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AS GREVES DO MAGISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL: MEMÓRIAS DE PROFESSORAS DO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO GENERAL FLORES DA CUNHA (1979-1990). Recorte temporal: Memórias da greve de 1987 o acampamento na Praça da Matriz. MARIA BEATRIZ VIEIRA BRANCO OZORIO* Esta pesquisa está inscrita no campo da História da Educação, que, além de propor uma análise e reflexão sobre o processo educativo e escolar, pelo qual a humanidade elabora a si mesma, também possibilita uma visão mais alargada do fenômeno educativo, procurando fornecer aos educadores um conhecimento do passado coletivo da profissão, auxiliando na formação de uma cultura profissional. Proponho aqui algumas reflexões em que as pessoas percebam-se como sujeitos de um passado/presente escolar, evitando que fiquem no esquecimento. Como afirma Nóvoa (1997, p.67) a História da Educação traz consigo o “estatuto da marginalidade” no sentido de que é preciso ouvir os agentes educativos da transformação, ouvir os atores, aqueles que foram sujeitos. O lócus desta pesquisa é o I E Gen. Flores da Cunha, Porto Alegre, RS. Sua escolha está relacionada a alguns fatos: primeiramente meu envolvimento profissional com a escola por 26 anos, o que me permitiu assistir, como professora, o processo desencadeado dentro da escola, dos longos períodos de paralisações e das sucessivas greves. Às vezes não tão longas, mas quase um permanente estado de greve. Em segundo lugar, perceber que com o passar do tempo muitas memórias iam se perdendo, com as aposentadorias, os afastamentos, os ritmos da vida, enfim. Como diz Ginzbug (O queijo e os vermes, p.9): “De vez em quando as fontes, tão diretas, o trazem muito perto de nós: é um homem como nós, é um de nós”. Como as professoras e seu cotidiano na escola pública, no fazer diário pela educação e profissão. Assim o IE esteve muito perto de mim e pela sua trajetória na educação da sociedade gaúcha, de

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AS GREVES DO MAGISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL: MEMÓRIAS DE

PROFESSORAS DO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO GENERAL FLORES DA CUNHA

(1979-1990).

Recorte temporal: Memórias da greve de 1987 – o acampamento na Praça da

Matriz.

MARIA BEATRIZ VIEIRA BRANCO OZORIO*

Esta pesquisa está inscrita no campo da História da Educação, que, além de propor uma

análise e reflexão sobre o processo educativo e escolar, pelo qual a humanidade elabora a si

mesma, também possibilita uma visão mais alargada do fenômeno educativo, procurando

fornecer aos educadores um conhecimento do passado coletivo da profissão, auxiliando na

formação de uma cultura profissional.

Proponho aqui algumas reflexões em que as pessoas percebam-se como sujeitos de um

passado/presente escolar, evitando que fiquem no esquecimento. Como afirma Nóvoa (1997,

p.67) a História da Educação traz consigo o “estatuto da marginalidade” no sentido de que é

preciso ouvir os agentes educativos da transformação, ouvir os atores, aqueles que foram

sujeitos.

O lócus desta pesquisa é o I E Gen. Flores da Cunha, Porto Alegre, RS. Sua escolha

está relacionada a alguns fatos: primeiramente meu envolvimento profissional com a escola

por 26 anos, o que me permitiu assistir, como professora, o processo desencadeado dentro da

escola, dos longos períodos de paralisações e das sucessivas greves. Às vezes não tão longas,

mas quase um permanente estado de greve. Em segundo lugar, perceber que com o passar do

tempo muitas memórias iam se perdendo, com as aposentadorias, os afastamentos, os ritmos

da vida, enfim. Como diz Ginzbug (O queijo e os vermes, p.9): “De vez em quando as fontes,

tão diretas, o trazem muito perto de nós: é um homem como nós, é um de nós”. Como as

professoras e seu cotidiano na escola pública, no fazer diário pela educação e profissão. Assim

o IE esteve muito perto de mim e pela sua trajetória na educação da sociedade gaúcha, de

muitas pessoas – alunos, funcionários e professoras que compartilharam essa

contemporaneidade.

*Mestre em História da Educação – UFRGS.

A história da educação no Rio Grande do Sul e de Porto Alegre se confunde com a

história do IE. A Escola Normal da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul foi

instituída a 5 de abril de 1869 pelo Regulamento do Curso de Estudos Normais, baixado pelo

Presidente da província Sr. Antônio da Costa Pinto e Silva (...). O Curso da Escola Normal era

inicialmente de dois anos (...) (IE, Revista, 1969, p. 17). O projeto da escola tramitou desde

1860 concretizando-se em 1869, originalmente a Escola situou-se no centro de Porto Alegre.

O Instituto de Educação foi a vitrina das escolas estaduais, onde políticos e atos políticos

dos governos estaduais interferiam diretamente. Louro, Guacira. (1987 p.13) afirma:

"Sendo uma escola oficial, ligada ao estado, localizada na capital, e tendo como seus

dirigentes pessoas de confiança do governo, nela é possível perceber expressivamente as

mudanças políticas do Rio Grande do Sul e do país. Para ela também se canalizam os esforços

e apoios no sentido de que se possa acompanhar novas ideias e processos pedagógicos que

surgem".

Nesse sentido havia um olhar mais próximo entre o Instituto de Educação e os governos

que sucediam no Estado. O que em alguns momentos se materializava no sentido de ser o

Instituto visto pela sociedade, por um lado uma escola de notória vanguarda educacional,

pedagógica – nesse sentido modelo - mas por outro uma escola conservadora no que se refere

aos movimentos políticos e sociais.

O recorte temporal da pesquisa foi feito em razão de ser o período - 1979/1990 - de intensa

mobilização do magistério estadual gaúcho, na sua luta histórica por melhores salários,

conquista e manutenção do plano de carreira e, por fim, de busca por uma educação de

qualidade, pautada por critérios pedagógicos e de participação dos professores na sua

construção. Como afirma Bulhões, Abreu (1992, p.15) "aprendendo que a valorização

profissional depende de sua luta, rompendo a ideia do Magistério como sacerdócio".

É no rastro dessas memórias que caminha essa pesquisa. Memórias de professoras do

Instituto de Educação que viveram as greves das décadas de 1979 e 1990. Que tiveram boa

parte de sua trajetória profissional numa Escola em que a professora tinha um status de -

Mestra-, autoridade e posição social de reconhecimento (décadas de 1950/60). Mas que, ao

longo dessas mesmas décadas e ainda a década de 1970, vira gradativamente a realidade do

magistério e da educação mudar. A partir de 1979 ocorre a primeira greve do magistério do

RS. Essa nova geração de professoras, reivindica, atua e participa como categoria

profissional, no contexto de um país que viveu a ditadura civil militar iniciada na década de

1960 e que no final de 1970 começa a sentir a abertura política e os novos ventos da

democracia.

Evocar essas reminiscências, que ocorrem desde a “internalidade”1 da escola, até as

grandes manifestações públicas do magistério estadual como caminhadas, assembleias,

canções e palavras de ordem. São as reminiscências dessas professoras, pessoas comuns, que

guardadas na memória, emergem nas evidências orais.

A pesquisa aqui proposta com professoras do IE toma a memória como documento e a

História Oral como metodologia. Buscando evitar assim o esquecimento, a invisibilidade

desses sujeitos, anônimos, infames “todas essas vidas destinadas a passar por baixo de

qualquer discurso e desaparecer sem nunca terem sido faladas só puderam deixar rastros...”

Foucault (2003 p.203-222).

A metodologia utilizada para essa pesquisa é a História Oral que possibilita a construção de

documentos para registrar, através de narrativas induzidas e estimuladas, testemunhos,

versões e interpretações sobre a História. Essas fontes são entendidas, em suas várias

dimensões, factuais, temporais, espaciais, conflituosas, consensuais. A História Oral se nutre

da memória, entendendo que a memória é uma construção sobre o passado, sempre atualizada

e renovada no tempo presente e referenciada na realidade material.

O momento histórico escolhido está vinculado às mudanças políticas e sociais do país no

final da ditadura civil militar (1979/85) e aos apelos populares à construção da cidadania.

Tendo uma de suas expressões, a necessária sindicalização de todos os trabalhadores; tempo

em que as greves no ABC paulista ecoavam em todo o Brasil. Era o momento da

reorganização popular e embora essas professoras, que tiveram sua formação numa Escola

Normal ou secundária – Clássico ou Científico – nas décadas de 1960/1970 e viveram em

tempos de ausência dos direitos civis (1964/1985), elas agora se inseriam numa luta pela

profissionalização do professor na categoria de trabalhador: as trabalhadoras em educação.

1 “internalidade” das escolas – para esse conceito ver Stephanou, Bastos. História, Memória e História da

Educação. Ed. Vozes, 2005. No sentido de cotidiano da escola.

Os ventos da democracia também foram sentidos no IE e há todo um histórico de

participação de seus professores, como lideranças do magistério nos quadros do CPERS

(Centro de Professores do Rio Grande do Sul) e nas lideranças de greves, passeatas e atos

públicos nos movimentos dos professores nas décadas de 1979/1990. Desde a primeira greve

o Instituto de Educação atendeu aos apelos de paralisação e adesão ao movimento do CPERS.

O IE, assim como outras escolas de grande porte, teve papel relevante, desempenhado por

seus professores e alunos, na condução das greves do magistério estadual. Muitas reuniões

dos grevistas ocorreram nos auditórios do Instituto de Educação, não apenas por ser ponto

central favorável para deslocamentos das professoras, como pela sua história diante da

comunidade porto alegrense, uma escola centenária de visibilidade nacional. O IE teve muitas

razões para ser uma das âncoras das greves entre elas: ser uma Escola de referência na

formação de professoras no Brasil, por ter abrigado, ao longo de seus mais de 100 anos de

existência, o que se chamou de elite da educação - de seus quadros saíram secretárias de

educação, educadoras eméritas, alunos de visibilidade nacional2.

A sociedade gaúcha, ainda não esqueceu esse movimento do magistério que marcou as

gerações de alunos e suas famílias nas décadas de 1979/1990. Certamente um movimento não

isolado da sociedade, mas contextualizado como parte da reconstrução nacional da cidadania,

após os anos de perda dos direitos civis entre 1964/1985.

A geração de 1979/1990 será de uma professora sindicalizada! Duque (1995) destaca:

"A greve de 1979 foi um marco histórico na trajetória da categoria. Em primeiro lugar

porque deu inicio ao desmonte da imagem do magistério como sacerdócio, onde o professor

era (ou deveria ser) imune às péssimas condições salariais e as dificuldades de trabalho. Em

segundo lugar, marca a cristalização do processo, já iniciado em meados de 1970, de

sindicalização do CPERS, alguns indícios dessa sindicalização seriam, por exemplo, a

utilização de um comando de greve e a realização constante de assembleias deliberativas".

Escutar essas narrativas das professoras que engrossaram as fileiras dos movimentos

grevistas traz à existência as pessoas comuns que como nos afirma Foucault (2003),

"existências destinadas a passar sem deixar rastros"; "as falas breves e estridentes que vão e

2 Refere-se aos alunos e professores do Instituto de Educação que se destacaram em cargos públicos ou

receberam títulos de professores eméritos.

vêm entre o poder e as existências as mais essenciais, sem dúvida, são para estas o único

monumento que jamais lhes foi concedido; é o que lhes dá, para atravessar o tempo, o pouco

de ruído, o breve clarão que traz até nós".

Essas professoras anônimas, que para além da sala de aula participaram dos

movimentos reivindicatórios como coadjuvantes - nas assembleias de núcleo, acampando nas

praças, fazendo e vendendo alimentos para os fundos de greve, confeccionando cartazes,

assinando pontos e listas paralelas, usando, muitas vezes, seus próprios recursos em

atividades coletivas, viajando do interior para a capital para participar de assembleias etc. A

memória dessas professoras constitui-se em documento proporcionando outras perspectivas

de conhecimento do passado. Desse modo, a História Oral possibilita certo afastamento da

documentação de caráter oficial.

Afinal, elas saíram da sala de aula e foram para as praças e estádios de futebol, ou

ginásios, para participar de assembleias da categoria, respondendo ao chamado do sindicato,

entendendo que aquele era um momento importante para a educação. Ouvir suas experiências,

conhecer sua visão do movimento grevista, seu entendimento de perdas e ganhos, para além

das manchetes dos jornais, das estatísticas econômicas, das avaliações sindicais. Evocar essas

memórias de professoras, que de dentro de uma Escola Normal secular, como o Instituto de

Educação Gen. Flores da Cunha de Porto Alegre, é também ouvir esses agentes da

transformação social e política de seu tempo. Período, também, marcado por grandes greves

nacionais de diferentes categorias de trabalhadores e mobilizações de professoras que

passariam a denominar-se – trabalhadoras em educação.

Outro olhar nos é dado sobre greves, a partir das memórias daquelas que as viveram na

sua intensidade, mobilizando-se para o movimento. Um olhar que até agora só ficara evidente

a partir das manchetes da grande imprensa escrita, dos sindicatos representantes da categoria

dos professores ou mesmo dos governos envolvidos.

Ao propor um trabalho a partir das memórias dessas professoras, tratamos de

subjetividades, o lembrar e o esquecer a um só tempo. E além das memórias individuais,

emerge a memória coletiva de professoras, uma vez que a memória é difundida e alimentada

na convivência com outros (Bosi 2003). A memória, como afirma Halbwachs (2004), é o

terreno movediço que distingue lembranças “reais” de lembranças “fictícias”, que acabam por

se confundir e completar. As instituições educativas e seus sujeitos possuem memórias e essa

pesquisa pretende evocar essas memórias de professoras do Instituto de Educação Gen. Flores

da Cunha sobre as greves do magistério público estadual no período entre 1979/1990.

Nesse sentido, essa pesquisa que tem a História Cultural como sua vertente teórica, nos

permite um "novo olhar" sobre a História, como o de uma narrativa construída, tecida como

uma trama pelo historiador. A História Cultural possibilita acesso ao passado através da

sensibilidade do individuo, tratando das subjetividades da vida.

A pesquisa em História da Educação, na perspectiva da História Cultural, tem a riqueza da

interdisciplinaridade, da não hierarquização das fontes, problematizando temas/objetos da

educação, a partir das memórias e não apenas do documento escrito.

A História da Educação, esse campo da História Cultural, não é uma ciência à parte. Ela

trata de questões relativas à produção do conhecimento e a compreensão dos fenômenos

educativos. Não apenas das instituições escolares, das políticas educacionais, mas dos atores

educativos, que muitas vezes ficam no esquecimento. Como, por exemplo, conhecer os

sentimentos dessas professoras de dentro das escolas em greve? Como reagiam as manchetes

dos jornais, muitas vezes nada favoráveis ao movimento grevistas, aos debates dentro da

escola, a sala dos professores como um lugar de refúgio. Como saber se não pela evocação

das memórias dessas professoras?

Ao entrevistar professoras que vivenciaram, nas décadas de 1979/1990, as greves do

magistério no RS, encontram-se nas suas narrativas, na dinâmica da vida pessoal atravessadas

pela memória coletiva, pelo processo coletivo. Nossas lembranças, portanto, permanecem

coletivas. Nós sempre temos conosco e em nós uma quantidade de pessoas, e essas pessoas

tiveram lembranças em comum comigo. De acordo com Halbwachs:

"É necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados ou noções comuns que se

encontram tanto no nosso espírito como no dos outros... nossas lembranças permanecem

coletivas, elas nos são lembranças pelos outros"... (2004, p39)

As nossas lembranças são coletivas, outras pessoas tiveram lembranças em comum

comigo e construíram comigo lembranças, por essa razão elas me ajudam a lembrar, me

possibilitam um melhor recordar e momentaneamente adoto seu ponto de vista, tenho em mim

muitas ideias e maneiras de pensar que não construí sozinha, mas me encontro em contato

com o grupo do qual participei.

Entre os critérios considerados como relevantes para definição das potenciais

entrevistadas, está sua ativa participação (mobilizada ou não) no processo histórico em

questão: o movimento grevista do magistério no RS, como testemunhas dos acontecimentos.

A evocação do passado é o substrato da memória, salvando-o do esquecimento e da perda.

Como metodologia de pesquisa, a História Oral, busca captar o passado se constituindo

num espaço vivificador da relação entre história, memória e identidades. São vozes do

passado, através da memória, que vivificam, transformam e se aproximam através de

fragmentos de lembranças. Nesse processo de recordar, constituem-se a dinâmica das

trajetórias individuais e coletivas. Não perdendo de vista a afirmação de Alistair Thomson

(2001, p. 86) "que compomos nossas memórias para dar sentido à nossa vida passada e

presente".

Neste estudo, a memória é a principal fonte dos depoimentos, possuindo infinitas

variáveis - temporais, topográficas, individuais, coletivas. Revelam e produzem lembranças,

às vezes, protegendo/ocultando, dores/traumas de forma inconsciente, mas sempre carregadas

de emoções, como um processo de recordação, de reconstituição dinâmica com ênfases,

lapsos, esquecimentos e omissões, daquilo que se formou a partir do olhar de cada um dos

entrevistados. A memória não é um simples ato de recordar, ela está profundamente ligada à

existência, a integração da experiência de vida ao presente. Esse movimento da memória nos

faz ressignificar e atualizar o passado, nele encontramos nossas raízes e um sentimento de

identidade.

Há uma interligação entre a História, tempo e memória. Mas o tempo da memória

ultrapassa o tempo da vida individual, pois ela se nutre de lembranças de família, músicas,

histórias registradas e escutadas. Dessa maneira, é possível entender a História Oral como um

procedimento integrado a uma metodologia que privilegia a realização de entrevistas com

pessoas que participaram de processos históricos ou testemunharam acontecimentos no

âmbito da vida privada ou coletiva.

Assim, memória, identidades, História estão sempre presentes na produção de fontes orais.

Onde os sujeitos, de forma individual ou coletiva tecem a História, construindo identidades,

dando significado e ressignificando a vida, as experiências, numa construção permanente de

laços, tessituras, de sentimentos de trajetórias vidas, em que são compostas as memórias.

Relembrar, revisitar as memórias atualizando o tempo passado, tornando-o vivo e cheio de

significados no presente.

Escutar essas narrativas, das professoras que engrossaram as fileiras dos movimentos

grevistas, anônimas, que para além da sala de aula participaram dos movimentos

reivindicatórios como coadjuvantes - nas assembleias de núcleo, acampando nas praças,

fazendo e vendendo alimentos para os fundos de greve, confeccionando cartazes, assinando

pontos e listas paralelas, usando, muitas vezes, seus próprios recursos em atividades coletivas,

viajando do interior para a capital para participar de assembleias etc..

Evocar essas memórias de professoras de dentro de uma Escola Normal secular, como o

Instituto de Educação Gen. Flores da Cunha de Porto Alegre, é ouvir esses agentes da

transformação social e política de seu tempo.

Memórias de professoras – greve de 1987 - Acampamento na Praça

Os depoimentos a seguir foram tomados a partir das memórias orais de professoras do

Instituto de Educação General Flores da Cunha de Porto Alegre. Todas as professoras

entrevistas viveram intensamente o período pesquisado de 1979/1990 quando as greves do

magistério público estadual do Rio Grande do Sul deixaram o Estado num constante alerta

pela educação. São mulheres com mais de sessenta anos e maioria delas ingressou no Instituto

de Educação antes mesmo da emblemática greve de 1979 a maioria vivenciou no IE a greve

de 1987.

As narrativas de memórias dessas professoras são o objeto dessa pesquisa, suas

experiências nos movimentos grevistas vividas nessa escola. A investigação está

especialmente interessada nos sentidos e significados atribuídos pelas narradoras as suas

diferentes experiências nas greves do magistério público estadual, nos modos como hoje

compõem suas reminiscências, nas lembranças e nos esquecimentos que ativamente

construíram quando provocadas a narrá-las nos eventos das entrevistas.

A escolha das entrevistas está relacionada ao episódio de “dormir na Praça”. Muitas mais

entrevistas foram realizadas sobre as greves do magistério gaúcho no período entre 1979-

1990, mas as reproduzidas a seguir foram especialmente as das professoras que vivenciaram o

“acampamento na Praça da Matriz”, ou porque dormiram na Praça ou se envolveram de

alguma forma com o acampamento da Praça3, trazendo suas marcas na memória.

Os pseudônimos utilizados foram nomes de flores para guardar a privacidade das

entrevistadas.

As entrevistas

E o passado uma invenção do presente. Por isso é tão bonito sempre,

ainda quando foi uma lástima... A memória tem uma bela caixa de lápis de cor. (Quintana,

2006, p. 159)

De acordo com as orientações de Nadir Zago (2003) a proposta adotada foi de “entrevista

compreensiva”, ou seja, sem uma estrutura rígida podendo suscitar diferentes caminhos.

Apresentei às entrevistadas uma espécie de roteiro da entrevista, com objetivo de que se

situassem e tranquilizassem quanto aos assuntos e temas do encontro.

As professoras entrevistadas foram convidadas a “voltar atrás no tempo”, a memória

começa então uma operação para reconstruir vivencias e marcas do passado. Algumas

demonstraram ansiedades, ausências, silêncios e risos. Outras até um certo descaso, como que

não se importando muito e dando aquele período de greves como “um caso passado”.

Foram usados como evocadores de memórias fotos das greves e principalmente da greve de

1987 na Praça da Matriz que durou 96 dias, foi também chamada “a greve grandona”! As

professoras também tinham suas lembranças materializadas! Procuraram e trouxeram fotos

tiradas por elas das barracas, crachás confeccionados com o dizer: Professor do IE em greve!

3 Professores montaram de forma surpreendente barracas na Praça da Matriz, em frente ao Palácio Piratini, a

greve teve muitas estratégias surpresa e essa foi uma delas. Essa greve durou 96 dias sendo a maior de todas as

greves do Cpers.

As entrevistadas trouxeram a situação da greve como de instabilidade e insegurança com

relação à estabilidade no emprego, assinatura de ponto ou “pontos paralelos” como chamavam

na época. Também apreensão em relação a um possível corte de salários o que acarretaria,

para algumas, dificuldades financeiras na família.

Uma das entrevistadas Margarida, recordou então de uma antiga cooperativa dos

funcionários públicos: “Então disse para meu marido: quem sabe a gente vai lá pra ver e se

der a gente compra alguma coisa, mantimentos, pois era descontado em folha para pagar

quando os professores recebessem, estava bem pobre em relação ao que eu conhecia de

quando criança, mas na época da greve foi útil” (entrevista 2015).

Ao recordar a greve de 1987, Flora logo lembrou que embora o IE fosse conservador e

tradicional o comando de greve formado na escola nunca foi somente de pessoas

conservadoras politicamente, sempre havia na composição pessoas militantes e as mais

tranquilas, tinha pessoas mais radicais politicamente o que gerava bastante conflito, sempre

tinha correntes diferentes, militantes do PT, pessoas bem ativas e o comando acabou sendo

sempre mais ou menos os mesmos, o comando não variava muito. Participavam do comando

a presidente do grêmio do Instituto na época da sua gestão, em geral pessoas avançadas, mais

radicais, mas que se posicionavam e alguns deles até em algum momento dividiam com o

comando informações privilegiadas, como por exemplo, a do acampamento na Praça da

Matriz. Nessa greve grandona (1987) aconteceu um acampamento e ficamos sabendo antes!

Ela (uma pessoa ligada ao comando) numa reunião de núcleo no Cpers, disse que ia acontecer

um acampamento, mas avisou: Não falem nada porque é bem secreto ainda. Estava tudo

planejado e foi assim de uma hora para outra levantaram as barracas! Fui do comando no

mínimo em três greves, não me classifico como ativista, mas as pessoas tem uma imagem

minha de muito compenetrada, e acho que é por isso que eu era escolhida, sou muito crente,

muito bem mandada (risos).

Também acampei na Praça, lembra Flora. Tínhamos que ficar sempre alguém na barraca,

pois a Brigada ameaçava derrubar, então tinha que ter gente sempre. Em uma das noites que

passei lá com outros colegas me lembro de que chovia que era um horror! A gente tinha que

levantar de dez em dez minutos para tirar água da barraca era julho e muito frio! Eu fiquei

mais de uma noite. Mesmo assim não dá pra tirar o lado da festa, as pessoas se congregavam,

faziam lanche, descontraíamos um pouco daquela tensão. Os bares da volta agradeciam o

faturamento, mas também éramos o pavor da vizinhança (risos). (entrevista 2015)

Dália fazia doce e vendia na Praça da Matriz, assim ajudava a arrecadar dinheiro para o

fundo de greve, mas não fui dormir na praça – disse ela - porque tinha as crianças pequenas.

Cada um colaborava como podia. (entrevista 2015)

Observa-se que questões políticas e partidárias estão presentes na fala das professoras.

Entre as razões para que eclodisse a greve em 1987 está o descumprimento, por parte do

governador Pedro Simon, de um acordo firmado com os professores no governo anterior

(1982-1986, PDS), ainda no final do período da ditadura (1964-1985), que determinava o

ganho de 2,5 salários mínimos para toda categoria dos professores estaduais. Houve uma

crescente crise no relacionamento com o governo eleito (PMDB, 1986-1990), na prática

apesar do discurso democrático ele se mostrou autoritário. Com receio de perder mais

algumas conquistas a única saída foi à greve. Essa greve está contextualizada no movimento

reivindicatório iniciado em 1979 pelo magistério gaúcho.

Por essa razão, recorda a professora Lilian, no governo do Simon (1986 – 1990) havia

até um pacto entre as professoras: Nunca mais comprar na loja de propriedade da família do

então governador... (risos). Participei como grupo, não como liderança. Confeccionava

material; ia sempre às passeatas e em todas as atividades grevistas. Dormi na praça!

Usávamos o banheiro da Assembleia Legislativa que ficava em frente á Praça! Passávamos

atravessando a rua! Conta Lilian, com um certo orgulho e sorriso nos lábios! Lembra que

precisava fazer inscrição para dormir na Praça. Até pensei em levar os meus filhos, mas na

noite em que fui escalada para dormir chovia muito! Passamos a noite tirando água da

barraca! (entrevista 2015)

Hortência considerava-se uma professora engajada, ativista mesmo! Dormiu quase todas

as noites na Praça! Lembro-me de como era difícil achar alguém para dormir na barraca,

lembro que eu sempre dormia lá com outras colegas que também se dispunham. Professora

de artes, muitas vezes usou grafites, ou como ela diz - ainda não se chamava “grafitar”. Eu fiz

um desenho da sineta e fomos grafitar pela cidade, éramos seis pessoas no carro de uma

colega. Lembra-se de como soube do sigiloso acampamento na Praça da Matriz. “Fui avisada

antes numa reunião do Comando de Greve que haveria um ato surpresa”. Fomos para a

caminhada e paramos de frente para a Praça (eu e uma colega) a outra colega ficou de costas e

não sabia de nada, conta ela sorrindo. Então tinha uma palavra chave que o presidente do

Cpers, ia dizer... (não lembro a senha! sorrindo novamente) quando ele disse a palavra...

Imediatamente as barracas se instalaram! Aquilo foi bárbaro! Não vou esquecer! (entrevista

2015)

Continua Hortência, cheia de lembranças dignas de serem comentadas! “E o Instituto sem

barraca”! Não tinham barraca! Aquilo foi uma vergonha para os professores do Instituto que

se sentiam tão politizados! Tão metidos! Tão não sei o quê? Ai uma colega conseguiu uma

barraca com o ex- marido e como fazer para montar? Porque a Brigada estava cuidando, mas

conseguimos! Mas ela ficou com a entrada para fora da Praça, contou sorrindo! Então o

Instituto começou a participar. (entrevista 2015)

Outra coisa importante lembra Hortência, foi que essa greve mexeu com a cabeça das

pessoas, com os porto-alegrenses. Aquela zona ali da Rua Duque de Caxias, do centro, os

moradores passaram a ir muito para Praça. Passavam por ali de manhã, de noite, se sentiam

seguros na Praça, interagiam com os professores e diziam: é tão bom vir na Praça agora está

cheia de gente! Artistas plásticos vinham à Porto Alegre e iam lá conhecer o acampamento, se

encantavam com a organização e como conseguíamos reivindicar daquela maneira. Aquilo foi

exemplo para o resto do Brasil, na época foi inusitado!

Hortência conta que uma turma substituía outra na barraca, as barracas nunca ficavam

sozinhas! A Brigada podia desmanchar! Aquele comando de greve tinha pessoas muito

inteligentes para fazer aquela organização. Lembra que à noite os colégios faziam jantas nas

barracas (o Instituto nunca teve). O café da manhã com cucas trazidas pelos professores da

região das colônias alemãs! Doces e pães de outro mundo! Hortência fala de momentos

difíceis na Praça: o cansaço começa a vencer as grevistas...

Era muito desconforto! Não sei bem quanto tempo durou esse acampamento, mas já

estava louca que acabasse. Para tomar banho eu tinha que vir em casa, dormia mal, comia

mal... Lembro que quando não conseguia dormir, a gente ficava caminhando... Aquele frio de

noite, a chuva, se caminhava e conversava sobre muitas coisas com muitas pessoas para alem

da greve, naquelas noites insones! Enfática e saudosa ela afirma: E tu vias que aquilo não ia

pra frente... (entrevista 2015)

Um olhar para o outro... Ao mesmo tempo tinham professores que acho que nunca tinham

vivido nada. Nunca tinham transado, então transavam lá; nunca tinham acampado antes e lá

foi na primeira vez; gente que nunca tinha tido a outra vida que a gente tem que ter além de

trabalhar, trabalhar... Hortência faz algumas considerações baseada em suas lembranças e tece

algumas teias: Aquele acampamento mudou muito a cabeça das pessoas, não só

politicamente, mas mudou a vida para muitas pessoas. Não era apenas uma greve, contra o

governo, reivindicações salariais, tinha uma outra coisa alem disso. Tanto é que depois

daquele momento muita gente saiu do magistério, se descobriu, foi fazer outra coisa; teve

muita mudança na vida de muitas pessoas! Eu poderia dizer que houve vidas antes da greve

e depois da greve. Eu naquela época ampliei meu conhecimento de professores de maneira

estúpida, exorbitante, eu conheci gente de todos os cantos do RS e quando acabou a greve um

grupo de professores ficou ainda comemorando por alguns meses o dia 10 que foi quando

acabou a greve. (entrevista 2015)

Considerações finais

Os sujeitos desse estudo tiveram momentos de fala, narrativa e a oportunidade de

revisitarem suas memórias. Memórias que como diz Halbwachs (2004) permanecem

coletivas, elas nos são lembranças pelos outros... É porque, em realidade, nunca estamos sós...

.

De acordo com as falas ouvidas, a greve de 1987 representou para as professoras

participantes um momento muito importante a ponto de interferir não apenas nas atividades

profissionais, mas também familiares e suscitar novos relacionamentos. Houve mobilização e

alguma forma de engajamento no “acampamento da Praça” por parte de todas as

entrevistadas, embora esse engajamento tenha sido diferente para cada uma delas. Como por

exemplo, auxiliar na venda de doces para o caixa de greve, dormir algumas/muitas noites na

Praça, elaborar materiais e outras, ainda, consideraram que ir às reuniões e participar do

acampamento transformou vidas!

Nesse sentido, aproximou pessoas e proporcionou um olhar sobre o outro, amadurecimento

e novas experiências de vida. Houve momentos de tensão, enfrentamento com o governo e

incertezas quanto ao pagamento de salários como em toda greve, mas também de

descontração e novas vivências. Era um acampamento, e como tal com todo desconforto e

improviso! Mas as professoras enfrentaram o desafio com sentimentos de solidariedade e de

generosidade que reforçavam o grupo. Abriram mão de momentos com a família, ou lazer por

acreditar na sua bandeira de luta e na sua carreira. Por entender que não poderiam abrir mão,

da conquista de seu piso salarial, do plano de carreira, entre outras reivindicações, e de uma

qualidade na educação que passa necessariamente por condições dignas de trabalho.

Esse processo faz parte de uma transição em que o magistério está deixando de ser uma

atividade feminina de idealização profissional, para a professora que está se

profissionalizando, tornando-se sindicalizada e uma trabalhadora em educação. Processo esse

inserido num momento político social que o país vivenciou a partir de 1960.

Escutei nessa pesquisa, as memórias de uma escola em greve materializadas nas memórias

das professoras que se transportaram ao passado e se permitiram evocar as memórias das

greves, e em particular de uma greve, de 1987 que foi a maior mobilização do período

grevista durando 96 dias. Período de uma experiência educativa impar que permanece vivo

nas memórias dos sujeitos que nela estiveram envolvidos.

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