as justificativas do

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No "Consultório Médico" do Dr. Tepedino: Representações dos Corpos Doentes no Jornal Popular O Diário da Noite Gabriel Kenzo Rodrigues 1 [email protected] O presente trabalho procura analisar a instituição das normas médicas na sociedade paulistana na década de 1930, a partir de uma perspectiva do cotidiano da época. Diferentemente da maneira como os corpos doentes eram representados nos tratados médicos, nos artigos científicos, nos jornais especializados e em outros documentos institucionais, buscamos trazer as representações desses corpos em uma coluna de jornal, presente no O Diário da Noite, intitulada O Consultório Médico do Dr. Tepedino. Com efeito, o discurso produzido em resposta às demandas dos doentes se aproxima da linguagem popular e da prescrição de medicamentos populares. Esta forma de atuação clínica se encontra no intermédio entre a medicina oficial e a medicação popular, que vinha ganhando cada vez mais terreno, sobretudo com o desenvolvimento da incipiente indústria farmacêutica. Há uma maior aproximação com o cotidiano da época e com a forma como a norma médica o adentrou. Diferentemente das medidas impositivas que eram aplicadas de forma policialesca tema já bastante abordado na historiografia aqui, percebe-se uma aproximação entre a comunicação popular e a comunicação técnica, fato decorrente desta posição peculiar da coluna médica presente em um jornal popular de ampla tiragem. No total foram analisadas 173 colunas, com temáticas variadas que incluíam questões relativas à eugenia, à sífilis, ao alcoolismo, à saúde nupcial, ao instintofeminino, à sexualidade, à timidez e aos descompassos decorrentes do ambiente urbano. Esta variedade temática demonstra uma cidade heterogênea em termos de doenças, mas também em relação às restrições médicas impostas para se confirmar uma moral calcada no elogio ao trabalho, no pudor e recato feminino, na contenção dos prazeres e na preservação de um ideal de família nuclear com os papéis de gênero sedimentados. 1 Mestre em História Social pela PUC-SP

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No "Consultório Médico" do Dr. Tepedino: Representações dos Corpos Doentes no

Jornal Popular O Diário da Noite

Gabriel Kenzo Rodrigues1

[email protected]

O presente trabalho procura analisar a instituição das normas médicas na

sociedade paulistana na década de 1930, a partir de uma perspectiva do cotidiano da

época. Diferentemente da maneira como os corpos doentes eram representados nos

tratados médicos, nos artigos científicos, nos jornais especializados e em outros

documentos institucionais, buscamos trazer as representações desses corpos em uma

coluna de jornal, presente no O Diário da Noite, intitulada O Consultório Médico do Dr.

Tepedino. Com efeito, o discurso produzido em resposta às demandas dos doentes se

aproxima da linguagem popular e da prescrição de medicamentos populares. Esta forma

de atuação clínica se encontra no intermédio entre a medicina oficial e a medicação

popular, que vinha ganhando cada vez mais terreno, sobretudo com o desenvolvimento

da incipiente indústria farmacêutica. Há uma maior aproximação com o cotidiano da

época e com a forma como a norma médica o adentrou. Diferentemente das medidas

impositivas que eram aplicadas de forma policialesca – tema já bastante abordado na

historiografia – aqui, percebe-se uma aproximação entre a comunicação popular e a

comunicação técnica, fato decorrente desta posição peculiar da coluna médica presente

em um jornal popular de ampla tiragem.

No total foram analisadas 173 colunas, com temáticas variadas que incluíam

questões relativas à eugenia, à sífilis, ao alcoolismo, à saúde nupcial, ao “instinto”

feminino, à sexualidade, à timidez e aos descompassos decorrentes do ambiente urbano.

Esta variedade temática demonstra uma cidade heterogênea em termos de doenças, mas

também em relação às restrições médicas impostas para se confirmar uma moral calcada

no elogio ao trabalho, no pudor e recato feminino, na contenção dos prazeres e na

preservação de um ideal de família nuclear com os papéis de gênero sedimentados.

1 Mestre em História Social pela PUC-SP

As justificativas do modus operandi se encontram adiante, em um dos vários

momentos em que o Dr. A. Tepedino expôs os motivos de seu trabalho.

De accôrdo com o que já deixamos dito, passaremos hoje a responder às cartas-

consultas que nos foram endereçadas alhures.

Manteremos sempre o mesmo ponto de vista: beneficiar os que dispõem de

parcos recursos. Nos tempos que correm, a doença que é para os ricos simples

episodio torna-se para o pobre, para os que dispõem de limitado orçamento um

problema de difficil solução. Recorrer à Polyclynica ou à Santa Casa é cousa

que não se coaduna com certos espíritos – e é muito natural que um pae de

familia, um modesto serventuario publico, procure não privar a sua receita, de

per si tão módica, de quantia que, quasi sempre, irá fazer falta para outros fins

indispensaveis [...] Ademais, a funcção de uma Secção Medica, feita com

consciencia, não é sómente material, physica. Ha tambem – e muito mais

importantes – a parte psychologica suggestiva e a parte educativa. Pede-se que

se divulguem noções sobre todos os ramos das artes, da sciencia, etc.. Sobre a

medicina – a arte de conservar a saúde e a vida (physica e espiritual) – ha

sempre quem faça restricções... E’ um modo curioso de apreciar as cousas.

Felizmente, esta myopia intellectual só attinge uma pequena “entourage”. Os

grandes medicos, os que sao clinicos de verdade não se preoccupam com

cousas de somenos.

A “Columna Medica” que se propõe continuar na mesma directriz de sempre

irá lembrar aos moços noções geraes de hygiene, de eugenia, como sempre o

tem feito. Com estas credenciaes – que são deveres – pedimos vênia para dar

inicio à nossa columna de consultas e respostas.

(Diário da Noite, 04/07/1935)

O Dr. Tepedino respondeu às dúvidas dos leitores, até o dia 22 de março de 1937,

acerca de questões médicas, ou “tudo quanto lhe for perguntado sobre medicina em

geral”, todas às 2as e 5as feiras da semana.

O sistema de funcionamento da coluna era muito simples, o leitor enviava uma

carta para o consultório de Tepedino na R. São Bento, nº 17, utilizando um nome fictício,

para garantir o anonimato, mas possibilitar a identificação. Nesta carta, a pessoa descrevia

os seus sintomas e, a partir da leitura destes, o Dr. Tepedino elaborava a anamnese sem a

presença do paciente, anunciando na coluna a terapêutica necessária para o enfermo.

Como mencionado no trecho acima, era dito na coluna que o seu objetivo principal

era “beneficiar os que dispõem de parcos recursos”, tanto que, segundo consta em alguns

anúncios do Dr. Tepedino, estes teriam um horário em seu consultório para atendimento

gratuito (todos os pacientes que não pudessem arcar com as despesas de uma consulta

clínica particular). Utilizando-se desse mote do atendimento às classes menos

favorecidas, o Dr. Tepedino prescreverá alguns medicamentos - considerados mais

baratos que outros disponíveis no mercado e com efeitos superiores – em praticamente

todas as edições da coluna do “Consultorio Medico”, medicamentos inclusive, que eram

anunciados no jornal O Diário da Noite, como, por exemplo, o Tônico Nervét, o regulador

feminino Tanagrán, o medicamento para descompassos estomacais Gastrozón e a loção

anticaspa e antiqueda Kin-Eon.

O Tônico Nervét foi prescrito em todas as colunas analisadas, sendo aconselhado

para os mais diversos sintomas. Tendo em vista o grande número de cartas respondidas

figurando no âmbito do esgotamento nervoso, debilidade mental e falta de memória –

males que seriam próprios do ambiente urbano paulista -, o Tônico Nervét é anunciado

na mesma lógica dos anúncios de medicamentos que vimos anteriormente. Temos, por

exemplo, a resposta a uma pessoa que utilizou o codinome “Exgotado”, em que se lê:

Depois do Carnaval... o exgotamento dos nervos e dos musculos não deve ser

“avis rara” o melhor que tem agora a fazer é seguir a risca os dizeres mui

criteriosos de sua carta bem redigida. Retirar-se para um lugar ermo onde não

chegue o ruido da metropole e “só consiga peneirar a saudade dos dias” ... de

semi-loucura collectiva é uma providencia que se impõe. Dizem os medicos

especialistas que difficilmente um nervoso psychoemotivo se afasta da cidade

e de seu barulho [...] Não será, entretanto esse o caso do presado consulente

que, sem tardança, irá gosar relativo repouso em um ambiente socegado, livre

dos “incêndios” da Paulicéa... Como medicamento revigorador irá usar o

Tonico Nervét que, pelos phosphatos e pela kóla, dará aos seus nervos

quebrados o tôno que lhes falta no momento. Os phosphatos - é sabido –

representam o nucleo da resistencia organica e a kóla é o medicamento-

alimento que usam os rijos atravessadores dos desertos africanos. Kóla e

phosphatos, em honesta dosagem e criteriosa manipulação formam as linhas

mestras do Tonico Nervét que irá dar ao seu cansaço o remedio adequado e

rapido. (Diário da Noite, 29/02/1936)

Assim, o tônico é anunciado em época de carnaval como reconstituinte das

energias, não apenas daquele que envia a carta-sintoma, buscando uma terapêutica, mas

também para todos aqueles que se encontram em situação semelhante e leem o conteúdo

escrito pelo Dr. Tepedino. O diferencial da coluna para o anúncio “popular” é a ênfase na

relação individualizada, que busca representar efetivamente um consultório médico, em

que há anamnese, diagnóstico e prescrição terapêutica, em um aparente acordo de

confidencialidade entre o paciente e o médico.

O tônico era receitado para um sem-número de enfermidades, e quando não havia

relação entre os seus efeitos e a agrura presente, buscava-se remediar os sintomas

secundários para sanar o problema principal, como por exemplo, neste caso em que se

discute a questão da esterilidade conjugal:

E’ sabido que ha esterilidade curavel entre os fracos e entre os deficientes

sexuaes. Vimos que ha casos favoraveis de deficiencia espermatica que se

beneficiam positivamente com a moderna therapeutica dos hormonios, dos

nervinos, typo Tonico Nervét, etc., etc. O essencial é que haja constancia na

medicação. Os asthenicos, os exgotados de nervos são susceptiveis de

melhoras sensíveis quando se submettem ao tratamento especializado. (Diário

da Noite, 15/05/1939)

Neste caso, estabelece-se uma relação entre a astenia sexual/esgotamento nervoso

- as quais o tônico sanaria com a inserção de fosfatos no organismo - e a deficiência

espermática que gera a esterilidade masculina.

Como vimos anteriormente, as questões que afligiam o sexo masculino não eram

representadas da mesma forma que as questões que afligiam as mulheres, muito embora,

às vezes possuíssem uma causa etiológica comum e até sintomas iguais. Na coluna

“Consultório Médico” veremos esta mesma lógica se aplicar, quando surge a publicação

de uma série de sintomas remetendo às mesmas questões de nervosismo, neurastenia e

esgotamento, no entanto, quando direcionadas ao sexo feminino, o medicamento indicado

será frequentemente o Tanagrán, caracterizado de maneira geral como “regulador

feminino”. Portanto, uma resposta direcionada à Margarida diz o seguinte:

E’ preciso cuidar do systema nervoso. Durante 2 mezes: Tanagrán às refeições

e empôlas diárias de Neurosthenyl Granado, alternados com Sôro Lipotonico

fem. L.B.C – isto é: um dia de uma, outro dia de outra. Passeios, distracções –

e logo que passas 30 dias em Santos. (Diário da Noite, 29/08/1936)

A mesma debilidade nervosa que era combatida nos homens com o Tônico Nervét,

nas mulheres era combatida com o uso do Tanagrán, que era elogiado por possuir os

mesmos componentes do tônico, ou seja, a noz de cola, noz vômica e os fosfatos,

conforme se esclarece na resposta abaixo:

Vaidosa – Diz bem... A saude geral precaria traz velhice precóce com os

cabellos brancos, com a tez flacida, com o busto sem belleza. A pelle secca

com tendencia a rugas prematuras – symptoma que mais tortura a consulente

– raramente falta. De haste fraca, sem vitalidade, não se póde, porém desejar

que desabroche flor de maravilhosa belleza... Os jardineiros que isto sabem

não esmorecem, emquanto não modificar no bom sentido o trophismo da

planta. Com a tez o mesmo se dá... E’ de mister em seu caso, dar ao organismo

nova orientação. Durante dois mezes fará, diariamente, uma empôla de

vitamina Lorenzini. A’s refeições irá usar – Tanagrán – optimo fortificante

feminino que contem phosphatos, nós vomica, nós de kola, hormonio ovarico

e paratyroideo. (Diário da Noite, 06/03/1937)

É estabelecida uma relação entre velhice – que representa a perda da beleza

feminina, elemento definidor da posição social da mulher no período – e uma suposta

necessidade de fortificante, que é prescrito sem maiores explicações ou elucidação dos

sintomas exatos que irá tratar.

No entanto, o essencial da coluna “Consultório Médico” não se encontra na

questão dos medicamentos que são prescritos constantemente para os mais diversos

sintomas que aparecem, mas devemos atentar para o fato de que qualquer descompasso

apresentado torna-se um sintoma e, portanto, merecedor de prescrição médica, seja esta

a indicação de um medicamento, a escolha de uma determinada dieta, a leitura de um

livro, o refúgio em um local aprazível etc. Assim, consolida-se a ideia de que toda pessoa

é um doente em potencial, até que se prove o contrário (o que raramente ocorrerá), e “se

o médico se tornou um perito em todos os assuntos públicos e privados, é porque toda

pessoa saudável é um doente que se ignora” (Moulin, 2006, p. 19).

Neste sentido, a coluna do Dr. Tepedino nos auxilia a compreender como o

discurso clínico passa a reger o cotidiano da população, adentrando nas mais diversas

esferas. Mesmo que não siga o modelo clínico tradicional, o caráter público do

“Consultório Médico” demonstra a inserção do discurso preventivo na sociedade paulista,

tendo em vista que qualquer leitor poderia utilizar-se dos conselhos lavrados no jornal.

Desta forma, torna-se claro que a medicalização da sociedade opera no combate aos

sintomas e etiologias – agora com o agravante de não serem apenas físicos, mas também

psicológicos -, mas também opera nos corpos ditos “saudáveis”, através da expansão da

medicina preventiva.

Assim, podemos vislumbrar como a dietética - uma prática tão antiga quanto a

própria medicina, e que havia sido relegada nos últimos séculos -, ressurge no século XX

através deste discurso normatizador e oficial, que até então considerava a questão da dieta,

uma prática alternativa à medicina tradicional (Ory, 2006). Desta maneira, o Dr. Tepedino

prescreve ao “Estudante Esquecido”:

Fructas em jejum. Alimentação rica em peixes, cereaes, legumes, fructas, mel,

leite de Granja, chocolate. Passeios ao sol da manhã. Os raios de Phebo

despertam provitaminas e delas, partem importantissimas funcções que se

ligam á boa memoria. (Diário da Noite, 15/08/1937)

Para um leitor que buscava ganhar peso, são dadas as seguintes diretrizes:

Um Agradecido – Para engordar, fará as empolas de Ilogenina. N.o um e dois

uma empola, meia hora antes do almoço começando naturalmente pela série

inferior. Alimentação rica em lipides e glycides: manteiga fresca, leite gordo

(um copo de 3 em 3 horas), saladas com bom azeite portuguez ou francez, sem

esquecer o italiano... ovos frescos, massas, cereais, chocolates, doces, mel de

abelhas, etc. etc. Internamente, poderá fazer uso do Tonico Nervét –

fortificante rico em fosfatos. O Tonico Nervét pela kola, pela noz vomica dará

um impulso ao apetite... (Diário da Noite, 15/07/1935)

É prescrito então um regime específico e detalhado para uma pessoa que, muito

provavelmente, o Dr. Tepedino obteve contato apenas na troca de cartas. Mas o modelo

dietético encontra-se igualmente disponível para outros leitores, que também estivessem

procurando ganhar peso.

Era também recorrente na coluna a indicação de terapêuticas para problemas

psicológicos resultantes do contexto urbano de São Paulo – como as neurastenias,

esgotamentos nervosos, insônia etc. -, sendo difícil precisar em alguns momentos se o Dr.

Tepedino emitia prescrições terapêuticas ou se dava conselhos de vida para o leitor. O

estabelecimento de uma classificação nosográfica para estes distúrbios que se encontram

no limiar do mal-estar cotidiano e da patologia propriamente dita, traz a possibilidade de

uma intervenção clínica, e consequentemente a medicalização de muitos e variados

momentos do dia a dia da população, sobretudo quando são os próprios pacientes que

constroem o quadro de sintomas, a partir de suas perspectivas subjetivas.

Conforme podemos observar na resposta seguinte, o Dr. Tepedino reafirma a

necessidade de medicalização de uma situação de angústia cotidiana, no caso a

dificuldade financeira do “Comerciante”:

A vida aspera e difícil explica em parte os symptomas de esgotamento e de

asthenia que tanto perturbam a sua vida. O trabalho esfalfante, mal

recompensado age como um fator sério de depressão nervosa; e este effeito é

devido não somente á fadiga mas tambem ás excitações desagradaveis que

estimulam em máu sentido o psychico do individuo. Quem hoje se abalança ás

lides commerciaes, mais do que ninguem está sujeito aos vae-vens da sorte, ás

“intemperies” dos negocios [...] tudo acaba por reduzir á expressão mais

simples a quota de phosphatos do systema nervoso [...] Ninguem mais do que

o commerciante tem necessidade de ideias lucidas e serenas. A sua carta aliás,

repisa com insistencia o facto. A falta de memoria que cita é consequente. Para

melhorar – irá usar, durante dois mezes as injecções de Tonofosfan Bayer –

uma ao dia. A’s refeições usará tambem o revigorisador dos nervos – Tonico

Nervet que contem, além dos phosphatos Schering, a noz vomica: a noz de

kola, optimos restauradores de energia em declinio. (Diário da Noite,

08/08/1936)

A relação entre uma posição econômica privilegiada e uma saúde plena é

estabelecida também em outros momentos da coluna, por exemplo, quando o Dr.

Tepedino escreve que:

A par dos phosphatos que a medicina recomenda (Tonico Nervét, por exemplo,

Bioforina, Phosphatos de Oxford, Fosfosol, etc.) cumpre citar um factor que,

quando se verifica, soe trazer ridente transformação do systema nervoso

esgotado. E’ o factor economico... Repararam os leitores como age

beneficamente uma situação economica prospera e feliz sobre um até então

abatido, esgotado individuo?! (Diário da Noite, 29/03/1937)

Esta relação entre economia e desgaste nervoso é frequentemente reiterada, a

ponto de ser apresentada em um artigo do Dr. Franco da Rocha2 a origem da neurastenia

como o excesso de trabalho resultante do desejo pelo lucro:

A neurastenia nasceu nos Estados Unidos. Lá a febre de caça ao dollar causou

uma depressão nervosa em muitos dos que nella se envolviam, o que foi

baptisado pelo nome de neurasthenia... E aqui, cidade de trabalho intenso,

como nos centros americanos do norte, onde a luta pela vida tras preoccupados

os commerciantes e todos os que têm interesses directos, no rythmo dos

negocios, a neurasthenia faz verdadeiros doentes, exacerbados permanentes,

irritadiços á menor contrariedade, predispostos, emfim, a transformar em

tragedia todos os acontecimentos em que tomem parte. (Franco da Rocha,

Calor, Neurasthenia e Criminalidade. Diário da Noite, 16/01/1930)

Um psiquiatra da época, José Palmério3, também aponta em um dos seus

“Múltiplos fatores de cura e prevenção das moléstias” os aspectos sociológicos da cura,

que incluem a “situação econômica, posição social, emprego, previdência social, garantia,

2 Médico e psiquiatra, idealizador e fundador do Hospital Psiquiátrico do Juquery e um dos primeiros a

difundir a teoria psicanalítica de Freud no Brasil. 3 Provavelmente o primeiro estudioso a sistematizar e analisar os dados referentes ao desenvolvimento da

indústria farmacêutica até aquele período. Era, também, dono de um pequeno jornal voltado para a classe

médica, intitulado A Notícia Médica.

seguro de vida etc., etc.” (1942, p. 8). Este ideário vai de encontro igualmente com o

pensamento do médico e psiquiatra da época, Antonio Carlos Pacheco e Silva, que faz

amplo uso das questões psicossomáticas para compreensão das doenças, tendo em vista

que “os progressos da medicina demonstraram de forma evidente e inconcussa que a

personalidade humana é um todo integral e indivisível” (1948, p. 7). Desta forma, o

psiquiatra discorre sobre uma medicina que defenda a saúde que é “constantemente

ameaçada pela conduta, pelo meio, pela profissão, pela ignorância, pela miséria e por

todas as circunstâncias da vida” (ibid., p. 45).

Neste período, portanto, os preceitos básicos da psicossomática já são utilizados

pelo corpo médico institucional e não-institucional (caso da presente coluna), e a

psicanálise freudiana já se encontrava bastante difundida dentro do círculo médico,

embora houvesse resistências a ela, por conta dos longos tratamentos para alcançar algum

resultado.

Mas, isso não restringia a aplicação da metodologia psicanalítica por psiquiatras

brasileiros, conforme descrito em um artigo (Diário da Noite, 22/01/1930), em que o

professor Faustino Esposel comenta a sua pesquisa “O estudo psychiatrico de um

propheta”, em que o Profeta da Gávea - que havia adquirido um momentâneo sucesso por

conta de seus prognósticos -, é analisado à luz da teoria psicanalítica. Em outro artigo

(12/06/1934) intitulado “A psychanalise como methodo de cura das neuroses”, o Dr.

Durval Marcondes expõe os benefícios do método e a dificuldade em ampliar o

tratamento para uma maior parcela da população.

Assim, psicanálise e psicossomática passam a influir na forma como os médicos

tratam os transtornos psicológicos e a influência que estes causam na fisiologia dos

sujeitos. Portanto, muitas das indicações terapêuticas do Dr. Tepedino – aliadas ao uso

dos tônicos - dirão respeito a um “controle dos pensamentos”, ou seja, a uma

interiorização de um modelo psicológico para interpretação do mundo e dos próprios

sintomas, no sentido de curar-se através de uma transformação na maneira de perceber e

pensar o mundo exterior; embora de uma forma muito mais simplista e direta do que a

teoria psicanalítica, mas próxima da técnica da autoajuda que vigora na atualidade,

podemos perceber isso nos conselhos dados ao “Arabe X”:

Procure tonificar os nervos. Durante dois mezes: Tonico Nervét ás refeições e

uma empôla diaria Gluconato de Calcio Téco. Vida ao ar livre. Evitará ideais

depressivas. Um bom pensamento já é meia cura... Cumpre – como diz a

doutrina estoica – pensar sempre bem. Equivale a esculpir sua propria estatua.

Quem é optimista compõe sua personalidade, afugentando o tédio. (Diário da

Noite, 08/02/1936)

Em uma outra resposta estas indicações de um “modo de ver o mundo” tornam-se

mais claras, ao se dirigir ao leitor de codinome “Ansioso”:

Sua carta é um longo relato que põe a descoberto um complexo de

inferioridade. O seu mal é mais de natureza psychica do que physica; e a

contrasexualidade que desabrôcha em inhibições obedece a razões do

subsolo... [...] Casos de parapathias sexuaes com a especial sensação de

inferioridade existem a três por dois. E’ obvio que a cura dependeria em linhas

geraes de vários factores dentre os quaes occuparia lugar saliente o completo

repouso mental [...] Sua cura dependerá de si, em primeira instancia... Dizem

os psychanalistas que quem bem se conhece lucta melhor. Cumpre destruir

pela base o complexo-fixação que explica sua angustia [...] Durante dois mezes

manterá esta medicação dupla – empôlas e Tonico Nervét. Lerá – “Conhece-

te pela psychanalise”. Forrar o “sub” com ideas tonicas dá sempre optimo

resultado. (Diário da Noite, 24/08/1936)

Trata-se de um problema estritamente psicológico, de modo que é utilizado o

termo “parapatia”, que remete principalmente às questões emocionais e não a uma

disjunção fisiológica do sistema nervoso, mas, seguindo a lógica da psicossomática, estas

questões emocionais resultariam em distúrbios fisiológicos sensíveis, no caso o

descompasso sexual. O leitor então alcançará a cura em um movimento individualizado,

tendo em vista que a exploração e o conhecimento de sua própria psicologia cabem a si

próprio, sendo aconselhada apenas a leitura de um livro, “Conhece-te pela psychanalise”,

que auxiliará neste autoconhecimento pelas lentes da psicanálise, e o uso do tônico, que

através da metáfora utilizada nos traz o entendimento de que “potencializará” as ideias

no subconsciente do leitor.

Em outros momentos percebe-se um movimento inverso na indicação terapêutica,

em que o medicamento é o agente que atuará na compleição fisiológica, alterando então

o estado emocional e psicológico do consulente:

Pessimista – Mais do que lhe parece concorre o estado de nervos para a

tonalidade a affectiva... E’ quasi sempre pessimista quem tem o cerebro

cansado, quem se exgotou em pura perda de fracasso em fracasso... Procure

corrigir a perda de phosphoro, usando um bom fortificante que contenha

tambem phosphoro (Tonico Nervét). Faça taboa rasa do passado... E’ moço e

forte e a patria e a familia muito esperam ainda de sua “performance”. O

pessimista de hoje pôde perfeitamente transmudar-se no exuberante de amanhã

que tudo verá através de lentes côr de rosa. (Diário da Noite, 03/02/1936)

Aqui, seria o “cérebro cansado” que por conta dos fracassos intermitentes, seria o

resultado da falta de fosfatos no organismo do leitor. Não há neste caso aproximação à

psicossomática ou à psicanálise, o pessimismo do leitor é decorrente de uma debilidade

biológica de fosfatos, que deve ser suprida com o consumo do tônico.

Outro fator que merece destaque é a menção à necessidade do consulente, em

atender às expectativas de sua pátria e de sua família.

Frequentemente, o Dr. Tepedino analisará a questão da eugenia4 sob a perspectiva

destas duas instituições, de modo que muitos conselhos serão oferecidos tendo em vista

os objetivos da eugenia em relação aos casamentos e aos exames pré-nupciais, que

deverão ser feitos para garantir o “futuro da família e da raça”, conforme mencionado em

uma resposta ao leitor “X.V.”:

Curar-se e depois casar-se – eis a formula boa... Casar-se e depois cuidar da

molestia antiga – é erro muito serio. Blenos, tratada por especialista, céde

4 Grosso modo, existiam duas modalidades de eugenia, a negativa e a positiva. A eugenia negativa visava

limitar a reprodução daqueles que apresentassem “anormalidades”, podendo existir variados métodos para

tal, como a limitação legal do casamento e da procriação, esterilização, medidas anticoncepcionais,

segregação, aborto eugênico etc. O método utilizado variava de acordo com o local em que era praticado,

mas o objetivo principal era impedir a reprodução dos seres disgênicos. Já a eugenia considerada positiva,

buscava “propiciar a seleção eugênica na orientação aos casamentos e estimular a procriação dos casais

considerados eugenicamente aptos para tal [...] considerava-se que esses indivíduos eugênicos

concentravam-se principalmente nas altas camadas dirigentes e classes superiores de qualquer sociedade”

(Mai; Angerami, 2006, p. 254).

terreno em 98% dos casos. Os ignorantes que duvidam desses resultados

deveriam consultar as estatisticas. Os medicos especialistas que se dedicam

com amor e intelligencia á cura de blenos registram brilhantes percentagens de

exito. Ouça um especialista. Casamento sem saude é um desastre. Leia se

puder, “Conducta sexual” do professor Autregesilo. Ha idéas optimas que

convem sejam conhecidas pela mocidade que, inadvertidamente, esquece os

serios problemas que dizem respeito ao futuro da família e da raça. Se puder

lerá tambem o nosso “Como evitar males sexuaes”, em 2ª edição. O problema

da blenos e a defesa da raça é abordado com a possível clareza. (Diário da

Noite, 27/08/1936)

Percebe-se então o caráter eugênico dos conselhos, que através de um

planejamento conjugal produziria à jusante gerações livres das moléstias que afligiam a

sociedade da época, sendo a blenorragia uma delas. O imperativo do caráter educacional

dos preceitos eugênicos também se faz presente na coluna, quando menciona que a

mocidade “inadvertidamente” esquece os problemas que surgiriam das uniões

consideradas pelo médico como “dysgenicas”. Em outra coluna, o Dr. Tepedino ao

elogiar as medidas eugênicas dos médicos franceses em “obstar casamentos improprios”

- que contribuem para impedir a “eclosão de sêres defeituosos, biologicamente inferiores

[...] debeis mentaes, filhos de paes alcoolicos e de paes syphiliticos” (Diário da Noite,

16/11/1939) – traz também que a única forma de alcançar o “verdadeiro sonho eugenico

de Pinard5” seria através da educação:

Pela educação dos moços; pela melhoria das condições individuaes; pela

educação sexual discreta que não ensina o vicio, mas corrige a ignorancia; pelo

ensino individual das praticas hygienicas e eugenicas etc. etc., procuram as

nações cultas impedir as prôles degeneradas. Na culta Allemanha, é sabido, foi

até comminada a esterilização quando resolvida por uma junta medica. O

methodo da esterilização em desaccôrdo com a indole emotiva e religiosa dos

povos latinos, em nosso meio, não poderia lograr acceitação... (ibid.)

5 Adolphe Pinard (1844-1934) foi um obstetra pasteuriano francês, que buscou aliar os preceitos da

puericultura à eugenia, de modo que devessem ser aplicadas as técnicas de puericultura “antes da

procriação”, para obter desta forma a “melhoria da espécie” (Cf. Dias, 2008).

Sendo assim, a educação eugênica aproximaria o Brasil do “sonho eugênico”, mas

não a ponto de serem utilizados métodos de esterilização, como a “culta” Alemanha

nazista já praticava6, tendo em vista a índole “emotiva e religiosa dos povos latinos”, que

deveriam então praticar a eugenia preventiva. Esta, não deveria ser lavrada apenas pelas

fontes institucionais oficiais, mas através de uma campanha que se estendesse em “todos

os âmbitos da vida, por meio de parâmetros higiênicos, aos quais se pretende adequar o

comportamento cotidiano dos indivíduos” (Romero, 2002, p. 80).

A educação e os exames pré-nupciais figuram então como os principais elementos

na dinâmica da eugenia preventiva, sendo constantemente aconselhados pelo escritor da

coluna, como aparece nesta edição em resposta à carta de “Maria Angelica”:

Exigir de seu noivo um exame pre-nupcial é idéa optima, principalmente

quando póde, tambem, como é o seu caso, exhibir o seu. Hoje, nos paizes

cultos, entre os papeis que a lei exige, figuram os exames pre-nupciaes de

ambos os conjuges. Se quiser poderá lêr a respeito os livros do Dr. Renato Kehl

que versam o assumpto de sua consulta. Aliás, o laudo favorável do exame pre-

nupcial já é de per si sufficiente. Que não haja escrupulo excessivo. Para seus

nervos que ameaçam descambar (cousa trivial em vespera de casamento...)

poderá usar Tanagrán – optimo tonico feminino á base de phosphatos. (Diário

da Noite, 13/03/1937)

Em determinados momentos haveria inclusive uma “beleza eugênica” que a

mulher obteria através do consumo de determinados produtos, cumprimento de uma

rotina dietética e prática esportiva regular. Desta forma, ela transmitiria os caracteres

adquiridos para as próximas gerações7, conforme esta resposta à “Liana”:

6 O método de esterilização torna-se amplamente utilizado no período entre guerras por diversos países

além da Alemanha. Em 1922, os EUA já é o país que aplica mais intensamente esta forma de eugenia com

respaldo legal. Após a crise de 1929 a esterilização passa a ser feita legalmente na Suíça, Dinamarca,

Alemanha, Suécia, Noruega, Finlândia e Estônia. Devido ao seu baixo custo de operação, a esterilização

torna-se mais popular do que o método do isolamento, cujo objetivo era a internação daqueles que

carregavam caracteres “disgênicos”, conforme o modelo inglês adotado em 1913 (Cf. Mazower, 2001). 7 Neste exemplo mencionado podemos ver a influência da corrente neolamarckista de transmissão das

características adquiridas. No final do século XIX o evolucionismo darwinista sofre o primeiro declínio

após a “primeira revolução darwiniana”, dando espaço para a aparição de outras correntes - entre elas o

neolamarckismo e a ortogênese -, e só alcançará unanimidade nos círculos científicos a partir da década de

1940, na então “segunda revolução darwiniana” (Santos, 1996).

Após 5 minutos de pulverização enchugar o rosto com algodão e fazer

massagem com Citronét. Regime alimentar, quanto possível, isento de

gordurosos, frios e conservas. Para o cabelo gorduroso: Kin-Eón – excellente

loção tonica à base de quinina, pilocarpina e balsamo do Peru’. Continuará a

gentil consulente com o seu esporte. Hoje o termo belleza traz comsigo a idéa

de vida esportiva, de vida ao ar livre [...] A mulher paulista, a pouco e pouco,

tórna-se uma adepta da moderna eugenia, conscia de seu papel de transmissora

da belleza. O aperfeiçoamento physico, sem esquecer o moral e intelectual, não

será uma reedição da linha Sparta? A mulher de hoje, ao envez do “baton” e

do “rouge” prefére o carminado natural que lhe advem de um sangue rico em

globulos vermelhos. (Diário da Noite, 06/03/1936)

Em uma época em que a cosmetologia ainda não havia se firmado, o médico

enaltece as características “naturais” da mulher, que através do cumprimento dos

preceitos eugênicos atingiria uma beleza que seria hereditária.

Não obstante os imperativos relacionados à estética feminina e à família, surgia

frequentemente uma relação entre nacionalismo e eugenia. Contudo, um nacionalismo

muitas vezes relativo ao Estado de São Paulo e não ao Brasil como um todo, pois São

Paulo ao despontar como símbolo de modernização e desenvolvimento industrial, deveria

possuir igualmente uma “raça” à altura da posição que o Estado vinha adquirindo. Assim,

o consulente “D.S.X” não deveria buscar a cura da lues, ou sífilis, apenas pelo seu próprio

bem-estar, mas principalmente por pertencer à jovem geração paulista inserido no

processo desenvolvimentista:

Ouvirá um medico de sua confiança. Si, de facto, tem as suas duvidas, convem

esclarecer-se. Lues é factor dysgenico: golpeia a familia, a raça, o Estado de

São Paulo, blóco de ouro engastado na confederação brasileira, não dispensa o

concurso de uma juventude forte, viril, eugenica. Na mystica de seu alto

destino deve o Estado “leader” contar com uma raça plasmada em optimos e

sadios caracteres genéticos. Os porvindouros em linha directa, se unem aos

moços da actual geração. Cumpre que os representantes da nóva estirpe tenham

sempre presente a noção de responsabilidade que lhes cabe na transmissão do

archóte sagrado, no caso, a boa e sadia próle. (Diário da Noite, 03/08/1936)

Em outra resposta, o Dr. Tepedino utiliza palavras semelhantes para se dirigir ao

“Esportista”, que havia obtido reação negativa em um teste de sangue para uma doença

não nomeada, mas ao que tudo indica, a reação negativa é referente à blenorragia ou à

sífilis:

Parabéns! São Paulo, o Estado “leader” tem precisão de filhos fortes,

eugenicos. Na mystica de seu alto destino o Estado de S. Paulo, bloco de ouro

da Federação Brasileira, não pode dispensar o concurso de uma população

densa, forte, cohesa, nobre em seus alevantados idéaes. O rythmo magestoso

de vida, de seiva que caracterisa o ambiente está a exigir um correspondente

individuo sadio e forte que bem assimile o espirito da terra moça. A grandeza

da nacionalidade depende em grande parte da saude da raça. Terçar armas em

pról de uma juventude sã escoimada dos factores dysgenicos - lues, blenos e

álcool, etc. – é um dever que, sem duvida cabe a todos que amam o Brasil e S.

Paulo acima de tudo. (Diário da Noite, 11/03/1937)

Portanto, esta necessidade de jovens livres dos elementos “dysgenicos” torna-se

um imperativo para amparar o processo desenvolvimentista do Estado paulista, a tal ponto

que este parece se sobrepor ao próprio nível federal8.

Enfim, temos nestes exemplos do “Consultório Médico” a representação do

ideário médico científico da década de 30, no que tange os preceitos eugênicos lavrados

sobre os eventos cotidianos da população paulista, em uma postura de alinhamento com

o projeto de modernização desenvolvimentista. E, este alinhamento requer uma atitude

de descrédito em relação àqueles que se valem de outros métodos de cura, que não seja o

dito científico. O Dr. Tepedino, assim como a maior parte do corpo clínico tecerá críticas

aos chamados “curandeiros”, conforme observa-se abaixo:

8 Esta sobreposição pode ser entendida à luz do contexto histórico, como um sentimento de insatisfação da

população paulista em relação à ditadura varguista, além do preceito que São Paulo tomava a dianteira no

processo de industrialização. No período da Revolução Constitucionalista de 1932, viu-se uma expansão

do descontentamento com o governo ultrapassar o âmbito das elites e dos militares para - através da

imprensa, rádio, militância estudantil etc. – atingir a maior parte dos grupos sociais. Desta forma “a

constituição de um discurso no qual cada indivíduo se sentisse diretamente atingido pela ‘ditadura’ pode

auxiliar a compreensão da maciça adesão popular à ‘causa paulista’ de 1932” (Cohen, 2010, p. 272). Assim,

intensifica-se o sentimento regionalista da população paulista em relação ao restante do Brasil.

O doente de forma alguma dispensa o seu adminiculo, seja este chimico, seja

hormonico. O profissional medico que se limitta a cuidar da parte psychica do

enfermo incorre ainda num outro perigo: o doente que se vê sem remedio,

procura o curandeiro que tem sempre prompta a sua “aguinha”, a quem elle

empresta virtudes maravilhosas... (Diário da Noite, 01/01/1939)

Em seguida discorre-se a respeito da grande variedade de especialidades no

mercado, e como o Tônico Nervét é a manipulação mais confiável.

Mas, embora o discurso do Dr. Tepedino se assemelhasse aos dos clínicos

institucionais, ele sofrerá restrições por conta da posição intermediária em que se

encontrava, como médico/cientista e como propagandista de um medicamento popular,

ocupando um espaço popular que, a despeito de tratar as classes pobres, acabava por surtir

os mesmos efeitos da automedicação, ou seja, a não ida do paciente à clínica médica.

Desta forma, no dia 22 de março de 1937 é anunciado que o Dr. Tepedino “de

hoje em diante, não mais responderá por intermedio desta folha às cartas que lhe forem

endereçadas”, por conta do decreto-lei 20.931 de 11 de janeiro 1932, que dizia em seu

artigo 16 que é “vedado ao médico manter a publicação de conselhos e receitas a

consulentes por correspondência ou pela imprensa”.

A partir de então, a coluna se restringirá a dar conselhos médicos em geral, com

ênfase nas mesmas questões que tratava anteriormente, embora com um maior nível de

elaboração, já que a cada dia é descrita somente um tipo de moléstia. Nota-se um certo

pesar na edição do dia 22 de março, em que o escritor anuncia o fim do formato antigo

da coluna, com uma crítica aos “zoilos” e uma tentativa de explicação frente ao decreto

imposto:

Quem subscreve procurou sempre a todos atender, diligenciando de envolta

com suggestões do momento, divulgar conhecimentos uteis, noções de hygiene

geral e, sobretudo, conceitos de ordem cultural. Da medicina pura jamais

cogitou a Secção – e seria um absurdo fazel-o aqui [...] Uma especial

“estratosphera” existe entre a medicina pura e a psychologia collectiva – e foi

sempre nesta attitude que sempre se collocou quem subscreve. Os zoilos que

viviam a respigar pretextos para o seu narcizismo appellavam para a

imaginação afim de concretizar seus propositos... O que é certo é que ha uma

parte doutrinaria, sociologica da arte medica que elles, deliberadamente,

procuraram sempre ignorar. (Diário da Noite, 22/03/1937)

Assim, emite-se a ideia de que a coluna nunca procurou fazer “medicina pura”, no

sentido de que não buscava competir com a clínica oficial, e que buscava atingir aspectos

mais abrangentes, que seria a “parte doutrinaria, sociologica da arte medica”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este exemplo pontual da coluna do Dr. Tepedino serve para ilustrar um processo

maior, a saber, as restrições e proibições impostas às práticas médicas e curativas que não

se enquadrassem no modelo dito científico. Portanto, além dos curandeiros, benzedeiras

e outros alinhados a vertentes religiosas não cristãs, aqueles que ocupavam os espaços da

imprensa “popular”, como o Dr. Tepedino e os anunciantes de medicamentos, sofrerão

um cerceamento e serão restringidos em suas práticas por uma diversidade de frentes.

A coluna também nos auxilia a compreender como diversos preceitos médicos

ainda se encontravam arraigados no discurso cotidiano da população, como, por exemplo,

na questão da eugenia. Ao mesmo tempo, nesta diversidade temática acerca da saúde

cotidiana, vemos a imisção entre características sociais resultantes do seu período

histórico e questões referentes à saúde e à salubridade, já que, diferentemente dos tratados

e artigos médicos, os corpos doentes representados nos jornais populares eram os corpos

reais inseridos em suas tramas sociais.

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