfazer. No se trata portanto de tcnica elementar ou cientfica, nem tambm de esprito

    escolar, mas de contacto direto do homem que vive e pensa com o que existe e pode ser pensado. a estegrau de simplicidade que o nosso livro desejaria reduzir a doutrina tomista. E ela presta-se maravilhosamentea isso, porque Santo Toms, lucidez e preciso tcnicas aliou sempre a largueza de vistas do profano queentende. Tanto pior para o nosso orgulho. Os doutos percebero facilmente o que se esconde sob a nudezdestas frmulas; os menos cultos no vo aprenderporque no estamos aqui numa aula, mas espero quecompreendam; isto , sem ficarem em condies de ensinar nem de se considerarem filsofos, ho detodavia fazer uma ideia deste poema da Verdade que a obra tomista.

    Disse poema, e com razo, desde que nos entendamos. Pois Santo Toms com toda a propriedadepoeta metafsico, tomando a palavra no seu sentido mais alto, no sentido de intrprete do universo, de profetado existente: Deus, a humanidade e a natureza. Segundo este modo de ver, o poeta

    11confunde-se com o filsofo. Santo Toms poeta da linguagem abstrata, como Hugo e Pindaro o so das

    imagens, e Beethoven dos sons, e Miguel ngelo das linhas e dos volumes; apenas com a diferena de que asua poesia se aproxima mais da realidade, porque substitui a interpretao artstica sempre arbitrria, peloesquema autntico dos fatos. Analisa o que os outros se limitam a pintar; deduz o que eles sextrinsecamente ligam, faz compreender quando os outros fazem simplesmente ver, e profetiza quando osoutros cantam. O tema porm sempre o mesmo: trata-se do universo e do homem, da divindade e do cortejode seres que dela dependem. O que o filsofo pretende criar em ns uma representao deste todo, umuniverso novo que ser um duplicado do outro, e nos permitir a ns que somos to limitados no tempo e noespao, habit-lo em todas as dimenses.

    Penetrar na alma deste poema de idias; saborear o esprito que nele circula; descobrir a unidade pordebaixo das aplicaes doutrinais e os princpios por detrs das concluses, eis a nossa aspirao. Ignoramosqual vir a ser o resultado. Para tomar alento espontaneamente comearamos pelas palavras rituais:Adjutorium nostrum in nomine Domini do Senhor que invocamos nos vem o auxlio. Mas qualquer queseja o resultado, o nosso intento de facto esse.

    Portanto evitar-se-o todos os pormenores e12

    discusses, porque s pretendemos que o manancial aparea e que a sua limpidez se imponha por si mesma.Por conseguinte, tambm no iremos investigar as origens histricas desta corrupo, que por certo

    no caiu do cu assim perfeitamente organizada, sem razes nos tempos que a precederam. Isso porm nointeressa ao nosso propsito.

    Todo o gnio tem razes seculares no passado garantia, para o futuro da sua perene vitalidade;toda a obra de gnio obra social. E por isso o maior gnio aquele que maiores dvidas contraiu, e levantado meio dos homens e das coisas o brado da sua fome insacivel; mas justamente por isso que o gnio sempre novo e independente, pois tem uma fome to imperiosa e devoradora que transforma na prpriasubstncia tudo quanto recebe do exterior. Vive em plenitude; ora a vida adaptao, assimilao, e por issomesmo criao e manifestao original. O gnio adapta-se mais do que ningum ao seu tempo; mergulhanele, adivinha-lhe as necessidades; e, para as satisfazer, vai haurir na eternidade a seiva que anima todas asidades; por isso que ele interessa a toda a humanidade.

    Instalado no que permanece, tem o gnio o condo de unir todas as pocas, e o poder de congregar amultiplicidade sob o imprio da unidade. Caminha no mesmo sentido que os seus contemporneos, mas oritmo dos seus passos

    13

    precipita-o nos caminhos eternos. Quando formula o que o seu tempo obscuramente pensa, encontra-se afalar para o gnero humano. Milhares de braos o impelem e mil vozes o solicitam; todavia, no fim decontas, a ningum escuta, de ningum depende seno de si mesmo. Concentra em si todas as parcelas de luzdum meio escuro, todas as suas influncias fecundas para formar com elas um sol.

    Portanto, no precisamos de consultar a histria para nos aproveitarmos dum gnio do passado.Basta ser homem. No se v porm concluir daqui o mnimo desdm pelo mrito histrico, sob tantosaspectos indispensvel, e sempre extraordinariamente elucidativo. Afirma-se apenas que sem ele tambmpodemos receber a luz do gnio.

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    Alm disso, uma obra catlica como a de que se trata, por isso mesmo universal em todos ossentidos; dirige-se a todas as idades, sem necessidade de nomear nenhuma, semelhana do que acontece,guardadas as devidas propores, com a Igreja e com a liturgia. Se chegamos a compreender que SantoToms de Aquino, da sua cela monacal, est em comunicao com todas as idades crists, como otelegrafista que no alto mar envia e recebe mensagens, estamos preparados para o escutar.

    Nem por isso deixaremos de saborear a sua profunda originalidade; pois prprio do gnio darcarter de novidade a tudo o que recria para

    14ns. Apresenta-nos a uma luz ednica, uma acumulao de sementes donde pressentimos que uma infinidadede messes poder germinar, embora aquelas sementes sejam to antigas como a verdade.

    Santo Toms penetra a tal ponto no mistrio que as principais origens da sua obra no so as que seramificam para o mundo em que vivem nem as que mergulham no passado; encontram-se nas maioresalturas e nas grandes profundidades. S ele escreveu a prpria histria; a nica explicao decisiva do seupensamento o seu prprio pensamento. E nisto consiste a verdadeira originalidade.

    Aquela originalidade pretensiosa que procura pr em relevo o pensador, essa to alheia a SantoToms, que nunca dele nos lembramos embora guiados pelo seu pensamento. que ele pensa com tantaintensidade e pureza, concentra-se de tal modo no objeto que nenhuma ateno lhe fica para o sujeito quepensa. Absorve-se inteiramente na sua obra; no consente em sacrificar ostentao a menor parcela do seutempo to precioso; no quer enfraquecer o esprito que julga j to impotente perante as dificuldades dacincia. Tudo nele se coordena para o mesmo fim, sem aparecer a fora coordenadora. Procura sintonizar opensamento e o ser, tarefa eminentemente impessoal, empreendimento universal. Orientadas todas as suasenergias para o fim a

    15atingir, como havia ele de deter-se em exibies espetaculosas!

    Este facto podemos confirm-lo com uma caracterstica do estilo de Santo Toms: expe a prova;mas nunca afirma; e muito menos declara. Diz simplesmente: necessrio; impossvel; ou ento:parece. Tais frmulas porm, so na sua mente, expresso da estrutura das coisas e no uma relao daverdade com ele. Tanto que no conhece essas locues to vulgares entre ns: creio eu, tenho para mim,estou persuadido;pois no d valor nenhum a idias pessoais.

    Nada perde com isso; pois o gnio que representa o pensamento maior que aquele que serepresenta apenas a si mesmo. A impersonalidade a tal ponto caracterstica da verdade que quem lhe fieltorna-se por isso mesmo dolo de toda a gente; a prpria verdade que o consagra. E todo o valor se tornaento valor seu e toda a fora energia sua.

    Alm disso, se sincero, tem nessa impersonalidade o mais eficaz meio de persuaso. Quem semantm perto das idias e longe de si, est por isso mesmo em contacto com todos os espritos. Pois o real que inteligvel, e no a pretenso doutoral; as realidades falam, a Sabedoria brada; no preciso que seintrometa o pedantismo de ningum.

    A doutrina de Santo Toms, desde que se entenda bem, apresenta-se quase sempre com evi-16

    dncia aos espritos rectos, precisamente porque ele projecta diante de ns a verdade com toda a luz; no fazdela monoplio. Apia-se em ns e no em si; desvenda-nos a ns mesmos, extraindo dos princpios que nosso inatos, o que antes no conseguamos ver.

    Da a impresso de que a sua doutrina corresponde sempre a uma nsia secreta, a certa expectativaou vaga previso nossa. que de facto s se aprende o que j antes se conhecia de algum modo, isto , emgerme; alis no o conheceramos; como tambm ningum nos persuade seno daquilo de que j estvamosconvencidos. O pensamento um rio que encontra em ns o seu leito; a terra viva do nosso ser agita-sequando ele passa, mas no o estranha. natural que quanto mais se respeitarem as leis desta adaptao,quanto mais o gnio se contentar com pr frente a frente o nosso esprito e a realidade, o nosso esprito e averdade, tanto mais poderoso seja o seu influxo.

    Disto resulta ainda outra caracterstica. Santo Toms fugindo a todo o pretenciosismo pessoal,libertou-se tambm daqueles deplorveis excessos que ordinariamente o acompanham, como so o recalcaridias, o exagero e exclusivismo de encarar tudo pelo mesmo prisma, defeito to notvel nestes tempos emque cada qual parece que anda a amontoar este mundo e o outro, para servir de pedestal sua obra e ao seunome. Santo Toms,

    17sempre imparcial, no exagera, no carrega as cores, no tem preferncias, pois sabe que a verdade sempreigual a si mesma, e que se impe seja onde for, s pela sua totalidade parcialmente revelada, pelo seuequilbrio. A natureza no prefere as serranias ao montculo da toupeira; e por isso no pretende transformar

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    este em montanhas; respeita as suas leis e assegura lhes o xito em toda a parte. A natureza toda elamedida, ponderao e sinceridade; e o equilbrio dos seus elementos e energias constitui o seu prprio ser.Ora a sabedoria de Santo Toms de Aquino obedece a esse conselho mudo da natureza. Sabe que a imagemem ns e a realidade em si, devem corresponder-se no s como termos, mas nas suas relaes e propores;por isso no espelho deformador; amolda o esprito estrutura exata dos seres, e nada de importuno nemsequer de curioso s para alimentar a curiosidade, existe nele; tudo se reveste de probidade; grande, pequeno,mdio, medocre, nfimo, sublime, tudo ocupar o seu posto para esplendor e glria do conjunto. H uma

    tese tomista segundo a qual o objeto da criao no so estas ou aquelas criaturas em particular, mas aOrdem universal. Tambm poderamos afirmar que a preocupao do pensamento tomista no esta ouaquela soluo em particular, mas a Verdade.

    Por isso Santo Toms vai mostrar-se to slido nas mincias como nos grandes temas em que o18

    esprito se exalta; mostrar ento que na realidade no h assuntos secundrios porque no h coisaspequenas, e que tudo tem que ver com tudo. Ns sorrimo-nos do pequenino inseto e das suas fteis canseiras;o pensador porm sabe perfeitamente que nele est sintetizada toda a vida, e que esta vida utiliza nele todasas influncias dos astros, toda a qumica da terra, todo o equilbrio das energias csmicas, toda a maravilhosaarte do pensamento imanente ao mundo; sabe enfim que nos seus litros sopram as auras do infinito.

    Compete ao filsofo revelar a amplido de todas as coisas sem se deixar alucinar pelo seu fulgor.Santo Toms fiel a esta misso. No sublinha nada, mas avana sempre com um ar to sinceramente atento,aplica to imperturbavelmente os mais ricos princpios s realidades mais insignificantes que pouco a poucoacaba por convencer-nos de que no h coisas pequenas; tudo grande da grandeza do Uno que em todas ascoisas se reflete, e parcialmente nelas incarna; tudo divino da divindade de Deus.

    O seu gnio conserva-se sempre tranqilo, nesta atitude; avana sem se intimidar. A sua audcia to agressiva como a de Shakespeare ou Dante que no recuam diante de nada; nele porm no verdadeiraagresso, entrada livre. No tem vises como o Florentino; v simples-

    19mente. No se espanta como o ingls; julga. De facto nada tem de Hamlet.

    Nada de parecido com Abelardo ou Kant, porque ao mesmo tempo que tranqilo e audacioso a seumodo, firme. Sendo moralista e metafsico, mostrou no campo da moral em que a sua falta seria maispalpvel, to maravilhosa ponderao que lhe mereceu o titulo de prudentssimo (prudentissimus). Tanto naprtica como na teoria revelou sempre o sentido das propores, da distribuio dos valores e a sua justacombinao. Triunfa da confuso porque leva dentro de si a ordem. Destrinar, concatenar, ajuizar,classificar, para depois reunir num harmonioso universo, o caos dum problema obscuro, eis a sua arte.

    Estudando-o, embora ao de leve, como neste livro, h de conseguir-se, sem dvida, algum resultadoaprecivel. O nosso tempo de confuses, de indigncia desordenada, e tambm de opulncia de materiais.O cho que pisamos est completamente obstrudo; temos tudo e no temos nada. Se nestas pginasencontrar o rumo algum estudioso, ou qualquer simples mortal conseguir um pouco de luz a dissipar-lhe astrevas, o gnio de Santo Toms ter prestado um novo e grande benefcio.

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    II

    SER E CONHECIMENTO

    A. Objeto do conhecimento humano. A REFLEXO SOBRE O FACTO DO CONHECIMENTOESCLARECE O PROBLEMA DO SER E DAS SUAS CAUSAS.

    B. Natureza do conhecimento. CONSEQNCIAS. - O IDEALISMO MODERADO DADOUTRINA TOMISTA OPE-SE AO IDEALISMO PURO E AO MATERIALISMO.

    C. Concluses particulares QUE NOS TRAAM O PLANO DA CONCEPO TOMISTA.

    A. objeto do conhecimento humano.

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    A filosofia diante do real, um pensamento diante do caos. que as coisas, embora externamente regidas por uma ordem maravilhosa que nos faz supor na

    ntima constituio delas uma ordem ainda mais admirvel, so de facto para ns um caos. que essa ordemque nelas reconhecemos ou supomos, escapa-nos em tantos pormenores que a inteligncia fica sempreinsatisfeita; e mais ainda que nas suas linhas gerais, escapa-nos nas modalidades mais ntimas, de modo quequanto mais observamos, mais perdidos no mistrio nos vemos. E apesar disso o apetite de conhecer no seextingue. Embora certas expresses da nossa constituio originria que um eu antes do nosso eu,

    paream sugerir o contrrio, este instinto de facto o mais insacivel de todos. Desejaramos que o nossoconhecimento fosse exaustivo; o nosso ideal seria como o de Mallarm, fazer do Livro, expresso da nossacincia, o hino das relaes entre todas as coisas; e invejamos o esprito esfrico de Amiel que v tudo esabe

    24tudo porque tudo abarca. A nossa aspirao, na aparncia mais modesta mas de facto idntica, e por issomesmo sempre parcialmente frustrada, reduzir o mundo sua perfeita unidade, e ao mesmo tempoapreend-lo em cada um dos seus valores, e em cada um dos cambiantes de beleza, vinculando-o ao seuDeus.

    este o objeto da cincia. medida que o ser se revela, este objeto vai-se definindo e subdividindo, mostrando-se sob vrias

    formas: mas apesar destas metamorfoses, as inquietaes do esprito vm a reduzir-se sempre aos problemasseguintes: Qual o elemento fundamental de que so formadas todas as coisas? Este substrato ser o mesmoem todos os seres, ou ser a realidade composta de partes heterogneas? Quais os princpios deorganizao a que a natureza obedece? Que idias, e que ideia fundamental resplandecem nela? Dondeprovm a aco que nela se exerce e sob que formas? No ter este cenrio explicao em qualquermaravilhoso maquinismo? Em suma: com que finalidade se move tudo isto? que obra se realizar em cadauma das partes e no conjunto?

    Estas diversas interrogaes levantam o problema das causas nos seus quatro aspectos possveis, osquais, tratando-se por exemplo duma esttua, se resumiriam nestas quatro perguntas: de que feita? que representa? quem a esculpiu? a que fim se destina?

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    Na resposta a estas perguntas est o segredo do mundo. Examinar a substncia, analisar-lhe einterpretar-lhe a contextura, observar os segredos da tcnica e identificar o artista, conhecer, alm disso, ofim que se tem em vista, no constituir um conhecimento integral?

    Resta, porm, ainda outro ponto que deve ficar completamente esclarecido com a resposta a umanova pergunta. Como se explicaria que fizssemos aquelas perguntas, se no tivssemos j antes algumconhecimento das coisas? No haver certa correlao entre a natureza das coisas e o conhecimento quedelas possumos? Entramos a suspeitar que, neste caso, o meio para chegar descoberta coincide com aprpria descoberta; porque o conhecimento uma apropriao, uma adaptao, e toda a adaptao recproca.

    Olhamos para o mundo; e que significa olhar? Pensamos; e que pensar? Alm disso quesomos ns? Que realidade esta, que v e pensa, precisamente enquanto v e enquanto pensa? Querelao existe entre o conhecedor e o conhecido, no prprio acto de conhecer, e anteriormente na capacidadede conhecer e de ser conhecido?

    Eis um velho problema que j Plato tomou para ponto de partida e Aristteles retomou e debateurudemente; e no fim de contas, embora criticando o mestre, reeditou fundamentalmente o platonismo.26

    Veio Santo Toms, recolheu estes estudos, completou-os, corrigiu-os, e desde ento ningumapresentou sntese mais perfeita que a destes trs gnios reunidos. Os nossos esforos devem agora limitar-se, se no queremos afastar-nos da verdade, a determinar melhor certos pormenores que, neste assunto,podem ter imensa importncia, e principalmente a aprofundar por ns mesmos o que pode aprofundar-sesempre mais, e at, sendo possvel, enriquecer a tese.

    B. Natureza do conhecimento.

    um facto que eu sou eu, e no outra pessoa; tenho conscincia da minha identidade e unidade, isto, da minha distino de tudo o mais, da minha oposio a tudo. Todavia quando abro os olhos, quando vejo,ouo, e apalpo, quando cheiro, saboreio ou penso, no me porei em relao ntima e unificante com outracoisa diferente de mim? Tenho o sentimento imediato deste outro que me invade; de alguma coisa estranha a

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    mim que se identifica comigo, pois experimento-o e vivo-o como uma dor profunda ou uma alegria muitontima.

    Mais ainda: s conheo que existo, por essa invaso do mundo exterior que ao incitar-me a viver avitalidade que me apresenta, desperta a minha prpria conscincia. Saberia eu que existo, se no pensassenem sentisse? E poderia acaso

    27pensar ou sentir, se no pensasse ou sentisse isto ou aquilo? Ora isto ou aquilo determinam o acto, e o

    acto por sua vez revela-me o sujeito. Tenho a alegria do prprio olhar e da transparncia das coisas num s emesmo acto.

    Determinando-me, o objeto a mim prprio me ilumina; a sua luz esclarece-me, e revelando-se navisita que faz ao meu interior, mostra-me tambm o meu esprito. assim que uma apario se converte emauto-manifestao, em contra-apario subjectiva. A comunicao das coisas faz nascer uma alvorada, alisseramos sempre noite.

    E por isso que a atitude do cptico e do subjetivista, que pretendem no conhecer nada ouconhecerem-se apenas a si mesmos e s suas modificaes, com um s golpe contraria a vida em todas assuas atividades, e a cincia na sua prpria origem. Nada de mim saberia, nem que conheo, nem que existo,se alguma coisa exterior, me no despertasse para a conscincia de mim mesmo e dos meus atos; pois scomeo a existir para mim, depois da oposio de outro. que para o meu pensamento se dobrar sobre simesmo, requere-se, indiretamente, a ao do universo. Pois a conscincia que tenho de mim mesmo resultado duma excitao, e, por conseguinte, duma disparidade. Portanto s me reconheo eu quando metorno outro. Em suma fao-me eu fazendo-me tudo. Quando o sono

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    me corta parcialmente a comunicao com o mundo, corta-me tambm proporcionalmente a comunicaocomigo mesmo, e cortar-me-ia completamente se no fosse a parte do mesmo mundo que durante o sonocomigo conservo. Restabelecido o contacto com o que existe, torno a sentir-me aquele que existe.

    Quem no admitir esta evidncia fundamental se nela sinceramente refletir como verdadeirohomem, e no como sofista ou charlato do abstrato? At o poeta Shakespeare se confessa deslumbrado porela quando escreve: A vista s se conhece a si mesma, depois de se espraiar pelas coisas e encontrar umespelho em que se possa reconhecer3.

    Pois este espelho o objeto que contemplamos. J se definiu o saber como a volta reflexa dainteligncia sobre os dados da intuio: ora o que que nos revela em primeiro lugar a intuio? ser onosso eu? ou no ser antes a realidade exterior, como nos demonstra claramente o conhecimento infantil enos confirma o do adulto? o no eu, como dizem os filsofos no seu calo prprio, que se manifestaimediatamente conscincia, e no as condies internas desta representao. Portanto o que se conhece oobjeto e no a imagem ou suporte da imagem do

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    objeto. No facto do conhecimento sou passivo; o ataque vem-me de fora.A est um fenmeno maravilhoso. O exterior invade o meu interior; uma coisa estranha transforma-

    se, no sei por que mistrio, em elemento da minha vida! Olho, ouo, penso, numa palavra, vivo; e portantoaquilo que determina esses atos, determina a minha vida; e isso mesmo que assim me determina vivo-otambm; por conseguinte como que me desdobro em outro, e me fao acto de outro sem mudarmos denatureza nem eu nem o outro.

    , na verdade, surpreendente semelhante fenmeno. Mas a rotina embota todas as coisas! ... J nemo rstico se espanta de que uma pessoa que se colocou diante da mquina do fotgrafo, veja sair dali umacomo que desdobramento de si mesmo.

    N entanto que maravilha! E no havemos de admirar-nos de que seres primeira vista to estranhosentre si, tragam cada qual em si mesmo uma rplica de todos os outros, e manifestem esta capacidade de seexpandirem indefinidamente, atse tomarem, em certo modo, todas as coisas?

    Aprenda-se bem o alcance desta frmula aristotlica. Conhecer de facto, com toda a propriedademudar-se em. S conhecerei, se de alguma maneira me converter naquilo que quero conhecer. O acto deconhecer contudo permanece em mim, pois alguma coisa de mim mesmo, uma

    30vez que perfeio minha; como diz Santo Toms, o conhecimento enquanto ser uma perfeio daquiloque existe. "De facto, entre o meu ser e o que eu sou, entre o meu conhecimento e aquilo em que ele me

    transforma, a relao a mesma. Se no formasse da minha prpria substncia a pedra, a rvore ou qualqueroutro objeto que eu conhea, como que a conscincia que tenho deste objeto poderia brotar da conscincia

    3Troilus e Cressida. Ato III, cena 3.

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    que tenho de mim mesmo, como forosamente tem de suceder? O facto do objeto se me propordo exterior,poderia acaso explicar alguma coisa? E que se me propusesse interiormente, se no passa disso, se o noassimilo, desconheo-o absolutamente. Requer-se um ponto de unio, de ajuste, ou como diz Bergson, umponto de sutura, uma pelcula.

    Tenho um determinado campo de existncia fora do qual no posso sair; e o objeto tem o seu dondetambm no sai; por conseguinte se no houver compenetrao no ser, ser impossvel qualquer acto deconscincia.

    Por isso, tanto insiste Santo Toms na afirmao de que o conhecerna sua origem um ser. Osobjetos conhecidos modelam-nos verdadeiramente sua imagem, em alguma coisa que nossa,comunicando-nos a sua forma de ser (species); e ento depois de sermos assim modificados, operandosegundo aquilo que somos, exercendo um acto da nossa vida podemos conceber o objeto

    31como ele de facto, na sua natureza (quidditas, ratio).

    Os que nesta questo combateram Santo Toms, como, por exemplo, Duns Scoto, no chegaram acompreender a posio do problema; e as suas explicaes nada esclarecem. Contentam-se com pr emcontacto com a inteligncia uma representao do objeto, sem falar de qualquer espcie de assimilao, nemprocurar uma sntese; e por outro lado rejeitam a informao e identificao, como acto comum doconhecedor e do conhecido enquanto tais. Por isso do razo dos fatos s com palavras, como aquele quepretendesse fixar a imagem fotogrfica sem usar produtos qumicos. Alm disso, a atividade que atribuem aoesprito nada explica; porque no se trata de atividade independente, mas de atividade no outro, emharmonia com o outro. E o contacto de que falam estes autores tambm nada explica porque no se tratade justapor o objeto inteligncia, mediante um ssia; mas de modificar interiormente a inteligncia atchegar a identificar-se idealmente com o objeto.

    Esses pensadores de segundo plano que no podem conformar-se com que a inteleco seja umamudana, uma modificao do sujeito para se conformar com o objeto: deix-los l na sua cegueira quenenhum xito promete aos seus sequazes. O ser no apareceria no termo do conhecer, se o conhecimento noexistisse j comoser.

    32Pela nossa parte sustentamos, para daqui tirar uma concluso, que entre o conhecedor e o conhecido

    se d uma compenetrao no ser; que o pensamento encerra, em certo modo, o ser, e, por conseguinte, podeajudar-nos a defini-lo.

    No ser por esta razo que Santo Toms escreveu a este respeito afirmaes to admirveis como asseguintes? que entre os diversos modos de possuir uma coisa, o conhecimento o mais perfeito e ntimode todos; que a contemplao o grau mais sublime da vida; que a contemplao de si suspende qualqueroutra atividade da vida, admitindo-a apenas como meio para se continuar e expandir. De facto a posse deDeus h de reduzir-se a uma contemplao, e nem por isso deixar de ser satisfao plena. Peloconhecimento o homem atinge, c na terra como na eternidade, no s a obra da criao mas tambm oprprio Criador, para se lhe entregar num gozo que o enobrece.

    E agora pergunta-se: qual o meio em que se baseia essa compenetrao, que nos torna possvelconceber a realidade do conhecimento e o facto de ser conhecido?

    Talvez nos aproximemos da soluo se dissermos que a sntese de que se trata deve satisfazer atesterequisito iniludvel: necessrio que a modificao que se d quando o sujeito pelo conhecimento se torna

    outro, no lhe atinja a na- 33tureza, alis esse pretendido conhecimento deixaria por isso mesmo de o ser, para dar lugar a umatransformao. Tambm o corpo aquecido participa do calor ambiente e apesar disso no o conhece; e umcomposto qumico que se altera, converte-se noutro, mas no tem conscincia de nada. No entanto, no hdvida que para conhecer, preciso tornar-se outro. Haver, pois, maneira de um ser se tornar outro semrenunciar a si mesmo? Ser possvel transformar um ser noutro, continuando o primeiro a ser o que era?Poder revestir-se de outro como de um vestido, ou melhor, como de um novo ser? E como que este outroser se comunica sem nada perder tambm?

    Sentimo-nos assim na necessidade de supor qualquer coisa de comum, superior a estas duasexistncias, que as rena numa s vida especial e homognea. E que coisa ser esta? Que realidade do objetoconhecido entra em mim, se transforma em mim, e representa em mim esse objeto, substituindo-o e

    duplicando-o, de modo que eu de facto o conhea a ele, embora por uma modificao de mim mesmo?Responde-nos Santo Toms que a forma de existncia do objeto conhecido que se comunica; nocomo forma natural encarnada numa matria, mas intencionalmente, isto , como ideia ou inteno denatureza. Assim por exemplo, quando afirmo que a esttua que eu contemplo, entra em mim pela sua forma,

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    no entendo a forma como34

    limite superficial do mrmore, de facto incomunicvel, mas como expresso da arte.Ora todo o ser uma obra de arte; e esta tem um princpio imanente, uma ideia infusa, que pode

    comunicar-se a um sujeito desde que ele tenha capacidade para receber essa comunicao.E em que consistir essa capacidade? Consiste em o sujeito no estar a tal ponto enclausurado na

    prpria natureza que no possa sair dela; requer-se, por conseguinte, que a sua forma prpria de ser no

    esteja completamente absorvida em determinar a sua matria, mas que fique to independente e livre quepossa por sua vez ser determinada num plano superior. Por outras palavras: requer que algumas formas deexistncia tenham certa autonomia e plasticidade para se poderem amoldar a outras e comunicar assim aosujeito este ou aquele aspecto do objeto conhecido.

    E ser isto impossvel? O que que impede que uma nova ideia venha determinar a potncia dumser j constitudo, que j realizao, duma ideia de natureza? No poder uma ideia inserir-se noutra aomodo do adjetivo que qualifica o substantivo? certo que as idias da natureza so para determinar amatria; e no poder ser composto ou at o simples, a ideia subsistente, portar-se como matria, em relaoa uma nova determinao?

    Os termos matria e forma de existncia, so35

    relativos; o quartzo matria em relao ao granito, este matria em relao parede, e a parede

    finalmente em relao ao edifcio; o oxignio e hidrognio so matria, em relao gua, a gua em relaoao corpo e este matria em relao ao homem. Na natureza tudo est intercompenetrado e arquiteturadocom uma complexidade cada vez maior; o que se pode ver concretamente, por exemplo, no fenmeno doconhecimento, em que a intelectualidade viva assimila a intelectualidade morta e at a viva, ficando comoque uma intelectualidade ao quadrado.

    A esta compenetrao de intelectualidade chama Santo Toms intencionalpor causa do seu modo deser especial; aprofundando mais, podamos tambm dar-lhe o nome de objetiva para fazer notar quetransforma uma coisa em si, em objeto para ns.

    Santo Toms v somente dois casos extremos em que esta segunda determinao impossvel. Oprimeiro, j mencionado atrs, se a constituio originria desse ser implica uma absoro total da sua ideiaconstitutiva, ou seja, quando est completamente individualizado e bloqueado dentro de si mesmo pelamatria. O segundo, se pelo contrrio o ser ideia pura, mas em tal grau que inclui toda a idealidadepossvel; portanto incapaz de receber absolutamente mais nada. o caso de Deus, que realmente s a siprprio se conhece, e tudo o mais em si mesmo.

    36Na primeira hiptese esto os inorgnicos que visto serem dotados apenas de um mnimo de

    idealidade imanente que se exaure em os determinar internamente, no chegam a procurar o luxo de umaparticipao da idealidade ambiente, de acordo com as palavras do Evangelho:Ao que tiver dar-se-lhe-.

    Bem sabemos que neste nosso modo de falar estamos a lidar com sombras; nem devemos ter apretenso de fazer luz, pois os princpios das coisas esto escondidos num segredo impenetrvel; e nestaquesto estamos mesmo no mago dos princpios. A filosofia apenas o esforo para levar luz dascausas a obscuridade dos efeitos, que todavia nunca se conseguir dissipar completamente. Mas o facto doconhecimento impe-se, e sem pretenderexplic-lo, na certeza de que como dizia Goethe ao seu amigoFalk h fenmenos primitivos cuja divina simplicidade em vo se tentaria perturbar ou violar compesquisas, podemos assinalar-lhe os limites, determinar-lhe as condies, e concluir do que deve ser parao que .

    CONSEQNCIAS

    Desta interpretao inevitvel, que conseqncia se pode tirar para a constituio do real? Quepodemos ns concluir dela no campo metafsico?

    37Por certo j o entrevimos, nessa anlise em que o pensamento tomista nos foi passando diante dos olhos,desde um dos seus termos correlativos at ao outro, desde o ser em ns ao ser em si mesmo. Desta anlisesegue-se que o real sendo cognoscvel, visto que de facto o conhecemos, deve ser fundamentalmenteconstitudo por aquilo mesmo que o torna capaz de ser conhecido; por outras palavras, o real tem de serideia. Ora a ideia fora de Deus e de ns coisa; e a coisa em Deus e em ns ideia.

    Poderia resumir-se assim, com bastante exatido, o pensamento tomista sobre este problema.

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    Acabamos de afirmar que o princpio da capacidade de conhecer e o da capacidade de ser conhecido,enquanto conhecido, se identificam. Ora ns s conhecemos atravs da ideia, tomada no sentido maisamplo (species, intentio). Portanto, se de facto conhecemos as coisas, porque a ideia constitui ofundamento de tudo o que se poder conhecer, e por conseguinte de tudo o que existe.

    O alimento no pode ser estranho a quem dele se alimenta; preciso que os una certa comunidade denatureza. A erva e a carne do herbvoro compem-se dos mesmos elementos. Ora se a realidade alimenta opensamento, e o alimenta por si, ou seja, com alguma coisa de si mesma, como fugir concluso: a

    realidade ideia; o real inteligibilidade adaptada inteligncia, 38

    pensamento passivo adaptado ao pensamento ativo?Tanto mais que neste caso temos uma contraprova na ao. Quando agimos reencarnamos as idias

    extradas das coisas, idias que em ns sofreram nova elaborao e combinao.E o facto da ao no fracassar, de se harmonizar com a realidade, no comprovar o valor objetivo

    da ideia e dos nossos juzos? Se o pensamento abstrato resolve problemas concretos, no podemos deixarde lhe reconhecer afinidade essencial com o concreto.

    O que pelo conhecimento fica dentro de ns, uma forma subjetiva da realidade objetiva; a prpriarealidade objetiva que entra em ns de um modo simultaneamente proporcionado a ela e a ns; uma sntesede sujeito e objeto, uma vida comum de duas realidades feitas para se unirem, pois so irms no ser.

    Dizia Aristteles que o universo est cheio de alma; de facto o mundo anda saturado deespiritualidade e de lei, pois todo ele esprito e lei, razo e arte; ideia encarnada, razo exercida. E nssabemo-lo bem porque essa parte de inteligibilidade que a ele desceu e o enriquece, por meio de ns queremonta a sua origem. Uma vez que conhecemos atravs da ideia, que nos conhecemos a ns e a realidadeexterior, compreendemos que tudo participa duma essncia -comum.

    O objeto compreendido est adaptado ao su-39

    jeito que o compreende, e quando ambos realizam, em face um do outro, esta faculdade de compreender e deser compreendido, confundem-se. Ns compreendemos, transformando-nos no objeto quanto sua forma deser; e o objeto compreendido, transformando-se em ns pelo nosso acto de inteleco. A ideia propendepara o ser; e o ser feito para a ideia; a alma rene-os um ao outro. Esta unificao realiza-se em ns, porqueneste aspecto como em todos os mais a coisa para a pessoa e dela depende; no deixa todavia de ser umaunificao muito real que manifesta a unidade fundamental do inteligvel, da inteligncia e do ser.

    O ser pensa, pensado, ou se pensa a si mesmo; e no h mais. Na sua plenitude, em Deus, o ser Pensamento do Pensamento na sublime frmula de Aristteles; nos espritos pensamento vivo, e noscorpos, pensamento morto; mas, no fim de contas, o pensamento a ltima palavra de tudo. O universo,escreveu Ravaisson, um pensamento que no se pensa, dependente dum pensamento que se pensa. ENovalis afirmou que era um pensamento acorrentado; e Deus o pensamento livre.

    Quanto nossa alma, como ela em relao ao ser e verdade, dotada duma capacidadeuniversal,podamos afirmar que de certo modo tudo aquilo em que intelectualmente pode converter-se, pois a suanatureza mais profunda a

    40posse antecipada, implcita, potencial de tudo o que existe; um universo latente. O seu zero inicial apenaso smbolo duma predestinao ao infinito, que em matemtica se simboliza com dois zeros ligados (

    infinito). Sim, a alma humana , de facto, na sua capacidade receptiva, toda ideia e toda ser. Aquele seuvazio insacivel uma sede ardente que reclama a ideia e o ser, por amor prpria vida.A sua exigncia de saber, de apreciar e de sentir, a necessidade de se realizar, de passar ao acto da

    sua potncia, de obedecer tendncia da sua natureza, de se encontrar a si mesma.A necessidade que sente de Deus a necessidade de levar a cabo esta conquista de si mesma e de

    todas as coisas, subindo at Origem donde tudoprocede e onde tanto ela como tudo o mais se justifica.A que grandeza nos eleva esta condio!... A profundidade do nosso esprito, como a do universo e a

    de Deus tambm insondvel; pois o facto de sermos cidados do infinito, torna-nos infinitos. Embora o serintelectual s sucessivamente realize a sua potncia universal, possui-a todavia desde o princpio; simultaneamente determinado e indeterminado, homem e universo, particular como objeto do pensamento, euniversal como sujeito. que a medida do nosso devir est na medida do nosso ser; e ns converte-

    41

    mo-nos progressiva ou ao menos possivelmente em todas as coisas.E assim, a nossa grandeza na ordem do ser no se mede pelo estreito espao ocupado pela nossapersonalidade, mas pelo vasto horizonte que diante de ns se abre. Se, porm, nos privassem do pensamento,ficaramos como a fera que perdida no seu escuro antro, mal conhece o retalho de floresta em que vagueia; e

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    se nos destitussem completamente de conhecimento, ento o que restaria de ns seria apenas uma frgilnulidade. S o homem, em toda a natureza, tem, como universo, o universo inteiro; para os outros seresdotados da faculdade de conhecer, o universo apenas aquela estreita faixa de terra em que vagueiam; e osque nem dessa faculdade gozam no tm outro universo mais do que eles mesmos.

    A inteligncia o facto capital dentre todos os que ela examina e classifica; uma estrela no cu danatureza como prenncio dum novo mundo. Melhor: o olhar da natureza, o olhar que se ergue para o cu,olhar j penetrado de cu, olhar celeste que um cu, pela sua substncia e poder, pelo seu tesouro de luz

    celestial; e que s da terra pelos meios orgnicos de que lana mo. A inteligncia revela-nos a nossaafinidade com todas as coisas, pois o sinal da profunda unidade do ser. Por isso nos faz penetrar nele at sltimas profundidades.

    No estar aqui uma explicao e ao mesmo tempo uma aplicao desta tendncia do esprito42

    que o leva a unificar tudo o que cai sob o seu domnio, e a orden-lo cada vez mais compreensivamente paramelhor o determinar? Se o esprito est naturalmente adaptado ao seu objeto, se h fraternidade entre ele e ascoisas, somos levados a crer que a nossa tendncia de unificao corresponde a uma disposio unitria danatureza. E, inversamente, se entre todos os seres vigora certa unidade fundamental; se tudo ideia, oesprito h de encontrar cada vez maior satisfao em reduzir quanto possvel ideia, os fenmenosempricos. Se finalmente, de ideia em ideia, e de ser em ser, chegssemos a uma ideia real to rica quecompreendesse e explicasse tudo; teramos encontrado a cincia perfeita que seria ao mesmo tempo o serperfeito; seria a cincia divina que Deus.

    Tal , de facto, reduzido ao mais simples esquema, o edifcio tomista, que se baseia precisamentenesta anlise do conhecimento. O esprito tende para a unidade como para seu ideal; mas por outro lado forado a apartar-se dela. O primeiro passo reconhecer a unidade; depois, verificar o que nela se encerra,para finalmente a reintegrar na sua simplicidade de que o trabalho da anlise a despojou.

    S podemos tender para unificar o que mltiplo; mas s porque esse mltiplo no fundo uno; que tendemos natural e eficazmente a unific-lo. E assim, se o esprito, em vez de an-

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    dar a tatear e a divagar como fogo-ftuo na superfcie das coisas, lhes penetrasse imediatamente no mago,no teria que se esforar em unificar coisa alguma, do mesmo modo que no temos de fazer esforo paraunificar os traos dum rosto, desde que lhe descobrimos a unidade de expresso. Ento j no seria precisoandar por meio da cincia a lanar pontes e ligaes entre todos os fatos e todos os seres, porque tudoapareceria uno na sua multiplicidade e mltiplo na sua unidade, rico sem se difundir e distinto sem seseparar. Seria uma intuio perfeita; mas o que para ns seria quase a perfeio, para o universo continua aser o seu enigma.

    IDEALISMO MODERADO DA DOUTRINA TOMISTA

    As concluses tiradas da interpretao do real, considerado como objeto de conhecimento, levaram-nos, como se v a pleno idealismo: A realidade ideia; o mundo tanto pode considerar-se objetivamenteapario real, como subjetivamente alucinao verdadeira. ideia encarnada, esprito pronto a comunicar-se, verbo realizado. Mas no tenhamos receio, porque o idealismo tomista no encerra nenhum dosinconvenientes da doutrina que anda em voga com este nome; e por outro lado, como no deixa de serverdadeiro idealismo, evita por isso mesmo todos os escolhos do materialismo.

    44

    prprio da filosofia de Santo Toms olhar as coisas sempre de alto para poder abraar, numasntese compreensiva, os diversos aspectos que costumam dividir as filosofias e os homens. Esprito ematria, corpo e alma, inteligncia e vontade, unidade e multiplicidade, movimento e imobilidade,determinismo e liberdade, ser criado e ser incriado, que nos diversos sistemas se tornam alternativamenteabsorventes e exclusivos, em Santo Toms conciliam-se e harmonizam-se.

    Logo desde o ponto de partida se revela este esprito de sntese no equilbrio entre a considerao dosujeito e a do objeto, no conhecimento; e assim que Santo Toms, como que por um vo, escapasimultaneamente ao idealismo e ao materialismo.

    De facto o materialismo olhado atravs deste problema inicial, reduz-se a um objectivismo, ou seja,ao exclusivo sentimento do objeto; e por outro lado, o idealismo encarado pelo mesmo aspecto, umsubjectivismo, a absoro da realidade pelo sujeito. O subjectivista exclama: tudo se reduz ao meu prprioeu; pois sou eu quem pensa, e o nico objeto do meu pensamento vem-me de dentro de mim mesmo. E assimesquece a coisa pensada ou a absorve em si mesmo. E o materialista pelo contrrio afirma que tudo se reduz

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    ao objeto, dizendo: eu penso o objeto, e em mim nada mais descubro que o objeto. Es-45

    quece o sujeito como sujeito, formando-o apenas com exterioridades.A histria da filosofia poderia interpretar-se toda como oscilao entre estes dois termos. Por um

    lado, confiana total na realidade exterior tal como se nos revela e absoro do pensamento pelo estudo dasrelaes objetivas. o que acontece com o cientismo e com a doutrina daqueles que Santo Toms chamanaturalistas antigos, como Empdocles, Herclito, Digenes de Apolnia, Hpon, Crtias e principalmente

    Demcrito. Por outro lado, anlise exagerada das condies objetivas do conhecimento, das faculdades e doeu e tendncia para considerar a realidade apenas como modificao do pensamento. no que vem dar ocriticismo de Kant, e no que deram, no mundo grego, as concepes da escola de Elia e de Carnades.

    Este avano de doutrinas em sentidos opostos, era fatal, uma vez que no ponto de partida se tinhamdissociado o pensamento e as coisas, o sujeito que conhece, como tal, e o objeto conhecido, a inteligncia e ointeligvel que deviam considerar-se como acto comum. Tudo provm da. preciso dar crdito evidnciaimediata de que verdadeiramente ns conhecemos, e de que conhecemos isto que se converte em ns, semdeixar contudo de ser o que , e sem ns tambm deixarmos de ser o que somos. Desta observao elementardepende todo o futuro da cincia, pois

    46nela se marca a abertura do ngulo em que o prolongamento dos lados apenas manifestar mais claramente aretido ou desvio iniciais.

    * * *

    Analisemos agora mais em particular o materialismo. Partindo da observao externa, verifica aexistncia de objetos, entre os quais, os seres dotados de conhecimento, o homem. Analisa esse sercognoscente enquanto objeto, o homem-objeto, e julgando ter reunido todas as condies objetivas em queestes seres conhecem, afirma: tudo se reduz a isto; as sensaes so fenmenos como quaisquer outros, comoo calor, por exemplo, e como a eletricidade; a inteligncia e vontade, secrees; a alma, um vocbuloinventado pela ignorncia; o eu sntese de estados diversos originados, por estas mesmas condiesobjetivas de que nascem o pensamento e a sensao. E nada mais.

    Entretanto o homem que assim analisa, que se coloca em frente do objeto no como objeto mas

    como sujeito, esse homem, mesmo que se considerasse como objeto por meio da reflexo, no deixaria,ainda neste caso, de ser um observador, um sujeito que observa, se assim se pode dizer, um anti-objeto;todavia esse homem esquece-se de si mesmo e fala de si como de um estranho.

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    Donde provm tal aberrao? De, inicialmente, se desprezar a evidente e irredutvel oposio queexiste em todo o conhecimento, entre o sujeito que conhece, enquanto conhece, e o objeto conhecidoenquanto conhecido; de se esquecer, por conseqncia, a necessidade de nesse estudo dar lugarindependente, ao sujeito como sujeito, ao sujeito como agente duma criao prpria,sui generis, e irredutvela qualquer condio objetiva, criao que o prprio conhecimento.

    O conhecimento em mim no se d como um fenmeno que viesse de fora e se pudesse explicarcompletamente pelas suas condies anteriores; um fenmeno que exige tambm uma condiosubseqente: que seja eu, eu mesmo que o produza, pois que esse fenmeno o meu prprio EU

    manifestado sob uma forma inteiramente nova, forma imperceptvel a qualquer outra observao que noseja a minha; pois essa forma plenamente subjectiva e, por conseguinte, inacessvel a qualquer explicaopuramente externa.

    O conhecimento requer antecedentes objectivos, e de facto objetivo, mas igualmente subjectivo.Por se esquecer ou no ter na devida conta esta ltima caracterstica que se chega ao extremo de negar opensamento e at a sensao e a vida no que elas tm de especfico, quando se no vai ao ponto de eliminar aalma e de falsificar radicalmente a realidade cuja definio s possvel no ntimo do prprio pensamento eem

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    contacto com todos os seus elementos essenciais. Como escreve Emlio Boutroux no existe matria bruta,porque aquilo que forma o ser da matria est em comunicao com o que forma o ser do esprito. (Liesde 1892-1893).

    Venhamos agora ao idealismo. O ponto de partida a considerao de que o objeto primrio, senonico, da investigao filosfica seria o sujeito pensante, ou mais rigorosamente, os fenmenos que se lheatribuem; de maneira que nada poderia ser conhecido ou dado a conhecer seno mediante ou atravs desteobjeto primrio. E ainda podemos levar mais longe as concluses; porque, logo de entrada, podemos concluir

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    sequer solicitava o pensador a entrar por este caminho. No meio intelectual, todos estavam de acordo naaceitao das condies do pensamento: valia mais a pena trabalhar na soluo dos problemas da poca. Nomomento oportuno Santo Toms justificar as suas teses e indicar os laos que subordinam a totalidade dosconhecimentos com as suas caractersticas ao facto inicial do modo de pensar; mas entretanto supe, e utilizaessas suposies. No receia antecipar, tendo apenas cuidado de no afirmar nada que mais tarde tenha decontradizer e antecipa-se no s a si mesmo, mas ao trabalho dos sculos futuros, consciente da solidariedadedas geraes e da unidade da cincia.

    Nos captulos seguintes teremos de abandonar o mtodo gentico esboado neste primeiro captulo,por no querermos apartar-nos demasiado dos processos de exposio de Santo Toms e tambm porque no nosso intento expor toda a sua filosofia. mais uma razo para salientarmos s alguns aspectos maiscaractersticos que, no seu conjunto, bastem para dar um esquema da sua doutrina.

    Se o conhecimento, por assim dizer, consiste apenas num desdobramento do ser sobre si mesmo,tomado no seu duplo aspecto de inteligncia e inteligibilidade, e com as suas mtuas relaes edesdobramentos, podemos da conjecturar que onde houver mais ser ou mais perfeio, o que

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    o mesmo (pois aperfeioar produzir ser), haver tambm mais inteligibilidade e inteligncia, einversamente. Ser e perfeio, inteligncia e inteligibilidade, andam a par, ou melhor, so uma s coisa. Comefeito, quanto maior o grau de ser maior a capacidade de conhecer e de ser conhecido, e por conseguintetanto maior tambm a capacidade de se conhecer a si mesmo e de conhecer todas as coisas. O Ser emplenitude tambm a plenitude de inteligncia e a plenitude de inteligibilidade. Avanando porm emsentido inverso, em direo ao no-ser, no limite do qual est a potencialidade pura, inevitvel que seadensem as sombras. A certa altura acabam por sufocar todo o conhecimento ativo; a nica ideia ento aideia imanente chamada forma, sob outro aspecto chamada tambmfim. E naquele limite extremo de quefalamos, na potencialidade pura, j nem sequer isto se encontra; ao quase-nada da potencialidade puracorresponde apenas, alm do nada do conhecimento ativo, o quase-nada da cognoscibilidade.

    precisamente o que nos mostra a experincia.Ns conhecemos, como explica Santo Toms, devido impresso que as coisas gravam em ns; esta

    impresso medida da inteligibilidade das coisas e tambm da nossa inteligncia. A imposio dos limitespode vir do sujeito ou do objeto, conforme os casos. Ora as condies do conhe-

    54cimento mostram-nos que os objetos da experincia no so inteligibilidade pura, assim como ns tambmno somos inteligncia pura; existe em ambos um substrato da mesma natureza que condiciona oconhecimento ativo e passivo, caracterizando-lhe e limitando-lhe todos os passos. a matria.

    De facto, por meio do esprito apreendemos a natureza abstrata de cada indivduo ou coisa em nsrepresentada; mas nunca lhe conseguimos apreender a individualidade apesar de estar identificada com essanatureza; o individual para ns inefvel porque contm um elemento, segundo parece, estranho quilomediante o qual conhecemos, ou que ao menos representa uma sua degradao fora do nosso alcance. Atem ns mesmos encontramos uma falha semelhante: no somos capazes de nos apreender a ns mesmos; que a nossa individualidade tem profundezas de inconscincia que nem podemos medir, nem vencer; comose o nosso esprito andasse nelas sepultado.

    Se considerarmos que a forma de existncia das coisas, pela qual conhecemos, goza duma espcie deinfinidade relativamente s suas realizaes; que na sua simples definio representa, como que uma srie

    infinita de proposies afins que os indivduos realizam uma aps outra sem jamais a exaurir chegamos inesperada concluso de que o infinito mais acessvel ao esp-55

    rito que o finito, e de que o princpio da finitude, a matria alis sob outro aspecto, um verdadeiro infinito para ns, c na terra o limite mais difcil de transpor.

    Que sombra esta que em ns alastra por debaixo da luz activa, e sob a luz passiva das coisas que ainteligncia descobre e de que vive? Ser o mundo um abismo de trevas envolto num oceano de luz? Eseremos ns fragmentos deste mundo, parte destas trevas e desta luz amalgamadas na unidade de um s eu?

    evidente que sim. O esprito vivo e a realidade inteligvel tm um limite inferior para baixo do qualo ser se prolonga num estranho e indizvel depauperamento. A luz da inteligncia tem a sua penumbra nossentidos e as trevas na matria. Ora a matria um resduo de esprito, uma degenerescncia de esprito. Equando nos esforamos por interpretar a sequncia de fatos que a natureza, encontramos em toda a parte,

    do mesmo modo que em ns, esta potncia obscura que circula nos fenmenos, idntica a si mesma atravsdas suas diversas transformaes, imperceptvel, impensvel, mas de facto subjacente ao pensamento e aoser.

    Assim se nos manifestam as duas formas da natureza: a forma masculina e a feminina, ou seja acto e

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    potncia; tanto o devir interior como o exterior nos revelam estas duas faces do ser. O que individualatingimo-lo s por uma po-

    56tncia meio cega e meio inconsciente, que a sensibilidade; nunca chegamos porm a domin-lo; at mesmoa nossa prpria individualidade, s superficialmente a atingimos e por meios no intelectuais.

    Este ltimo facto sem dvida o que mais nos surpreende; porque uma vez que a nossaindividualidade est no ntimo do nosso ser, parece que no devia ser preciso esforo algum para atingi-la. E,

    todavia, por mais que a busquemos, nunca conseguimos apreend-la na sua essncia, nunca conseguimosagarr-la.

    que se chegssemos nossa compreenso total teramos s com isso a compreenso de tudo;compreendermo-nos a ns mesmos como seres que conhecem, seria compreender o mundo todo; mas diantede ns tudo foge, tudo at ns mesmos, por essa aberta, de algum modo infinita, que se rasga para a noite damatria.

    No princpio da nossa existncia, na qualidade de sujeitos, no conhecemos nada; vamosarmazenando impresses e sensaes obscuras; e depois vamos elaborando lentamente e sobretudo deixando espontaneidade da vida o cuidado de elaborar estas aquisies e de formar com elas uma experincia. Ouniverso penetra em ns por meio do corpo animado que mediante a sensao partilha dos seus ritmos equalidades. A nossa proviso interior de experincias sensveis est unida alma intelectual, que por sua

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    vez se une ao corpo e este ao mundo; do mesmo modo que a matria do mundo est unida sua almaprpria, que a sua idealidade imanente. Ora esta proviso de experincias sensveis provoca, por meio daabstraco, a ideia geral que verdadeiramente nos ilumina a realidade ambiente e as suas causas. Contudo,para que a ideia, mesmo j depois de adquirida, possa servir para o conhecimento em acto, tem de conservar-se em contacto com os fantasmas donde ela surgiu; e desde o momento que uma perturbao qualquer,momentnea ou duradoira, venha confundir ou apagar as imagens, extinguir-se- a luz da ideia.

    E porque se dar isto? No ser porque tanto a inteligibilidade como a inteligncia no estocompletamente libertas de prises, porque esto sujeitas a condies que as limitam? O inteligvel em si,contra o que julgou Plato, no existe; preciso arranc-lo das coisas; a inteligncia no independente nasua atividade, pois emerge duma zona obscura acima da qual custosamente se ergue, sempre em contnuoperigo de soobrar. As idias da natureza esto misturadas com qualquer coisa de que preciso libert-las; asnossas prprias idias vm acompanhadas de nvoas que lhes ofuscam o brilho. Os nossos conceitos,expresses parcelares da realidade, no nos vm por intuio, mas pela abstraco que nos obriga a retalhar oque uno, a fixar o que sucessivo, a imobilizar o tempo, e a esquartejar a

    58substncia; em suma, fazemos da natureza viva um monto de destroos.

    Daqui provm aquele andar claudicante do esprito, de claridade em claridade, de aspecto emaspecto, at que as diversas tentativas de combinaes com o nome de juzos e raciocnios avancem parauma luminosidade mais ampla, mas sempre limitada. O abstrato natureza exausta, natureza em estadoevanescente e como fludico; reduz estreita conformidade com o nosso eu imperfeito, toda a riqueza domundo, riqueza esta que apenas vislumbrada, e mais afirmada que atingida. At parece que os nossosentusiasmos de h pouco acerca do pensamento deviam agora mudar de sentido. Mas distingamos. Opensamento sublime pelo seu objeto e pelas suas possibilidades; porm dbil no seu exerccio actual e emrelao ao que ele pressente e espera.

    No resultar esta ntima contradio de haver em ns e no nosso objeto imediato uma composioirredutvel e limitadora? Se se dissipasse a opacidade da matria, o objeto ficaria plenamente inteligvel e osujeito plenamente inteligente. Tornado assim difano a si mesmo, este sujeito seria, enquanto conhecente,igual sua prpria inteligibilidade e poderia apreend-la; e em relao s coisas exteriores a ele, poderiaexercer o mesmo poder, sem esforo algum, sem progresso, nem regresso ou mistura de inconscincia. Aintuio intelectual seria um contacto vivo, ao passo que a

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    abstraco contacto morto. Mas de facto no isso o que sucede; no sistema tomista a certeza dacomposio das coisas e da nossa prpria composio obtm-se por meio do conhecimento e das suasmodalidades, ao mesmo tempo que se adquire a certeza da idealidade essencial e universal. Ao dualismoassim afirmado d-se o nome de hilemorfismo; e a partir do composto hilemrfico, prolonga-se em dois

    sentidos o campo aberto filosofia do ser: para cima, a ideia cada vez mais livre e pura; para baixo, as trevasda matria. A escala musical da criao comea nesta grave profunda que a matria, e termina no agudoabsoluto que divino. Na ordem das criaturas, a ideia revela-se-nos na alma intelectual, primeiro no estadode unio e em seguida no de separao, e no anjo; e a matria na extenso, no nmero, no movimento e no

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    Os escales por que a forma de existncia, considerada genericamente, vai passando at chegar aoanjo que forma ou ideia de natureza subsistente, forma imaterial e no recebida na matria, segundo opensamento de Santo Toms, so os seguintes:

    1. A forma, ou seja a ideia constitui a parte fundamental do ser; e a matria apenas a degradaodo ser,potncia ordenada ao acto, no-ser relativo, ser em expectativa, em oposio ao ser j alcanado, ou

    perfeio.2. Por conseguinte a ideia ou a forma que d o ser ao composto da matria e forma, do mesmo

    modo que no conjunto do universo, o acto que explica a potncia e que tem prioridade sobre ela.3. E daqui segue-se que a matria no pode subsistir sozinha pois nesse caso ficaria privada de ser;

    ao passo que a forma, uma vez que ideia, poder subsistir. E em que condies?64

    Com a nica condio de ter perfeio suficiente para isso, pois s a imperfeio da forma que lheimpe a necessidade de um suporte. A forma material apenas um estado da matria por ela afectada, o actoda matria, visto que esta, de si, no tem consistncia nem perfeio prpria. A forma humana essa gozaduma autonomia relativa e eventual, e pode subsistir; no lhe porm natural esta subsistncia fora do corpo;precisa dum corpo para se manifestar, enriquecer, e se expandir por meio da aco e formar o homempropriamente dito. Ainda mais para alm, temos nas formas puras a libertao mais completa ou at total, doque propriamente se chama matria. E j estamos a prever as consequncias disso.

    Uma vez que a clarividncia do sujeito que conhece, e a luminosidade do objeto conhecido limitada pela matria, suprimida esta, o sujeito do conhecimento e o objeto conhecido equivalem-se,assemelham-se e renem-se. O anjo uma ideia real presente a si mesma, transparente para si mesma, querealiza um caso alis infinitamente varivel no valor e na forma, deste inteligvel inteligente que o ideal danatureza do ser. No anjo a intelectualidade no uma funo ou atividade sobreposta e parcial; a prprianatureza. Como diz Santo Toms, o anjo no tem inteligncia, inteligncia. Donde se segue que ele sempre igual a si mesmo, e totalmente evidente a si mesmo; e alm disso, que tudo o que

    65ele conhece lhe igualmente evidente, absolutamente transparente, pois a obscuridade do ser, tanto nosujeito como no objeto, deriva sempre da cerrao da matria. Em vez da inteligncia claudicante, indecisa, ese assim se pode dizer, nocturna, que prpria da humanidade, a doutrina tomista apresenta aintelectualidade que toda luz, em que a ideia toda ser, em que a ideia o prprio sujeito, sem conservar jaquele vestgio que retm o esprito no limiar das inteligncias. Em Santo Toms, toda a angeologia se fundana anlise comparativa do que o esprito, enquanto esprito, e enquanto dependente das condiesmateriais. Se suprimirmos do todo a parte originada da passividade, ou seja da materialidade, obteremoscomo resultado desta subtraco, enriquecedora, o esprito puro; e tirando-lhe depois os limites, obteremos aplenitude; e este trabalho minucioso e imperturbvel pode justamente chamar-se a construo de um mundo.

    Resta finalmente transpor o ltimo degrau, embora se no trate propriamente dum degrau por ser apassagem para o transcendente. Deus est para alm da inteligncia e da inteligibilidade, pois est para almdo ser, como origem dele. Mas como lhe chamamos Ser subsistente, por vermos nEle a origem do ser,devemos tambm, pela mesma razo, cham-lo a inteligncia e inteligibilidade, ou a verdade subsistente.

    O anjo, esse, embora seja ideia real, (e por66

    mais real que seja) no tem em si mesmo a subsistncia; -lhe comunicada por outro ser exterior a ele. Aideia que ele representa, e que ele , pode conceber-se como existente ou simplesmente como possvel; eportanto teve de passar do possvel existncia pela aco de outro ser, pois o ser que precisa de se realizar,no pode realizar-se s por si. E isto significa que essa natureza por mais imaterial que seja, tem certaafinidade com a matria; que tambm ela potncia em relao existncia que recebe, como a matria o em relao forma que lhe impressa pelo agente. Ora, se o anjo recebe a existncia de outro e se este outroestivesse no mesmo caso que o primeiro, teramos de ir subindo sempre cada vez mais; e como nas causas,no se pode avanar at ao infinito, temos de chegar a um primeiro ser em que a essncia e existncia, a ideiae o ser actual se identifiquem perfeitamente.

    Fechamos assim o crculo das ascenses que compreende trs zonas: os seres inteligentes; asinteligncias; e no cume, a Inteligncia.

    Esta escalada para o mundo superior impe-se ao sistema tomista; mas ao mesmo tempo queentrevemos este mundo ideal, reconhecemos que est fechado nossa intuio e vedado a qualquer espcie

    de conhecimento directo. E assim o que de si o mais inteligvel, transforma-se para ns no maisincognoscvel, precisamente porque a sua perfeio nos ofusca. que a de-67

    masiada claridade cega-nos, do mesmo modo que a sbita escurido. A Deus e aos espritos conhecemo-los

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    apenas como postulados; e exclusivamente em funo e mediante esta postulao, os denominamos e lhesatribumos certos predicados em conformidade com o sentido da analogia tomista qual voltaremos nocaptulo seguinte. J no pouco; e deste esforo do pensamento depender toda a vida superior da alma.

    Como se v, as condies do pensamento pem, s por si, todos os problemas fundamentais quedepois o pensamento h de resolver. A isso se reduz toda a metafsica. E como a metafsica consiste apenasem explicar as condies do ser como objeto de experincia, isto , o ser considerado como tal, toda ela seresume em responder a esta pergunta: para que este ser exista, que que deve necessariamente existir?

    Se o que existe, enquanto objeto de experincia se nos manifesta no prprio acto de conhecimento,como ideia realizada, como essncia existente limitada por uma matria, o esprito poder reconstituir em sitodo o real, incluindo at o Real supremo, passando daquela primeira condio aos postulados que ela exige.

    A filosofia a arte de descobrir este nexo essencial das coisas e de as encadear como num tero comseusPadre-Nossos entremeados.

    OPadre-Nosso a ideia. Ora, sob este as-68

    pecto, o principal valor da ideia no est no seu contedo mas no lugar eminente que ocupa num todo,vinculado s causas primeiras. Estud-la na sua natureza, no seu alcance e valor, reencontr-la tomandocomo ponto de partida os objetos, subir origem dos fatos que ela reflecte e da vida que em si espelha.

    Se a alma se no voltasse assim sobre si mesma, em que haveria de pensar, e at onde poderia subir?Se recusasse empreender a conquista de si mesma, seria impotente para conquistar fosse o que fosse,superior a ela; ficaria apenas reduzida ao que lhe inferior. Todo o trabalho do homem seria ento, como diza Bblia,para a boca,palavra que sintetiza a vida fsica e a aco exterior que a caracteriza.

    A inteligncia, se se considera unicamente como instrumento do animal racional, anda ao servio daanimalidade, e limita-se a aperfeioar e a alargar o trabalho dos sentidos. a mo universal de que falavaAristteles; osfantasmas interiores que ela utiliza so os vestgios da aco, que apenas servem para a aco;e a ideia fica reduzida a um meio superior ao servio da aco. Nesse caso que feito do privilgio evocao surpreendentes que nos colocam nos confins de dois mundos? O prprio Aristteles que dava para ainteligncia terrena a definio da mo universal, ao pensar na nossa capacidade de ideal afirmava que ohomem s atinge de facto a me-

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    dida das suas possibilidades quando chega a ultrapassar-se. Mas para isto preciso, em primeiro lugar,encontrasse; e s na reflexo sobre si mesmo, como ser inteligente, que o homem encontrar o ponto deapoio para esse vo em direco s realidades invisveis.

    Daqui se v que qualquer doutrina do conhecimento, desde que seja correcta, reveste naturalmenteum carcter moral, e isto a ttulo de concluso esboada que ponto de partida duma tica; mas tambm, esobretudo, a ttulo de inspirao, de esprito; pois desde os primeiros passos, a ordem de consideraes a quenos arrasta abre perspectivas incomensurveis, que, sem dificuldade, nos deixam antever at ondechegaremos. Procuramos saber o sentido de tudo s para encontrar o sentido da vida; por isso cada filosofia apenas uma nova interpretao da vida; mas investigar o sentido da ideia, interrogar-se sobre aquilo de queela comunga, em que consiste e at onde nos leva, definir e at viver j uma vida superior; soletrar estapalavra empregar a ltima palavra, a palavra suprema que ilumina todo o discurso que a realidadepronuncia.

    As Idias, escrevia Schopenhauer margem dum livro de Plato, so realidades que existem em

    Deus; o mundo dos corpos, a lente cncava que dispersa os raios emanados das Idias; e a razo humana, alente convexa que os rene de novo e reconstitui a imagem primitiva, embora um70

    pouco desfocada com este desvio. E Santo Agostinho tinha j dito com mais autoridade, e tambm com amente em Plato que a doutrina das Idias to fecunda que ningum pode ser sbio sem a compreender.Santo Toms cita esta sentena e tambm a aprova. que, para ele, as Idias so quase tudo, pois so no sa origem da ideia pela qual o homem conhece, mas tambm a origem dos seres. Para qualquer ser criado, aexistncia um segundo momento; pois o primeiro a essncia, enquanto objeto de pensamento; e assimtodo o ser tem um comeo ideal que se termina com a realizao na existncia. Aquilo porm a quechamamos comeo de facto continuao; pois antes de qualquer ser existir, preciso que outro se pense,uma vez que o verdadeiro princpio est no esprito. No princpio era o Verbo. E por esta mesma razo, cadaideia dum esprito criado, criao divina e divina comunicao por um intermedirio. Portanto se a

    existncia dos seres um segundo momento, o momento em que as concebemos o terceiro; o primeiro aconcepo divina, que exigida pelos dois ltimos.Deste modo todas as idias humanas dependem das idias de Deus, e se vo perder neste

    incognoscvel fulgurante donde toda a luz dimana. Todas as coisas so criadas duas vezes: a primeira em si

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    mesmas, e segunda em ns. Se em Deus no estivessem as razes de todas as coisas, seguir-se-ia uma dupladestruio; a do objeto

    71em que estas razes encarnam e a do sujeito que recebe a comunicao delas. Uma vez reconstitudas, asIdias criadoras servem de base s coisas, e, mediante estas, ao pensamento e depois aco que se rege pelopensamento. que, como observa Novalis a teoria incompleta afasta da prtica, e a completa conduz a ela.

    73

    III

    DEUS

    I. Ser necessrio pr este problema?e ter soluo?A. A PRETENDIDA IMPOSSIBILIDADE DE DEMONSTRAR A DEUS.B. A PRETENDIDA EVIDNCIA DE DEUS SANTO ANSELMO.

    II. Que podemos ns saber de Deus? UNIFICAO DAS CINCO VIAS. AT ONDE QUE PRECISAMENTE NOS LEVAM. A TEODICEIA.

    III. Que valor tm os nossos conhecimentos acerca de Deus? DEUS INDEFINVEL. AANALOGIA MEIO TERMO ENTRE O AGNOSTICISMO E SIMBOLISMO, E OANTROPOMORFISMO.

    75

    O PROBLEMA DA ORIGEM DO SER

    Santo Toms ao qualificar o ser, como vimos atrs, qualificou tambm nesse mesmo acto, porantecipao, a Origem do ser. Todavia problema to central como este, que domina toda a cincia terica eprtica exige que o consideremos em separado. De facto, toda a doutrina tomista se reduz a um longo tratadode Deus; pois, ao estudarmos o ser nas suas diversas manifestaes, temos de nos referir constantemente assuas causas, as quais por sua vez exigem a causa primeira. Por conseguinte o captulo doutrinal intituladoteodiceia um simples esquema onde tudo o mais est representado e esboado, para onde tudo converge. por isso de suma importncia dominar-lhe as linhas mestras que so as mesmas do sistema tomista total.

    Uma vez que o nosso intento apresentar apenas as grandes teses de Santo Toms, vamos trataraqui s de trs problemas principais:

    1. Ser possvel e necessrio fazer a demonstrao de Deus?2. Que podemos saber de Deus?3. Que valor havemos de atribuir a esta forma de conhecimento, se a comparamos com as

    evidncias e certezas da vida prtica, e com o que Deus em si mesmo?76

    I. SER NECESSRIO POR ESTE PROBLEMA?- E TERSOLUO?

    A. PODEREMOS FAZER A DEMONSTRAO DE DEUS?

    No foi preciso esperar por Kant nem pelo criticismo moderno para negar a possibilidade de fazer ademonstrao de Deus. Se os argumentos aduzidos dependem duma filosofia particular, levariam de facto discusso dessa filosofia; mas se nos restringimos s tese em si mesma, no creio que se encontremobjeces mais ponderosas, nem sequer fundamentalmente diversas das que o prprio Santo Tomsapresenta na Suma Teolgica (Q. 2, a. 2).

    Como possvel, pergunta ele, fazer a demonstrao de Deus ou de qualquer outra coisa, sem partirduma definio; sem falar duma essncia cuja existncia real se procurar provar depois; sem, porconseguinte, supor uma ordem lgica, uma ordem de necessidade que exija Deus e portanto Lhe seja

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    compreenderia que me objectassem: o universo no tem necessidade83

    de princpio; seria uma questo a examinar. Mas, posto que vs mesmos a postulais, o que me espanta queessa infinidade que exigis, vos parea obstculo demonstrao; na realidade, vs mesmos concedeis que um dos termos dessa demonstrao.

    A dificuldade , alis, ilusria. certo que no podemos conhecer adequada e perfeitamente umacausa por meio de efeitos que se lhe no proporcionam; e tratando-se duma causa transcendente, duma causa

    infinita, no podemos ter a pretenso de a definir. Contudo mesmo sem a conhecer ou definir, podemosprovar a existncia da causa pela existncia e pela exigncia do efeito; podemos atingi-la e caracteriz-lajustamente como causa suficiente, que para o ser requer determinados atributos, cuja noo ser tiradaprecisamente dos efeitos. E por conseguinte o que se h de definir afuno, as exigncias da funo, e noDeus de Quem pelo contrrio continuaremos a afirmar que tem de ser incognoscvel em si mesmo, sob penade no ser Deus.

    Mas objectar-se-: no ser contraditrio atribuir a Deus aces definidas e proclam-lo apesar dissoindefinvel? Seria, se estas aces definidas, as pretendssemos definir a partir de Deus; pois um Deusinfinito no pode ter em si mesmo funes definidas, nem funes determinveis por ns, comoqualificativas da sua natureza. que, de facto, Deus no tem natureza, no tem funes; Deus , e infinitamente; isto tudo e isto basta a tudo o mais. Essas funes de que falamos so por ns definidas,apenas a partir das criaturas; so exigncias do ser criado, exigncias diversas entre si para a nossa anlise, ecaracterizadas segundo o nosso modo de conhecer,

    84mas que o Ser divino esconde na sua misteriosa unidade.

    preciso reparar que de facto o que se tenta aqui definir e tornar inteligvel, no Deus mas omundo; porque afinal o problema de Deus o problema do mundo e da vida, nas suas ltimas consequncias.Sem Deus, nem a vida nem o mundo se podem completar ou definir. Como apenas manifestam relatividade einsuficincia, sem nenhuma razo de existncia, poderamos justamente dar-lhes o nome de sistema denadas. Contudo para que esses nadas ganhem consistncia e possam ser pensados por ns, no necessrioque Deus em si mesmo possa ser pensado, que o prprio Deus possa ser definido e se manifeste Ele mesmo aexercer determinadas funes. Antes pelo contrrio, no problema de Deus, a nica sada que temos compreender a necessidade do Incompreensvel, conhecer que h um Incognoscvel, definir a necessidade doIndefinvel. E desde o momento que Deus se nos tornasse inteligvel e definvel em si mesmo, o mundodeixaria por isso mesmo de o ser. Por outras palavras, se Deus entrasse nas categorias do pensamento porqualquer ttulo que fosse, deixaria de ser aquele Primeiro Ser que o mundo exige para continuar naquelascondies a que Renouvier chama os limites da inteligncia possvel. No h portanto contradio alguma,pois o definido e o no definido, no se referem ao mesmo objeto, nem ao mesmo sujeito; logo, a nossa tesefica de p.

    Quanto identidade, em Deus, da essncia e existncia, do ser e daquele que existe, concordamosplenamente; e admitimos portanto a consequncia de que nos to impossvel atingir o ser de Deus como asua natureza. Mas note-se que

    85no preciso atingir, desse modo, o ser de Deus, para formar dEle um juzo de existncia. Afirmar que Deusexiste, no pr o esprito em contacto com o ser divino. que serpode tomar-se em dois sentidos:primeiramente para significar a prpria entidade de qualquer coisa; e neste sentido o ser substncia,quantidade, qualidade, etc., porque o ser s pede atribuir-se quilo que de algum modo entra nas categoriasgerais do ser (Quodlibet IX, a. 3); em segundo lugar, ser emprega-se para exprimir a verdade dumaproposio por meio da cpula verbal: . No primeiro sentido, o termo serdesigna a prpria realidade deDeus, e por conseguinte um incognoscvel; no segundo no designa nada; no um predicado; e por issopoderia aplicar-se tambm a uma coisa sem existncia real, como quando dizemos que a cegueira , ou que onada inferior ao ser. Ao dizermos: Deus existe , afirmamos simplesmente a realidade do sersuficiente e necessrio, sob qualquer forma que seja; declaramos real aquele princpio incognoscvel einefvel, sem o qual tudo quanto conhecemos e afirmamos, se no pode explicar.

    Como se v, no preciso que o nosso esprito atinja o ser de Deus, que se identifica com a suaessncia, para a proposio Deus existe ser verdadeira e demonstrada com todo o rigor. No pomos aDeus no nmero dos existentes, atribuindo-Lhe o ser como uma qualidade comum a Ele e s criaturas. Neste

    sentido Deus no ; e sefosse no poderamos declar-1O origem do ser; porque a causa do ser est acima epara alm do ser causado. Mas porque verificamos a necessidade dum termo ltimo em todos os casos emque aparecer uma srie de causas subordina-

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    das, damos o nome de Deus a este ltimo postulado. Por conseguinte ao dizermos: Deus , damos umcarcter sagrado a esta postulao sem propriamente qualificarmos o seu beneficirio. Deus no tal;porquese o fosse, seria limitado e j no corresponderia s nossas exigncias. A locuo Deus s comoexpresso da insuficincia do mundo c da correlativa necessidade dum suporte ltimo, que positiva;porm como valor de definio, no sentido prprio do termo, inteiramente negativa.

    Depois disto, intil insistir na ltima objeco, pois j est resolvida.Baseamo-nos em princpios tirados da experincia; logo, objectam os nossos adversrios, no

    podemos apoiar-nos neles para sair fora da experincia. Est bem; mas que no samos; pois no sair daexperincia levar as experincias parciais at sua concluso; e se o crculo se no pode fechar, se as sriescausais no podem justificar a sua eficcia seno mediante um primeiro princpio, ao mesmo tempo imanentee transcendente, somos forados a afirm-lo. imanente pela sua aco e presena vivificante; e sob esteaspecto somente, que podemos apreende-lo como necessidade da prpria experincia. Como transcendente inacessvel e incognoscvel; acima portanto de qualquer classificao ideolgica e de qualquer categoria dopensamento; se lhe atribumos relaes, so apenas acomodaes ao nosso pensamento e nunca verdadeirasafirmaes. Porque, de facto, de Deus para a criatura no h relao nenhuma; o que h relaes da criaturapara Deus, relaes que ns, por uma necessidade instintiva de correlao, convertemos em relaesrecprocas. Mas ao mesmo tempo que a mente e

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    as palavras estabelecem esta reciprocidade, nega-a o juzo. Tudo o que criatura, vem de Deus, por Deussubsiste e para Ele tende, mas sem provocar em Deus qualquer mudana ou qualificao real, sem originar amenor dependncia ou relao efectiva.

    Quanto incluso de Deus numa ordem lgica da qual tambm Ele dependesse, isso no passa dumailuso. A Deus nunca O encerramos em nada; o grande Segregado. Da sua verdade inacessvel quedimana como imagem plida, toda a ordem lgica; logo esta no pode incluir essa verdade inacessvel. ADeus no se impem leis; a esse Deus que no est obrigado a nada, nem sequer a existir, se isso se tomacomo obrigao estranha ao seu prprio ser. Deus existe, e dEle derivam todas as obrigaes lgicas e reais.Mas a lei para a qual ns apelamos a fim de inferir como necessria, isto , como certa, a existncia deDeus, uma lei das coisas; a lei de razo Suficiente aplicada aos fatos, lei que sem Deus fica suspensa noar, pois subitamente interrompida na sua aplicao mais necessria, precisamente no fecho do crculo dascoisas, no ponto em que as sries causais tm a origem e o termo.

    certo que estamos a exigir uma cabea de ponte no meio da bruma; mas no podemos persuadir-nos de que a ponte do Universo lanada sobre o infinito v cair em falso.A quem disser como Pascal: Se h Deus, infinitamente incompreensvel; no podemos portanto

    conhecer o que , nem se existe, vamos responder agora e talvez com o prprio pensamento de Pascal. Defacto no podemos conhecer o que Deus em si mesmo, mas s o que em

    88relao a ns; ou, mais exactamente, o que ns somos em relao a Ele.

    Muito menos nos possvel conhecer que Ele , se porser interpretamos o ser da sua essncia, aactualidade efectiva daquilo que Ele . Neste sentido, porm afirmamos at que Ele no , ou se se prefere,que nEle o ser a prpria natureza, como a natureza o prprio ser: enfim, palavras impotentes que no seusentido exacto nada pretendem definir nem qualificar acerca da natureza de Deus. Continua todavia a serexacta a afirmao Deus existe como postulado do real, no sentido j explicado, e que adiante se

    esclarecer um pouco mais.Quer isto dizer que a proposio de Pascal, se pode voltar contra quem dela usar abusivamente.Podemos perfeitamente aplic-la ao mundo, dizendo: se existe o mundo, infinitamente incompreensvelsem Deus; ora o mundo existe... E com todo o direito podemos perguntar com Jacques Rivire: Ser lcitoafirmar que se no compreende aquilo sem o qual tudo o mais se torna incompreensvel?4. certo que Ono compreendemos em si mesmo; mas compreende-mo-1O como postulado imprescindvel, qualificadocomo imprescindvel; e completamos esta compreenso declarando que noutro sentido, de facto, nopodemos compreend-1O. Quando um problema tem por caracterstica, a insolubilidade, observa Novalis,resolvemo-lo provando que de facto insolvel5. o que, por outras palavras, afirma Santo Toms arespeito de Deus: O supremo

    89conhecimento que dEle podemos ter, saber que est acima do nosso pensamento6.

    4 Jacques Rivire.A la trace de Dieu,p. 44.5 Novalis.Fragments.6 Q. IIDe Veritate. a. 1. r. 2.

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    Quem quiser rellectir um pouco nas objeces apresentadas e nas suas respostas, h de reparar que asprimeiras nascem todas da falsa concepo das relaes entre Deus e o mundo, entre Deus e o pensamento;concepo que os adversrios nos atribuem a ns e com que pretendem levantar-nos obstculos. As respostasportanto consistem apenas em restabelecer a concepo verdadeira. Temos de confessar que muitas vezessomos ns que damos aso a estas falsas interpretaes, com o uso de linguagem e idias antropomrficas,no concedendo ao agnosticismo a parte a que tem direito. Santo Toms porm concede-lha e com umaaudcia to calma como libertadora. Mais adiante o veremos.

    -Ihe familiar esta mxima que dizia Pascal a propsito da Sagrada Escritura: Depois de cadaverdade, preciso lembrarmo-nos da verdade contrria. E assim, esforando-se por revelar Deus, no seesquece que Deus incognoscvel; que as nossas demonstraes O no atingem na sua essncia, e queportanto ter o adversrio ocasio aparente para as negar. S o far porm faltando mxima de Pascal,desprezando gravemente uma parte da realidade.

    B. SER NECESSRIO FAZER A DEMONSTRAO DEDEUS? A PROVA DE SANTO ANSELMO.

    recusa de concluir ope-se a recusa de en-90

    carar sequer a questo, mas por razes inteiramente opostas. Os primeiros diziam que era impossveldemonstrar a Deus, os segundos dizem que a existncia de Deus evidente, e portanto no precisodemonstr-la.

    certo que correro logo procura de argumentos para a todos persuadir essa pretendida evidncia,instituindo uma argumentao subtil. Santo Anselmo enche com ela as pginas do seuProslogion e doLivro

    Apogtico contra Gaunilo. Mas no fim de contas continuaro a defender essa pretendida evidncia numesforo que ter por nico objectivo, como na dialctica de Scrates, trazer o adversrio ao prpriosentimento e obrig-lo a concordar com as prprias afirmaes.

    A Santo Toms atraiu-o muito pouco esta posio; parece-lhe anti-cientfica, e atribui-a em parte aconfuses doutrinrias, e em parte a hbitos do esprito que em ns se apresentam com fora de evidncias.Acostumados desde a infncia a invocar a Deus, como homens piedosos, no se atrevem a pr em discurssouma noo que parece confundir-se com a prpria inteligncia. E por isso afirmam que evidente, quandodeveriam dizer creio e acrescentar e provo. Isto porm no razo para os no atendermos, poisincidentalmente dizem verdades preciosas, e alm disso, convm mostrar-lhes onde est precisamente o seuerro.

    Aos que dizem que Deus tem forosamente de ser evidente para ns, porque vive em ns e nos mais ntimo que ns mesmos, poderamos responder que se d uma petio de princpio; pois s sabemosque Deus vive em ns, depois de estarmos certos da sua existncia. Admitamos rio entanto que chegamos aesta certeza por outro

    91caminho, por exemplo, pela f; pois nem mesmo assim, exacto afirmar que Deus nos deve ser evidente,pelo facto de estar em ns; porque nem tudo o que em ns est, nos evidente. preciso que esteja comoobjeto do esprito, presente ao esprito; ora isto no se de d com Deus, nem sequer com a nossa alma, apesar

    de nos ser mais que ntima, pois parte de ns mesmos. S por um rodeio em que colaboram os sentidos, aabstraco intelectual e a reflexo, que a alma se torna objeto de inteligncia. E para Deus requerem-se osmesmos meios e alm disso, mais o princpio de causalidade. certssimo que podemos subir at Deustomando como ponto de partida os seus efeitos em ns; isto porm uma demonstrao e no evidncia.

    Como que nos no havia de ser evidente, insistem outros, Aquele por quem conhecemos tudo omais? Por ventura no Deus a luz que ilumina todo o homem que vem a este mundo, a origem de todaa inteligibilidade como de todo o ser?

    J antes mostramos a fecundidade deste ltimo pensamento. Mas a evidncia de Deus coisa muitodiversa. Deus supondo que Ele existe, o que os d