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AS INSCRIÇÕES COMO DOCUMENTOS PARA AS PESQUISAS EM HISTÓRIA
Lourdes Conde Feitosa1
1 Dra em História Cultural. Professora do Curso de Licenciatura em História da Universidade do Sagrado
Coração – USC/SP.
RESUMO
Ao longo do século XX intensificou-se, em diferentes campos das Ciências Humanas, a
utilização de variadas fontes, além da usual documentação literária, com o intuito de ampliar as
informações sobre a organização social de sociedades passadas. O uso de outras evidências históricas
como as fontes epigráficas, arqueológicas, iconográficas, entre outras, têm trazido valiosas
contribuições para este processo de revisão e ampliação das temáticas discutidas pela História. Dentre
as fontes citadas, destaca-se, neste texto, a documentação epigráfica e as possibilidades de pesquisa a
partir delas.
Palavras-Chave: Inscrições. Pesquisas. História.
INTRODUÇÃO
Há tempo tem-se discutido sobre o conceito de História e as maneiras de conceber o
conhecimento e a escrita da História. O interesse pelo registro a respeito de novos
personagens e temas tornou necessário a revisão dos paradigmas da História tradicional e a
busca por novas fontes, novas abordagens e novos métodos para organizar e desenvolver as
pesquisas históricas (CHARTIER, 1994, p. 100). Neste artigo, analisaremos o uso da fonte
epigráfica como um documento histórico e as possibilidades de pesquisa desenvolvidas por
meio dela, com destaque para os registros encontrados em dois momentos históricos: grafites
da antiguidade romana e aqueles realizados no Brasil.
O pesquisador que usa fontes epigráficas estuda as inscrições, incluindo sua
decifração, datação e interpretação. A palavra “inscrição” tem origem na expressão latina
inscriptio ação de escrever sobre algo e é utilizada, em tempos modernos, para definir um
texto entalhado, gravado, traçado ou, de outra maneira, estampado sobre uma superfície
durável como pedra, tabuinhas de madeira, placas de argila, paredes de templos, tumbas,
casas e muros, arcos, objetos de metal, cerâmica e louça, vidros, mosaicos, dentre diversos
outros (BODEL, 2001; KEPPIE, 1991).
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As inscrições de sociedades passadas começam a ser abundantemente encontradas na
Europa a partir do século XVIII, fato que estimulou o ritmo das escavações e a própria
consolidação da Arqueologia como uma área da Ciência. Dos documentos descobertos em
diferentes extensões da Bacia Mediterrânica, grande parte era relativa ao mundo antigo, fato
que estimulou a organização de coleções com as inscrições encontradas como o Corpus
Inscriptionum Latinarum (CIL), que contém os registros relacionados ao Império Romano; o
Corpus Inscriptionum Graecarum (CIG), que compila as inscrições gregas; o Corpus
Inscriptionum Etruscarum (CIE), com os registros epigráficos etruscos, e outras inúmeras
coleções de escritos persa, babilônico, acádio, elamita, frígio, celta, siríaco, aramaico dentre
outros1.
O interesse contemporâneo pela escrita e pela própria cultura escrita intensificou-se na
segunda metade do século XX em razão do grafocentrismo de nossa sociedade, de nossa
obsessão pela palavra escrita, fato que tem motivado estudos interessados em compreender os
variados usos deste registro no passado e a relação dos indivíduos e Estados com ele. Uma
preocupação atual é rever o olhar etnocêntrico e anacrônico depositado nas análises deste
escritos ao longo do século XIX e boa parte do XX, e reinterpretá-los sem a transposição dos
valores ocidentais contemporâneos para outros momentos e sociedades.
A atenção para a possibilidade de os indivíduos relacionarem-se de modo distinto com
o registro escrito, sem a crença absoluta e generalizada no poder da escrita como um modo de
transformação pessoal e social, como crível em nossos dias, faz com que Bowman e Woolf
destaquem a importância de investigar os usos da escrita a partir da experiência histórica
construída, pois:
A cultura escrita, por si mesma, não promove o crescimento econômico, a
racionalidade ou o triunfo social. Os alfabetizados não se comportam ou
pensam de maneira necessariamente diferente dos alfabetizados, e não
existe uma divisão absoluta entre as sociedades que conhecem a escrita e as
que a desconhecem. A invenção da escrita não promoveu a revolução
social ou intelectual, e as referências à morte da oralidade têm-se mostrado
exagerado. ...Com certeza, muitos estudiosos da cultura escrita chegaram à
1 Muitos destes registros estão disponíveis em páginas da web. Cf, como exemplos, SANTOS, D. V.
C. De tablete para tablete – novas ferramentas para a pesquisa e o ensino de História das culturas
cuneiformes na era digital. Tempo & Argumento. v. 6, n. 12, p. 212–241, 2014. Disponível em:
file:///D:/Usuarios/Downloads/4347-15095-2-PB%20(1).pdf. e o Corpus Inscriptionum Graecarum,
disponível em: <https://pt.scribd.com/doc/38042967/Corpus-Inscriptionum-Graecarum-Vol-I-Pt-1-
Pt-2-Bockh-BOA-1828>. Acesso em: 30 abr. 2016.
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conclusão de que os usos da escrita precisam ser investigados sociedade a
sociedade (BOWMAN; WOOLF, 1998, p. 7).
Desta maneira, para a leitura de tais registros como documentos históricos é
imprescindível compreender as singularidades nas quais foram produzidos e usados, com
mais ou menos intensidade, e como foi o vínculo pessoal e social com a grafia. Pode-se
observar, por exemplo, que na Grécia Arcaica e Clássica (séculos VI ao IV a.C.) nada possuía
que se assemelhasse à burocracia contemporânea: “os registros, quando feitos, tendiam a ser
breves, desorganizados e [...] descentralizados”. (BOWMAN; WOOLF, 1998, p. 46). Em
Atenas, de onde provém a maior parte das evidências, como sinalizam os autores citados
acima, o registro escrito ganha valor e peso similar ao testemunho oral apenas na metade do
séc. IV a.C. diferente é a utilização da escrita pela sociedade romana nos séculos I e II antes e
depois de C., muito comum para os registros burocráticos do Estado e de uso cotidiano em
algumas cidades, como registrado em Pompéia (FEITOSA, 2010).
A atenção dada em dias atuais para estes documentos epigráficos tem permitido
conhecer aspectos do passado até então não imaginados há poucas décadas. Por meio deles
são descobertos pessoas e aspectos da vida social, política, econômica, familiar, amorosa,
dentre outros, até então desconhecidos. Para o historiador francês Nora (1993), estes registros
constituem-se em “lugares de memória”, criados com o intuito de preservar uma memória
oficial, diferente do que acontecia em sociedades nas quais a memória era algo vivido no
cotidiano e a sua preservação realizada pelos próprios grupos sociais por meio da oralidade.
Ou seja, segundo o autor, a criação de lugares de memória resulta do sentimento de que não
há memória espontânea, por isso a necessidade de acumular vestígios, testemunhos,
documentos sobre o passado, que se tornarão provas e registros daquilo que se foi. Estas
considerações de Nora são particularmente relevantes para as inscrições denominadas
Monumentais.
O tipo de letra, o conteúdo e a finalidade destes registros escritos definem a sua
classificação em Inscrições Monumentais e Inscrições Comuns. No Império Romano, as
Inscrições monumentais – aquelas gravadas com letras capitais ou maiúsculas, esculpidas em
monumentos, tumbas funerárias, edifícios públicos e outros, eram usadas, principalmente,
para divulgar decretos oficiais, datas comemorativas e fins honoríficos. Exemplo deste tipo
de inscrição pode ser visto em Arcos de Triunfos construídos pelos romanos para comemorar
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vitórias militares. O apresentado abaixo está localizado no Fórum Romano e foi erigido em
nome do Senado e do povo romano em homenagem ao imperador Tito Flávio Vespasiano, por
sua conquista a Jerusalém no ano de 70 d.C.
Figura 1 - Arco de Tito. Roma, Séc. I d.C.
Fonte: Cornell e Matthews (1996).
SENATUS
POPULUSQUE ROMANUS
DIVO TITO DIVI VESPASIANI F(ILIO)
VESPASIANO AUGUSTO
O SENADO E O POVO ROMANO AO DIVINO TITO,
FILHO DO DIVINO VESPASIANO,
VESPASIANO AUGUSTO2.
Outro significativo registro monumental corresponde à participação de uma romana na
vida pública da cidade de Pompéia. Uma inscrição celebrativa encontrada na entrada do
grandioso edifício dos fullones3, sede de uma das maiores corporações de Pompéia, faz
referência a Eumáquia. Logo nas colunas de entrada do edifício encontra-se a inscrição que
2 Interpretação de Lourdes C. Feitosa. 3 Este edifício seria usado para depósito e venda de lã e de tecidos.Como a inscrição informa sobre a
participação de Eumáquia em sua construção, portanto, de seu caráter privado, a exuberância deste
edifício parece um sinal evidente da riqueza dessa pompeiana, cuja ostentação também foi
manifestada no mausoléu que construiu para si mesma e para sua família (FEITOSA, 2005, p. 34).
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explicita a sua condição de sacerdotisa pública e patrona da associação dos fullones, com a
qual contribuiu financeiramente para a construção do edifício:
EUMACHIA L F SACERD PUBL NOMINE SUO ET M NUMISTRI
FRONTONIS FILI CHALCIDICUM CRYPTAM PORTICUS
CONCORDIAE AUGUSTAE PIETATI SUA PECUNIA FECIT
EADEMQUE DEDICAVIT (CIL, X, 810)
EUMÁQUIA, FILHA DE LÚCIO, SACERDOTISA PÚBLICA, EM
SEU NOME E DE SEU FILHO M NUMISTRO FRONTÃO, FEZ,
COM SUA PECÚNIA, A GALERIA DO MERCADO, UM
CRIPTOPÓRTICO E VESTÍBULOS EM HONRA À CONCÓRDIA
AUGUSTA E À PIEDADE (AUGUSTA)4.
O caso de Eumáquia é um dos exemplos da participação de mulheres abastadas na
vida pública da cidade, atestada por meio de fontes materiais como as inscrições e que não é
perceptível na literatura. Mas a cidade de Pompéia guarda outras inúmeras evidências
materiais da participação feminina de diferentes estratos sociais na economia, na vida social e
no apoio a candidatos em eleições locais (TREGGIARI, 1981), vista por meio das Inscrições
comuns.
As Inscrições comuns – aquelas escritas em letras cursivas eram utilizadas em
anúncios, recados, insultos, sátiras a políticos, declarações e disputas amorosas, reproduções
literárias, campanhas políticas, dentre inúmeros outros temas mencionados pelo povo em suas
escritas cotidianas. Este tipo de escrito é muito comum nas paredes da Pompéia Romana,
cidade na qual foram encontrados milhares deles em muros, paredes externas e internas de
edifícios públicos, tabernas, locais de trabalho, habitações, ou seja, em quase todos os espaços
disponíveis da cidade.
Nas paredes encontram-se grafites com apoio a candidatos políticos registrados por
mulheres pompeianas, que não eram candidatas nem votantes, mas que participavam de
campanhas políticas:
4 Tradução proposta por Étienne (1971, p. 153).
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Cássia e seu marido, Ceriales, pedem voto a A. Trébio Valente em uma mesma
inscrição (CIL, IV, 7669). A menção dos dois nomes parece indicar que Cássia tinha
independência para apoiar um candidato diferente daquele escolhido por seu marido. Mesmo
porque, se o apoio da esposa necessariamente acompanhasse o do marido, não precisaria ser
mencionado. Também deixaram as suas menções trabalhadoras de tabernas como Polia, que
apoiou Cn. Cerino Vátia à edilidade (CIL, IV, 368;) e Ferusa, que preferiu L. Popídio
Segundo (CIL, IV, 7749). Da mesma maneira fizeram diversas outras mulheres5 (FEITOSA;
FAVERSANI, 2003).
Outro exemplo de registro comum verifica-se nesta meditação sobre o amor:
Figura 2 - Grafite, CIL, IV, 8408
Legenda: a) Amantes ut apes vita(m) mellita(m) exigunt
b) Velle
c) Amantes, amantes cureges
Os amantes, como as abelhas, uma vida doce buscam. Antes
fosse assim!
Amantes, amantes, precisam é de tratamento!6
Para a leitura e análise dos registros epigráficos, como os indicados acima, alguns
cuidados são importantes. Observa-se que toda a pontuação adotada é feita a partir de critérios
atuais uma vez que no texto original não há qualquer marca de pontuação. Isso significa que a
própria transcrição desses registros é influenciada pela interpretação apresentada pelos
paleógrafos, e este é o primeiro aspecto a ser relevado no trato deste tipo de fonte.
Outro aspecto relevante é verificar as diferenças do latim usado. As monumentais
5 Cf., entre outros exemplos, Junia (CIL, IV, 1168), Epídia (CIL, IV, 6610) e Sutoria Primigênia
(CIL, IV, 7464), na campanha de 79; Cornelia (CIL, IV, 3479), em 77; Caprasia (CIL, IV, 171), em
76; e Víbia (CIL, IV, 3746), cujo candidato não foi possível discernir. 6 Interpretação proposta por Funari (1989, p. 55-56), que lê cureges como equivalente a curae egentes
sunt.
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seguiam as regras da língua erudita, tanto no vocabulário como na sintaxe, e eram realizados
sob encomenda a um profissional pago, enquanto o popular era mais flexível e próximo à fala
cotidiana. De autoria própria, estes registros eram feitos com um instrumento barato e
acessível, o grafium, e expressavam questões do cotidiano popular (FUNARI, 2003).
Identificar a data, locais de produção e menção a nomes são outras informações
significativas no manuseio destas fontes. No caso de Pompéia, que foi soterrada pela erupção
do Vesúvio em 79 d.C. e redescoberta apenas a partir do século XVIII, a possibilidade de
precisar o período em que os escritos foram realizados, principalmente os populares, é um
aspecto diferenciador entre estas inscrições e outras poucas do mesmo gênero encontradas em
outras localidades e épocas que são, em geral, muito difíceis de serem datadas (VÄÄNÄNEN,
1937, p. 19).
Outra marca destes registros é a sua manifestação cotidiana e livre nas paredes da
cidade. Como destaca Feitosa (2005, p. 62-63):
A ação dos “grafiteiros” era tão intensa que, mesmo com a atuação dos
dealbatores, trabalhadores que tinham por finalidade a limpeza das paredes,
um grande número delas foi encontrado nas escavações... O dealbator era
encarregado de apagar velhas notícias, mensagens indesejáveis ou mesmo de
deixar as paredes limpas. Parte desses novos espaços era utilizado com
recados “oficiais”, ou seja, anúncios de venda de produtos, de espetáculos ou
cartazes eleitorais, por exemplo, escritos, via encomenda, por trabalhadores
pagos para isso os scriptores7. Contudo, de todas as inscrições catalogadas,
a imensa maioria corresponde àquelas registradas de próprio punho pelo
autor.
Pode-se destacar, desta maneira, que as paredes e muros eram concebidos como
espaços naturais para as manifestações tanto de cunho oficial como pessoal. A escrita nas
paredes não era vista como um problema ou crime, como pode ser considerado em dias atuais
na sociedade brasileira, aspecto a ser discutido na análise dos registros feitos no Brasil, a
seguir.
INSCRIÇÕES NO BRASIL
De maneira geral, pode-se organizar as inscrições usadas no Brasil da mesma maneira
que a realizada para as inscrições romanas, ou seja, em monumentais e comuns.
7 Menções a esses trabalhadores podem ser vistas em grafites como CIL, IV 222, 230, 1190 e 3529.
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O primeiro registro oficial realizado no Brasil que poderíamos elencar como Inscrição
Monumental foi feito em pedra e erguido em Laguna/SC para lembrar a assinatura do Tratado
de Tordesilhas, em 1494, realizado entre Portugal e Espanha.
Figura 3 - Lápide sobre o Tratado de Tordesilhas – 1492
“Reza” o tratado:
[...] que se faça e assinale polo dito mar oceano uma raia ou linha direita de
pólo a pólo, a saber do pólo árctico ao pólo antárctico, que é de norte a sul.
A qual raia ou linha se haja de dar e dê direita, como dito é, a trezentas e
setenta léguas das ilhas do Cabo Verde pera a parte do ponente, por graus ou
por outra maneira como melhor e mais prestes se possa dar de maneira que
não sejam mais nem menos[...].(TORDESILHAS, 1494, apud CINTRA,
2012, p. 422).
Por meio dele estabelecia-se uma linha imaginária 370 léguas a oeste do Arquipélago
de Cabo Verde, sendo que as terras a leste desse meridiano pertenceriam a Portugal. O trecho
de terra limitado pelo tratado se estendia de Belém do Pará, ao norte, até Laguna, ao sul. Este
tratado delimitava, oficialmente, a divisão do mundo entre portugueses e espanhóis.
Este tipo de registro é frequente em monumentos como este, em placas comemorativas
de edifícios públicos e privados, estelas funerárias, dentre outros, como dito anteriormente.
Entretanto, diferente do ocorrido em outros centros de pesquisas, no Brasil o trabalho de
catalogação e estudo destes registros oficiais ainda é relativamente recente. O Laboratório de
Imagem e Som (LIS), do Instituto de Artes (IA) da UNICAMP, desenvolve o projeto
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“Paisagens Tipográficas” e busca constituir um Acervo Epigráfico Paulistano a partir da
compilação de inscrições encontradas em fachadas de edifícios de uma área determinada do
Centro Histórico da cidade de São Paulo.
O objetivo é o de construir uma história da cidade a partir dos dados sobre a atuação
de arquitetos, engenheiros e construtores, alguns deles totalmente desconhecidos ou pouco
estudados:
A investigação que culminou com a elaboração do acervo partiu da premissa
de que a expressão estética de uma época contém matrizes culturais comuns
tanto no que se refere aos desenhos de letras quanto à linguagem
arquitetônica e à estrutura da paisagem urbana. Isso se torna mais evidente
quando o elemento tipográfico é apropriado como elemento paisagístico e,
portanto, integrado à própria linguagem da cidade (ACERVO..., [2016?]).
Um aspecto relevante desta pesquisa está no interesse em identificar nomes e/ou
referências sobre quem foram os arquitetos, engenheiros e construtores destes edifícios do
centro histórico de São Paulo com o intento de registrar, além da própria história da cidade,
também uma possível história dos profissionais, pessoas “comuns” que tornaram possível o
projeto de urbanização em diferentes épocas de desenvolvimento da cidade.
O acervo é constituído por dois tipos de arquivos, um físico e outro digital. O primeiro
inclui decalques, moldes em silicone e réplicas em resina das inscrições, guardados no LIS. O
arquivo digital se constitui em um banco de dados, contendo fotos, desenhos vetoriais e
mapas, além de fichas e planilhas que organizam as informações. Parte deste arquivo digital
está disponível no website mencionado acima.
Um exemplo deste trabalho vê-se no registro de uma inscrição frontal encontrada no
Edifício Martinelli, considerado um dos primeiros “arranha céus” da América Latina dos anos
de 1920, com 25 andares e uma altura 105.65 metros. Localizado no centro de São Paulo,
entre as ruas São Bento, Av. São João e a Rua Libero Badaró, o empreendimento foi do
empresário italiano Giuseppe Martinelli e o projeto arquitetônico do húngaro William
Fillinger. Construído de 1924 a 1929, nele trabalharam mais de 600 operários. A obra gerou
muita polêmica, pois até então não havia nenhum prédio em São Paulo com grande altura. Na
época, edifícios com mais de 10 andares eram considerados muito altos8.
8 Informações disponíveis em: <http://cidadedesaopaulo.com/sp/o-que-visitar/1175-edificio-
martinelli> e <http://jvillavisencio.blogspot.com.br/2011/05/edificio-martinelli-o-processo-de.html>.
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Figura 4 - Edifício Martinelli
Fonte: Rodrigues (2015).
Figura 5 - Inscrição em mármore do
Ed. Martinelli
Fonte: Souza ([1929?]).
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Figura 6 - Decalque da inscrição em
mármore
Fonte: Gouveia ([1929?]).
Em relação às inscrições comuns, no Brasil há muita discussão a respeito de sua
legalidade. Pelo Art. 65 da Lei no. 9.605/98 todo tipo de registro popular, denominado como
pichação, é considerado crime: “Pichação é Crime Ambiental e é proibida a venda de tinta
spray para menores de 18 anos”.
Os intensos debates sobre o que poderia ser caracterizado como pichação ou não
resultaram em uma revisão jurídica - Lei de 26 de maio de 2011 – que estabelece distinção do
Grafite em relação à Pichação: “o grafite não é crime e é “manifestação artística” quando tem
o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado”. Apesar das distinções legais, não
sobejam críticas e discussões nas mídias a respeito destas diferenciações9.
9 Cf, como exemplos: Poesia na Rua, em: <https://poesiadarua.wordpress.com/a-pixacao-segundo-a-
lei-penal/; Estadão - Lei contra a Pichação, em http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,lei-
contra-a-pichacao-imp-,727789>. Acesso em: 24 maio 2016.
Linha 42 – A pichação, segundo a Lei penal, em <http://www.linha42.com.br/arte-e-lazer/98/a-
pixacao,-segundo-a-lei-penal>. Acesso em: 24 maio 2016.
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Figura 7 - Exemplo de um grafite
Fonte: Humphreys (2015).
Figura 8 – Exemplos de pichações, segundo a legislação brasileira
O uso destas inscrições de rua e aquelas registradas em portas de banheiros de
edifícios, realizadas com tinta em spray, caneta, baton, grifo, etc, tem sido cada vez mais
frequentes nas pesquisas em Antropologia Social, Artes e História. Por meio delas pode-se
considerar as diferentes percepções, pessoal e social, a respeito da finalidade desta escrita, as
variações entre a sintaxe e o vocabulário usado, os tipos de materiais utilizados e,
fundamentalmente, a função e as mensagens de cada uma delas 10
. Elementos parecidos com
aqueles destacados nas inscrições romanas, embora o conteúdo e a relação dos indivíduos
com estes registros tenham suas especificidades históricas.
10 Conferir os estudos disponíveis em:
<http://www.ppgartes.uerj.br/seminario/2sp_artigos/marcelo_araujo.pdf> e
<http://www.embap.pr.gov.br/arquivos/File/anais3/flavia_calo.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2016.
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Embora apresentado de maneira breve, destacamos que as inscrições constituem-se
como fonte ímpar para o desenvolvimento de análises históricas e culturais sobre o
pensamento erudito e, principalmente, popular, tanto da Antiguidade Romana como do Brasil.
Os grafites fornecem subsídios para que sejam questionados conceitos genéricos como
“romanos”, “brasileiros”, expressão que oculta as diferenças sociais e os embates discursivos
postos entre os muitos grupos sociais, além de permitir vislumbrar uma heterogeneidade de
culturas e valores próprio de sociedades complexas como as aqui estudadas.
INSCRIPTIONS AS DOCUMENTS FOR RESEARCH IN
ABSTRACT
Throughout the twentieth century, the use of various sources, besides the usual literary
documentation was intensified in different fields of the Human Sciences, with the intent to expand the
information about the social organization in past societies. The use of other historical evidence such as
the epigraphic, archaeological, iconographic ones, among other sources, has brought valuable
contributions to this process of revision and expansion of the themes discussed by History. Among the
sources mentioned, the epigraphic documentation and search possibilities based on them stand out in
this study.
Keywords: Inscriptions. Research. History.
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Universidade do Sagrado Coração
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VÄÄNÄNEN, V. Le latin vulgaire des inscriptions pompéienes. Helsinki: Annales
Academiae Scientiarum Fennicae, 1937.
AGRADECIMENTO
Agradeço os colegas Nair L. Nassarala, Roger M. M. Gomes, Fábio P. Pallotta e Pedro
P. A. Funari. As ideias aqui apresentadas são de minha responsabilidade.