as licenciaturas na atualidade

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Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 50, p. 69-86, out./dez. 2013. Editora UFPR 69 As licenciaturas na atualidade: nova crise? Teacher training courses in the present time: new crisis? Antônia Vitória Soares Aranha 1 João Valdir Alves de Souza 1 RESUMO Este artigo visa situar o debate atual sobre a crise nas licenciaturas, pontuando algumas circunstâncias históricas tanto de afirmação e ampliação da escola como locus privilegiado do ensino no mundo moderno quanto da emergên- cia do sentimento de que ela não cumpriu a promessa de formar cidadãos autônomos, livres e iguais em direitos. Exemplifica essa crise com dados apurados pela Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD) e pelo Colegiado Especial de Licenciaturas da Universidade Federal Minas Gerais (UFMG) sobre a relação candidato/vaga nos seus últimos 15 vestibulares. Esses dados apontam para um contínuo esvaziamento dos cursos de licenciatura, tanto no que se refere aos vestibulares quanto aos que se formam, mas optam por ocupações mais vantajosas economicamente. Isso traz questões relevantes para se pensar tanto a formação inicial quanto a formação continuada de professores, uma vez que, em decorrência das vertiginosas mudanças na vida social contemporânea, há um descompasso entre os processos de formação e a emergência de novas demandas para as quais o corpo docente parece sempre estar despreparado para assumir. Palavras-chave: licenciaturas; formação de professores; condição docente; crise na educação; licenciaturas na UFMG. ABSTRACT The article focuses on the current debate on the crisis of teacher education, pointing out some historic circumstances of either affirmation and amplifi- cation of school as the privileged place for teaching in the modern world, 1 Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Av. Antônio Carlos, Nº 6627 – Pampulha. CEP: 31.270-901.

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  • Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 50, p. 69-86, out./dez. 2013. Editora UFPR 69

    As licenciaturas na atualidade: nova crise?

    Teacher training courses in the present time: new crisis?

    Antnia Vitria Soares Aranha1 Joo Valdir Alves de Souza1

    RESUMO

    Este artigo visa situar o debate atual sobre a crise nas licenciaturas, pontuando algumas circunstncias histricas tanto de afirmao e ampliao da escola como locus privilegiado do ensino no mundo moderno quanto da emergn-cia do sentimento de que ela no cumpriu a promessa de formar cidados autnomos, livres e iguais em direitos. Exemplifica essa crise com dados apurados pela Pr-Reitoria de Graduao (PROGRAD) e pelo Colegiado Especial de Licenciaturas da Universidade Federal Minas Gerais (UFMG) sobre a relao candidato/vaga nos seus ltimos 15 vestibulares. Esses dados apontam para um contnuo esvaziamento dos cursos de licenciatura, tanto no que se refere aos vestibulares quanto aos que se formam, mas optam por ocupaes mais vantajosas economicamente. Isso traz questes relevantes para se pensar tanto a formao inicial quanto a formao continuada de professores, uma vez que, em decorrncia das vertiginosas mudanas na vida social contempornea, h um descompasso entre os processos de formao e a emergncia de novas demandas para as quais o corpo docente parece sempre estar despreparado para assumir.

    Palavras-chave: licenciaturas; formao de professores; condio docente; crise na educao; licenciaturas na UFMG.

    ABSTRACT

    The article focuses on the current debate on the crisis of teacher education, pointing out some historic circumstances of either affirmation and amplifi-cation of school as the privileged place for teaching in the modern world,

    1 Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Av. Antnio Carlos, N 6627 Pampulha. CEP: 31.270-901.

  • ARANHA, A. V. S.; SOUZA, J. V. A. de. As licenciaturas na atualidade: nova crise?

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    and also the emergence of the feeling that it did not accomplish the promise of developing autonomous citizens, free and equal in rights. We exemplify this crisis using data from PROGRAD and from the UFMGs special staff group for teaching education on the relation between candidate numbers and available places during its last 15 years of exams for university en-trance. These data shows a continuous emptying of the teacher education undergraduate courses, referring both to entering the university and to gra-duating but choosing other more economically profitable jobs. This brings out relevant points to think about both the beginning and the continuous education process of teachers since, as a consequence of changes in social contemporary life, there is a mismatch between the processes of training and the emergence of new demands for which the education staff seems not always to be prepared to assume.

    Keywords: teacher education; teacher training; teaching staff; education crisis; UFMG teacher education.

    Introduo

    Tornou-se um lugar-comum afirmar que os cursos de licenciatura vivem atualmente uma profunda crise. Porm, como afirma Srgio Paulo Rouanet (1993), ao escrever sobre a crise da modernidade, como outros lugares-comuns este pode at ser verdadeiro, desde que se entenda bem o alcance do diagnsti-co (ROUANET, 1993, p. 9). A tese de Rouanet que a crise da modernidade uma crise de civilizao.

    O que est em crise o projeto moderno de civilizao, elaborado pela Ilustrao europia a partir de motivos da cultura judeo-clssica-crist e aprofundado nos dois sculos subseqentes por movimentos como o liberal-capitalismo e o socialismo. (ROUANET, 1993, p. 9).

    Se tomarmos como consistente essa tese de Rouanet (1993) e entender-mos que a forma escolar predominante nos nossos dias se constituiu como parte fundamental desse projeto moderno de civilizao, o argumento bsico do diagnstico passa pelo entendimento de que a formao de professores est em crise porque est em crise a escola constituda como parte desse projeto. Em outras palavras, o que est em crise o prprio sistema de ensino moderno,

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    constitudo no contexto dos modernos estados nacionais a partir do sculo XIX. Como essa generalidade pode nos levar ao extremo de dizer, como foi dito por um experiente bilogo em assembleia de professores em greve, que desde quando descemos das rvores estamos em crise, preciso trazer elementos mais palpveis ao diagnstico para que ele tenha algum poder de explicao da situao atual.

    O propsito deste artigo trazer elementos para ampliar nossa compreen-so de um paradoxo: quanto mais falamos em crise da educao escolar, mais escolarizada se torna a nossa sociedade; e quanto mais vemos entrar na escola os pblicos que por ela lutaram, ao longo desses dois ltimos sculos, maior a nossa sensao de que a educao escolar est em crise. Qualquer tentativa de entendimento da questo deve comear, ento, necessariamente pelo entendi-mento do significado da palavra crise. A partir desse entendimento, tentaremos especificar algumas caractersticas atuais do nosso sistema de ensino e apontar alguns elementos constitutivos da atual crise dos cursos de licenciatura.

    A crise

    Conforme pode ser lido em vrios dicionrios (CUNHA, 2010; HOUAISS, 2001; FERREIRA, 1986; BRUNKHOST, 1996), a palavra crise vem do latim crisis, que por sua vez deriva do grego krsis, que tambm est na origem da palavra crtica. O entendimento mais comum permitido por esses dicionrios o de que a crise expressa a alterao ou desequilbrio repentino (CUNHA, 2010, p. 190), o que submete determinada realidade a um estado de dvida e incerteza, com extensa designao de situaes que vo dos organismos vivos s estruturas socioeconmicas. Esse desequilbrio pode ser conjuntural, se ele afeta em escala menor e em tempo relativamente curto a situao observada, ou estrutural, se ele afeta a prpria estrutura constitutiva dessa realidade e se prolonga no tempo. A crise de que tratamos, portanto, pode ser caracterizada como estrutural e parece ter nascido com a prpria constituio dos sistemas de ensino.

    Mas a crise pode ser entendida, tambm, como a ao ou faculdade de distinguir, ao de escolher, decidir, julgar (HOUAISS, 2001, p. 872). por essa perspectiva que podemos entender a crise como uma relao. Essa relao pode ser observada tanto em face de dados objetivos tomados como referncia (percentual de crescimento econmico menor agora que em perodos anteriores ou em comparao com outra unidade de anlise) quanto em face da nossa capa-

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    cidade de fazer escolhas, tomar decises e fazer julgamentos. Quanto mais amplo o espectro das escolhas maior a possibilidade de que se instaure a dvida e, com ela, a sensao de desconforto, instabilidade e desequilbrio. Quanto mais ampla for a nossa capacidade de fazer julgamentos, maior a probabilidade de encontrarmos uma realidade no correspondente aos nossos desejos, sejam os de ordem mais ntima e particular, sejam aqueles que brotaram de grandes projetos coletivos e da vida pblica. Sob essa perspectiva, a crise a no realizao do projeto ou da promessa e ela to mais amplamente sentida quanto maior a expectativa gerada por essa promessa e a nossa capacidade de julg-la.

    Todo projeto traz, de certa forma, uma promessa. Mesmo que a palavra promessa tenha ficado cada vez mais circunscrita ao campo religioso (pro-missa, promisso) e projeto expresse sua variao secular, racionalizada e submetida ao clculo da relao entre meios e fins, nada nos impede de ver como promissora uma ideia que encontra campo frtil para sua efetivao. O projeto civilizatrio da modernidade de que fala Rouanet (1993) era promissor e escola era atribuda grande responsabilidade para sua realizao. Eram trs os ingredientes conceptuais bsicos desse projeto: a universalidade, a indivi-dualidade e a autonomia. Diz Rouanet:

    A universalidade significa que ele visa todos os seres humanos, independentemente de barreiras nacionais, tnicas ou culturais. A individualidade significa que esses seres humanos so considerados como pessoas concretas e no como integrantes de uma coletividade e que se atribui valor tico positivo sua crescente individualizao. A autonomia significa que esses seres humanos individualizados so aptos a pensarem por si mesmos, sem a tutela da religio ou da ideologia, a agirem no espao pblico e a adquirirem pelo seu trabalho os bens e servios necessrios sobrevivncia material (ROUANET, 1993, p. 9).

    O diagnstico de Rouanet (1993) que esse projeto no realizou sua promessa e faz gua por todas as juntas (p. 9). A universalidade tinha sua expresso mxima no art. 1 da Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, segundo a qual Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. No necessria muita discusso para ficar claro que liberdade e igualdade ainda figuram como elevados ideais cuja realizao exige rdua luta por conquista. Segundo Rouanet (1993), a proliferao de particularismos nacionais, culturais, raciais ou religiosos evidencia a distncia entre esses ideais e a realidade concreta dos fatos.

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    A individualidade, diz ele, um dos elementos constitutivos da moderni-dade, expresso mais elevada da afirmao do indivduo face coletividade, submerge cada vez mais no anonimato do conformismo e da sociedade de consumo (ROUANET, 1993, p. 9). Se a individualidade se refere liberao dos indivduos face s estruturas que os prendiam aos domnios do coletivo, o individualismo se revela uma grave doena que faz com que cada um d as costas aos outros, desde as relaes mais domsticas e privadas at aquelas em que se espera de todos uma cooperao para o bem pblico.

    Quanto autonomia, Rouanet (1993) apontava para ela trs dimenses. A autonomia intelectual, a autonomia poltica e a autonomia econmica. A autonomia intelectual, diz ele, estava no cerne do projeto civilizatrio da Ilustrao. O objetivo bsico era libertar a razo do preconceito, isto , da opinio sem julgamento (p. 16). Kant o seu grande artfice, ao propor que o esclarecimento a capacidade de os homens tornarem-se senhores de si mesmos. Pelo bom uso da razo, deixariam o estado de menoridade intelectual a que tinham sido submetidos por milnios e alcanariam, por seu prprio esforo, a sua maioridade. Esse ideal trazia a expectativa de que a escola seria o lugar da sua realizao. Se a escola realizou ou no esse ideal questo abordada em amplos debates acadmicos desde ento.

    A autonomia poltica dizia respeito liberdade de ao do cidado no espao pblico. Seja na vertente liberal, em que essa liberdade era a garantia de que o cidado estaria livre da ao arbitrria do Estado, ou na vertente democrtica, em que o cidado era livre para constituir o prprio Estado, a autonomia poltica trazia para o espao do debate e da luta poltica a ideia de que os homens estabelecem contratos sociais para tornar menos rdua a vida em sociedade. A maior expresso desse contrato o voto e o sufrgio universal um dos maiores indicadores do grau de democracia de uma sociedade. Tanto o elevado grau de absteno onde o voto facultativo quanto o elevado ndice de insatisfao dos eleitores com seus polticos, nos diversos cantos do mundo, so indicadores de que o projeto ainda est longe de se realizar.

    A autonomia econmica trazia como caracterstica bsica a ideia de que os homens deveriam ser livres para produzir as condies materiais de existn-cia e que somente o trabalho livre permitiria a eles essa condio. claro que, visto de longe, esse ideal certamente contribuiu para alavancar lutas contra a servido e a escravido, mas basta uma rpida leitura dos jornais dos nossos dias para se perceber que o desemprego e o subemprego deixam muito distante dessa autonomia grande parte dos trabalhadores em diversas partes do mundo.

    Esses ingredientes conceptuais orientaram, efetivamente, lutas histricas por transformao social e pela efetivao do projeto, uma vez que prprio da modernidade ocidental entender o mundo como construo humana e no como

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    desgnio divino. O entendimento de que o homem sujeito da histria encontrou eco em diversas formulaes filosficas, e o que foi transposto para o terreno da luta poltica teve efetivas repercusses em todas as dimenses da vida social, econmica, poltica e cultural. A Era das Revolues (HOBSBAWM, 1982) e A Era dos Direitos (BOBBIO, 2004) so dois dentre muitos ttulos que tratam dessas grandes transformaes que fundaram o mundo moderno efetivamente em novas bases.

    Dentre todas as promessas que emergiram desse contexto revolucionrio, nenhuma se equipara em popularidade com aquela que dizia ser a educao um direito do cidado e um dever do Estado. A partir do final do sculo XVIII, ampliou-se e difundiu-se esse ideal, que foi amplamente correspondido com a constituio de grandes sistemas nacionais de ensino, o que implicava construir rede fsica para abrigar os crescentes pblicos escolares, elaborar os currculos organizadores dos percursos escolares, debater os modos mais apropriados para ensinar a todos esses pblicos os contedos estabelecidos, fazer campanhas para que todas as crianas fossem mandadas escola (primeiro por direito, depois por obrigao) e, claro, formar os professores e professoras que, em nmero crescente, esse sistema demandaria.

    Essa escola deveria ensinar e instruir, mas ela deveria tambm educar, pois comeou a ser considerada um lugar importante aonde todos no apenas deveriam ir para aprender a ler, escrever e contar, mas, sobretudo, para formar uma nova sensibilidade relativamente a esse mundo novo da vida moderna. Dentre todos os ingredientes conceptuais do projeto civilizatrio da moder-nidade, aquele que mais se ligou escola o da autonomia intelectual. Nas palavras do prprio Rouanet (1993), a educao e cincia tinham importncia crucial, pois eram as nicas formas de imunizar o esprito humano contra as investidas do obscurantismo e substituir o dogma pelo saber, ou, para usar metforas da poca, dissipar com a luz da verdade as quimeras e fantasias da superstio (p. 16).

    Claro est que a constituio de sistemas de ensino variou de pas para pas e nem sempre o processo aconteceu sem percalos dentro das fronteiras de um mesmo territrio. Mas um olhar panormico sobre os processos de escola-rizao nos permite apontar, mesmo que apenas para efeito didtico, algumas caractersticas bsicas desse processo: 1) um acentuado processo de escolari-zao das sociedades, tanto em termos de expanso das redes de ensino quanto na extenso do atendimento aos pblicos de ensino superior e aos da educao infantil; 2) uma forte correlao entre acesso a diplomas de graduao/ps--graduao e ocupao de postos mais elevados na hierarquia ocupacional, ainda que nem todos os titulados encontrem emprego nesses postos mais elevados; 3) elevada variao dessa correspondncia em consonncia com os momentos

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    de expanso/retrao da economia, o que indica, segundo Wright Mills, que A educao [escolar] atuar como instrumento de obteno do sucesso somente at quando as necessidades ocupacionais de uma sociedade o exijam (MILLS, 1987, p. 278); e 4) perda da centralidade da escola como veculo de difuso do conhecimento sistematizado e, por extenso, perda da autoridade do professor como guardio desse conhecimento.

    A despeito desse acentuado processo de escolarizao, que se estendeu a todas as sociedades, a ponto de se configurar como um dos seus importantes indicadores de modernidade, a crise da escola comeou a ser percebida desde quando os sistemas de ensino comearam a ser constitudos. Escrevendo sobre o ensino secundrio francs, no final do sculo XIX, o socilogo mile Durkheim foi enftico ao cravar essa crise no cerne da estrutura social, ainda que a Frana do seu tempo estivesse colhendo os frutos da consolidao da Terceira Repblica e vivendo o entusiasmo da belle poque. Segundo Durkheim, em registro que nos soa muito familiar em nossos dias:

    Costuma-se fazer queixas das variaes por demais freqentes que ocorreram nos programas, nos ltimos vinte anos, e culpa-se ocasionalmente essas mudanas por demais repetidas pela crise atualmente vivida pelo ensino secundrio. V-se que essa instabilidade no data de ontem; que no imputvel a tais personalidades ou a tais circunstncias particulares, mas sim que configura um estado crnico, que dura h um sculo, e depende evidentemente de causas impessoais. Longe de ser a causa do mal, seu efeito e indcio exterior; revela-o mais do que o produz. [...] Acredita-se que, para restabelecer nosso ensino secundrio em bases slidas, bastariam algumas felizes mudanas de detalhe, bastaria encontrar uma melhor dosagem das disciplinas ensinadas, aumentar a parte das letras ou das cincias, ou equilibr-las engenhosamente, quando o necessrio, na verdade, uma mudana de esprito e orientao (DURKHEIM, 1995, p. 287-288).

    Se deslocarmos nossa ateno para a mesma Frana, 80 anos depois de Durkheim, vamos encontrar em Jean-Claude Forquin uma leitura bastante se-melhante acerca da perda da centralidade da escola e, portanto, seu mergulho na crise contempornea. Segundo ele, ningum pode ensinar verdadeiramente se no ensina alguma coisa que seja verdadeira ou vlida a seus prprios olhos (FORQUIN, 1993, p. 9). O problema que o clima de agitao cultural e a grande transformao miditica que marcaram o mundo ocidental a partir dos anos 1960 retiraram da escola o locus da aprendizagem e solaparam as bases

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    sobre as quais se sustentavam os professores para levar adiante o ofcio da docncia. Foi essa quebra brusca tanto da instituio como locus fundamental da produo e difuso do conhecimento moderno quanto do profissional que ali atuava como seu principal agente que instaurou essa crise que se arrasta at nossos dias. Ainda que a crise da educao escolar no tenha se iniciado nessa poca, como testemunha o registro de Durkheim (1995), a partir da que uma espcie de conscincia pblica dela passou a incomodar sobremaneira os pro-fissionais do ensino e seus estudiosos. Diz ele:

    Essa crise demonstrada, em particular, pela instabilidade dos programas e cursos escolares constatada atualmente por toda parte. No se sabe mais o que verdadeiramente merece ser ensinado a ttulo de estudos gerais: o crculo dos saberes formadores, aquilo que os Gregos chamavam enkuklios paidia, perdeu seu centro e seu equilibrio; a cultura geral perdeu sua forma e sua substncia. Os anos 70 fizeram triunfar um discurso de deslegitimao poderosamente articulado em torno de certas contribuies recentes das cincias sociais. O discurso de restaurao que se esboa nos anos 80 fica muito freqentemente confinado ao estreito mbito do ressentimento. De fato, por toda parte, o instrumentalismo estreito que reina, o discurso da adaptao e da utilidade momentnea, enquanto que as questes fundamentais, as que dizem respeito justificao cultural da escola, so sufocadas ou ignoradas (FORQUIN, 1993, p. 10).

    Conforme abordado em outro texto (SOUZA, 2013), essa crise instaurada no fazer pedaggico pode ser atribuda a vrios fatores, mas podemos destacar pelo menos trs deles como os mais relevantes. O primeiro fator aparece na citao acima e pode ser creditado ao prprio exerccio da crtica (krsis) pro-duzida pelas cincias sociais, sobretudo quando elas tomaram a educao como seu objeto privilegiado de anlise. Em outras palavras, leia-se paradigma da reproduo e seu efeito de deslegitimao da autoridade pedaggica. Como se sabe, o paradigma da reproduo foi constitudo por um conjunto de teorias sociolgicas da educao que se desenvolveram, principalmente na Frana, a partir dos anos 1960, e que traziam uma nova explicao sobre a relao entre escola e sociedade. Ele indica que a escola funciona mais como mecanismo de reproduo da realidade social que de produo de novas relaes sociais, e exerceu enorme influncia na crtica s instituies escolares. Nas dcadas de 1960 e 1970, uma grande quantidade de estudos sobre a escola passou a

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    denunci-la como instrumento de reproduo social, o que inverteu radicalmente a expectativa que se tinha dela. A promessa cedeu lugar ao desencanto. Louis Althusser (1969) denunciou a escola como espao de reproduo da ideologia dominante. Pierre Bourdieu e Claude Passeron (1992) denunciaram-na como espao de reproduo da cultura dominante. Christian Baudelot e Roger Establet (1972) viram nela os espaos de reproduo das relaes de classe do capita-lismo. Basta ler o livro de Pierre Bourdieu e Claude Passeron (1992) que deu nome ao paradigma para se ter certeza disso.

    Um segundo fator, talvez como decorrncia desse primeiro e tambm apontado na citao, foi a desestabilizao trazida pela crtica severa de que foram alvo a escola e os profissionais do ensino. Ao deslegitimar os saberes escolares sob o argumento de que eles constituam um arbitrrio cultural, e as prticas pedaggicas sob o argumento de que elas legitimavam esse arbitrrio, os professores foram jogados no limbo da indefinio curricular e da insegu-rana relativa ao qu e ao como ensinar. A ampliao do debate que se seguiu at o final do sculo e aos nossos dias, a despeito do repetido jargo que associa educao transformao, em vez de apontar novas possibilidades pedaggicas e criar novas referncias para o trabalho docente, parece ter sido sufocada no criticismo e esgotado a capacidade de criar algo efetivamente novo e estabelecer alguma segurana aos professores em seu ofcio.

    Um terceiro fator, talvez o mais importante a ser destacado, foi a mu-dana do perfil da escola, com a entrada de pblicos que, at ento, no eram parte dela, ou que, apesar de ter tentado anteriormente fazer parte dela, eram mandados de volta para casa sem que ningum se incomodasse com isso. Ao se realizar o desiderato da escola para todos, direito do cidado e dever do Estado, os profissionais do ensino se viram diante de um alto preo a pagar por essa conquista. Pois, uma coisa ter uma escola para pblicos j predispostos escolarizao e na qual ficam aqueles que se adaptam aos seus rituais e so-brevivem s suas exigncias. Coisa muito distinta ter uma escola para todos, no apenas no discurso, mas numa prtica cotidiana que no apenas d conta do jogo das diferenas, mas que assegure aos desiguais as mesmas condies de percurso. Acrescente-se a essa condio discente alunos que vm no apenas de lugares diferentes, mas, tambm, desiguais uma condio docente cada vez mais atravessada pela precarizao do trabalho e desvalorizao do ofcio, num cenrio em que professores e opinio pblica internalizaram como habi-tus a conscincia de que todos devem ser escolarizados, e teremos pelo menos parte da explicao do porqu a crise atual na educao tem como uma de suas decorrncias o adoecimento dos professores ou o elevado grau de absentesmo ao trabalho (DIAS, 2012).

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    As licenciaturas

    Disso decorre, portanto, que h fortes evidncias, nos dias atuais, de que a profisso docente vive uma crise sem precedentes na histria do nosso ensino, uma crise estrutural, conforme foi dito anteriormente. A despeito da grande diversidade de condies da oferta e demanda por escolarizao, tanto no que se refere condio docente quanto condio discente, produto da diferen-ciao sociocultural e das desigualdades socioeconmicas, essa crise atravessa a estrutura da pirmide escolar de alto a baixo, no apenas no Brasil, mas em vrias partes do mundo.

    Ela combina ingredientes de natureza muito diversa, mas o elemento--chave da sua explicao o baixo valor do diploma de professor, sobretudo na educao bsica, tanto no mercado de bens econmicos (salrio) quanto no mercado de bens simblicos (prestgio). Esse baixo valor do diploma expressa uma terrvel contradio: quanto mais expandimos a oferta do ensino escolar, maior se revela nossa dificuldade de formar professores para atend-la. Quanto mais escolarizada se torna nossa sociedade, maior a sensao de que a escola no corresponde ao que esperamos dela no nosso tempo.

    Pode-se dizer, ento, que estamos pagando o preo caro por uma conquista. Desde o sculo XVIII, na Europa, e pelo menos desde o final do sculo XIX, no Brasil, reivindica-se educao como direito do cidado e dever do Estado. Como resultado dessa reivindicao, todos ou quase todos vieram para a escola. Vieram os filhos dos camponeses, os dos moradores das periferias urbanas, os indgenas, os deficientes fsicos e, inclusive, um pblico altamente refratrio ao que a escola espera dele e deseja para ele. Vieram todos por direito, como resultado de lutas histricas pela sua incluso nos sistemas de ensino. Mas, como no h milagres em matria de educao e ensino, isso tambm exigiria formar em quantidade e qualidade os professores que dariam conta dessa ta-refa em condies que correspondessem elevada expectativa criada por essa ampliao do atendimento escolar.

    Ao se encerrar o sculo XX, o Brasil comemorava a universalizao do ensino fundamental e atualmente trabalhamos arduamente para universalizar, at 2016, a educao infantil e o ensino mdio, cujo atendimento est na casa dos 50%, varivel entre as regies. No bastasse a escassez de professores para a demanda atual, que o Ministrio Educao (MEC) j contabiliza na casa dos 250 mil, sobretudo para o ensino das cincias da natureza, universalizar a edu-cao bsica implica a necessidade de formar mais e bem os professores para realizar a tarefa. Essa legtima proposta do Plano Nacional de Educao (PNE)

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    esbarra, contudo, em problemas cuja gravidade nos deixa poucas expectativas para sua realizao. Mais uma vez, o projeto pode revelar-se uma promessa muito difcil de ser cumprida.

    Um desses problemas a baixa atratividade da carreira docente, com re-crutamento dos estudantes dos cursos de licenciatura justamente entre aqueles de escolarizao bsica mais precria. Isso j evidencia que o acesso ao ensino superior no se d do mesmo modo para os membros de todas as classes sociais e que a maioria dentre aqueles que esto rompendo as barreiras econmicas e realizando o sonho de chegar universidade, o fazem pela via dos cursos cujo valor do diploma bem menor. Indicador preocupante dessa baixa atratividade est expresso na relao candidato/vaga dos ltimos 14 vestibulares da Univer-sidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (2000-2013), o que parece estar longe de ser uma situao exclusiva desta Universidade. Em 2000, dos 17 cursos mais concorridos, seis formavam professores. Nos vestibulares 2012 e 2013, no houve um nico curso de licenciatura entre os 15 mais concorridos.

    Mantida essa tendncia, em trs ou cinco anos no teremos candidatos aos cursos de licenciatura. Cursos como Cincias Biolgicas, Educao Fsica, Geografia, Histria, Letras, Matemtica e Pedagogia, que eram disputados numa correlao de 12 a 30 candidatos por vaga, h dez anos, para 2012 contaram, respectivamente, com 3,5; 2,1; 1,6; 4,8; 1,4; 2,9; e 3,0 candidatos para cada vaga. Situao semelhante aconteceu no vestibular 2013, com queda ainda mais acentuada em alguns desses cursos. Mesmo considerando que houve aumento do nmero de vagas em alguns deles, reduo da concorrncia em outros cur-sos que no os de licenciatura e que caiu de 18 para 9 a mdia geral da relao candidato/vaga na Universidade, a generalizada queda da concorrncia nos cursos de licenciatura forte indcio do crescente desinteresse pela docncia atualmente. Alm dessa diminuio da procura por seus cursos de licenciatura, a despeito do aumento do nmero de vagas, a UFMG forma hoje metade dos professores que formava dez anos atrs.

    Mas isso apenas parte do problema. Um segundo elemento a ser conside-rado o elevado ndice de desistncia da profisso. Grande nmero dos que se formam professores no tero as salas de aula como destino ocupacional. Estudo recente sobre alunos que cursaram Histria entre 1998 e 2001 aponta que, dos 45 que entraram (44 vestibular + 1 obteno de novo ttulo), 38 se formaram; desses, 7 estavam na sala de aula na ocasio da pesquisa, sendo que 4 revelaram que estavam em vias de abandon-la, ou seja, somente trs pretendiam continuar atuando como professor da educao bsica (AMORIM, 2012).

    A UFMG fez elevado investimento, nas duas ltimas dcadas, criando cursos exclusivamente de licenciatura, em que a escolha precede o vestibular. Grande parte dos alunos desses cursos diz explicitamente que a sala de aula

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    no a sua opo. E um dos motivos mais apontados a informao sobre o elevado ndice de abandono da profisso, isto , professores experientes que se afastam por adoecimento ou por no suportarem mais ser vtimas de violncia fsica e/ou simblica no cotidiano da sala de aula.

    Internamente, a Universidade tem enfrentado o problema com aes como o Programa Institucional de Bolsas de Iniciao Docncia (PIBID), que concede bolsas de estudos e realiza um diferenciado trabalho de formao para alunos dos cursos de licenciatura. Trata-se de projeto inovador e que tenta garantir condies mais adequadas de percurso escolar desses estudantes. Contudo, se no forem modificadas as condies gerais da docncia, para fazer dela uma carreira atrativa, h fortes indcios de que no teremos professores para atuar na universalizao da educao bsica, conforme prev o PNE.

    A formao inicial e continuada dos docentes

    A formao docente tem se constitudo num dos maiores desafios edu-cao, uma vez que o que entendemos por desenvolvimento profissional no algo que se esgota com a formao inicial, por mais consistente que seja, e nem se conquista com os tradicionais cursos de fim de semana realizados em nome da formao continuada. Segundo o Parecer n 9, de 2001, do Conselho Nacional de Educao/Conselho Pleno (CNE/CP), que fundamentou a Resolu-o CNE/CP n 1, de 2002, apesar dos significativos avanos relativamente ao acesso Educao Bsica em nosso pas, h srios problemas a serem superados na aprendizagem dos alunos no sentindo de permitir-lhes um acesso real ao conhecimento sistematizado, ao acervo cultural acumulado pela humanidade e s condies objetivas que tornam possvel uma educao verdadeiramente inclusiva. E mesmo se considerando que este no o nico fator importante para o bom desempenho dos estudantes, uma boa qualificao dos professores pode ser fator decisivo quando o assunto qualidade da educao.

    Uma leitura atenta dos pareceres do CNE e das respectivas Resolues que eles fundamentaram ao estabelecer as diretrizes dos cursos de licenciatura, sua durao e carga horria, nos permite ver que so bastante considerveis os avanos trazidos pela nova regulao dos cursos de formao de professores (SOUZA, 2007; 2013): o carter democrtico da sua elaborao, que resultou de amplo debate com representantes de grande nmero de entidades ligadas educao escolar; a reivindicao da profissionalizao da docncia, vista como algo que exige mais do que a posse de um dom ou a entrega pessoal a uma

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    vocao; o estabelecimento de autonomia do percurso de formao docente, visando superar a viso da licenciatura como apndice do bacharelado; nova concepo de educao bsica, extensiva a toda a populao de zero a 17 anos; ampliao da dimenso prtica da formao, com grande aumento da carga horria de estgios; e a busca da formao das competncias, visando superar a improvisao, o amadorismo, a mediocridade, para usar as palavras de Iria Brzezinski (1998, p. 166).

    Esse esforo, contudo, de melhor organizar internamente os cursos de licenciatura no nos pode fazer esquecer que no se mudam prticas cristali-zadas no tempo apenas com pareceres e resolues e que os fatores internos s universidades no podem ser lidos fora do contexto social no qual cada uma delas est inserida. No basta, pois, uma organizao curricular que supere o famoso 3 + 1, se as prticas cotidianas dos professores formadores estabelecem uma hierarquia entre bacharelado e licenciatura, em que a formao pedaggica, quando no vista como inteiramente desnecessria, apenas tolerada como um verniz cultural, j que o essencial da formao, segundo esses professores, o domnio dos contedos especficos de cada rea.

    Ora, claro que ningum pode ensinar o que no sabe e de se esperar que os futuros professores dominem muito bem esses contedos especficos de cada rea. Mas se espera desses mesmos professores que, alm desse domnio, eles conheam tambm os fundamentos do conhecimento, os motivos pelos quais se ensina e os meios atravs dos quais o processo ensino-aprendizagem deve ser organizado com vistas a alcanar maior eficcia. Se, conforme citado ante-riormente, para Jean-Claude Forquin ningum pode ensinar verdadeiramente se no ensina alguma coisa que seja verdadeira ou vlida a seus prprios olhos (1993, p. 9), ningum pode ensinar verdadeiramente se no consegue ajustar os contedos do ensino a cada etapa do processo de escolarizao. E se isso no um dado da natureza, preciso que seja aprendido pelos futuros professores desde os cursos de formao inicial.

    Alm da necessidade de reconhecer a especificidade da formao docente e garantir aos cursos de licenciatura um projeto pedaggico especfico, percurso independente e titulao definida como graduao plena, preciso tirar proveito da ampliao da carga horria de prtica e estgio, a fim de garantir ao futuro profissional do ensino maior capacidade de fazer do conhecimento acadmico um instrumento adequado para enfrentar situaes concretas do cotidiano da sala de aula. Mas o modo como a carga horria geral dos cursos de licenciatura (2.800 horas) e, particularmente, da carga horria de prtica e estgio (800 horas) foi incorporada aos currculos ainda parece ser uma incgnita. To acalorados foram os embates a esse respeito, que o CNE chegou a aprovar, em 2006, um parecer (Parecer CNE/CP n 2, de 2006, no traduzido em nova Resoluo) pelo qual

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    seria revogada a Resoluo n 2, de 2002, e estabelecida menor carga horria de estgio. Implicao concreta desse debate foi a Resoluo CNE/CP n 1, de 2006, que estabeleceu as diretrizes dos cursos de Pedagogia, que tambm so de licenciatura, com estgio de 300 horas.

    antiga essa discusso que aponta para a necessidade de garantir uma formao assentada numa relao dialtica entre teoria e prtica, condio necessria ao exerccio de qualquer profisso que tenha lugar em um mundo caracterizado cada vez mais por vertiginoso processo de mudanas em todas as esferas da realidade. Se isso constitui um apontamento inconteste para qualquer profisso moderna, mais incontestvel ainda se torna quando o que est em jogo a formao dos profissionais que estaro frente da formao de todos os outros. Mas a precariedade que caracteriza a formao inicial dos docentes em nossos dias (GATTI; BARRETO, 2009) deixa pouca margem a outro diagnstico seno o de uma crise sem precedentes, uma combinao dramtica de elementos externos (enorme distncia entre o ideal pedaggico que diz valorizar a educao e a realidade concreta da escola; baixo valor do diploma de professor; ausncia de um ethos universal de valorizao da educao e da escola) e internos escola (combinao de precariedade da formao bsica com precariedade do percurso escolar; elevado ndice de desistncia e abandono da profisso; au-mento da carga horria mnima de prtica e estgio no se traduz em melhoria da qualidade da oferta do curso; arranjos precrios para incorporar o aumento de carga horria sem inflacionar os encargos docentes; oferta predominante dos cursos de licenciatura no turno noturno), dentre muitos outros (SOUZA, 2013).

    Notvel, tambm, no rol dos problemas que expressam a crise das licen-ciaturas a sua proliferao na rede privada de ensino, exatamente por serem cursos mais baratos e de mais fcil oferta. Na ltima dcada, as instituies de ensino superior, que so da ordem 90% do total, ofereceram em torno de 70% das matrculas no ensino superior, o que mostra que a formao de professores est maciamente concentrada na iniciativa privada. Mas essa facilitao da oferta, contudo, parece ter manifestado sinais de esgotamento, dado o expressivo nmero de vagas no preenchidas, conforme amplamente noticiado cada vez que o Instituto Nacional de estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira (INEP) divulga o Censo Educacional.

    Mesmo tomada como relevante e assumida de fato como consistente, uma graduao plena no permite mais que uma formao inicial. J vem de longa data o entendimento de que o exerccio da docncia requer uma formao conti-nuada, tanto como direito do professor ampliao do seu conhecimento quanto como direito do aluno a ter um professor constantemente atualizado. Mas ao confrontar a demanda por formao continuada com as condies da docncia, podemos observar claramente que, excetuando-se os programas de qualificao

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    dos professores das instituies pblicas de ensino superior, ao realizar douto-rado e ps-doutorado, ou so poucas as possibilidades da sua realizao pelos docentes da educao bsica ou so realizadas de modo muito precrio. Ainda que muitos tirem bom proveito, por investimento e esforo prprios, ao realizar um curso de fim de semana ou de frias, no parece ser necessrio muito argu-mento para deixar claro que submeter os professores a cursos de qualificao nessas ocasies subtrair deles o sagrado direito ao descanso.

    A formao continuada deve, pois, ser entendida como desenvolvimento profissional, uma possibilidade de proporcionar novas reflexes sobre a ao e novos meios para desenvolver e aprimorar o trabalho pedaggico. Ela deve ser vista como um processo de construo permanente do conhecimento, que toma a formao inicial como ponto de partida, a formatura em graduao plena apenas como a concluso de um percurso e a busca do aperfeioamento intelectual como um processo mais amplo de humanizao, uma produo de si mesmo na interao com o outro.

    A formao continuada, contudo, confronta questes que no existem ou so negligenciadas nos processos de formao inicial. Jovens estudantes de li-cenciatura no conhecem da escola bsica quase nada alm do que apreenderam dela como estudantes que foram outrora. Professores, pelo contrrio, constroem saberes na prtica pedaggica cotidiana que, mesmo de forma intuitiva e pouco sistemtica, compem o seu repertrio de conhecimento sobre ensino, educao e escola. A formao continuada precisa considerar esses saberes, uma vez que no h necessariamente uma coincidncia entre o conhecimento que a acade-mia produz da escola bsica e o modo concreto do seu funcionamento. Quando Franois Dubet se props a ser professor de histria e geografia em um colgio da periferia de Bordeaux, na Frana, seu propsito foi vivenciar, diretamente como professor, os dilemas da escola francesa contempornea que ele conhecia apenas por suas pesquisas sobre a juventude marginalizada na Frana. Ainda que relevantes, cada qual sua maneira, so experincias to distintas que entre o socilogo e o professor pode haver barreiras instransponveis (PERALVA; SPOSITO, 1997).

    Diferentes autores insistem em afirmar que, numa atividade de formao continuada, deve-se levar em considerao no apenas os conhecimentos pr-prios de cada campo como tambm os saberes que professores adquirem na sua experincia, fruto de sua vivncia e enfrentamento de situaes cotidianas da escola (NVOA, 1991; TARDIF, 2002). Para Antonio Nvoa (1991), no h pos-sibilidade de produzir um conhecimento pedaggico para alm dos professores, ou seja, que ignore as dimenses pessoais e profissionais do trabalho docente. E acrescenta que a profissionalizao docente conquistada a partir desse saber experiencial. preciso, portanto, conhecer o sujeito professor, considerando

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    sua vida e seus projetos, suas crenas, valores, atitudes e ideais, pois, para o autor, esses fatores influenciam o modo como o professor organiza as suas aulas, movimenta-se na sala, dirige-se aos alunos e usa os instrumentos pedaggicos.

    Maurice Tardif (2002) afirma tambm que esses saberes no constroem um conjunto de conhecimento unificado em torno de uma disciplina, de uma tecno-logia ou de uma concepo de ensino, pois so variados, eclticos, sincrticos. Para ele, dificilmente, os professores tm uma teoria, uma concepo nica que utiliza em sua prtica. Eles usam muitas teorias pessoais (tcitas, implcitas), concepes e tcnicas conforme a necessidade e o contexto especfico vivenciado. Os docentes mantm uma relao com os saberes de acordo com os objetivos que pretendem atingir. O saber dos professores o saber deles e est relacionado pessoa e identidade deles, sua experincia de vida e sua histria profissional, s suas relaes com os alunos em sala de aula e aos outros atores escolares na escola. No considerar isso pode pr a perder todo o esforo bem intencionado de levar adiante polticas de formao continuada de professores.

    Mas mesmo considerando legtimos esses saberes, no se encerra neles, nem de longe, o essencial daquilo que os professores precisam dominar para o adequado exerccio do seu ofcio. Mesmo que fosse possvel, em um curso de formao inicial, garantir o essencial daquilo que caber ao futuro professor ensinar, ainda assim, ele estar exercendo sua profisso em um mundo em constante transformao. No apenas mudam os contedos que cada campo de conhecimento considera essenciais, o que supe necessidade de atualizao cons-tante do professor; h as novas demandas sociais, as questes prprias de cada tempo. Uma das questes prprias do nosso tempo a que reivindica da escola formar nos pblicos escolares uma sensibilidade relativamente s diferenas.

    Pensar, pois, a formao docente no contexto da crescente luta da educao pelo reconhecimento da diversidade, questo fundamental. Se no se trata de questo acadmica nova, sua visibilidade pblica no remonta talvez a mais que uma ou duas dcadas. Ora, reside exatamente a a dificuldade de se fazer da escola o lugar das respostas imediatas que, de modo geral, se quer da educao. Grande parte dos professores que atuam na escola bsica teve sua formao inicial em outros tempos, quando as sensibilidades eram outras e no necessariamente tiveram a oportunidade de se submeter a cursos de formao continuada para tomar cincia dessas novas demandas do tempo presente e, mesmo que tenham se submetido, no necessariamente foram tocados por essas questes. A no correspondncia entre essas demandas, tomadas como novos projetos para a educao, e aquilo que a escola efetivamente faz pode nos dar a sensao de que essa escola vive uma terrvel crise. Estar em crise no dar conta de realizar as promessas, que so renovadas a cada dia, expresso mesmo de uma dinmica social que no cessa de nos fazer confrontar, a cada dia, novas questes.

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    Texto recebido em 10 de agosto de 2013.Texto aprovado em 11 de outubro de 2013.