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AS GREVES DO MAGISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL: MEMÓRIAS DE
PROFESSORAS DO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO GENERAL FLORES DA CUNHA
(1979-1990).
Recorte temporal: Memórias da greve de 1987 – o acampamento na Praça da
Matriz.
MARIA BEATRIZ VIEIRA BRANCO OZORIO*
Esta pesquisa está inscrita no campo da História da Educação, que, além de propor uma
análise e reflexão sobre o processo educativo e escolar, pelo qual a humanidade elabora a si
mesma, também possibilita uma visão mais alargada do fenômeno educativo, procurando
fornecer aos educadores um conhecimento do passado coletivo da profissão, auxiliando na
formação de uma cultura profissional.
Proponho aqui algumas reflexões em que as pessoas percebam-se como sujeitos de um
passado/presente escolar, evitando que fiquem no esquecimento. Como afirma Nóvoa (1997,
p.67) a História da Educação traz consigo o “estatuto da marginalidade” no sentido de que é
preciso ouvir os agentes educativos da transformação, ouvir os atores, aqueles que foram
sujeitos.
O lócus desta pesquisa é o I E Gen. Flores da Cunha, Porto Alegre, RS. Sua escolha
está relacionada a alguns fatos: primeiramente meu envolvimento profissional com a escola
por 26 anos, o que me permitiu assistir, como professora, o processo desencadeado dentro da
escola, dos longos períodos de paralisações e das sucessivas greves. Às vezes não tão longas,
mas quase um permanente estado de greve. Em segundo lugar, perceber que com o passar do
tempo muitas memórias iam se perdendo, com as aposentadorias, os afastamentos, os ritmos
da vida, enfim. Como diz Ginzbug (O queijo e os vermes, p.9): “De vez em quando as fontes,
tão diretas, o trazem muito perto de nós: é um homem como nós, é um de nós”. Como as
professoras e seu cotidiano na escola pública, no fazer diário pela educação e profissão. Assim
o IE esteve muito perto de mim e pela sua trajetória na educação da sociedade gaúcha, de
muitas pessoas – alunos, funcionários e professoras que compartilharam essa
contemporaneidade.
*Mestre em História da Educação – UFRGS.
A história da educação no Rio Grande do Sul e de Porto Alegre se confunde com a
história do IE. A Escola Normal da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul foi
instituída a 5 de abril de 1869 pelo Regulamento do Curso de Estudos Normais, baixado pelo
Presidente da província Sr. Antônio da Costa Pinto e Silva (...). O Curso da Escola Normal era
inicialmente de dois anos (...) (IE, Revista, 1969, p. 17). O projeto da escola tramitou desde
1860 concretizando-se em 1869, originalmente a Escola situou-se no centro de Porto Alegre.
O Instituto de Educação foi a vitrina das escolas estaduais, onde políticos e atos políticos
dos governos estaduais interferiam diretamente. Louro, Guacira. (1987 p.13) afirma:
"Sendo uma escola oficial, ligada ao estado, localizada na capital, e tendo como seus
dirigentes pessoas de confiança do governo, nela é possível perceber expressivamente as
mudanças políticas do Rio Grande do Sul e do país. Para ela também se canalizam os esforços
e apoios no sentido de que se possa acompanhar novas ideias e processos pedagógicos que
surgem".
Nesse sentido havia um olhar mais próximo entre o Instituto de Educação e os governos
que sucediam no Estado. O que em alguns momentos se materializava no sentido de ser o
Instituto visto pela sociedade, por um lado uma escola de notória vanguarda educacional,
pedagógica – nesse sentido modelo - mas por outro uma escola conservadora no que se refere
aos movimentos políticos e sociais.
O recorte temporal da pesquisa foi feito em razão de ser o período - 1979/1990 - de intensa
mobilização do magistério estadual gaúcho, na sua luta histórica por melhores salários,
conquista e manutenção do plano de carreira e, por fim, de busca por uma educação de
qualidade, pautada por critérios pedagógicos e de participação dos professores na sua
construção. Como afirma Bulhões, Abreu (1992, p.15) "aprendendo que a valorização
profissional depende de sua luta, rompendo a ideia do Magistério como sacerdócio".
É no rastro dessas memórias que caminha essa pesquisa. Memórias de professoras do
Instituto de Educação que viveram as greves das décadas de 1979 e 1990. Que tiveram boa
parte de sua trajetória profissional numa Escola em que a professora tinha um status de -
Mestra-, autoridade e posição social de reconhecimento (décadas de 1950/60). Mas que, ao
longo dessas mesmas décadas e ainda a década de 1970, vira gradativamente a realidade do
magistério e da educação mudar. A partir de 1979 ocorre a primeira greve do magistério do
RS. Essa nova geração de professoras, reivindica, atua e participa como categoria
profissional, no contexto de um país que viveu a ditadura civil militar iniciada na década de
1960 e que no final de 1970 começa a sentir a abertura política e os novos ventos da
democracia.
Evocar essas reminiscências, que ocorrem desde a “internalidade”1 da escola, até as
grandes manifestações públicas do magistério estadual como caminhadas, assembleias,
canções e palavras de ordem. São as reminiscências dessas professoras, pessoas comuns, que
guardadas na memória, emergem nas evidências orais.
A pesquisa aqui proposta com professoras do IE toma a memória como documento e a
História Oral como metodologia. Buscando evitar assim o esquecimento, a invisibilidade
desses sujeitos, anônimos, infames “todas essas vidas destinadas a passar por baixo de
qualquer discurso e desaparecer sem nunca terem sido faladas só puderam deixar rastros...”
Foucault (2003 p.203-222).
A metodologia utilizada para essa pesquisa é a História Oral que possibilita a construção de
documentos para registrar, através de narrativas induzidas e estimuladas, testemunhos,
versões e interpretações sobre a História. Essas fontes são entendidas, em suas várias
dimensões, factuais, temporais, espaciais, conflituosas, consensuais. A História Oral se nutre
da memória, entendendo que a memória é uma construção sobre o passado, sempre atualizada
e renovada no tempo presente e referenciada na realidade material.
O momento histórico escolhido está vinculado às mudanças políticas e sociais do país no
final da ditadura civil militar (1979/85) e aos apelos populares à construção da cidadania.
Tendo uma de suas expressões, a necessária sindicalização de todos os trabalhadores; tempo
em que as greves no ABC paulista ecoavam em todo o Brasil. Era o momento da
reorganização popular e embora essas professoras, que tiveram sua formação numa Escola
Normal ou secundária – Clássico ou Científico – nas décadas de 1960/1970 e viveram em
tempos de ausência dos direitos civis (1964/1985), elas agora se inseriam numa luta pela
profissionalização do professor na categoria de trabalhador: as trabalhadoras em educação.
1 “internalidade” das escolas – para esse conceito ver Stephanou, Bastos. História, Memória e História da
Educação. Ed. Vozes, 2005. No sentido de cotidiano da escola.
Os ventos da democracia também foram sentidos no IE e há todo um histórico de
participação de seus professores, como lideranças do magistério nos quadros do CPERS
(Centro de Professores do Rio Grande do Sul) e nas lideranças de greves, passeatas e atos
públicos nos movimentos dos professores nas décadas de 1979/1990. Desde a primeira greve
o Instituto de Educação atendeu aos apelos de paralisação e adesão ao movimento do CPERS.
O IE, assim como outras escolas de grande porte, teve papel relevante, desempenhado por
seus professores e alunos, na condução das greves do magistério estadual. Muitas reuniões
dos grevistas ocorreram nos auditórios do Instituto de Educação, não apenas por ser ponto
central favorável para deslocamentos das professoras, como pela sua história diante da
comunidade porto alegrense, uma escola centenária de visibilidade nacional. O IE teve muitas
razões para ser uma das âncoras das greves entre elas: ser uma Escola de referência na
formação de professoras no Brasil, por ter abrigado, ao longo de seus mais de 100 anos de
existência, o que se chamou de elite da educação - de seus quadros saíram secretárias de
educação, educadoras eméritas, alunos de visibilidade nacional2.
A sociedade gaúcha, ainda não esqueceu esse movimento do magistério que marcou as
gerações de alunos e suas famílias nas décadas de 1979/1990. Certamente um movimento não
isolado da sociedade, mas contextualizado como parte da reconstrução nacional da cidadania,
após os anos de perda dos direitos civis entre 1964/1985.
A geração de 1979/1990 será de uma professora sindicalizada! Duque (1995) destaca:
"A greve de 1979 foi um marco histórico na trajetória da categoria. Em primeiro lugar
porque deu inicio ao desmonte da imagem do magistério como sacerdócio, onde o professor
era (ou deveria ser) imune às péssimas condições salariais e as dificuldades de trabalho. Em
segundo lugar, marca a cristalização do processo, já iniciado em meados de 1970, de
sindicalização do CPERS, alguns indícios dessa sindicalização seriam, por exemplo, a
utilização de um comando de greve e a realização constante de assembleias deliberativas".
Escutar essas narrativas das professoras que engrossaram as fileiras dos movimentos
grevistas traz à existência as pessoas comuns que como nos afirma Foucault (2003),
"existências destinadas a passar sem deixar rastros"; "as falas breves e estridentes que vão e
2 Refere-se aos alunos e professores do Instituto de Educação que se destacaram em cargos públicos ou
receberam títulos de professores eméritos.
vêm entre o poder e as existências as mais essenciais, sem dúvida, são para estas o único
monumento que jamais lhes foi concedido; é o que lhes dá, para atravessar o tempo, o pouco
de ruído, o breve clarão que traz até nós".
Essas professoras anônimas, que para além da sala de aula participaram dos
movimentos reivindicatórios como coadjuvantes - nas assembleias de núcleo, acampando nas
praças, fazendo e vendendo alimentos para os fundos de greve, confeccionando cartazes,
assinando pontos e listas paralelas, usando, muitas vezes, seus próprios recursos em
atividades coletivas, viajando do interior para a capital para participar de assembleias etc. A
memória dessas professoras constitui-se em documento proporcionando outras perspectivas
de conhecimento do passado. Desse modo, a História Oral possibilita certo afastamento da
documentação de caráter oficial.
Afinal, elas saíram da sala de aula e foram para as praças e estádios de futebol, ou
ginásios, para participar de assembleias da categoria, respondendo ao chamado do sindicato,
entendendo que aquele era um momento importante para a educação. Ouvir suas experiências,
conhecer sua visão do movimento grevista, seu entendimento de perdas e ganhos, para além
das manchetes dos jornais, das estatísticas econômicas, das avaliações sindicais. Evocar essas
memórias de professoras, que de dentro de uma Escola Normal secular, como o Instituto de
Educação Gen. Flores da Cunha de Porto Alegre, é também ouvir esses agentes da
transformação social e política de seu tempo. Período, também, marcado por grandes greves
nacionais de diferentes categorias de trabalhadores e mobilizações de professoras que
passariam a denominar-se – trabalhadoras em educação.
Outro olhar nos é dado sobre greves, a partir das memórias daquelas que as viveram na
sua intensidade, mobilizando-se para o movimento. Um olhar que até agora só ficara evidente
a partir das manchetes da grande imprensa escrita, dos sindicatos representantes da categoria
dos professores ou mesmo dos governos envolvidos.
Ao propor um trabalho a partir das memórias dessas professoras, tratamos de
subjetividades, o lembrar e o esquecer a um só tempo. E além das memórias individuais,
emerge a memória coletiva de professoras, uma vez que a memória é difundida e alimentada
na convivência com outros (Bosi 2003). A memória, como afirma Halbwachs (2004), é o
terreno movediço que distingue lembranças “reais” de lembranças “fictícias”, que acabam por
se confundir e completar. As instituições educativas e seus sujeitos possuem memórias e essa
pesquisa pretende evocar essas memórias de professoras do Instituto de Educação Gen. Flores
da Cunha sobre as greves do magistério público estadual no período entre 1979/1990.
Nesse sentido, essa pesquisa que tem a História Cultural como sua vertente teórica, nos
permite um "novo olhar" sobre a História, como o de uma narrativa construída, tecida como
uma trama pelo historiador. A História Cultural possibilita acesso ao passado através da
sensibilidade do individuo, tratando das subjetividades da vida.
A pesquisa em História da Educação, na perspectiva da História Cultural, tem a riqueza da
interdisciplinaridade, da não hierarquização das fontes, problematizando temas/objetos da
educação, a partir das memórias e não apenas do documento escrito.
A História da Educação, esse campo da História Cultural, não é uma ciência à parte. Ela
trata de questões relativas à produção do conhecimento e a compreensão dos fenômenos
educativos. Não apenas das instituições escolares, das políticas educacionais, mas dos atores
educativos, que muitas vezes ficam no esquecimento. Como, por exemplo, conhecer os
sentimentos dessas professoras de dentro das escolas em greve? Como reagiam as manchetes
dos jornais, muitas vezes nada favoráveis ao movimento grevistas, aos debates dentro da
escola, a sala dos professores como um lugar de refúgio. Como saber se não pela evocação
das memórias dessas professoras?
Ao entrevistar professoras que vivenciaram, nas décadas de 1979/1990, as greves do
magistério no RS, encontram-se nas suas narrativas, na dinâmica da vida pessoal atravessadas
pela memória coletiva, pelo processo coletivo. Nossas lembranças, portanto, permanecem
coletivas. Nós sempre temos conosco e em nós uma quantidade de pessoas, e essas pessoas
tiveram lembranças em comum comigo. De acordo com Halbwachs:
"É necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados ou noções comuns que se
encontram tanto no nosso espírito como no dos outros... nossas lembranças permanecem
coletivas, elas nos são lembranças pelos outros"... (2004, p39)
As nossas lembranças são coletivas, outras pessoas tiveram lembranças em comum
comigo e construíram comigo lembranças, por essa razão elas me ajudam a lembrar, me
possibilitam um melhor recordar e momentaneamente adoto seu ponto de vista, tenho em mim
muitas ideias e maneiras de pensar que não construí sozinha, mas me encontro em contato
com o grupo do qual participei.
Entre os critérios considerados como relevantes para definição das potenciais
entrevistadas, está sua ativa participação (mobilizada ou não) no processo histórico em
questão: o movimento grevista do magistério no RS, como testemunhas dos acontecimentos.
A evocação do passado é o substrato da memória, salvando-o do esquecimento e da perda.
Como metodologia de pesquisa, a História Oral, busca captar o passado se constituindo
num espaço vivificador da relação entre história, memória e identidades. São vozes do
passado, através da memória, que vivificam, transformam e se aproximam através de
fragmentos de lembranças. Nesse processo de recordar, constituem-se a dinâmica das
trajetórias individuais e coletivas. Não perdendo de vista a afirmação de Alistair Thomson
(2001, p. 86) "que compomos nossas memórias para dar sentido à nossa vida passada e
presente".
Neste estudo, a memória é a principal fonte dos depoimentos, possuindo infinitas
variáveis - temporais, topográficas, individuais, coletivas. Revelam e produzem lembranças,
às vezes, protegendo/ocultando, dores/traumas de forma inconsciente, mas sempre carregadas
de emoções, como um processo de recordação, de reconstituição dinâmica com ênfases,
lapsos, esquecimentos e omissões, daquilo que se formou a partir do olhar de cada um dos
entrevistados. A memória não é um simples ato de recordar, ela está profundamente ligada à
existência, a integração da experiência de vida ao presente. Esse movimento da memória nos
faz ressignificar e atualizar o passado, nele encontramos nossas raízes e um sentimento de
identidade.
Há uma interligação entre a História, tempo e memória. Mas o tempo da memória
ultrapassa o tempo da vida individual, pois ela se nutre de lembranças de família, músicas,
histórias registradas e escutadas. Dessa maneira, é possível entender a História Oral como um
procedimento integrado a uma metodologia que privilegia a realização de entrevistas com
pessoas que participaram de processos históricos ou testemunharam acontecimentos no
âmbito da vida privada ou coletiva.
Assim, memória, identidades, História estão sempre presentes na produção de fontes orais.
Onde os sujeitos, de forma individual ou coletiva tecem a História, construindo identidades,
dando significado e ressignificando a vida, as experiências, numa construção permanente de
laços, tessituras, de sentimentos de trajetórias vidas, em que são compostas as memórias.
Relembrar, revisitar as memórias atualizando o tempo passado, tornando-o vivo e cheio de
significados no presente.
Escutar essas narrativas, das professoras que engrossaram as fileiras dos movimentos
grevistas, anônimas, que para além da sala de aula participaram dos movimentos
reivindicatórios como coadjuvantes - nas assembleias de núcleo, acampando nas praças,
fazendo e vendendo alimentos para os fundos de greve, confeccionando cartazes, assinando
pontos e listas paralelas, usando, muitas vezes, seus próprios recursos em atividades coletivas,
viajando do interior para a capital para participar de assembleias etc..
Evocar essas memórias de professoras de dentro de uma Escola Normal secular, como o
Instituto de Educação Gen. Flores da Cunha de Porto Alegre, é ouvir esses agentes da
transformação social e política de seu tempo.
Memórias de professoras – greve de 1987 - Acampamento na Praça
Os depoimentos a seguir foram tomados a partir das memórias orais de professoras do
Instituto de Educação General Flores da Cunha de Porto Alegre. Todas as professoras
entrevistas viveram intensamente o período pesquisado de 1979/1990 quando as greves do
magistério público estadual do Rio Grande do Sul deixaram o Estado num constante alerta
pela educação. São mulheres com mais de sessenta anos e maioria delas ingressou no Instituto
de Educação antes mesmo da emblemática greve de 1979 a maioria vivenciou no IE a greve
de 1987.
As narrativas de memórias dessas professoras são o objeto dessa pesquisa, suas
experiências nos movimentos grevistas vividas nessa escola. A investigação está
especialmente interessada nos sentidos e significados atribuídos pelas narradoras as suas
diferentes experiências nas greves do magistério público estadual, nos modos como hoje
compõem suas reminiscências, nas lembranças e nos esquecimentos que ativamente
construíram quando provocadas a narrá-las nos eventos das entrevistas.
A escolha das entrevistas está relacionada ao episódio de “dormir na Praça”. Muitas mais
entrevistas foram realizadas sobre as greves do magistério gaúcho no período entre 1979-
1990, mas as reproduzidas a seguir foram especialmente as das professoras que vivenciaram o
“acampamento na Praça da Matriz”, ou porque dormiram na Praça ou se envolveram de
alguma forma com o acampamento da Praça3, trazendo suas marcas na memória.
Os pseudônimos utilizados foram nomes de flores para guardar a privacidade das
entrevistadas.
As entrevistas
E o passado uma invenção do presente. Por isso é tão bonito sempre,
ainda quando foi uma lástima... A memória tem uma bela caixa de lápis de cor. (Quintana,
2006, p. 159)
De acordo com as orientações de Nadir Zago (2003) a proposta adotada foi de “entrevista
compreensiva”, ou seja, sem uma estrutura rígida podendo suscitar diferentes caminhos.
Apresentei às entrevistadas uma espécie de roteiro da entrevista, com objetivo de que se
situassem e tranquilizassem quanto aos assuntos e temas do encontro.
As professoras entrevistadas foram convidadas a “voltar atrás no tempo”, a memória
começa então uma operação para reconstruir vivencias e marcas do passado. Algumas
demonstraram ansiedades, ausências, silêncios e risos. Outras até um certo descaso, como que
não se importando muito e dando aquele período de greves como “um caso passado”.
Foram usados como evocadores de memórias fotos das greves e principalmente da greve de
1987 na Praça da Matriz que durou 96 dias, foi também chamada “a greve grandona”! As
professoras também tinham suas lembranças materializadas! Procuraram e trouxeram fotos
tiradas por elas das barracas, crachás confeccionados com o dizer: Professor do IE em greve!
3 Professores montaram de forma surpreendente barracas na Praça da Matriz, em frente ao Palácio Piratini, a
greve teve muitas estratégias surpresa e essa foi uma delas. Essa greve durou 96 dias sendo a maior de todas as
greves do Cpers.
As entrevistadas trouxeram a situação da greve como de instabilidade e insegurança com
relação à estabilidade no emprego, assinatura de ponto ou “pontos paralelos” como chamavam
na época. Também apreensão em relação a um possível corte de salários o que acarretaria,
para algumas, dificuldades financeiras na família.
Uma das entrevistadas Margarida, recordou então de uma antiga cooperativa dos
funcionários públicos: “Então disse para meu marido: quem sabe a gente vai lá pra ver e se
der a gente compra alguma coisa, mantimentos, pois era descontado em folha para pagar
quando os professores recebessem, estava bem pobre em relação ao que eu conhecia de
quando criança, mas na época da greve foi útil” (entrevista 2015).
Ao recordar a greve de 1987, Flora logo lembrou que embora o IE fosse conservador e
tradicional o comando de greve formado na escola nunca foi somente de pessoas
conservadoras politicamente, sempre havia na composição pessoas militantes e as mais
tranquilas, tinha pessoas mais radicais politicamente o que gerava bastante conflito, sempre
tinha correntes diferentes, militantes do PT, pessoas bem ativas e o comando acabou sendo
sempre mais ou menos os mesmos, o comando não variava muito. Participavam do comando
a presidente do grêmio do Instituto na época da sua gestão, em geral pessoas avançadas, mais
radicais, mas que se posicionavam e alguns deles até em algum momento dividiam com o
comando informações privilegiadas, como por exemplo, a do acampamento na Praça da
Matriz. Nessa greve grandona (1987) aconteceu um acampamento e ficamos sabendo antes!
Ela (uma pessoa ligada ao comando) numa reunião de núcleo no Cpers, disse que ia acontecer
um acampamento, mas avisou: Não falem nada porque é bem secreto ainda. Estava tudo
planejado e foi assim de uma hora para outra levantaram as barracas! Fui do comando no
mínimo em três greves, não me classifico como ativista, mas as pessoas tem uma imagem
minha de muito compenetrada, e acho que é por isso que eu era escolhida, sou muito crente,
muito bem mandada (risos).
Também acampei na Praça, lembra Flora. Tínhamos que ficar sempre alguém na barraca,
pois a Brigada ameaçava derrubar, então tinha que ter gente sempre. Em uma das noites que
passei lá com outros colegas me lembro de que chovia que era um horror! A gente tinha que
levantar de dez em dez minutos para tirar água da barraca era julho e muito frio! Eu fiquei
mais de uma noite. Mesmo assim não dá pra tirar o lado da festa, as pessoas se congregavam,
faziam lanche, descontraíamos um pouco daquela tensão. Os bares da volta agradeciam o
faturamento, mas também éramos o pavor da vizinhança (risos). (entrevista 2015)
Dália fazia doce e vendia na Praça da Matriz, assim ajudava a arrecadar dinheiro para o
fundo de greve, mas não fui dormir na praça – disse ela - porque tinha as crianças pequenas.
Cada um colaborava como podia. (entrevista 2015)
Observa-se que questões políticas e partidárias estão presentes na fala das professoras.
Entre as razões para que eclodisse a greve em 1987 está o descumprimento, por parte do
governador Pedro Simon, de um acordo firmado com os professores no governo anterior
(1982-1986, PDS), ainda no final do período da ditadura (1964-1985), que determinava o
ganho de 2,5 salários mínimos para toda categoria dos professores estaduais. Houve uma
crescente crise no relacionamento com o governo eleito (PMDB, 1986-1990), na prática
apesar do discurso democrático ele se mostrou autoritário. Com receio de perder mais
algumas conquistas a única saída foi à greve. Essa greve está contextualizada no movimento
reivindicatório iniciado em 1979 pelo magistério gaúcho.
Por essa razão, recorda a professora Lilian, no governo do Simon (1986 – 1990) havia
até um pacto entre as professoras: Nunca mais comprar na loja de propriedade da família do
então governador... (risos). Participei como grupo, não como liderança. Confeccionava
material; ia sempre às passeatas e em todas as atividades grevistas. Dormi na praça!
Usávamos o banheiro da Assembleia Legislativa que ficava em frente á Praça! Passávamos
atravessando a rua! Conta Lilian, com um certo orgulho e sorriso nos lábios! Lembra que
precisava fazer inscrição para dormir na Praça. Até pensei em levar os meus filhos, mas na
noite em que fui escalada para dormir chovia muito! Passamos a noite tirando água da
barraca! (entrevista 2015)
Hortência considerava-se uma professora engajada, ativista mesmo! Dormiu quase todas
as noites na Praça! Lembro-me de como era difícil achar alguém para dormir na barraca,
lembro que eu sempre dormia lá com outras colegas que também se dispunham. Professora
de artes, muitas vezes usou grafites, ou como ela diz - ainda não se chamava “grafitar”. Eu fiz
um desenho da sineta e fomos grafitar pela cidade, éramos seis pessoas no carro de uma
colega. Lembra-se de como soube do sigiloso acampamento na Praça da Matriz. “Fui avisada
antes numa reunião do Comando de Greve que haveria um ato surpresa”. Fomos para a
caminhada e paramos de frente para a Praça (eu e uma colega) a outra colega ficou de costas e
não sabia de nada, conta ela sorrindo. Então tinha uma palavra chave que o presidente do
Cpers, ia dizer... (não lembro a senha! sorrindo novamente) quando ele disse a palavra...
Imediatamente as barracas se instalaram! Aquilo foi bárbaro! Não vou esquecer! (entrevista
2015)
Continua Hortência, cheia de lembranças dignas de serem comentadas! “E o Instituto sem
barraca”! Não tinham barraca! Aquilo foi uma vergonha para os professores do Instituto que
se sentiam tão politizados! Tão metidos! Tão não sei o quê? Ai uma colega conseguiu uma
barraca com o ex- marido e como fazer para montar? Porque a Brigada estava cuidando, mas
conseguimos! Mas ela ficou com a entrada para fora da Praça, contou sorrindo! Então o
Instituto começou a participar. (entrevista 2015)
Outra coisa importante lembra Hortência, foi que essa greve mexeu com a cabeça das
pessoas, com os porto-alegrenses. Aquela zona ali da Rua Duque de Caxias, do centro, os
moradores passaram a ir muito para Praça. Passavam por ali de manhã, de noite, se sentiam
seguros na Praça, interagiam com os professores e diziam: é tão bom vir na Praça agora está
cheia de gente! Artistas plásticos vinham à Porto Alegre e iam lá conhecer o acampamento, se
encantavam com a organização e como conseguíamos reivindicar daquela maneira. Aquilo foi
exemplo para o resto do Brasil, na época foi inusitado!
Hortência conta que uma turma substituía outra na barraca, as barracas nunca ficavam
sozinhas! A Brigada podia desmanchar! Aquele comando de greve tinha pessoas muito
inteligentes para fazer aquela organização. Lembra que à noite os colégios faziam jantas nas
barracas (o Instituto nunca teve). O café da manhã com cucas trazidas pelos professores da
região das colônias alemãs! Doces e pães de outro mundo! Hortência fala de momentos
difíceis na Praça: o cansaço começa a vencer as grevistas...
Era muito desconforto! Não sei bem quanto tempo durou esse acampamento, mas já
estava louca que acabasse. Para tomar banho eu tinha que vir em casa, dormia mal, comia
mal... Lembro que quando não conseguia dormir, a gente ficava caminhando... Aquele frio de
noite, a chuva, se caminhava e conversava sobre muitas coisas com muitas pessoas para alem
da greve, naquelas noites insones! Enfática e saudosa ela afirma: E tu vias que aquilo não ia
pra frente... (entrevista 2015)
Um olhar para o outro... Ao mesmo tempo tinham professores que acho que nunca tinham
vivido nada. Nunca tinham transado, então transavam lá; nunca tinham acampado antes e lá
foi na primeira vez; gente que nunca tinha tido a outra vida que a gente tem que ter além de
trabalhar, trabalhar... Hortência faz algumas considerações baseada em suas lembranças e tece
algumas teias: Aquele acampamento mudou muito a cabeça das pessoas, não só
politicamente, mas mudou a vida para muitas pessoas. Não era apenas uma greve, contra o
governo, reivindicações salariais, tinha uma outra coisa alem disso. Tanto é que depois
daquele momento muita gente saiu do magistério, se descobriu, foi fazer outra coisa; teve
muita mudança na vida de muitas pessoas! Eu poderia dizer que houve vidas antes da greve
e depois da greve. Eu naquela época ampliei meu conhecimento de professores de maneira
estúpida, exorbitante, eu conheci gente de todos os cantos do RS e quando acabou a greve um
grupo de professores ficou ainda comemorando por alguns meses o dia 10 que foi quando
acabou a greve. (entrevista 2015)
Considerações finais
Os sujeitos desse estudo tiveram momentos de fala, narrativa e a oportunidade de
revisitarem suas memórias. Memórias que como diz Halbwachs (2004) permanecem
coletivas, elas nos são lembranças pelos outros... É porque, em realidade, nunca estamos sós...
.
De acordo com as falas ouvidas, a greve de 1987 representou para as professoras
participantes um momento muito importante a ponto de interferir não apenas nas atividades
profissionais, mas também familiares e suscitar novos relacionamentos. Houve mobilização e
alguma forma de engajamento no “acampamento da Praça” por parte de todas as
entrevistadas, embora esse engajamento tenha sido diferente para cada uma delas. Como por
exemplo, auxiliar na venda de doces para o caixa de greve, dormir algumas/muitas noites na
Praça, elaborar materiais e outras, ainda, consideraram que ir às reuniões e participar do
acampamento transformou vidas!
Nesse sentido, aproximou pessoas e proporcionou um olhar sobre o outro, amadurecimento
e novas experiências de vida. Houve momentos de tensão, enfrentamento com o governo e
incertezas quanto ao pagamento de salários como em toda greve, mas também de
descontração e novas vivências. Era um acampamento, e como tal com todo desconforto e
improviso! Mas as professoras enfrentaram o desafio com sentimentos de solidariedade e de
generosidade que reforçavam o grupo. Abriram mão de momentos com a família, ou lazer por
acreditar na sua bandeira de luta e na sua carreira. Por entender que não poderiam abrir mão,
da conquista de seu piso salarial, do plano de carreira, entre outras reivindicações, e de uma
qualidade na educação que passa necessariamente por condições dignas de trabalho.
Esse processo faz parte de uma transição em que o magistério está deixando de ser uma
atividade feminina de idealização profissional, para a professora que está se
profissionalizando, tornando-se sindicalizada e uma trabalhadora em educação. Processo esse
inserido num momento político social que o país vivenciou a partir de 1960.
Escutei nessa pesquisa, as memórias de uma escola em greve materializadas nas memórias
das professoras que se transportaram ao passado e se permitiram evocar as memórias das
greves, e em particular de uma greve, de 1987 que foi a maior mobilização do período
grevista durando 96 dias. Período de uma experiência educativa impar que permanece vivo
nas memórias dos sujeitos que nela estiveram envolvidos.
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