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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE
LINGUAGEM
MAX FRANCIS FERNANDES CANCILIERI
AS VOZES SOCIAS E O PODER DAS PERSONAGENS
DAS NOVELAS DICKEANAS
CUIABÁ
2011
ii
MAX FRANCIS FERNANDES CANCILIERI
AS VOZES SOCIAIS E O PODER DAS PERSONAGENS
DAS NOVELAS DICKEANAS
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-graduação em
Estudos de Linguagem da
Universidade Federal de Mato Grosso
como parte dos requisitos para
obtenção do titulo de Mestre em
Estudos de Linguagem.
Área de concentração: Estudos
Literários
Orientador: Prof. Dr. Mário
Cezar Silva Leite
CUIABÁ-MT
2011
iii
iv
v
Para Nilson Esteves dos Reis - a
eternidade é a sua companheira.
vi
AGRADECIMENTOS
Para minha esposa, que me suportou em tardes tão rabujentas, e para
minha filhinha Luanda, que, por muitas vezes, rabiscou os originais deste
trabalho.
Para o Neres que nunca relutou no que achava ser correto.
Para meu orientador Mário, aquele que creditou em minhas mãos toda
seqüência de uma vida crivada de vitórias, deixando-me com a responsabilidade
de levar à frente suas conquistas.
Para minha avó Silvia: sei que um dia te perderei, mas tenho certeza que
Deus a terá para sempre.
Para meu grande Mentor Alexandre, “Coração gigante” – que seu corpo
abarque o tamanho da sua alma.
Para meus amigos de sala de aula que testemunharam minha luta sem me
esquecer especialmente do Paulo Wagner.
Para meu Senhor Deus, que me deu motivação e fortalecimento, teimosia e
vontade. Agradeço infinitamente.
A todos aqueles que, quando tive sede, deram-me água.
vii
A morte das mulheres é a morte das águas. A
morte do homem é a morte do fogo. Mas nem água nem
fogo fazem advinhanças. Advinha-se o tempo por meio
dos relógios, mas os relógios medem o tempo sem
advinhações. Perdoai senhor, o horror, porque as
mulheres já nascem perdoadas.
Ricardo Guilherme Dicke
viii
RESUMO
As qualidades literárias das obras do autor Ricardo Guilherme Dicke
servem hoje como referências de boas leituras até mesmo para os leitores mais
exigentes. Morto em 2008, Dicke deixou uma vasta obra que já foi foco de outros
trabalhos científicos anteriores a este. Dentre esses, destacamos as produções:
Toada do Esquecido e Sinfonia Eqüestre (2006), que nos promoveram uma
pesquisa inédita já que foram as últimas obras, publicadas depois de sua morte.
No escopo do nosso trabalho, essas obras serão analisadas basicamente pelo
prisma das vozes sociais, segundo o autor Mikhail Bakhtin, e pelo prisma da
formação de poder, segundo os fundamentos do autor Michel Foucault, além de
outros autores, Assim, seguindo os caminhos das “travessias humanas”, da morte,
da violência, dos ambientes inóspitos, do plano de enredo, do sertão mato-
grossense, do tempo e das reflexões levantadas em nossa análise, as vozes sociais
e o poder serão abordados a partir das considerações desses dois teóricos.
Reconhecida nacionalmente, a literatura novelística de Dicke promove uma
visitação ao estado filosófico do ser humano, confrontado com situações criticas
em que a vida e a morte sejam colocadas como caminhos recorrentes, em um
mundo mítico, cheio de representações que mexem com o leitor e fazem refletir
não só sobre a ideologia e os conceitos sociais existentes, mas também sobre a
forma com que essa ideologia e esses conceitos sociais traduzem essencialmente
poderes intra e extra-textos.
PALAVRAS CHAVE: Vozes sociais, Novelas, Dicke
ix
ABSTRACT
The literary qualities of the works of author Richard William Dicke now
serve as references of good reading for even the most discerning readers, who
died in 2008, Dicke left behind a vast work that had been studied also in other
scientific papers prior to this. Among these writings, productions: Chant of the
Forgotten and Equestrian Symphony (2006) reserves in an unpublished research
since the last writings were published after his death, so during the course of this
work their novels will be analyzed primarily by Dicke prism of social voices in
the author Mikhail Bakhtin, and training through the prism of power according to
the principles of the author Michel Foucault also provided with other authors that
support for this work to be conditioned. Thus, following the paths of "human
crossings, death, violence, harsh environments, the plot plan of the interior of
Mato Grosso, the weather and the considerations of this analysis, the voices and
the power should be detected and appraised in accordance with these
combinations. Nationally recognized, the novelistic literature of Dicke promotes
visitation to the state philosophy of the human being faced with critical situations
in which life and death pathways are placed as applicants, a mythical world full of
ideas that stir the reader and make us reflect not only on the ideology and the
existing social concepts, but also how this same ideology and social translate
these concepts essentially powers within and outside texts.
KEYWORDS: Social Voices, Soap, Dicke.
x
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................................
11
CAPÍTULO 1: MULHER, PODER E REPRESENTAÇÃO:
APRENDENDO A FALAR..................................................................................................
13
1.1. Mulher e dominação........................................................................................... 13
1.2 . Dicke, vozes e poder.......................................................................................... 18
CAPÍTULO 2: TOADA DO ESQUECIDO ....................................................................... 46
2.1. A natureza como cenário................................................................................................. 46
2.2. Rádios à espreita: vozes femininas................................................................................. 53
2.3. El Sapo: silêncios que falam........................................................................................... 64
2.4. El Diablo: o lado de lá......................................................................................... 74
CAPÍTULO 3: SINFONIA EQUESTRE............................................................................
3.1. Janis Mohor: Liderança no Sertão.................................................................................
87
87
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................
104
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................ 106
INTRODUÇÃO
No ano de 1998, uma publicação a respeito de Ricardo Guilherme Dicke
preencheria os espaços culturais de um jornal do interior, nele escreviam acerca de
um autor incompreensível, um silencioso autor que, fechado em si mesmo,
gostava de prosar sobre o sertão do Mato Grosso. Aos poucos, outras notícias
foram transcorrendo, sem que ainda se fizesse uma ligação entre elas: um antigo
prêmio das mãos de Guimarães Rosa, uma peça de teatro em Portugal e o lento
reconhecimento que a literatura ainda lhe reservaria.
Mas foi através de um documentário que tive a certeira idéia do que
queria desenvolver no meu mestrado, embalado por este, inspirei-me a falar de
Dicke, li trabalhos científicos como os desenvolvidos pelos pesquisadores Juliano
Moreno Kersul de Carvalho e Everton Almeida Barbosa que já haviam alcançado
boa parte do caminho que também decidi trilhar. Inspirado e apaixonado pela
prosa dickeana, fora aos poucos contaminado pelo espaço mítico daquele sertão.
Como resultado dessa „contaminação‟, temos o presente trabalho.
A partir das novelas Toada do Esquecido e Sinfonia Equestre (2006),
nosso trabalho propõe um estudo da relação das vozes internas ao texto, sob a
perspectiva das relações de poder e submissão, que envolvem as personagens
femininas quando inseridas em situações criticas.
A fim de investigar a forma como são inseridas as protagonistas em um
referencial marcado por conflitos sociais, procuraremos ressaltar a importância
que essas figuras exercem na narrativa dickeana ao intermediarem problemas que
desencadeiam um processo cíclico de desamparo, angústia e morte. As mulheres
dickeanas constroem com suas vozes o núcleo do enredo, ao formularem as ações
que dão suporte ao desenvolvimento narrativo da produção. Transitando entre
extremos, essas vozes ganham relevo e domínio sobre os ambientes
masculinizados. Desta forma, os homens passam a ocupar um plano secundário na
narrativa.
12
É em um ambiente brutalizado – o sertão do Mato Grosso, marcado por
um contexto, discurso e ideologias bastante masculinos – que o enredo ganha
características de estranhamento, fugindo do senso comum, ao dar destaque para
ao perfil feminino. Para desvelar essas tramas, organizamos nosso estudo do
seguinte modo:
O primeiro capítulo é dividido em temas internos. Nomeado de Mulher,
Poder e Representação: Aprendendo a Falar, trataremos das formas como a
mulher fora vista pela perspectiva do poder e do silêncio, ao longo de seu
contexto. O objetivo deste capítulo é tecer uma comparação entre a condição da
mulher no ambiente social, dominado pelo perfil masculino em conformidade
com sua condição histórica.
Buscaremos analisar a visão da mulher pela perspectiva do poder, ou seja,
como o arquétipo feminino é construído e utilizado socialmente como ferramenta
de submissão e imposição do poder androcêntrico. Observaremos como esse
arquétipo é desconstruído no interior da narrativa dickeana.
No segundo capítulo, dedicado à novela Toada do Esquecido (2006), as
personagens destacadas serão comparadas com sua situação histórica anterior,
sendo analisadas em conformidade com o aporte teórico selecionado, em função
dos temas: as vozes sociais e as formas de sublevação de poder, especificamente
as locutoras de rádio e as personagens El Sapo ou El Diablo são exemplos que
devem, ao longo do desenrolar da trama, serem dispostas como objeto de análise.
O terceiro capítulo, dedicado à novela Sinfonia Equestre (2006), apenas a
personagem Janis Mohor é analisada, porém, situando-a em virtude de sua
proximidade com as outras personagens estudadas. Esta personagem apresenta
características comuns, ou seja, pontos que se aproximam ou que, por vezes,
distanciam- se das personagens anteriores conforme a análise se desenvolve.
Após traçarmos um painel teórico, enfocando vozes, feminilidade e poder.
Demonstraremos, nas obras dickeanas abordadas, como essas vozes são
configuradas no discurso, como são situadas nas relações de poder e que trajetória
e desenvolvimento conquistam dentro do enredo.
13
CAPÍTULO 1: MULHER, PODER E REPRESENTAÇÃO:
APRENDENDO A FALAR
1.1. Mulher e a dominação
Os primeiros contatos dos colonizadores com as tribos tupinambás
expuseram os costumes e comportamentos dos indígenas brasileiros
(RAMINELLI, 2009) em relação à Europa católica. Entretanto, o tratamento dado
a mulher pelos indígenas não era tão diferente do que os europeus estavam
acostumados, ou seja, a submissão da mulher era um ponto comum entre ambos.
A imagem da mulher nas aldeias indígenas nos primórdios do Brasil
colonial era vista, prioritariamente, pela sexualidade que representava, pois a
liberdade de seu próprio sexo ficava a cargo dos homens da aldeia, eram eles que
determinavam seus papéis. Por esta atitude de submissão, elas foram
negativamente estereotipadas pelos colonizadores, pois historicamente As
perversões sexuais marcaram as representações dos índios. Os tupinambás eram
afeiçoados ao pecado nefando, e sua prática era considerada uma conduta
normal. (RAMINELLI, 2009, p.26).
Desde o nascimento, as crianças indígenas, de acordo com seu gênero,
recebiam tratamento diferenciado: quando meninos eram submetidos aos cuidados
do pai que cortava seus cordões umbilicais com os dentes enquanto as meninas,
recebiam os primeiros cuidados da mãe mesmo. (RAMINELLI, 2009, p.12-13).
No exercício da sexualidade, existia uma relação de desigualdade, visto que A
poligamia, entre os bravos guerreiros era símbolo de prestígio (RAMINELLI,
2009, p.19), sendo a mulher indígena mero instrumento desta ação de poder. A
relação desigual de gênero praticada pelos indígenas influenciou sobremaneira a
construção de uma imagem subalterna da mulher no Brasil– colônia, pois seu
comportamento no ambiente tribal foi sempre cerceado desde a infância até a
maioridade.
14
Com o advento da colonização, mulheres brancas vieram da Europa para
estabelecer seus lares em terras brasileiras. A exemplo das mulheres autóctones –
a submissão era uma marca expressiva do seu comportamento social, segundo
Vainfas: As mulheres brancas, em pequeno número no acanhado litoral do século
XVI, teriam vivido em completa sujeição, primeiro aos pais, os todo –
poderosos senhores de engenho, depois aos maridos. (RAMINELLI, 2009,
p.115). Longe da vida social, restava a essas mulheres os afazeres domésticos.
Gregório de Matos, poeta da época, assim versou sobre a condição feminina:
Irá mui poucas vezes à janela,
Mas as mais que puder irá à janela;
Ponha-se na almofada até o jantar,
E tanto há de coser como há de assar.
(Gregório de Matos apud Araújo, 2009, p.49)
Gregório de Matos, ao falar das mulheres brancas no Brasil-colônia,
produz uma aproximação da condição com que Lessa (2004) identifica nas
práticas femininas da antiguidade. Essas atividades rotineiras incluíam, pór
exemplo: a fiação, a tecelagem, a transformação dos cereais, ou seja, atividades
manuais (LESSA, 2004, p.34), a mulher, assim observada, revela uma incômoda
posição de inferioridade, já que os trabalhos manuais não exercem grande
influência sobre o pensamento intelectual e político desses s períodos históricos.
Passados mais de três séculos de submissão feminina, a condição de senhora dos
afazeres domésticos começa se transformar.
A mudança a respeito do comportamento feminino, em ocorrência nos
vários planos sociais, abriu no Brasil perspectivas para que a mulher pudesse se
aproximar das produções literárias da época. Essas produções, apesar de
inicialmente rechaçadas pelas leitoras, acabaram se tornando um refúgio de leitura
preferencial. Uma parte dessa transformação é notada pelo surgimento de
publicações literárias de autoria feminina: Em 1859, Úrsula, escrito por Maria
Firmina dos Reis, considerado o primeiro romance de uma autora brasileira
(TELLES, 2009, p.410). Essa obra venceu o preconceito que rondava o gênero,
15
(pernicioso e malvisto para as moças), tornando-se um marco na história da
literatura de autoria feminina no Brasil.
Juntamente com as transformações da literatura, outras transformações
sociais estavam em franco processo, pois homens e mulheres exerciam condições
diferenciadas no espaço social; O espaço físico sempre teve uma nítida divisão: a
rua era propriedade do masculino, e o espaço doméstico, do feminino
(CARRANCHO, 2003, p.114).
Segundo Araújo (2009, p.52), para a mulher casada, a maternidade teria
de ser o ápice da vida (...). Doravante, ela se afastava de Eva e aproximava-se
de Maria. A mulher que pariu virgem o salvador do mundo. A virgindade,
símbolo de pureza e castidade, fora, durante muito tempo, condição para um
casamento seguindo todos os padrões que a sociedade estabelecia criava símbolos
a serem seguidos para que isso ocorresse, como é o caso do exemplo dado por
Araújo (2009).
Notemos que a significação ─ tanto da pecaminosa Eva, como da celestial
Maria ─ são posicionamentos paradoxais ofertados pela visão social da época,
são os poderosos homens que criavam estereótipos conforme suas conveniências.
Desta forma, o patriarcado ditava um comportamento público recatado e pudico,
como modelo do perfil feminino:
Corre a missa. De repente, uma troca de olhares, um
rápido desvio do rosto, o coração aflito, a respiração
arfante, o desejo abrasa o corpo. Que fazer?
Acompanhada dos pais, cercada de irmãos e criadas,
nada podia fazer, exceto esperar. Esperar que o belo
rapaz fosse bem– intencionado, que tomasse a iniciativa
da corte e se comportasse de acordo com as regras da
moral e dos bons costumes, sob o indispensável
consentimento paterno e aos olhos atentos de uma tia ou
de uma criada de confiança (de seu pai, naturalmente).
Esse era o estereótipo, o bom modelo, o comportamento
16
que se esperava no despertar da sexualidade feminina
(ARAÚJO, 2009, p.45).
Mesmo com a ditadura comportamental masculina a impor limites e
regras, a mulher foi preenchendo espaços, cafés, bailes, teatros e certos
acontecimentos da vida social (D‟incao, 2009, p.228), a liberdade da mulher
burguesa abriu caminho para que seus primeiros vôos fossem alçados, mas a
repressão imposta à mulher ainda atrapalharia a manifestação de um maior
exercício de sua liberdade (ARAÚJO, 2009, p.53).
Dentre as barreiras que se mantinham estáveis, salientamos as oposições
consolidadas no imaginário social: “Eva e Maria” foram os primeiros
estereótipos religiosos impostos a mulher (Araújo, 2009, p.52). A igreja vai ter
um papel inquisidor no julgamento do comportamento feminino, ao estabelecer
uma visão maniqueísta desse comportamento: pecadora ou santa, Eva ou Maria.
Este era apenas o primeiro de muitos embates ideológicos arraigados de maneira
sublinear no discurso social criado pelas determinações da igreja (Araújo, 2009,
p.53).
Nos tempos atuais, a mulher, mesmo ocupando espaços similares em
campos de trabalho antes dominado pelo homem, ainda em muitas situações,
continua presa pelas barreiras dos dogmas religiosos. As mudanças trazidas pelo
processo de industrialização ─ que levou as mulheres da casa para a fábrica ─
não mudaram sua condição submissa, pois o chefe da família apresentava-se
adiante da esposa e dos filhos como a personificação da exigência dos
proprietários (...). O poder masculino centrava-se na figura do pai - marido -
patrão (Silva, 2009, p.558). A continuidade desse comportamento da mulher
como sujeito passivo e alheio às mudanças sociais persistiu desde a época da
colônia até parte da contemporaneidade. O mote iluminista de igualdade,
apregoado em tempos de revolução francesa não incluiu a fundamental questão de
gênero, ... a individualização do trabalho não provocou a igualdade nas relações
entre homens e mulheres, e nem a inversão na estrutura de poder (Silva, 2009, p.
563). Guiados pelo sistema de capital, o gênero masculino ainda determina o
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poder que rege o trabalho, independente de individualizações ou de quaisquer que
sejam suas determinações coletivas.
Telles (2009), no entanto, assevera que o contexto descrito por Silva
(2009) sofre mudanças ideológicas. Segundo esta última, a revolução não está no
sistema social, hierárquico ou trabalhista, a revolução do poder está mais
enraizada na relação de amor, respeito mútuo e preservação da voz e da auto-
estima feminina:
A difícil revolução da Mulher sem agressividade, ela que
foi tão agredida. Uma revolução sem imitar a linha
machista da ansiosa vontade de afirmação e de poder,
mas na luta com mais generosidade, digamos.
Respeitando a si mesma e nesse respeito pelo próximo, o
que quer dizer amor (TELLES, 2009, p.672).
O poder, de acordo com a autora, é produto da convivência e tolerância
mútua, é dele que emana a definição de feminilidade.
Lessa, em seu livro O feminino em Atenas (2004), utiliza da alegoria do
“tear” para explicar as relações de poder que cerceiam as vozes femininas nas
relações sociais. Nesse “tear” social, as mãos vão aprendendo o movimento dos
pontos e das amarraduras, mas são mãos equidistantes, as masculinas e as
femininas que se revezam, tecendo cada uma a seu modo um contexto histórico
cheio de retalhos, retalhos antitéticos que entrelaçados em diferentes tempos
e espaços preenchem toda uma “colcha” que insiste em encobrir as vozes
femininas.
O poder foi o que proporcionou essa mudança, pois o poder reside nas
mãos de quem tece a realidade, a mulher literalmente tecia, entretanto foram as
tendenciosas mãos masculinas que fizeram com que o contexto histórico seguisse
seu próprio e linear interesse, tendo em vista que:
A mulher não largou suas tinas de lavar roupa ou suas
foices de cortar plantações impulsionada por súbita
consciência das limitações em que vivia. Foi empurrada
18
pelo motor da história, cuja engrenagem era formada por
uma classe de homens, os burgueses, com sede de
expansão (Ameno, 2001, p. 25).
1.2. Dicke, Vozes e Poder
A literatura e a tecelagem possuem conceitos próximos, foram, inclusive,
comparadas por vários escritores, formam apesar de sentidos diferentes alegorias
similares (Hansen, 1986, p.01). Na literatura, os versos horizontais são
preenchidos por palavras e entendimento, na tecelagem, as linhas horizontais são
preenchidas por fios e pontos. Da mesma forma, como a comunicação se dá pela
literatura, parte dela se concentra na formação do texto, texto vem de têxtil:
tecelagem.
Porém, o mais importante para este trabalho é o que une literatura e
tecelagem: a mulher. A tecelagem, uma das primeiras atividades femininas
(LESSA, 2004), pode ser utilizada enquanto “alegoria” de fala (HANSEN, 1986,
p.01). No momento em que a liberdade da mulher começou a germinar, ao longo
dos tempos modernos, tanto seu corpo como sua sexualidade
acompanharam,caminharam juntas. Suas mãos habituadas ao têxtil, descobriram a
literatura.
Tal qual a tessitura de uma produção, as palavras conjuntas dimensionadas
no espaço do texto literário podem, quando unidas, estabelecerem uma formação
maior, esta formação discursiva pode ser caracterizada por sua ideologia ou pela
forma de pensamento imperante ao que se propôs a ser escrito. Estes argumentos
levam a crer que linhas unidas formam um tecido e idéias unidas formam um
conjunto maior que o anterior.
Ao apresentarmos um breve painel sobre a relação histórica do perfil
feminino no primeiro capítulo, podemos somar outras constatações que interessam
ao início deste raciocínio, incluindo a formação do discurso, estabelecido sob a
perspectiva das vozes sociais.
19
A atenção despertada por estes estudos fez com que o teórico Mikhail
Bakhtin se interessasse pelo romance no decorrer da década de 40, do século
passado, como tema comum, ele estudou sobre a natureza e a evolução desse
gênero, tais estudos focalizaram, além da natureza, noções sobre espaço e tempo
na história e a mudança de percepção da linguagem na evolução do gênero. Para
teorizar parte integrante das reflexões a respeito destes estudos, Bakhtin discordou
das teorias até então dominantes sobre a ficção romanesca, para ele, o romance é
um gênero que fotografa o mundo com muita perfeição, um raio X de uma visão
muito específica (CLARK & HOLQUIST, 1998, p.293), ou seja, uma
materialidade de conceitos ligados a um dado tempo e a uma condição em
determinada sociedade.
Desta feita, a Romancidade (CLARK & HOLQUIST, 1998, P.293) – nome
dado por Bakhtin para o gênero – deveria, conforme o nível do discurso, não
permitir a ocorrência do monólogo genérico ou ainda uma representação social
simbolizada apenas, ao contrário, teorizando sobre um diálogo entre os textos que
um dado sistema admite como literatura, com os que não seguem semelhante
definição, diversos outros diálogos deveriam ser revelados, tornando-se assim
representativos do meio social que coexistiam, para tanto, duas variantes foram
apontadas como fatores que auxiliam neste conceito:
Duas variantes principais são básicas na evolução do
romance e, assim, da consciência também: atitudes para
com o espaço e o tempo, e atitudes para com a linguagem.
Bakhtin estava obcecado pela interconexão de espaço e
tempo (CLARK & HOLQUIST, 1998, p.295).
Uma vez que o interesse de Bakhtin se volta para esse gênero,
conceituando-o como sendo o grande livro da vida (CLARK & HOLQUIST,
1998, p. 310), o teórico acredita que a importância dada para o romance reflete um
indicador sensível e particular de uma sociedade sobre as variantes, ou seja,
variantes sobre a natureza, o espaço e o tempo. Para Bakhtin, o romance não
deveria ser pensado como qualquer outro gênero literário, porque se tratava do
20
único gênero que ainda estaria evoluindo no meio de gêneros já formados e
mortos.
Além dos estudos dedicados a esse gênero, Bakhtin (2004) também
direcionou seus esforços ao entendimento de uma parte mais particularizada e não
menos importante constituinte do romance: a palavra. Para ele [...] a palavra
penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de
colaboração, nas relações de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida
cotidiana, nas relações de caráter político, etc. (BAKHTIN/VOLOCHINOV,
2004, p. 41), De acordo com o autor, a tessitura das palavras obedecem à direção
da ideologia proposta como forma de imposição de discurso: As palavras são
tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as
relações sociais em todos os domínios (BAKHTIN/ VOLOCHINOV, 2004, p.
41). Assim, os discursos ideológicos e sociais são marcas expressivas que dão
rumo e condição de existência para as palavras, representam, sintetizadas, suas
ordenações:
a palavra não é um objeto, mas um meio constantemente
ativo, constantemente mutável de comunicação dialógica.
Ela nunca basta a uma consciência, a uma voz. Sua vida
está na passagem de boca em boca, de um contexto para
outro, de um grupo social para outro, de uma geração
para outra (BAKHTIN, 1981, p. 176).
O diálogo, portanto, entre os personagens, é também um diálogo de forças
que emergem do social e que impõe ao homem a difícil tarefa de compreensão,
tornando a atividade discursiva uma complexa relação com a palavra do outro,
em todas as esferas da cultura e da atividade [...] (BAKHTIN, 2003, p.384).
Segundo o autor, a palavra é um fenômeno ideológico por excelência, dessa
maneira, é através dela que os sujeitos se comunicam e revelam diferentes
ideologias nos confrontos de vozes sociais, ou seja, as tendências sociais do
discurso se manifestam nas formas da língua.
Como se pode perceber, os discursos que trilham uma determinada
ideologia recebem uma apreciação significativa que é seu fruto natural: “a voz”.
21
As vozes sociais devem ser entendidas como a representação da fala social já que,
internamente ao texto, estas são frutos desta consideração.
Assim, as vozes sociais são sempre sócio-ideológicas, já que carregam um
ponto de vista definido, um vislumbramento formado de determinado lugar,
coexistem juntamente com o sujeito e se manifestam em diálogos constantes,
internas a esses textos e discursos, elas tipificam os enunciados do passado, do
presente e do futuro, às quais as respostas dos discursos são remetidas. Um
discurso sempre responde a outro e o fruto dessas respostas e confrontações faz
surgir o sujeito socialmente situado, fruto desta relação.
As vozes sociais que dão forma ao discurso refletem não apenas a intenção
do enunciador, mas os sentidos e valores que estruturam a sociedade, por isso, a
sociedade deve ser considerada como um conjunto de ferramentas que, apesar das
semelhanças, apresenta grandes distinções de ordem cultural e referencial, o que
se reflete nas “vozes” dos indivíduos.
A heterogeneidade das vozes sociais em um determinado texto demonstra
os comprometimentos com os objetivos direcionados aos valores que orientam as
atividades humanas. Um enunciador, de fato, ao se identificar com um valor
social, acaba por estabelecer diante deste valor o contexto que acredita ser
referência para que a sua produção textual tenha ocorrência.
Bakhtin (2004) argumenta que esse é o momento da construção de uma
consciência das vozes sociais, o que só é possível através de um engajamento
ideológico, uma vez que quanto mais forte, mais bem organizada e diferenciada
for a coletividade no interior da qual o indivíduo se orienta, mais distinto e
complexo será seu mundo interior (p.115). A esse propósito, tanto os planos de
ação quanto as esferas sociais deverão marcar as vozes sociais, uma vez marcadas,
estas deverão estar comprometidas com os interesses sociais específicos,
acarretando, para isso, um certo grau de universalismo textual:
A “voz” do discurso expressa um juízo de valor do autor,
seu horizonte conceitual (sócio-ideológico). O discurso
representa uma escolha, uma tomada de posição do autor
frente aos múltiplos discursos que pretendem se apropriar
22
da realidade de uma época, num contexto sociocultural
determinado. A essa apreciação – expressão do horizonte
conceitual do autor do discurso – é que o pensador
denomina “voz” (BARROS, 1994, p.106).
A “voz” no romance é analisada por Bakhtin seguindo esta argumentação:
Todas as palavras e formas que povoam a linguagem são vozes sociais e
históricas, que lhe dão determinadas significações concretas [...] expressando a
posição sócio-ideológica diferenciada do autor no seio dos diferentes discursos
da sua época (2006, p. 106). Este pensamento reflete a posição do teórico quanto
à condição de produção do autor, para ele, o autor não meramente reproduz uma
posição “sócio-ideológica”, mas realiza uma apropriação pessoal, a voz do
discurso articula-se com seu contexto de enunciação respondendo a outros
discursos e enunciados, com os quais entra em diálogo.
As relações de sentido que nascem da diferença entre os discursos e
enunciados que entram em diálogo são chamadas de dialogismo, essas mesmas
são a síntese ou o resultado do confronto de vozes sociais travadas pelos sujeitos
nas situações em que são expostas no texto. O dialogismo bakhtiniano é próprio
do agir e do ser humano em si, portanto, a relação com a linguagem e as relações
discursivas não são únicas, funcionam como um campo de batalhas onde a
confrontação de vozes regidas por domínios culturais de uma determinada
sociedade, comunidade ou grupo social, emerge.
O dialogismo constitui um verdadeiro campo da linguagem, em cujo
diálogo o enfrentamento de vozes cria uma arena de disputa entre os conceitos
sociais, já que, na teoria enunciativo-discursiva de Bakhtin, o conceito de vozes
diz respeito à presença do outro como princípio constitutivo da produção e
funcionamento discursivo.
Desse modo, os diálogos internos ao romance permitem a ele o caráter
inacabado por meio da confrontação das vozes sociais, elas se renovam em
determinados contextos. Por meio destas vozes é possível analisar sobre o
processo de formação do homem como sujeito inacabado, próprio de suas ações,
sempre em estágio de formação e transformação. Neste embate, as vozes não se
23
confundem e nem se misturam, diferentemente mantem a ideia de tempo e espaço
próprios que lhes são devidos, enriquecendo o texto literário e permitindo que
esses espaços conheçam novas idéias, novos valores, pois, para construir sentidos
nos enunciados, é preciso um processo dialógico contínuo.
Esses argumentos permitem a compreensão do texto, uma vez que os
falantes partilham de um mesmo contexto sócio-histórico, uma mesma ideologia,
um ponto comum que permite o diálogo do entendimento pretendido, uma relação
em que a sociedade e a literatura estejam próximas.
Para Antônio Cândido, a relação da sociedade com a literatura, ou com sua
representação, pode estar muito próxima, dependendo das condições de produção.
O autor defende que tal aproximação é vista, inclusive, como forma de estudo
literário para alguns críticos, ou seja, a utilização das representações sociais deve
ser ponto de partida para os referidos estudos:
Um segundo tipo poderia ser formado pelos estudos que
procuram verificar à medida em que as obras espelham
ou representam a sociedade, descrevendo os seus vários
aspectos. É a modalidade mais simples e mais comum,
consistindo basicamente em estabelecer correlações entre
os aspectos reais e os que aparecem no livro (CÂNDIDO,
2006, p.19).
Ainda sobre os estudos que aproximam sociedade e literatura, Cândido
(2006) assevera que: Os elementos individuais adquirem significado social na
medida em que as pessoas correspondem a necessidades coletivas; e estas,
agindo, permitem por sua vez que os indivíduos possam exprimir-se, encontrando
repercussão no grupo (CANDIDO, 2006, p.35). Uma conclusão importante é a de
que a obra depende estritamente do artista e das condições sociais que determinam
a sua posição, na verdade, é possível que uma obra literária represente
acontecimentos sociais ocorridos na mesma condição de produção em que fora
feita, ou seja, a leitura do mundo deve passar pelo crivo do artista.
O estudo que envolve, por exemplo, os perfis femininos e suas relações
sociais dentro do plano literário podem exemplificar a tese disposta por Cândido.
24
No caso específico, a temática da mulher com comportamento guerreiro e viril na
literatura não é um tema novo, porém quase sempre polêmico. Os dois exemplos
que melhor ilustram esta ideia, segundo o Dicionário de mitos literários, de Brunel
(1988, p.744) são As Amazonas e as Valquírias.
O autor explica que a realidade história pode ter construído esta imagem
em civilizações antigas, já que
a fantasia heróica cria quase sempre figuras masculinas:
o fenômeno pode explicar-se pela superioridade física do
homem, pela situação social da mulher até uma época
recente, pelas características de sua vida sexual e por
suas maternidades (BRUNEL, 1988, p.472).
Segundo Brunel, os gregos acreditavam que as Amazonas fossem
bárbaras, no sentido literal da palavra, já que eram transgressoras das leis
vigentes, foram consideradas por eles belicosas e inimigas, tanto do homem
quanto do casamento.
De outro lado, as Valquírias, virgens com o escudo (BRUNEL, 1988,
p.745), eram encaradas como sacerdotisas sacrificantes, já que serviam à deusa da
guerra. As mulheres- homens foram, inclusive, retratadas na literatura por autores
como Homero (2001) em Ilíada VI, 186, representando assim a ambigüidade
sexual do personagem. Da antiguidade para a modernidade, essas representações
perpetuaram-se pela literatura brasileira, com exemplos como Diadorim, de João
Guimarães Rosa, ou Luzia homem, de Domingos José Olimpio.
Conceitos à parte, chegamos à conclusão de que a conseqüência de boas
leituras é a formação de bons leitores, e os motivos desta conclusão fazem com
que conheçamos a produção literária do escritor mato-grossense Ricardo
Guilherme Dicke, intitulada Toada do Esquecido e Sinfonia Equestre (2006).
De acordo com os paralelos que formam esta discussão, as presenças das
vozes teorizadas por Bakthin servem de início para um diálogo que não se esgota,
ao contrário, abre a perspectiva tanto para a presença do perfil feminino como
25
para a presença do poder dentro deste plano de criação. A fala feminina ou a fala
de uma personagem feminina dentro do romance pode não representar o
pensamento feminino como temática principal, levando-se em conta que, como
representação literária, pelo contrário, pode até mesmo ser o veículo de construção
do discurso masculino. Na verdade, a fala feminina pode servir no romance como
instrumento de construção de vozes, quer seja do narrador, quer seja da própria
personagem que a utiliza durante a ação. A voz interna a um texto pode
representar uma sociedade vigente, a partir desta representação social e literária
do mundo é que percebemos a existência dessas vozes: o leitor como receptor da
produção literária pode por ela fazer a leitura da realidade, já que esta leitura
identifica-o com seu próprio ambiente.
Para Bakhtin (2004), uma produção literária pode ter muitas vozes
reunidas e a sua multiplicidade é o que torna o texto dialógico – termo criado pelo
autor. Discini (2006) reforça essa ideia: diz respeito à multiplicidade de vozes
que, orientadas para fins diversos se apresentam libertas do centro único
incorporado pela intencionalidade do autor (p.53) (SIC). Em sua tese,
dialogismo é o nome dado a uma produção literária em que as vozes interiores ao
texto sejam independentes e que, por isso, acabem impedindo a unicidade da voz
central do autor de ser a única a expor seu discurso. Isto tornaria possível, por
exemplo, que a fala de uma personagem feminina, dentro de uma produção
literária, contivesse vozes sociais que atendessem a diversos outros interesses que
não fossem o seu enquanto mulher.
No caso das novelas dickeanas, as vozes expressas pelos perfis femininos
estão não só direcionadas ao momento histórico em que se pronunciam, mas
também se relacionam com a constante preocupação filosófica existencial a que se
enquadra boa parte das obras do autor, isso é possível graças ao fato de que as
vozes representam os discursos apropriados do contexto em que as mesmas
estejam condicionadas, quer seja do contexto social, quer seja das condições
existenciais de seus personagens diante dos momentos de conflitos sociais
propostos pelo autor. As vozes são caracterizadas como representantes do poder
regente de um tempo específico, conforme representado.
26
A incidência das vozes presentes nos perfis femininos, em meio aos
conflitos sociais representados, conforme as novelas exemplificam, mostra a fala
feminina ou a fala de uma personagem feminina dentro do romance,
exemplificando a maturidade, a personalidade e a certeza que possuem, diante de
sua liderança, El Diablo e El Sapo tem ciência de seu poder para representar o
pensamento feminino como temática principal, como vimos, essa ocorrência
mostra mulheres posicionadas como personagens principais dentro das novelas,
para tanto, levam em consideração os discursos que conferem vozes sociais a
esses perfis.
Esclarecemos que, na teoria de Bakhtin, nenhuma voz fala sozinha e isso
não tem ligação com o fato de que estamos influenciados, mas porque a
linguagem por si só é dupla isso justifica a multiplicidade de vozes e de
consciências independentes (BAKHTIN, 2003, p. 02). O romance dialógico,
seguindo a teoria bakhtiniana, pode abrir a perspectiva de que vozes
independentes sejam observadas. Em contraponto, o texto literário intitulado
monológico assume, em seu interior, vozes que seguem apenas um discurso, ou
seja, todas as mesmas vozes do texto monológico servem para reforçar um
pensamento dominante. Pessoa de Barros (1994, p.06) comenta sobre os textos
dialógicos:
Os textos são dialógicos porque resultam do embate de
muitas vozes sociais; podem, no entanto, produzir efeitos
de polifonia, quando essas vozes ou algumas delas
deixam– se escutar, ou de monofonia, quando o diálogo é
mascarado e uma voz, apenas, faz-se ouvir. (BARROS,
1994, p.06).
Uma vez independentes, essas vozes presentes não estão fixas em um
poder de criação central, mas dialogam com outras vozes presentes para
estabelecer significados e interações. Assim, boa parte dos elementos que se
somam a esse tipo de narrativa são diferentes entre si, esta diferença enriquece o
27
texto prontificando com que várias ideias sejam evidenciadas, neste sentido, a
palavra não pode ser a finalização de uma síntese pré-concebida, mas a
ressignificação e retomada de outros sentidos, conforme o exemplo dado em
Problemas da poética de Dostoievski (1981):
A voz do herói sobre si mesmo e o mundo é tão plena
como a palavra comum do autor; não está subordinada à
imagem objetificada do herói como uma de suas
características, mas tampouco serve de intérprete da voz
do autor. Ela possui independência excepcional na
estrutura da obra, é como se soasse ao lado da palavra do
autor coadunando-se de modo especial com ela e com as
vozes plenivalentes de outros heróis (BAKHTIN, 1981,
p.03).
A fala de uma personagem feminina, dentro do plano de uma produção
literária, apesar da proximidade e aparente confusão, em nada se aproximaria da
explicação das vozes teorizadas por Bakhtin presentes em Estética da criação
verbal (2003), já que a referida não passaria de uma comunicação ou diálogo de
uma personagem feminina dentro do plano de ação de uma produção literária,
enquanto que as vozes a que Bakhtin se refere seriam um conjunto de ideias e
discursos trazidos à tona tanto pela ideia do autor quanto pela ideia do próprio
personagem, ao apoderarem-se ou reproduzirem outros discursos socialmente
impostos.
Ao pensarmos nas novelas Toada do Esquecido e Sinfonia Equestre
(2006), de Dicke, percebemos que todas as personagens femininas representadas
El Sapo, El Diablo, As Narradoras da rádio ou até mesmo Janis Mohor, utilizam-
se de um mesmo modo de dominação diante do ambiente em que estão inseridas,
ou seja, para se manterem líderes, utilizam-se da fala como forma de domínio;
todavia, a utilização da fala por estes perfis está ligada às vozes sociais que são
exprimidas por intermédio dos personagens, de fato, conforme observamos, a fala
de uma personagem feminina dentro de um romance em tudo tem a ver com o
28
que ela representa enquanto discurso ideológico ou apropriação social.
Assim, a dominação proposta pelos perfis femininos em ambientes de conflitos
sociais é estabelecida pelo poder de persuasão de suas falas, enquanto que as
vozes emanadas pela condição social representada devem, através delas, serem
expostas como fruto de uma ideologia pré-estabelecida.
Para nos aprofundar em reflexões teóricas sobre essas produções e darmos
continuidade ao estudo, acrescentamos que as novelas do autor Ricardo
Guilherme Dicke podem ser exemplos da presença dessas teorias a respeito das
vozes, acrescentando ainda que, apesar de diferentes narrativas estabelecidas em
seus enredos, as duas novelas, apresentam diferenças no plano de ação, mas essas
diferenças podem não se repetir no que se refere ao estabelecimento de vozes
internas à produção.
Na primeira novela, intitulada Toada do esquecido (2006), um grupo de
garimpeiros, após um baile de máscaras no carnaval, foge dos garimpos do Peru e
da proprietária do garimpo que os quer matar devido ao furto de um “Tesouro”
pessoal. Na fuga, passando pela Amazônia e por Vila Bela da Santíssima Trindade
(Primeira capital do estado de Mato Grosso), o grupo vai se silenciando, um a um,
por ocasião de estranhas mortes, enquanto que, em contrapartida, e por último,
uma fala feminina se faz presente nas ondas do rádio AM que os acompanha. El
Diablo é a última personagem a se silenciar, já que domina seus companheiros
pela fala, porém, quando isso acontece, e diante do mutismo ensurdecedor da
morte, ouve-se a Toada do esquecido – Um rumor ou tom alto em meio ao
esquecimento de todos eles no meio do sertão de Mato Grosso.
Já na segunda novela, Sinfonia Equestre (2006), O turco Tariq Muza mata
Hildebrando Mohor aos poucos e com seu próprio consentimento. No velório de
Hildebrando, sua filha Janis jura vingança e, por efeito do prometido, já que sua
fala indica liderança, distancia-se do marido ao se juntar com Belizário. Vão até a
fazenda do turco Tariq onde trocarão tiros com seus capangas até que, após a
morte do turco e o silêncio, apazigam toda a cena de violência.
O plano narrativo é importante ferramenta para a compreensão do papel
das vozes das novelas como um todo, isso porque os enredos das obras de Dicke,
conforme observado, possuem certas aproximações em alguns temas que parecem
29
recorrentes em suas narrativas. Um exemplo dessas aproximações é a utilização
de cenários amplamente violentos. A violência dos cenários se deve a diversos
fatores explicáveis dentro do plano literário. Um desses fatores é o fato de que
podem ocorrer em ambientes inóspitos, distantes das cidades, favorecendo um
ambiente nostálgico (Miguel, 2007). Além disso, Miguel classifica a violência de
Dicke como sendo generalizada dentro do plano de sua escrita:
Os personagens estão em ambientes de conflitos de
diversas naturezas: conflitos externos, localizados nas
questões circundantes em que as relações com a terra e a
natureza são determinantes, e conflitos internos (2007,
p.138),
A esse propósito, é relevante destacar que Dicke nasceu em Mato Grosso,
por isso seria amplamente possível que sua obra caminhasse nessa direção, ou
seja, seguisse a senda da história que rege este estado. Para a nossa compreensão,
a história da colonização do Brasil se confunde com a história da colonização de
Mato Grosso, no sentido de que ambas, à margem de serem pacíficas, foram
construídas pela morte de muitos dos que aqui vieram edificar fortunas ou
constituir lares.
Convém destacar que a história da colonização de Mato Grosso lembra-
nos de um sertão que reserva cenários distantes da ambiência das cidades, um
sertão cheio de terras de pouca ou nenhuma lei. Desse modo, não se pode
esquecer que os colonizadores estão inseridos nessa história e que, por tentar
refletir todo esse contexto na obra literária, o autor acaba por recriá-lo no plano
acional: As configurações ligadas à morte são as condutoras (Miguel, 2003,
p.203). A morte – produto final da violência – conduz as novelas dickeanans e no
caso delas, este mote persiste. Em Toada do Esquecido, a morte é entendida como
silenciamento; já em Sinfonia Equestre, como esboço de vitória.
A recriação do ambiente social dentro do plano literário nas novelas
dickeanas marca tal ocorrência com a presença da “morte”, ela é prêmio aos
viventes um destino do qual nenhum dos personagens pode fugir.
30
Por sua vez, a recriação novelística valoriza o silêncio das coisas
mundanas e modernas, abre as perspectivas para o contato natural com as coisas
simples e o diálogo interno dos personagens (Miguel, 2003). O diálogo interno
dos personagens ilustra o fluxo de consciência presente em grande parte de suas
novelas, conforme observamos no texto a seguir:
– Fabulosos, rodopiantes mundo da ilusão! A gente vive
no mundo da sedução: revistas e jornais repletos de
insinuações, televisão com as mulheres convidando,
assim tão sem mais nem menos; pelas ruas elas andam
nuas, nas rádios vozes cinciantes que sussurram no
mundo da sedução, de manhã à noite e da noite à manhã:
vozes que cantam irresistivelmente, envolventemente a
não poder mais: este é o mundo da sedução e da ilusão em
que vivemos metido até o pescoço, mestre Gepetto, mesmo
aqui no fim do mundo: desde as criancinhas de dez anos
até as velhotas de noventa, todos indissoluvelmente
metidos até o pescoço no jogo da sedução... (DICKE,
2006, p.11).
A abordagem dickeniana da história da colonização reserva alguns itens
especiais, já que é a esta abordagem que as vozes internas aos perfis femininos
estão condicionadas. Porém, esclarecemos que precisamos ser cuidadosos ao
classificarmos Dicke apenas como um autor refletor do local, ou seja, que escreve
apenas sobre os acontecimentos históricos de uma região específica. Ao abrirmos
o pressuposto, devemos entendê-lo como escritor sem fronteiras que, por
exemplo, consegue, ao mesmo tempo em que cria suas linhas narrativas de tempos
históricos, criar os tempos psicológicos que vagueiam nos campos de suas
reflexões: A sua produção transita entre dois pólos: o local e o universal (Miguel,
2007, p.87), não aceitando para isso a classificação reducionista de autor local.
Um fato histórico mato-grossense, entre os vários ocorridos, deve aqui ser
mencionado: sabe-se que a coroa portuguesa nunca sentiu interesse maior pelas
terras interiores ao Brasil, senão pelas primeiras viagens organizadas por
31
exploradores, intituladas Entradas, que tinham como intuito conhecer e mapear
as riquezas do país. O reconhecimento da existência do ouro por estas pessoas
gerou, no governo da época, a necessidade de exploração e utilização destas
riquezas, foi neste cenário que se introduziu a importância da exploração destas
novas terras, além do surgimento do próprio contexto histórico da exploração
nesta região.
Dicke, ao recriar a história de Mato Grosso, estabelece o poder monetário
– riquezas – como sendo o maior interesse dos personagens literários tanto em
uma como em outra novela, porém, em especial na Toada do Esquecido (2006), a
exploração do ouro atravessa os limites geográficos do Brasil, aproximando-se às
fronteiras políticas do Peru. Vale lembrar que a história de Mato Grosso se
confunde não só com a história do Brasil, mas se confunde também com a própria
história da América Latina, já que a exploração de matérias primas é o ponto
comum de seu princípio histórico. Eduardo Galeano (2001) demonstra a visão
materialista do colonizador diante da América recém descoberta:
Bernal Díaz del Castillo, fiel companheiro de Fernão
Cortez na conquista do México, escreve que chegaram à
América “para servir a Deus e a Sua Majestade e também
por haver riquezas (GALEANO, 2001, p.11).
Portanto, mesmo que a exploração do ouro, enquanto contexto histórico,
ultrapasse os limites históricos da nação brasileira, ainda sim o avanço desses
limites estará amparado pelo contexto histórico do princípio de formação de boa
parte dos estados latino-americanos. Por sua vez, não é só a exploração do ouro
que torna o ambiente ficcional próximo da realidade de produção literária, outros
ambientes ficcionais permeiam a produção novelística de Ricardo Guilherme
Dicke, exemplo destes ambientes são as fortes turbulências que giram em torno
dos garimpos e das disputas pela posse da terra. Somados na mistura de todos
estes fatos, despontam tanto a violência quanto a morte anteriormente citados
como conseqüências desses desajustes sociais (MAGALHÃES, 2003).
A dinâmica da construção novelística dickeana reserva as cercas pecuárias
e as matas em cinzas como limites horizontais destas narrativas: Noite caiu agora.
32
Numa planície esturricada, sem dormir cansados, esperando a comida, deitados
no chão... (DICKE, 2006, p.27), a natureza agressiva e rústica circunda em um
mundo onde o domínio é dos mais fortes e o poder reside no ato de vida e de
morte (FOUCAULT, 1988, p.147) dos personagens. Uma vez brutalizados e
inseridos nesses cenários arcaicos e patriarcais, os personagens da ação dickeana
são potencializados pelo passado histórico de Mato Grosso, ou seja, influenciados
pela natureza em que residem.
A esse respeito, a linguagem literária funciona para muitos críticos e
escritores como uma nomeação da realidade ao construir os cenários do enredo,
para tanto, o autor precisa da linguagem para mostrar ao leitor a clareza de sua
construção. Darnton (2009) define a linguagem como forma de ordenação do
mundo, para ele, ela é encaixada num sistema taxonômico de classificação,
nomear é saber ((DARNTON, 2009, p.38).
Ligando o nível lingüístico de Dicke ao sertão de Mato Grosso,
Magalhães (2001) destaca a presença de uma linguagem que se impõe de forma
agressiva (p.205), então, a ordenação de mundo dickeniano, pela teoria de
Darnton (2009), classificaria sua linguagem obedecendo ao sistema que ele
mesmo revelou e que por isso usaria a linguagem para recriar o cenário
“agressivo” proposto.
Apesar da potencialidade histórica, o herói regional (COUTINHO, 2007,
p.204) não se configura nas novelas citadas, com efeito, o herói em Dicke se
universaliza... Uma vez que não está apenas passivo diante do que Bakthin chama
de ambiência social (BAKTHIN, 2003, p.129), mas serve de veículo ou canal
para que o autor-criador possa dialogar e, em contrapartida, receber respostas
pela exposição de suas vozes.
Seguindo a senda de significações que envolvem a produção dickeana,
deparamo-nos com um “estranhamento” na configuração do “herói novelístico”
dessa produção em específico. Esta condição é perceptível quando comparamos
ao cenário o perfil feminino dessas obras, o resultado da comparação torna os
heróis novelísticos dickeanos incomuns ao padrão convencional de representação
literária, já que são condensados na figura de duas grandes líderes femininas
frente a um cenário onde a costumeira feminilidade não se mostra presente.
33
O perfil feminino novelístico dickeano não aceita estereótipos:
passividade, submissão e domínio, já que, apesar da imagem da costumeira
feminilidade atribuída às mulheres, essas aparecem em ambientes marcados pela
violência, ainda que isso seja o mais aceitável dentro da linha do enredo. Nesse
mesmo processo, a mulher dickeana parece reproduzir as cicatrizes da terra onde
vive, demonstra vozes sociais pertinentes a seu ambiente de circulação, parece
masculinizarse o suficiente para manter-se viva, brutalizar-se para sobreviver, ou
até mesmo matar para garantir a existência.
Se a fala feminina ou a fala de uma personagem feminina dentro do
romance pode conter vozes ou discursos independentes em seu interior, podemos
dizer que, dependendo da condição e das forças que se posicionem, o poder
exercido por ela pode ou não ser estabelecido, já que isso deve depender das
relações – que o poder não é algo que se adquira, arrebate ou compartilhe, algo
que se guarde ou deixe escapar; o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e
em meio a relações desiguais e móveis (FOUCAULT, 1988, p.104).
Diante do que vimos expondo, podemos depreender que ter voz pode
significar ter poder. Observemos, então, que as vozes sociais presentes na fala de
uma personagem feminina podem representar subjetivamente quaisquer formas de
poder, de expressões e representações no contexto histórico de que tomam parte,
mesmo que ainda não tenhamos clareza a respeito do que o poder venha a
significar no desenrolar da trama
As vozes sociais de que vimos tratando demonstram seu poder de criação
quando, por exemplo, determinam ações do personagem ou quando determinam
as ações alheias a este personagem, quando determinam a fala de outros
personagens, quando determinam as ideias do narrador ou ainda concernente à
sociedade. Não há, para tanto, um nível de importância em relação a essas vozes,
ao contrário, é a sua quantidade e existência que fazem com que o texto obtenha
grau de riqueza literária. A exemplo, Janis Mohor, em Sinfonia Equestre, (Dicke,
2006) tem seu comportamento determinado pelas vozes sociais que carrega, ou
seja, ao sintetizar o conceito social presente, Janis acaba por simular
simbolicamente a sociedade e o poder do contexto em que está inserida. Não por
acaso, a literatura exemplifica boa parte destas considerações, isto se deve ao fato
34
de que no plano literário o autor pode estabelecer parâmetros, tanto individuais
quanto coletivos, para a construção de seu plano de ação e das vozes internas que
representa. A literatura pode ser entendida como extensão da representação do
plano social em que vivemos e que de certa forma deva espelhar algumas das
vozes que imperam nos discursos que ouvimos cotidianamente. Dessa forma, a
literatura dickeana, pode usar veículos diversos para trazer à tona ideias
preconcebidas.
Os escritores, contextualizados em suas épocas e suas representatividades,
quer seja de seus espaços cronológicos, quer seja de seus espaços psicológicos
(BOSI, 2000), podem dar destino e vazão às vozes, porém os diálogos com
elementos externos ao mundo do autor, incluindo aí o diálogo com seus recém-
criados personagens, podem, ao mesmo tempo, estabelecer novos padrões ou a
reprodução de novas vozes à produção literária em si.
A personagem feminina pode ser exemplo da portabilidade das vozes
sociais na literatura em diversas obras, incluindo as novelas de Dicke. A
personagem feminina tanto pode abrir espaço para que as vozes sociais que
defendam a liberdade de seu gênero possam ser dirigidas ao grande público, como
podem se opor e até mesmo rechaçar essa ideia. Com isso, podemos perceber
que as diferenças estabelecidas por esses discursos se consolidarão não apenas
pela condição de gênero da mulher em detrimento do homem, mas também por
posicionamentos e ideias ─ variantes de uma mesma discussão. Cabe ressaltar
que as vozes sociais que falem sobre a liberdade de gênero não são as únicas
delegadas às mulheres, também podem refletir vozes da sociedade, políticas e até
mesmo institucionais.
Para Lessa (2004), a leitura interpretativa das vozes pode ser feita por
quem não possui o poder de determinar seu destino, incluindo a questão de que as
vozes são perceptíveis tanto ao leitor quanto ao escritor criador, porém estas são
estabelecidas e estruturadas por uma reflexão que tenha por base o poder. Ele
complementa dizendo que a palavra só pode ser tecida quando a costureira possui
entendimento sobre a tecelagem (LESSA, 2004).
Além de poderem ser consideradas obras dialógicas em relação a suas
vozes e a variedade de pensamentos existentes, Toada do Esquecido e Sinfonia
35
Equestre (2006) reservam-nos uma certeza: possuem os perfis femininos como
regentes de boa parte dessas vozes que devem posteriormente classificá-las como
líderes, já que suas ações possam gerar poder.
Uma leitura mais precisa esclarece que o poder não é formado apenas pela
portabilidade das vozes sociais como o que acontece fora do texto literário, mas
internamente a ele, quando o poder se traduz em liderança dentro da ficção, como
é o caso das narrativas estudadas. No caso destas novelas, quando o poder é
carregado pelas mãos femininas, estas, exercem liderança diante do que
simbolicamente representam. Assim as mulheres dickeanas traduzem a vontade
daquilo que a sociedade ideologicamente acredita.
Nessa direção, observamos que a liderança é dividida em partes iguais em
Toada do Esquecido. No plano de ação, duas opositoras protagonistas vão reger as
vozes internas ao texto dividindo o poder, de um lado El Diablo, a líder dos
fugitivos do garimpo, e de outro El Sapo, a líder dos donos de garimpos que
perseguem os fugitivos. Já em Sinfonia Equestre, apenas uma protagonista vai
reger as vozes da liderança e do poder, Janis Mohor vai configurar– se naquilo
que El Diablo e El Sapo já o fizeram anteriormente: sintetizaram como a “mãe–
d‟água”, tão presente no romance Rio abaixo dos vaqueiros ou como a “mãe–
terra”, presente em Toada do Esquecido, as cicatrizes de sua história: A Moringa,
perdida no meio dos campos esturricados, oásis no coração das sangrentas
queimaduras da Mãe-terra (DICKE, 2006, p.61).
Fazendo junção entre o perfil feminino e as vozes sociais, podemos dizer
que as primeiras vozes femininas representativas de poder começaram a ser
ouvidas por vários caminhos de libertação, incluindo nestes caminhos o da
literatura, conforme citado. A literatura se constituiu como um importante meio
para que as vozes femininas pudessem representar o seu poder perante a sociedade
que as cria e escuta.
As autoras costuraram seus canais de libertação próximos da sociedade
vigente – justamente por se tratarem de obras literárias e que, por isso trazem
internamente ao texto um retrato da realidade em que viviam. Zinane (2006) nos
dá uma parte desta realidade:
36
Como ocorre com as minorias, a voz da mulher sempre foi
silenciada, o que a impediu de desenvolver uma
linguagem própria. Desse modo, para poder expressar–
se, precisa utilizar a linguagem do gênero dominante,
através do desenvolvimento de uma modalidade de
articulação de sua consciência por meio de ritos e
símbolos que se configuram num espaço próprio
(ZINANE, 2006, p.25).
O perfil feminino, como falante e possuidor de vozes internas à produção,
abriu perspectivas para que outras “comunicações” pudessem ser inquiridas, o
diálogo com o mundo à sua volta, com seus semelhantes e até mesmo com seus
historicamente algozes: os homens.
O poder de interlocução das vozes, com o tempo, tornou a mulher um
instrumento responsável por essas vozes. Frutos do social, as vozes traduziram o
poder para que o gênero feminino se tornasse de renegado a um importante canal.
Pela análise dessas vozes, sabemos que a sociedade é quem designou essa
transformação, pois é dela que partem os discursos
Faraco (2003) aponta para a existência de jogos de poder entre as vozes
que circulam socialmente (Faraco, 2003, p.67). Para ele, o conjunto social dá
valor para todos os produtos ideológicos que cria, ou seja, as vozes servem para
reconhecer a criação de uma ideologia ou pensamento já constituído pela própria
sociedade.
O poder de interlocução dessas vozes está presente em El Diablo na Toada
do Esquecido (2006), isso porque ao representar os “frutos do social”, El Diablo
também representa o lado do poder social em que as vozes ideologicamente são
regidas. Assim, podemos dizer que as vozes internas aos perfis femininos tem
uma grande importância dentro da produção novelística de Dicke, já que são
formadoras do plano de ação da produção, já que compõem seu papel principal,
José Luiz Fiorin (2006) acredita que Bakhtin (2006) explica esses jogos de poder,
ao afirmar que não há neutralidade na circulação de vozes. Ao contrário, ela tem
37
uma dimensão política. As vozes não circulam fora do exercício do poder; não se
diz o que se quer, quando se quer, como se quer (p.173), isso explicaria a estreita
relação que essas vozes possuem em relação ao poder, tanto no plano de ação da
narrativa, quanto no plano de estabelecimento de discursos ideológicos internos
ao texto. Esse diálogo é assim entendido da seguinte forma por Stella (2005):
O falante, ao dar vida à palavra como sua entonação,
dialoga com os valores da sociedade, expressando seu
ponto de vista em relação a esses valores. São esses
valores que devem ser entendidos, apreendidos e
confirmados ou não pelo interlocutor. A palavra dita,
expressa, enunciada, constitui-se como produto
ideológico, resultado de um processo de interação na
realidade viva. (STELLA, 2005, p.178).
Nesse sentido, os papéis relativos à utilização das vozes mudaram de
acordo com os interesses sociais que os criaram, os eixos se movimentaram e,
desse movimento e de novas formações, as vozes foram conferidas à mulher
porque os signos que representavam também sofreram mudanças: Vozes diversas
ecoam nos signos e neles coexistem contradições ideológico-sociais entre o
passado e o presente, entre as várias épocas do passado, entre os vários grupos
do presente, entre os futuros possíveis e contraditórios (MIOTELLO, 2005,
p.172).
O comportamento histórico e a portabilidade das vozes sociais não
aumentaram nem diminuíram a importância dos perfis femininos nas obras
literárias, já que estas são veículos de utilização das vozes, é preciso entender que
as ideias sociais mostram-se presentes nos textos literários, independentemente do
poder que o gênero feminino represente, ou seja, o poder diante das vozes das
personagens femininas está focalizado na formação do discurso, conforme o
trecho evidencia:
O discurso veicula e produz poder; reforça-o, mas
também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo. Da
38
mesma forma, o silêncio e o segredo dão guarda ao poder,
fixam suas interdições; mas também, afrouxam seus laços
e dão margem a tolerância mais ou menos obscuras
(FOUCAULT, 2010, p.112).
Foucault reitera que outros discursos foram sendo criados e regidos pela
independência de ações em relação ao masculino, entre esses discursos inclusive a
formação do pensamento feminino e de sua ideia libertária, ou seja, o perfil
feminino serviu de canal de ideologias que também apontavam as vozes femininas
como eixo delineador. De acordo com o autor (1988), foi a partir desse momento
que a multiplicação desses discursos trouxe para a mulher o exercício do
verdadeiro poder:
Mas o essencial é a multiplicação dos discursos sobre o
sexo no próprio campo do exercício de poder: incitação
institucional a falar do sexo e a falar dele cada vez mais;
obstinação das instâncias do poder e a ouvir falar e fazê-
lo falar ele próprio sob a forma da articulação explicita e
do detalhe infinitamente acumulado (FOUCAULT, 1988,
p.24)
Foucault (1988) explica que a multiplicação de discursos sociais fortalece
novas formas distintas de divisão de poder, já que centralizado, o poder
monopoliza as atenções e acarreta a proliferação do discurso único e dominante.
Para Perrot (1988), a mulher soma-se aos operários e prisioneiros, ou seja,
gênero minoritário diante dos ingredientes que a constituíram sombra do homem:
o contexto, a invenção arquetípica, seu corpo, sua sexualidade – elementos de
falta de poder interligados tornaram-na excluída e silenciada (PERROT, 1988).
Esse lado obscuro agora divide posição com o perfil literário de uma mulher que
não só representa vozes diversas que se utilizem dela para serem entendidas
dentro desse plano, como também representa as vozes que a defendem e a
definem como formação do próprio discurso interno às novelas em questão.
39
Neste sentido, mesmo que essa condição seja contraditória, firma-se uma
segunda problematização somada à utilização de vozes pelo perfil feminino dentro
do texto literário dickeano: O poder regido por estas vozes.
Lembramos que a sociedade é fruto próprio do poder (Foucault, 1988,
p.16) e as relações sociais são intermediadas por interesses claros ou obscuros. As
variantes que compõem essas forças tanto podem estar centradas nas ações, como
podem estar centradas no ser social produtor desta ação. O poder instituído faz
parte tanto da sociologia quanto das relações de gênero, pois a visão de sociedade,
fundamentada nas relações de poder que possuímos: Sexo e poder não são
mundos distintos um do outro, mas estão entrelaçados um no outro
(THERBORN, 2006, p.11). Como vimos, o poder está no mesmo patamar de
importância do gênero, apesar deste último não ser o foco do nosso estudo.
Segundo Foucault (1988), a disparidade entre os pólos é um fator
fundamental para que o poder se estabeleça, ou seja, são as relações desiguais e
móveis (p.104) que tornam possível o estabelecimento da dominação. Foucault
(1988) acredita que essas mesmas relações díspares mesclam as relações de poder
com sexo e prazer (p.56) e unindo o sexo, a sociedade e a soberania, encontramos
a família, que é regida por toda essa estrutura social (THERBORN, 2006). Tais
pensamentos evidenciam o surgimento de forças menores e forças maiores,
dependendo da situação e da influência como esta mesma situação se combina
com outras.
O exemplo do poder social, do poder ligado à questão de gênero e do
poder familiar não limitam ao contrário, há outras formas de poder que podem ser
observadas em outros planos de ação: O poder, de maneira geral, conceitua-se
como um mecanismo de dominação, um mecanismo apelativo no qual o prazer se
difunde (FOUCAULT, 1988, p.52).
Fora desses padrões de leitura, o poder não é um termo fechado em si
mesmo, ao contrário, abrange vários conceitos em que as características principais
para o estabelecimento do mesmo estejam configuradas. A primeira definição
histórica esteve ligada à nossa condição de seres humanos e de luta por nossa
sobrevivência: Por muito tempo, um dos privilégios característicos do poder
soberano fora o direito de vida e de morte (FOUCAULT, 1988, p.147), embora
40
tivéssemos outros importantes interesses no que se refere à condição de nossa
própria existência.
Aqui se insere a condição histórica de Mato Grosso, segundo a
representação literária de Dicke, em que a sobrevivência diante de um ambiente
de violência constitui-se como forma de produção e ordenação de poder. Ao
lembrarmos estas considerações, não devemos nos esquecer de que, além da
portabilidade das vozes sociais, os perfis femininos situados nesses ambientes em
conflito exercem, as primeiras ordenações de poder, já que além da liderança,
estas se mostram sobreviventes de um sistema social que as vozes internas
representem.
De acordo com o exposto, vimos que o poder passou por diversas
transformações até atingir conceitos básicos de consolidação de seu pensamento:
Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro,
como a multiplicidade de correlações de forças imanentes
ao domínio de onde se exercem e constitutivas de sua
organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos
incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que
tais correlações de força encontram umas nas outras,
formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as
defasagens e contradições que as isolam entre sim; enfim,
as estratégias que se originam e cujo esboço geral ou
cristalização institucional tom corpo nos aparelhos
estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais
(FOUCAULT, 1988, p.102-103).
Não há, de fato, uma estrutura definitiva e formada que convença o
estabelecimento do domínio como circunstância aceitável, ao contrário, o poder
não é uma instituição e nem uma estrutura, é apenas um nome dado a uma
situação estratégica e complexa dentro de uma sociedade (FOUCAULT, 1988,
p.103).
A situação estratégica de nossas ações está em todos os lugares da
sociedade, os fatores que a compõe estão em movimento: ora como costume, ora
como abominação, ora como imposição. A mudança desses eixos determina
41
outras combinações e, por conseqüência, outras formas de dominação. Foucault
(1988) esclarece de onde provém o domínio:
O poder está em toda parte; não porque englobe tudo e
sim porque provém de todos os lugares. E “o” poder, no
tom que tem de permanente, de repetitivo, de inerte, de
auto– reprodutor, é apenas efeito de conjunto, esboçado a
partir de todas essas mobilidades, encadeamento que se
apóia em cada uma delas e, em troca, procura fixá-las
(p.103).
Já que manter o “domínio” em situações sociais pode ser considerado um
termo de várias significações diante da mobilidade da criação literária não é algo
que se adquira, arrebate ou compartilhe, ele é exercido a partir de inúmeras
condições e acontecimentos: os desequilíbrios, as partilhas ou os distanciamentos
(Foucault, 1988, p.104). O autor compreende que o poder seja o produto de uma
série de circunstâncias que, encadeadas, fazem com que ele seja possível:
Que as relações de poder não se encontram em posição
de exterioridade com respeito a outros tipos de relação
(processos econômicos, relações de conhecimentos,
relações sexuais), mas lhe são imanentes; são os efeitos
imediatos das partilhas, desequilíbrios e desigualdades
que produzam nas mesmas e, reciprocamente, são as
condições internas destas diferenciações; as relações
de poder não estão em posição de superestrutura, com
um simples papel de proibição ou de recondução,
possuem, lá onde atuam, um papel diretamente
produtor (FOUCAULT, 1988, p.104);
Que o poder vem de baixo; isto é, não há, no princípio
das relações de poder, e como matriz geral, uma
oposição binária e global entre os dominadores e os
42
dominados, dualidade que repercuta de alto a baixo e
sobre grupos cada vez mais restritos até as
profundezas do corpo social (FOUCAULT, 1988,
p.104-105);
Que as relações de poder são, ao mesmo tempo,
intencionais e não subjetivas. Se, de fato, são
inteligíveis, não é porque sejam efeito, em termos de
casualidade, de uma outra instância que as explique
mas que atravessadas de fora a fora por um cálculo:
não há poder que se exerça sem uma série de miras e
objetivos (FOUCAULT, 1988, p.105)
Como vimos, o poder pode ser considerado uma definição social, que
muda conforme se interliga com elementos diversos ao seu convívio, há condições
em que ele é posto à prova, quando se aproxima de temas considerados
socialmente distantes. Em nosso estudo, um exemplo disso é a aproximação dos
perfis femininos e do poder, conforme observado nas novelas de Dicke – em
virtude dessa historicamente “estranha” aproximação, pode-se perceber outros
elementos que tornam este acontecimento possível: um desses elementos é a
utilização das vozes por parte dos perfis femininos.
Os perfis femininos dickeanos, dentro das novelas, podem obter poder
quando são utilizados como canais de vozes sociais, isso validaria o pensamento
de oposição binária, proposto por Michel Foucault (1988), ou seja, da oposição
entre o que representa o poder e o que representa o perfil feminino dickeano
diante do contexto histórico feminino, um conceito pode contaminar o outro e
assim valorizar não só o discurso carregado pelas vozes quanto valorizar o próprio
veiculo de estabelecimento, no caso, os perfis femininos.. Se a condição histórica
da mulher a situa por baixo da condição de gênero masculina, então o poder vem
de baixo (FOUCAULT, 1988, p.104), isso não só justificaria sua argüição como
também exemplificaria a teoria proposta.
43
Essa expressão O poder vem de baixo não pode ser compreendida como
um termo solto, já que necessita de um contexto de entendimento, principalmente
quando o utilizamos no campo literário. A ficção literária, apesar da ligação que
possui com a realidade vivida, pode se configurar como ambiente artificial de
criação e estabelecimento de poder.
Dentro do campo ficcional das novelas, uma personagem pode estabelecer
poder como sendo o motivo principal da escrita daquele texto quando centra suas
ações, quando por questões econômico-sociais mostra-se superior a outros
personagens ou até mesmo porque, dentro da ação, a personagem pode ser
descrita como a articuladora de uma das cenas que configuram determinada
importância entre outras. Este grau de importância cria poderes textuais que nada
tem a ver com os poderes criados fora desse campo de criação.
No caso das novelas de Dicke, o poder que gera distanciamento em relação
à condição histórica feminina, não gera estranhamento em relação à portabilidade
das vozes sociais, isso porque o perfil feminino em Dicke é possuidor da postura
ideológica social existente, enquanto que os perfis masculinos representam o
discurso dos excluídos, dos que foram esquecidos pela mesma sociedade que
elegeu as mulheres para responder por ela. Assim comparados, ao estabelecerem
poder, os perfis femininos colocam-se contrários aos perfis masculinos nas
relações de gênero e ao contrário deles, a autonomia das atitudes femininas
deixam-se transparecer no enredo.
Além do mais, fora do campo literário, e interligando com um raciocínio já
esboçado sobre o perfil feminino, o termo O poder vem de baixo (Foucault, 1988,
p.104) desenterraria metaforicamente todo um processo histórico que, ao ser
observado enquanto contexto, reafirmaria o mundo em que vivemos.
O esboço desenterrado metaforicamente do contexto da condição
feminina mostra-nos que, no seio da família historicamente o gênero feminino tem
aparecido numa situação de subordinação ao gênero masculino (CANÔAS,
1997, p.50) e as variantes que tornam isso possível são, segundo a mesma autora,
a exploração, a desigualdade, a opressão, a repressão, o patriarcalismo, os
machismos e a discriminação.
44
Para Therborn (2006), o masculino, ao dominar o feminino, fundamenta–
se no passado histórico da formação das primeiras famílias posicionadas entre o
sexo e o poder. Neri (2005) revê uma parte deste processo:
Aristóteles, com as armas da metafísica e da história
natural, da qual ele é fundador, é o primeiro a formular
um discurso filosófico sobre a superioridade do
masculino: é o masculino que transmite a humanidade, é
ele o portador do principio divino. Aristóteles remete o
masculino a forma ativa, princípio divino criador, ser que
engendra, que teria o domínio da arte, da ciência, do
saber e da razão em oposição ao feminino que seria
matéria bruta, fôrma passiva, receptáculo a ser
engendrado, natureza a ser moldada pelo artesão (NERI,
p.83).
A síntese desse poder regido e regulado pelo tempo é definida por Göran
Therborn (2006) como sendo a dominação do gênero masculino, esta dominação é
comparada a uma engrenagem a qual o poder paterno é o significado central do
patriarcalismo (THERBORN, 2006, p.22). De acordo com o autor, o patriarcado
tem duas dimensões de poder: a dominação do pai e a (...) do marido (p.29),
sendo esta primeira ainda constituída de dominações maiores como a autoridade
da igreja (p.32), do monarca (p.32) ou do Estado (p.32). Esta mesma engrenagem
é ilustrada com muita veemência por Maquiavel (2003), que é reconhecido por
sua arte de dominação universal:
(...) pois a sorte é uma mulher, sendo necessário, para
dominá-la, empregar a força; pode-se ver que ela se deixa
vencer pelos que ousam. E não pelos que agem friamente.
Como mulher, é sempre amiga dos jovens – mais bravos,
menos cuidadosos, prontos a dominá-la com maior
audácia (MAQUIAVEL, 2003, p.149)
45
Se do lado de fora da criação literária há uma engrenagem que torna
“estranha” a condição social do perfil feminino relacionado ao poder dentro do
contexto histórico que vivemos, do lado de dentro da literatura este mesmo
estranhamento acontece carregado de significações e vozes que, tanto podem
ecoar esta ideia, como podem também silenciá-la em hipótese de discordância.
Porém, tanto dentro como fora do plano literário O poder vem de baixo
(Foucault, 2010, p.104) e enquadra- se de igual forma na literatura, interligado às
vozes do texto, porque o perfil feminino pode ser portador de uma
importante ideologia a ser combatida ou eferendada, no contexto histórico,
pela condição de disparidade de gênero que une boa parte das civilizações
primitivas (FRENCH, 1992).
A análise dos efeitos da mistura de todos os componentes intra-texto
citados neste esboço de ideias, dá-nos a possibilidade de encontrarmos, enquanto
leitores, romances que, classificados como polifônicos – possuidores de várias
vozes diferenciadas – destaquem não só uma personagem feminina como
elemento principal da ação, mas lhe dêem vozes que atendam aos interesses do
autor-criador ou da própria personagem, sendo estas vozes, diante do cenário em
que são criadas, definidoras de poder frente às relações do plano de enredo.
Unindo todas as problematizações em questão, pode-se concluir, todavia,
que as personagens femininas das novelas de Dicke modificaram as condições
históricas do gênero feminino durante sua ação literária, uma vez que estão fora
do ambiente estereotipado da feminilidade e são, portanto, transcendentes ao
socialmente condicionado, já que lhe são estranhas. O veículo de difusão de poder
nas personagens femininas estabelecidas pelas novelas de Dicke é imbuído no
exercício da significação de uma realidade hipotética e brutal sob o aspecto da
produção do enredo, porém, levando-se em consideração o corpo feminino, essa
situação permite-nos dizer que as vozes correspondem a uma de suas maiores
representações.
Os perfis femininos e suas vozes sociais merecem atenção detalhada
enquanto objeto de estudo. Neles, o fluxo narrativo emana e deságua, inicia e
termina, silencia e potencializa. Refletiremos sobre estas vozes nos capítulos que
se seguem.
46
CAPÍTULO 2: TOADA DO ESQUECIDO
2.1. A Natureza como Cenário
Uma pausa importante se faz necessária à seqüência imediata deste
trabalho, pois acreditamos ser o cenário das novelas dickeanas uma criação
literária que deve, de alguma forma, auxiliar-nos na detecção e estudo das vozes
presentes nos perfis femininos criados pelo autor. Para tanto, este capítulo poderá
se constituir em uma forma de análise para percebermos as características ligadas
a esse cenário e a obra como um todo.
A respeito do enredo da narrativa das novelas, podemos dizer que
resgatam uma temática constante na obra dickeana que é o sentido da travessia
Miguel (2007). Conforme se pode observar em: A estrada fica para trás, e com
ela os tristes campos de árvores queimadas, tudo negro, tudo queimado, nada em
pé, só devastação e destruição (DICKE, 2006, p.55). Outras obras, como por
exemplo, Madona dos Páramos, possuem “travessias” parecidas e podem ser
fonte de inspiração para o estudo realizado. Embora o enredo, de modo geral,
distanciem as novelas dickeanas Toada do Esquecido e Sinfonia Equestre do
romance Madona dos Páramos, tanto uma como outra tem em comum a criação
de uma atmosfera de fuga em direção ao sublime, uma fuga no meio do nada em
busca da difícil realização dos sonhos, uma travessia que embarca, na mais
inóspita das regiões, e que deságua, quase sempre, em uma profunda reflexão
sobre a condição humana.
Esse cenário ajuda a intensificar a prosa poética do autor (MIGUEL, 2007,
p. 282), no sentido de que favorece a reflexão existencial dos personagens, ou
seja, ao criar um cenário opressivo e violento, conforme dissemos, o autor mato-
grossense mergulha na condição efêmera do homem para, de acordo com a
autora, compreender-se ao longo deste percurso. A prosa poética, que mistura a
47
narração com uma parte da reflexão do autor sobre as coisas mundanas, é,
inclusive, emblemática no trecho transcrito abaixo:
Vozes aflautadas, vozes nervosas, vozes com respiração
desabalada, vozes que parecem que lhes deram corda,
vozes de sereias magníficas, vozes soberbas, vozes
tutaméias, vozes anasaladas, vozes atropeladas, vozes de
moles dentaduras, vozes descarriladas, vozes de gordura,
vozes que mascam, vozes musicais, vozes robôs, vozes
cavernosas, vozes negras, vozes brancas, vozes
montanhistas, vozes desparafusadas, vozes espectrais,
vozes de bochechas flácidas, vozes sexuais, vozes como
dentais, vozes palatais, vozes catarrentas, vozes
orquestrais, vozes anãs, vozes gigantes, vozes de gengivas,
vozes dentifriciais, vozes altaneiras como condores, vozes
cadavéricas, vozes como peidos, vozes rachadas, vozes
gongóricas, vozes matsulêmicas, vozes murchas, vozes
sexy, vozes juvenis, vozes patéticas, vozes, vozes – tudo
passa no amplo dial: gran teatro Del mundo e nunca
passam duas vozes iguais e para sempre para nunca mais
voltar, os reflexos de toda a vasta Terra (DICKE, 2006,
p.70- 71).
Como vimos, Mato Grosso é o cenário escolhido para a criação artística
das novelas dickeanas, no entanto, é necessário especificar que, neste aspecto, não
temos a inclusão dos elementos próximos do mundo moderno e nem a complexa
formação de elementos de urbanidade; ao contrário, o que se reproduzem são os
cenários onde o abandono do estado e o estágio primordial de sobrevivência estão
em jogo. Assim, podemos inferir que o cenário característico das novelas
configuram-se no sertão deste estado e é no sertão que a travessia dos personagens
deverá ter início, um início que consumirá a reflexão sobre esta travessia, uma
travessia humana que se reflete sobre nós mesmos: O sertão dickeniano é
48
sustentado pelos conteúdos do inconsciente (...). Um sertão-angústia, um sertão-
loucura (...) um sertão- resposta, um sertão-apaziguamento. (MAGALHÃES,
2001, p.214).
Pelos buracos da viseira vê: é a trilha que segue entre bamburrais sujos e
moitas esturricadas, até agora nada, nenhum lugar para se fazer acampamento e
fazer almoço, terra do diabo, já não sei quanto tempo estamos viajando (...)
(DICKE, 2006, p.15), nesse mundo nebuloso e distante, dos esturricados sertões
às mais verdes florestas, da Amazônia ao cerrado, as narrativas novelísticas se
desenrolam, valorizando a reflexão existencial interior aos personagens.
O percurso proposto pela maioria dos enredos de Dicke, não discorre
apenas sobre a “viagem” indicada pelo mote inicial, na verdade as vozes sociais
regidas pelos personagens femininos também discorrem, de igual forma, sobre a
representação da sociedade em que se condicionam. De fato, a reprodução
desse comportamento ou desse discurso social deve eventualmente gerar
poder em quem o possuir, já que, internamente a este texto, isso possa representar
a imagem do mundo que “atravessa” durante a ação.
Percebemos assim, que duas “travessias” se fazem presentes durante a
realização da ação literária: a primeira voltada para a “travessia da reflexão”
conforme já dissemos, e a segunda, voltada para a travessia enquanto transcurso
topográfico daquela região sertaneja (MIGUEL, 2007, p.151), fato que
colaborará para a formação e estabelecimento do enredo, já que a transformação
do cenário inclui a transformação do enredo. A inserção dos personagens na
travessia “enquanto transcurso topográfico” e conseqüente reconhecimento das
vozes sociais durante essa travessia posicionam os personagens em relativa luta
pela própria vida em detrimento do ambiente brutalizado, em constante
transformação, ou seja, são posicionados em ambientes onde, em situações
críticas, seu poder de barganha pela vida e pela morte são postos à prova. Ao
refletirmos sobre esses aspectos, lembramos imediatamente da primeira condição
de estabelecimento do poder presente nos primórdios de nossa civilização, ou
seja, por muito tempo, um dos privilégios característicos do poder soberano fora
o direito de vida e de morte (Foucault, 2010, p.147). A vida constitui-se, portanto,
como prêmio para todos aqueles que obtem o poder de mantê-la.
49
Miguel (2007) lembra-nos, ainda, que, uma vez conceituados,
estabelecidos e detectados, no caso das novelas, os personagens que trazem o
gênero dos perfis femininos e o cenário ambientado no sertão de Mato Grosso são
vinculados a outro eixo articulador de extrema importância: ambos se vinculam
naturalmente a uma terceira categoria nesse contexto: o tempo (p.52). Segundo a
autora, o tempo da ação é uma essencial ferramenta, que se configura de forma
parecida em quase todas as produções do autor, como vemos no excerto que
segue:
Agora são seis e meia... agora já caíram as trevas sobre
esta parte do mundo, todo o campo já mergulhado na
noite até os horizontes que rodeiam tudo com seu olfato de
narinas noturnas que cheiram o mundo que se enclausura
na escuridão(...) (DICKE, 2006, p.24).
O tempo é, de fato, uma grande complexidade na obra dickeana.
Obedecendo à convenção do tempo proposto por Miguel (2006), lembramos que,
da mesma forma como dividimos as “travessias” da obra anteriormente,
apontamos agora a existência de tempos internos ao texto, já que, por seu grau
de riqueza, reserva-nos a condição de que os tempos estejam intimamente
relacionados e internamente observados diante de suas significações.
Levados agora por essa presença temporal, comecemos trazendo à
lembrança a menção de que a “travessia” humana apresentada pela análise da
condição existencial a qual estão seres humanos sujeitos liga-se diretamente ao
tempo psicológico da obra (BAKTHIN, 2003, p. 211). O tempo psicológico é
conceituado como o tempo vivido pela personagem, de acordo com o seu estado
de espirito, diante disso, podemos perceber que se os personagens estão inseridos
numa “travessia” de questionamentos existenciais, conforme observado, a
utilização do tempo “psicológico” faria jus a esta consideração, já que, também
por intermédio desse tempo, podemos fazer parte considerável das concepções
fenomenológicas dos personagens. O trecho abaixo reune exemplarmente a
“travessia” humana da narrativa dickeana:
50
As vozes da sedução no rádio... Mas quem seduz quem?
Sei lá, é alguém que seduz ou quer seduzir e alguém que é
subliminarmente seduzido: são as doces vozes das
mulheres do mundo, são as velhas companheiras do
homem, as eternas amigas do homem, são as velhas vozes
de sedução deste mundo. Rostos sedutores das mulheres
nos fitam lá dentro do rádio, lábios femininos que falam,
pronunciam palavras com doces inflexões, bocas que vão
falando: que nos quereis, eternas formas da sedução deste
mundo? Não queremos a sedução deste mundo, desejamos
sim o descanso deste mundo, nada mais... Mas as eternas
mulheres seguem falando lá das distantes e fodidas
cidades e com elas se perde todo contorno e tudo se
indefine: estamos eternamente no mundo da sedução, sem
poder fugir? E fugir para onde, acaso? Como Jerônimos
no deserto, as formas femininas nos seguem, nos
assediam, nos perseguem, como Calígulas bebemos na
taça do pecado o amavio das vozes de sedução das
mulheres que, no deserto silencioso, as nossas pobres
orelhas vão bebendo e que não sabem esquecer. Como é
teu nome, El Diablo? Se te chamas Ana Barca ou Horário
Barco? (DICKE, 2006, p.82)
Também devemos trazer à lembrança a ponderação de que os tempos e as
travessias de igual forma se unem à condição de humanidade dos personagens.
Como vimos, aneladamente os tempos se ligam a esta condição com significações
que não operam na mesma direção. Se, de um lado, o tempo psicológico aponta
para os horizontes definidos anteriormente, o tempo cronológico (BOSI, 2000)
reserva-se, de maneira simplificada, a pautar a marcação e a ordenação do tempo
dentro da ação promovida pelo autor. Esta marcação envolve os estados da
natureza, do cenário e a própria forma única que Dicke possui de dialogar com os
51
acontecimentos rotineiros de sua escrita: Dez horas, mestre... – diz mestre Gepetto
olhando seu relógio de pulso (DICKE, 2006, p.45).
A partir da marcação dos índices narrativos tal qual a natureza arredia, a
narrativa se apóia na intensa vivacidade da representação literária, tal intensidade
é percebida quando ciclicamente os animais que os acompanham, quer seja na
fuga – Toada do Esquecido – quer seja na vingança – Sinfonia Equestre –
mostram-se presentes em suas entonações. As entonações dos animais são
constantes durante a narração, porém apesar de constantes, são fugazes, portanto
sua presença torna a marcação temporal uma espécie de metáfora que funciona
como “os pinos de um relógio”, ambos retratando a ação do tempo sobre a
condição de humanidade.
Constatamos, deslocando-nos ainda mais longe na reflexão, que as
entonações propostas pelos animais dentro do plano de ação não fazem parte de
uma ação isolada, mas estão inseridas num círculo maior, ou seja, o tempo
cronológico sofre suspensão causada pela presença de elementos cíclicos do
cenário da natureza. Para Ferraz (1998), a entonação é a tradução e a
representação sonora de elementos simbólicos extra-musicais e afetivos (p.31).
Ferraz acha que os sons podem ser uma extensão do raciocínio humano e, por essa
razão, significar um prosseguimento de pensamento (p.31). Tal raciocínio elucida
a idéia de que os sons do cenário da natureza para o narrador dickeano podem
significar muito mais do que mera congruência de sons; na verdade os elementos
de marcação de tempo, simbolizados por este círculo maior de Toada do
esquecido (2006) e Sinfonia Equestre (2006) podem se estabelecer como metáfora
ou alegoria de uma reflexão ainda mais profunda (HANSEN, 1986).
A metáfora ou alegoria retirada do entendimento geral da obra seria
possível se compreendêssemos estes elementos como formadores do que já
conceituamos como sendo “o relógio da condição humana”. Parte desta
compreensão seria aceitável para Eco (2003), pois todo movimento
interpretativo, segundo ele, obedece a uma abdução de sentidos interiores à
produção:
Se este movimento interpretativo se detivesse no gozo
dessa imprecisa emoção, não haveria abdução nem
52
qualquer outra coisa de relevante para os fins do nosso
discurso. Mas o movimento abdutivo se cumpre quando
um novo sentido (uma nova qualidade combinatória) é
atribuído a cada som enquanto componente do significado
contextual da peça inteira (ECO, 2003, p.120).
Adotando a teoria de Eco (2003), uma vez mais “os pinos do relógio da
condição humana” seriam acionados aqui pelo motriz do cenário da natureza
enquanto círculo maior, conforme o exemplo: Aguça os ouvidos e ouve: distante
cantares de galos e ladrares de cães. Mugidos de bois e vacas (DICKE, 2006,
p.86), ou ainda pelos sons dos animais enquanto esboço desse conjunto: o
cachorro que uiva (p.86), o papagaio que reflete: “Pensa que sou idiota?” (p.86),
o galo que canta e, por último, um insistente relógio que fala das horas, marcando
o tempo. Reunidos, todos esses sons de marcação de tempo no texto, acabam por
integrar o composto verbal que capta as singularidades visuais e sonoras
(MIGUEL, 2007, p.151).
Desse modo, a importância dos tempos dickeanos dentro da produção
novelística é conferida pelo cenário histórico, já que se constitui como formador
dos “pinos do relógio”, portanto, ao interligarmos a condição histórica da
construção do texto com as vozes sociais presentes na produção, observaremos
que a reprodução dos conceitos da sociedade, acerca do tempo identificado pela
narrativa, tornam-se presentes, sendo que, o poder deve ser gerado em detrimento
do personagem que porta estas vozes sociais.
Continuamos a recuperar a idéia de que as entonações são a porta de
entrada para o sentimento de isolamento dos perfis femininos, pois O caminho de
crescimento dos habitantes ficcionais é percorrido em meio ao silêncio
(MACHADO, 2008) e, ao fazermos esta recuperação, somamos a esta, outras
ponderações que levantamos neste capítulo, ou seja, os tempos dickeanos
fortalecem a idéia de reflexão existencial, enquanto que o tempo cronológico
recria a “rotina” cotidiana, ao reproduzir o cíclico dos sons da natureza, fato este
que vai favorecer, conforme citado por Machado (2008), as condições para o
“isolamento,” já que os sons “rotineiros” desta travessia, tanto psicológica
53
quanto topográfica, representam, unidos, um ponto convergente que tipifica a
condição da humanidade diante do mundo em que vivemos. O isolamento cíclico
dos personagens fora estudada pontualmente por Miguel (2007):
As idéias cíclicas correspondem à idéia do movimento
circular e aproximam as dimensões temporal e espacial
no romance dickeniano, a peregrinação do grupo se torna
circular naquele espaço desconhecido, pois, ao
percorrerem o lugar e retornarem ao mesmo ponto, estão
atando o fim ao princípio e fechando a circunferência de
um círculo (MIGUEL, 2007 p.109).
Como vimos observando, a aparente separação do tempo deságua numa
mesma direção e que os elementos sonoros constituidores do cenário, quer sejam
sons de personagens ou de animais, elaboram um plano internamente embrenhado
de significações. Podemos perceber, desse modo, que o conceito dessas
significações esclarecem a reflexão que consideramos de extrema importância já
que a representação literária torna-se próxima da realidade social da época,
Ao estudarmos o autor e compreendermos a sua construção literária,
destacamos a importância da utilização dessas ferramentas as vozes sociais e o
poder exercido por elas, já que analisaremos, sob esta perspectiva, como as vozes
ou os discursos sociais e de gênero operam o poder em relação ao plano de enredo
das novelas do autor, especificamente interessa– nos descobrir como essas vozes
perpassam os perfis femininos tão importantes nesta construção literária.
2.2. Rádios à Espreita: Vozes Femininas
Antes da análise da primeira personagem presente na novela dickeana,
gostaríamos de resgatar a idéia pertinente ao universo cíclico de Ricardo
Guilherme Dicke, conforme dissemos anteriormente, esse universo é composto de
personagens – que, somados, formam um plano de ação rotineiro que indica as
ações humanas dentro do tempo cronológico. Destacaremos mais um importante
54
item neste complexo universo: as vozes das locutoras de rádio.
Como vimos, os planos de representação literária propostos pelas novelas
trazem à tona uma grande proximidade com os fatos históricos ocorridos em
meados da colonização deste estado, por isso os “fugitivos do garimpo” não
fazem apenas uma travessia topográfica conforme o enredo indica, fazem mesmo
uma travessia histórica, em que se observa o reconhecimento das vozes sociais da
época e onde, ficcionalmente, os limites se confundem com a realidade. Toada do
esquecido (2006) tem como motivação principal a reunião de um grupo de
garimpeiros em fuga, essa fuga revela alguns traços comuns aos personagens: o
furto de um tesouro pessoal que protagonizam e a rádio que escutam.
Para o educador Paulo Freire (1977), Todo ato de pensar exige um sujeito
que pensa um objeto pensado, (...), comunicação entre ambos, (...). O mundo
humano é desta forma, um mundo de comunicação (Freire, 1977, p.66). O
raciocínio de Paulo Freire se faz necessário à medida que o rádio, enquanto objeto
de projeção do enredo novelístico, é desejado pelos personagens que o escutam,
isso acontece porque o rádio – instrumento de difusão – tem importante
desempenho em relação à ação, visto que o tesouro furtado se perde durante o
caminho, enquanto o rádio os acompanha até seus silêncios posteriores; em
virtude desses acontecimentos, pelo rádio os perfis femininos, condicionados
pelas locutoras, colocarão suas falas em evidência, e, por esses canais, as vozes
sociais devam ser observadas sob a ótica do poder.
É importante Observar que o rádio – aparelho eletrônico, constitui-se
como substantivo masculino, entretanto, a rádio – estação de sintonia, constitui-se
como substantivo feminino, esta distinção nos interessa com o propósito de
ressaltarmos a importância desta análise que trabalha com as vozes das
personagens femininas, presentes na rádio, estação de sintonia.
Ao reiterarmos “o mundo da comunicação” de Paulo Freire, sintetizamos a
importância das estações musicais, na medida do que vimos estudando a respeito
da importância das entonações, criadas em torno da produção dickeana, elas
operam os limites da ação e determinando a condição de vida dos personagens. Se
“o mundo da comunicação” precisa de um veículo de divulgação e se os caminhos
55
do enredo novelístico dickeniano são determinados pela “audição”, então
podemos dizer que as transmissões radiofônicas ficcionais unem esses pólos, na
medida em que não só representam uma parte da comunicação, como representam
audição dos personagens, a voz de sua própria consciência durante aquela
“travessia” topográfica e existencial. Esclarecemos que a travessia humana
pelo sertão de Mato Grosso é silenciosa, como mostrado, o silêncio desta
travessia torna os personagens suscetíveis a qualquer manifestação sonora, porém,
a produção novelística recria um ambiente propício à valorização desta
manifestação sonora como exercício das reflexões de suas próprias consciências,
ou seja, dentro dos limites dickeanos, a rádio e a consciência dos personagens se
confundem, já que o silêncio propicia a concentração destes na transmissão
radiofônica.
Ao chegarmos a essa conclusão, esclarecemos que a importância da fala
dos perfis femininos na rádio gera poder, na medida em que são condicionados
aos valores da sociedade da qual fogem os libertinos pela travessia proposta, ou
seja, as locutoras representam o social e, consequentemente, a sociedade, uma vez
que trazem em seu bojo boa parte das representações ideológicas de seu tempo
histórico: A mulher de voz suave, talvez uma índia de Tiajuanaco, que fala, fala
sempre apesar de ser meia-noite, lá deve ser às onze horas, ainda á cedo, ah o
mundo da sedução, nem no Equador, entre os índios de Tijuanaco, lá também
deve haver o mundo da sedução(...) (DICKE, 2006, p.37)
Portanto, duas formas de importância estão condicionas quando o assunto
relativo às entonações propostas pelas novelas é retomado: do lado de fora, a
comunicabilidade do mundo e que o mundo nos reserva, do lado de dentro, o
ditame das ações narrativas.
Pensando em dar maior representação literária à sua ficção, o autor de
Toada do Esquecido (2006) cria um ambiente que valoriza a audição, como
componente do plano de ação. Um exemplo dessa valorização são as
interferências radiofônicas propostas pelo enredo do texto, ou seja, algumas
estações de rádio francesas acabam se confundindo com estações de rádio
espanholas, esta ação faz-nos lembrar que, durante a sintonia de uma estação de
rádio, várias estações podem fundir-se, trazendo à tona sons que, apesar de
56
aparentarem ser únicos, representam, na verdade, a junção de várias vozes em
uma só. Assim, fundem-se os idiomas com o assunto falado, faz-se uma mescla
de sintonias, idiomas e assuntos, constituindo-se, portanto, em um exemplo de
plurilinguismo:
Uma hora está falando a Rádio Nacional de Espanha com
seu impassível locutor espanhol que não gosta do ridículo
e de repente sem que ninguém lhe ponha a mão falando a
rádio Grécia. Está tudo muito bem quando de repente lá
vem a batida da vareta repetitiva e enjoativa, apesar de
que também haja velhotes que adoram essa batida de
vareta enjoativa do bendito couro distendido... Põe-se na
Rádio France e acaba ouvindo a Rádio Praga, quer ouvir
a BBC de Londres e acaba ouvindo a rádio Moscou... Isso
não será o secreto índice de alguma ameaça que passa no
mundo e paira sobre nossas cabeças? A secreta Universal
Cumplicidade... (DICKE, 2006, p.72)
No tocante às interferências radiofônicas, igualmente, as vozes das
emissoras cujo locutor seja homem ou mulher também fazem junção, ou seja,
seguem uma mesma sintonia, por vezes, locutor e narrador também se fundem,
porém a relação das vozes internas ao texto não são operadas na mesma direção.
Percebamos que o destino dos fugitivos se desenrola à medida que a transmissão
radiofônica acontece, ou seja, dentro da ficção de ação existe uma outra “ficção”
que reproduz o mundo dos personagens, esta outra ficção é o que os leva à
sintonizar a estação de rádio, porém se acreditarmos que a rádio pode significar a
“voz de suas consciências” – já que a rádio e a consciência dos personagens se
confundem – podemos concluir que os personagens das novelas dickeanas
utilizam se metaforicamente da rádio como sintonia de auto-conhecimento ao
longo da travessia “existencial”. O estabelecimento das idéias faz com que,
ficcionalmente, os personagens tentem a sintonia das estações e, ao fazê-lo,
acabam por encontrar os locutores masculinos, representando as notícias
57
corriqueiras do dia a dia. Os locutores trazem informações, pregações religiosas e
repetições sobre temáticas diversas da atualidade. Assim, todo esse conjunto gera
uma idéia de visão cíclica sobre a fala masculina, porém, como estudamos, os
personagens estão inseridos num universo cíclico muito maior, um universo que
conjuga todos os assuntos observados pelo mundo moderno: globalização, ordem
econômica e política, contados e repetidos à exaustão. Dito de outro modo, a fala
masculina representa o prosseguimento do mundo em que os personagens são
inseridos pelo narrador.
As informações radiofônicas repassadas pelas falas masculinas são a
definição do papel a que se prestam as informações na sociedade atual. Para
Siqueira (1999) tais papéis são assim definidos: o papel da informação na
sociedade (...) se torna de tal forma relevante que vem à luz o termo sociedade de
informação. Nela vive-se cultural, política, cientifica e, principalmente,
economicamente em torno da circulação de informações (p.25). A esse respeito,
as vozes dos locutores masculinos, que traduzem a repetição cíclica, são
rejeitadas pelos personagens em fuga, acontecimento que é justificado porque
essas vozes fazem o papel da realidade crua da ordem social de suas consciências,
para tanto, a todo momento quer lembrá-los da condição verdadeira do que são e
da condição a que estão submetidos por causa da fuga.
Se, de um lado, os locutores masculinos apresentam vozes que reiteram o
discurso social dominante, sistema de capital, política e religiosidade; de outro, e
contrariando as vozes dos locutores masculinos, as locutoras femininas expressam
duas leituras: o discurso do gênero e o discurso de classe social. As vozes
presentes nas falas das personagens femininas representadas pelas locutoras das
estações de rádio possuem, em seu interior, vozes que apropriadas do discurso
social imperante fazem-se presentes como elemento de estabelecimento de poder,
constituem-se importante objeto de análise, já que internamente carregam em si
marcas expressivas da sociedade que as articula.
Retomando a ideia de vozes presentes na fala das locutoras das rádios,
observemos o um exemplo:
– Fabulosos, rodopiantes mundo da ilusão! A gente vive
no mundo da sedução: revistas e jornais repletos de
58
insinuações, televisão com as mulheres convidando, assim
tão sem mais nem menos; pelas ruas elas andam nuas, nas
rádios vozes cinciantes que sussurram no mundo da
sedução, de manhã à noite e da noite à manhã: vozes que
cantam irresistivelmente, envolventemente a não poder
mais: este é o mundo da sedução e da ilusão em que
vivemos metido até o pescoço... (DICKE, 2006, p.11)
O primeiro questionamento suscitado é justamente a composição das vozes
que dialogam com o discurso da sexualidade feminina. Conforme observado, o
tema principal do trecho rege a importância das vozes sociais, enquanto evidência
de sexualidade.
Ao tratar da sexualidade feminina como composição de vozes regidas
pelas locutoras, o perfil feminino representado não só aceita o discurso
antropocêntrico de submissão como também reitera tal discurso, deixando que
essas vozes circulem livremente. Uma vez aceita essa submissão como imposição
do poder patriarcal, essas vozes geram uma interessante contraposição, ou seja, o
perfil feminino serve de veículo para que vozes contrárias à sua emancipação
sejam colocadas em evidência.
Dito isto, importa- nos indicar como as vozes regem a imposição da
condição que o contexto histórico propôs a esta dominação. Como sabemos, a
mulher, enquanto objeto de prazer masculino, fora descrita em sociedades
primitivas (FRENCH, 1992) como as indígenas (RAMINELLI, 2009), para tanto
as vozes, frutos deste pensamento, apenas reproduzem parte desse
cenário,enquanto que o alvo do poder neste acontecimento é regido por duas
condições essenciais: a primeira é que as locutoras de rádio apropriam-se do
discurso masculino em suas vozes e a segunda que, dentro do plano ficcional, as
vozes da locutoras representem o reconhecimento da sociedade na qual se inserem
os personagens. Conferindo as vozes que regem as locutoras das rádios, a
sexualidade feminina em condição de aparecimento convergem em uma
identidade a qual Monteiro (1998, p.55) definira: A identidade feminina ficou
plasmada pelo que a cultura patriarcal determinou. A mulher verte o sangue
59
menstrual como marca de sua inferioridade Ou seja, as vozes, neste sentido,
estariam reproduzindo um conceito citado por Monteiro (1998) e, ao mesmo
tempo, destacando o corpo feminino como projeção de sexualidade.
Sobre esse assunto, Simone Beauvoir (1980) fala sobre a condição do
corpo feminino como elemento de sexualidade:
O corpo da mulher é um dos elementos essenciais da
situação que ela ocupa neste mundo. Mas não é ele
tampouco que basta para defini-la. Ele só tem realidade
vivida enquanto assumido pela consciência através das
ações e no seio de uma sociedade; a biologia não basta
para fornecer uma resposta à pergunta que nos preocupa:
por que a mulher é o Outro? Trata-se de saber como a
natureza foi nela revista através da história; trata-se de
saber o que a humanidade fez da fêmea humana
(BEAUVOIR, 1980, p. 57).
Ao citar a posição de Beauvoir (1980), O corpo da mulher é um dos
elementos essenciais da situação que ela ocupa neste mundo, a teórica esclarece o
que dissemos vimos dizendo, ou seja, na medida em que entendemos o corpo
feminino sintetizando à “mãe-terra”, podemos compreender , que esse corpo deve
incorporar as cicatrizes de sua história.
De acordo com a autora, observamos que se a mulher vive em
conformidade com as vozes que representa em um mundo onde o discurso do
poder patriarcal se faz presente, parece-nos óbvio que seu corpo, enquanto objeto
de desejo sexual, estivesse em evidência.
Olhando por este prisma, a sexualidade, presente nas vozes regidas pelas
locutoras, é uma constante durante toda a narração: nas rádios vozes cinciantes
que sussurram(...) vozes que cantam irresistivelmente (...), todos
indissoluvelmente metidos até o pescoço no jogo da sedução(...) (DICKE, 2006,
p.11). Os fragmentos mostrados são alguns exemplos, dentre muitos da presença
60
dessa sexualidade e “cicatrizes” de um tempo patriarcal que tem no corpo
feminino um instrumento de utilização.
Ampliando esta idéia, podemos observar que as vozes que indicam
sexualidade, nesses discursos trazem consigo formas de criação e estabelecimento
de poderes específicos, pois... o poder fala da sexualidade e para a sexualidade...
(FOUCAULT, 1988, p.161). O poder presente nesse discurso é reafirmado pelo
pensamento centralizador da masculinidade em relação à feminilidade, prova
disso é a apoderação deste pensamento pelas locutoras – gênero feminino – para
gerar poder sobre si mesmo e sobre o que se é dito ao longo do texto. Esta forma
de dominação, como vimos, não é estranha em relação à construção histórica da
humanidade, ao contrário, representa continuação de um estado inicial de ações: O
sexo pode levar ao poder através do canal da sedução (THERBORN, 2006,
p.11).
As vozes que representam a sexualidade, presentes na fala das locutoras,
não são as únicas a serem observadas, como sabemos, outros discursos podem
mostrar-se presentes frente a um mesmo personagem, tornando-o, assim,
complexo em relação à sua ação interna. Observando o perfil feminino das
locutoras, notamos as vozes que regem o discurso social dos limites geográficos e
políticos, essa linha de raciocínio deverá delinear a trama com acontecimentos
palmilhados na geografia que conhecemos, dando aos discursos a divisão
necessária de percepção espacial.
É preciso, antes de iniciar a análise dessas vozes, algumas inferências de
grande importância e a principal delas é a conceituação do que significa uma
divisão política. Consideramos que a divisão política dentro dos limites
geográficos seja um jargão utilizado para conceituar os limites que regem as
regiões dotadas de formas diferenciadas de governo e divisão social,
simplificando o conceito de uma região geográfica e criando uma terminologia
técnica; seria em grande escala a formação de uma nação ou país, porém também
é aceitável a ideia de que possa representar regiões administrativas menores tais
como províncias, cidades ou vilas.
A narrativa dickeana possibilita o plano espacial de construção como
extensão dos limites políticos e geográficos, tal ocorrência não se resume
61
apenas no que esses limites apresentam, mas sim a significação interna do
discurso junto a estas ponderações. Um exemplo destes discursos é agora exposto
à presença dos limites latinos, conforme o trecho:
A mulher de voz suave, talvez uma índia de Tiajuanaco,
que fala, fala sempre apesar de ser meia-noite, (...) ah o
mundo da sedução, nem no Equador, entre os índios de
Tijuanaco, lá também deve haver o mundo da sedução...
(DICKE, 2006, p.37)
Ainda seguindo a exemplificação anterior, apontamos outro trecho
esclarecedor, desta vez seguindo limites europeus:
Xenofobia, racismo, besteirol. Os tempos do fim já
chegaram. A mocinha, de educação francesa, lá na
distante Paris, com voz empostada e levemente gripada
sugerindo fofura e charme (DICKE, 2006, p.35).
Mostra- nos ainda suas identificações espaciais com países de limites
distantes como a Rússia: (...) mulher glamorosa falando em russo(...) (DICKE,
2006, p.45) ou ainda os limites dos orientalismos exóticos do oriente médio: (...)
uma mulher falando em árabe de onde não se sabe que país islâmico(...) (DICKE,
2006, p. 46).
Portanto, os limites geográficos internos ao texto trazem consigo um
conjunto de vozes que, ao serem estereotipadas, fortalecem idéias pré-concebidas
acerca da condição geográfica, do sistema político e da etnografia de cada região,
todos estes componentes reunidos formam o discurso empregado no texto.
Antes de continuarmos a analisar a presença das vozes que regem os
limites geográficos ou territoriais da esfera de ação dessas novelas, precisamos
considerar expressiva a reincidência das presenças, nestes trechos, tanto da figura
feminina, enquanto perfil, como a da sexualidade feminina. A presença de ambas
temáticas – a sexualidade feminina e os limites geográficos – reforça o que vimos
62
observando: estabelecendo uma ponte de comunicação entre elas, já que para o
plano temático esta aproximação dá mais veracidade representativa ao cenário
criado. Sintetizando, tanto os perfis femininos como a sexualidade que este perfil
representa, são tratados enquanto temática de forma universal, independente
dos limites geográficos, ou seja, apesar de espaços diferentes, a geografia das
divisões não é suficiente para mudar a condição de subalternidade existente nas
relações de poder de gênero..
O perfil feminino ainda servirá para abarcar outra condição ligada a essas
vozes, esta condição refere-se à inspiração criada pelas vozes sociais, políticas e
geográficas, presentes na fala das locutoras das rádios, são ficcionalmente
semeadoras de “sonhos” distantes na mente dos personagens. Cada personagem
munido pelas representações nacionais e políticas traduzem parte do “sonho”
distante de cada um deles, esclarecendo, interagidos no enredo pelas locutoras que
se utilizam do plano geográfico como extensão de pensamento, os personagens se
vêem induzidos por este discurso ao criarem um plano de fuga que inclua essa
condição geográfica: El Diablo quer ir para Miami nos Estados Unidos, Gepetto
para Sidney, na Austrália, Cavaleiro para Espanha, Zabud para Hamburgo na
Holanda e Palinuro para Tókio, no Japão. Lembramos que a condição geográfica
trata-se de uma materialização do espaço em que gostariam de viver, já que
representam a paz e a tranqüilidade diante do caos e do ambiente opressivo em
que vivem.
A oposição espacial percebida entre onde estão os personagens da trama e
onde gostariam de estar representam um discurso que aponta para os limites
geográficos do mundo, na medida em que os sonhos dos personagens são
revelados durante a trama, desse modo , essas vozes sociais prestam-se a dividir o
mundo ficcional em duas opções políticas: o Primeiro Mundo e o Terceiro
Mundo (DICKE, 2006, p. 35).
É necessário explicar a utilização dessas terminologias devido à sua
utilização pelo autor, como forma de contextualizar a época da escrita das
novelas. Para o entendimento desta afirmação, é preciso considerar que muitos
desses termos já estão em desuso.
63
Concebidas entre os anos de 1945 a 1990, em um contexto em que as
condições econômicas referentes às regiões representadas daquela época foram a
principal motivação para a citada classificação. A terminologia do
subdesenvolvimento ou de “países em desenvolvimento” fora a substituição da
anterior porque levam em consideração atualmente outros fatores tais quais
desenvolvimentos humanos e qualidade de vida para classificá-los. Lembramos
ainda que Terceiro Mundo fora a terminologia dada principalmente a países
latinos, africanos e asiáticos. Em contrapartida Primeiro Mundo, atualmente, os
“países desenvolvidos” são um grupo composto por países que possuam fortes
economias e altos indicadores sociais, tais como qualidade de vida.
Uma vez inseridas estas informações dentro do plano de ficção dos
personagens, as esferas nacionais femininas opositoras das vozes das locutoras
ganham destaque: o Primeiro Mundo (DICKE, 2006, p.35) traz a idéia da
qualidade de vida, como segurança de uma existência tranqüila e pacífica, já que
os personagens em fuga não a possuem, justificando assim o real interesse pela
segurança, já o Terceiro Mundo (p.35) como intempérie do tempo presente, uma
terra sem lei, onde a existência continua pautada pela luta para manter-se vivo.
Os fugitivos sentirão segurança na fala das locutoras femininas, não só
porque a fala feminina representa o linear das coisas que gostariam que
acontecessem, mas porque representam o poder econômico das vozes sociais e
dos lugares onde queriam estar, fazem parte do outro lado da geografia,
simbolizam o discurso da segurança dos “países desenvolvidos”, das vozes dos
limites da tranqüilidade que almejam.
Como vimos observando, as vozes pertinentes às locutoras da rádio,
internas à narrativa dickeniana, quer sejam vozes que se voltam à sexualidade,
quer sejam vozes que se voltam aos limites políticos da geografia, evocam, a cada
classificação, formas diferentes de estabelecimento de poder, porém não podemos
nos esquecer que outras personagens femininas ainda serão perfiladas sob o
mesmo prisma nesta análise.
Então, como numa alegoria, a procura de uma estação de rádio pelo
cavaleiro – até então líder do bando de fugitivos na ficção – pode traduzir-se pela
segurança do que a rádio representa: “procurar a rádio deve significar procurar
64
segurança”, o dial serve alegoricamente de leme para um “navegar” existencial
sem direcionamento, uma fuga no escuro. Obedecendo a esses parâmetros, as
intempéries da vida, a estática e as interferências fazem com que os personagens
dialoguem com suas consciências.
As mãos femininas que outrora, na antiguidade, eram usadas para
trabalhos manuais de tecelagem e artesanato (LESSA, 2004), agora, mudam o
leme do poder acional interno ao texto o dial (DICKE, 2006, p.27). Essas mãos
sentem a liberdade representativa das existências que encontram as rádios: um
encontro entre o feminino e o masculino – uma mão feminina escolhe o dial do
vencedor, uma mão feminina escolhe a sintonia de uma rádio uma rádio, a qual ,
por intermédio de suas vozes, traça o destino dos personagens.
2.3. El Sapo: Silêncios que falam
É necessário, antes de iniciar outra abordagem deste estudo, buscarmos o
resgate da ideia do tempo cronológico que recria a “rotina” ao reproduzir o cíclico
dos sons da natureza. Essa retomada é feita no momento em que outros elementos
pertinentes ao texto, como o cenário refletido na natureza são ciclicamente
retomados, desta vez com intenções que se distanciam e se aproximam.
Como vimos, entre os elementos retomados durante a ação, situamos a
presença, até então silenciada, da personagem El Sapo. El Sapo é uma das
colaboradoras entre todos os personagens constituídos das vozes dos perfis
femininos que são apreciadas durante a narrativa, vozes que, somadas, contribuem
para uma suposta feminilidade do enredo.
Nesta perspectiva, a presença de El Sapo segue a significação sonora
(MIGUEL, 2007, p.151), tanto quanto a repetição sonora do cão que uiva, citado
anteriormente, El Sapo pode aproximar-se desses elementos, visto que reaparece
tanto quanto eles durante a ação, ciclicamente, porém pode distanciar-se desses
elementos: a todo o momento a condição de presença de El Sapo é temporalmente
fugaz e cíclica – passageira e repetitiva, aproxima– se, portanto, do cenário da
natureza porque a sensação de “perseguição” interna ao enredo pelos fugitivos
65
ganha intensidade de tempo cronológico, ou seja, como se o tempo evidenciado
pelo cíclico desta aparição – El Sapo – seja determinante para a condição da fuga
e posterior perseguição.
El Sapo, enquanto objeto de análise, reserva-nos um panorama acional de
extrema importância, nas palavras de Palinuro e de Elpendor – personagens
novelísticos – a síntese dela se faz presente:
– Pois, é isso, aquela mulher horrível, foi ela que nos
contou...
– Qual o nome da mulher horrível?
– Madame El Sapo... Antes de vir, quando encetávamos
nossa viagem, naquela noite em que o barracão do
Carnaval pegou fogo, quando todos dançavam e chegou a
polícia e a turma de madame El Sapo, a peruana, nos
cercou, nos também roubamos nosso ouro, mas não deu
tempo de pegar lugar com vocês na Kombi, nós num jipe
encontramos coisas que nem acreditamos, viemos a
cavalo, enquanto dormiam nós andávamos, e viemos pela
estrada real, sob a vista de todo mundo, chegamos à
borda da cidade, mas não pudemos entrar, estava tudo em
sacolas com nosso ouro, e daí voltamos e eis agora que
estamos voltando, somos amigo, gente somos amigos,
Elpendor e Palinuro... (DICKE, 2006, p.40)
As oposições dos personagens colaboram para a construção de um perfil
comportamental que posiciona El sapo num plano passivo de ação, possivelmente
porque as qualificações das vozes sociais desta personagem só são traçadas por
outros personagens presentes ou mesmo pelo narrador. As ações relacionadas à
fuga dos garimpeiros estão no plano de ação da novela, conquanto que as ações
relacionadas à perseguição são citadas em instantes rotineiros, mas não possuem
clarividência descritiva, visto que estão, tal qual El Sapo, situadas também no
plano opositor da ação.
66
Na verdade, a presença física de El Sapo durante a narração não ocorre,
mas isso se justifica por se posicionar no plano opositor da ação, além de se
justificar também pelas qualificações que são traçadas por outros personagens ou
pelo narrador em relação a ela, assim, não temos uma descrição que atenda a
cenários diferentes descritos ao mesmo tempo.
Além da ausência da presença física, outro dado que observamos é a
inexistência da fala e posterior voz social desta personagem. Importante ressaltar
que a ausência de vozes em El Sapo não é pertinente a sua existência enquanto
discurso, as vozes de El Sapo na narrativa não usam a fala de El Sapo como
veículo ou canal de comunicação. Internamente à ação, justificaríamos esta
ausência pelo fato de que a personagem se posicione no plano opositor e por essa
razão, não se apresenta a fala da personagem durante a narrativa, porém alguns
outros aspectos devem ser considerados antes de chegarmos a esta síntese. Como
exemplo, podemos citar a importância da aparição de El Sapo durante a produção
dickeana, que pode ser observada pelas condições físicas descritas, uma vez
retomadas, essas condições físicas podem verificar novos caminhos de
interpretação.
A aparição cíclica e descritiva, promovida pelo narrador, faz com que El
Sapo, durante a narrativa, obtenha descrições físicas, a disposição desta situação é
presente devido ao fato de que fora do plano de ação, El Sapo reflita uma visão
geral acerca do que representa no plano de ação para o narrador e para os
personagens. O trecho a seguir exemplifica a característica física repetitiva:
mulher horrível (DICKE, 2006, p.40). Essas repetições ocorrem três vezes na
mesma página, promovendo, então, uma ênfase a essa descrição e favorecem
os novos caminhos de interpretação, pois tanto servem para intensificar as
considerações dispostas, como servem para marcar temporalmente as ações da
perseguição que são empreendidas por El Sapo. Ainda quando falávamos das
vozes internas das locutoras das rádios, no capítulo anterior, observávamos a
presença da identificação da feminilidade naqueles trechos que tinham como
temática principal o discurso das vozes da política e dos limites geográficos
Outro dado que nos parece relevante, tanto quanto o anterior, é que a
elaboração das descrições físicas não abre mão de também evidenciar a condição
67
de feminilidade da personagem. A condição de feminilidade da personagem El
Sapo causa de novo um já conhecido “estranhamento” em relação ao poder por ela
exercido, por se tratar de uma personagem que, apesar de feminina – levando em
consideração a condição de submissão histórica – represente a liderança de um
bando de homens.
O gênero feminino de El Sapo deve ser observado nos trechos que
dispomos abaixo como observação exemplar da teoria – as vozes sociais
analisadas partem de uma personagem do gênero feminino no caso El Sapo –
explicitada:
– Vamos voltar e enfrentar El Sapo.
– Aquela mulher horrível?
– Aquela mesma.
– Mas não podemos, eles têm polícia, traficantes,
missionários, garimpeiros e toda a sórdida e eterna
engrenagem, tudo a seu favor (DICKE, 2006, p.42).
Ou ainda no seguinte:
– Não, contem agora, senão não poderão ficar conosco, a
não ser que sejam da mesma laia e extração como nós.
Dêem uma prova, sei lá, qualquer coisa, qualquer coisa
que nos prove que vocês não sejam polícia nem do bando
daquela mulher horrível que nos persegue, a dona deste
ouro com toda aquela gente(...) (DICKE, 2006, p.39-40)
Tanto a descrição física direcionada a El Sapo, como a feminilidade
identitária de seu comportamento, permitem,uma terceira categoria desse
encontro: a descrição de vozes sociais de natureza econômica em relação aos
outros personagens do plano literário. Elencamos dois pequenos trechos em
conformidade com esta terceira categoria: (...) mulher horrível que nos persegue,
a dona deste ouro com toda aquela gente (...) (DICKE, 2006, p.39-40) e Madame
El Sapo evem que evem (DICKE, 2006, p.102), no primeiro trecho, quando El
Sapo é descrita como proprietária do ouro e no segundo trecho, quando é descrita
68
como uma “Madame” – um título de cortesia, geralmente aplicado à filha viva
mais velha do casal real francês reinante – –a natureza econômica dessas vozes
sociais é condicionada para configurar a situação social de El Sapo em relação aos
outros personagens do texto.
Essa ramificação na condição de feminilidade se constitui não só como o
outro lado da ação, mas como o outro lado do poder econômico das vozes sociais.
A autora Benhabib (1987) reitera a importância dessa ramificação, já que há de se
questionar a existência de mulher generalizável, ou seja, identificável
coletivamente. Não se pode facilmente conceituar a mulher já que esta possui
complexa natureza de identificação de gênero (BENHABIB, 1987, p.20) e, por
essa razão, a presença da ramificação seja necessária: divide opositivamente
mulheres ricas e pobres com a intenção de especificar a natureza da ação
ficcional.
A esse propósito, o “lado de cá”, onde se posiciona El Sapo, identificada
como síntese do perfil das mulheres ricas, é ocupado por uma importante
significação,– sobre a qual ainda não discorremos – parece fazer sentido,
observando-se o excerto: – Mas não podemos, eles têm polícia, traficantes,
missionários, garimpeiros e toda a sórdida e eterna engrenagem, tudo a seu
favor. (DICKE, 2006, p.42).
Neste pequeno trecho, o sentido da sórdida e eterna engrenagem (DICKE,
2006, p.42) é esclarecido quando confrontado com o que Therborn (2006, p. 22)
definiu ser o conceito da definição do poder a dominação é geralmente comparada
a uma engrenagem (p.22) onde um mecanismo apelativo se estabelece.
Desse modo, podemos inferir que, levadas em consideração as condições
de produção das novelas dickeanas e a configuração das relações imediatas da
criação artística, El Sapo traz, no bojo da identificação de suas vozes sociais,
características que a conceituam como detentora do poder central dentro do plano
de ação, já que a engrenagem do poder gira em torno dela.
Desta forma, apesar de estar no plano passivo de ação, de possuir
características físicas cíclicas e de estar fora da convivência com outros
personagens, um poder central é configurado em sua direção e é nesse poder
69
que centraremos parte de nossa discussão. Em seus estudos sobre Ricardo
Guilherme Dicke, Magalhães (2001) assim se posiciona:
Em seus textos, céu e inferno se confundem, fazendo
emergir um perturbado país transgressor para eleger o
monstruoso como forma de vida. E, desreferenciados num
mundo sem lei, os personagens dickenianos, sobreviventes
do Sistema ou de si próprios, transitam entre o divino e o
selvagem, o real e o surreal, sufocados pelo peso da
existência (MAGALHÃES, 2001, p. 208).
Magalhães (2001) tece esses comentários de maneira geral, porém como
objeto de análise, as novelas dickeanas encaixam-se a este perfil, visto que tal qual
em produções anteriores, alguns motes acionais se fazem presentes. Resgatando
mais um mote recorrente, os sobreviventes do Sistema estão à margem da
sociedade (MAGALHÃES, 2001, p. 208), não apenas porque estão fora das
engrenagens do poder (THERBORN, 2006, p.22), mas porque o poder
representado no interior do plano literário refere-se a outra engrenagem conhecida
na produção do autor: a engrenagem do Sistema social imperante.
O resgate da recorrência anterior entende que a obra Toada do Esquecido
(2006) elege El Sapo como símbolo das vozes sociais da engrenagem do Sistema
social imperante. As reflexões aqui levantadas fortalecem a idéia de que o poder
social presente na configuração das vozes do perfil feminino possam configurar
uma explicação ao silêncio da personagem. Chevalier, em sua obra Dicionário de
símbolos (1990), esclarece que o silêncio pode ser uma forma de comunicação
antecipada: O silêncio e o mutismo têm uma significação muito diferente, o
silêncio é um prelúdio de abertura à revelação, seja pela recusa de recebê-la ou
de transmiti-la (CHEVALIER, 1990, p.833-834).
Certamente, o silêncio acional e de fala em El Sapo pode não significar
apenas o outro lado da ação, nem apenas o outro lado do poder econômico, mas
também pode representar, reunindo estes conjuntos identitários, um prelúdio de
abertura a uma revelação, ou seja, El Sapo representa o próprio Sistema social
personificado, que convive com os personagens “excluídos,” e que por não se
70
tratar exclusivamente de uma criação pessoal, mantém-se silenciada, como são as
regras sociais, silenciosas e impositivas diante das vozes sociais que representa.
Como vimos observando, ao contrário das locutoras das rádios, a
personagem El Sapo, feminina e dominadora, recebe, no plano literário,
considerações dos personagens internos ao texto, porém quando condicionamos a
presença de vozes em seu discurso, somente o narrador as impõe. As vozes
sociais presentes em El Sapo não passam pelos canais da comunicação ficcional,
pois não há fala, ao contrário, o narrador dialoga com a personagem apropriando-
se de sua ausência física durante a ação para gerar vozes sociais que resgatam
aquilo que a personagem El Sapo representa dentro da obra: o discurso social
dominante e por isso as condições econômicas se fazem presentes e reveladoras.
Seguindo o rumo traçado pelas vozes presentes em El Sapo, apresentamos um
trecho importante da ação ficcional interna a esta novela: El Sapo cercou tudo,
está tudo cercado por policiais, traficantes, contrabandistas, missionários, CNS,
garimpeiros, tudo o que o poder do dinheiro pode sublevarse contra nós (DICKE,
2006, p.65).
Mesmo não sendo o foco principal a respeito do excerto acima, é
importante notar que ele também reforça o que vínhamos observando: El Sapo,
atuando como participante identitária do perfil de mulher rica, representante do
sistema social ou as engrenagens do poder atendiam a seu chamado. Estas
considerações parece-nos dialogar, de uma forma ou de outra, com aquilo que o
trecho de Dicke nos fala: “O poder do dinheiro” (2006, p. 65) – O poder do
dinheiro representa o fosso que separa a rica El Sapo dos paupérrimos
personagens. É o poder do dinheiro que dita as condições sócio-econômicas diante
do sistema social imposto, além disso, esse poder do dinheiro, dentro do
contexto histórico apresentado representa o poder de sublevar-se financeiramente
sobre as outras pessoas.
Como dissemos, nosso foco principal segue o rumo traçado pelas vozes
sociais observadas em El Sapo. Embora as relações de poder sejam pertinentes,
atentamos para a presença singular de personagens caricaturais neste trecho da
novela: policiais, traficantes, contrabandistas, missionários, CNS, garimpeiros
71
(DICKE, 2006, p.65). O personagem caricatural se define por comportamentos
estereotipados que quase sempre convergem no personagem-tipo, quase sempre
genéricos, por exemplo, o padre, o juiz ou o bêbado. Como o personagem
caricatural não possui profundidade no que tange a sua condição de existência no
texto, sua conceituação generalizada necessita de outros fatores potencializadores
para que sua localização textual seja suficiente; no caso da novela dickeana, dois
fatores potencializadores devem ser observados: o contexto histórico e o da
generalidade da representação literária destes personagens inseridos neste
ambiente.
A condição do contexto histórico faz-se importante porque dá estrutura às
narrativas novelísticas próximas da realidade, subvertendo assim a distância que
opera entre a ficção e o mundo real em que vivemos. Michel Foucalt (2002)
defende o aspecto histórico como componente na construção textual. Para ele, o
contexto pode ser definido como refúgio facilitador de entendimento:
A História forma, pois, para as ciências humanas, uma
esfera de acolhimento ao mesmo tempo privilegiada e
perigosa. A cada ciência do homem ela dá um fundo
básico que a estabelece, lhe fixa um solo e como que uma
pátria: ela determina a área cultural – o episódio
cronológico, a inserção geográfica – em que se pode
reconhecer, para este saber, sua validade; cerca-as,
porém, com uma fronteira que as limita e, logo de início,
arruína sua pretensão de valerem no elemento da
universalidade. Desta maneira, ela revela que se o homem
– antes mesmo de o saber – sempre esteve submetido às
determinações que a psicologia, a sociologia, a análise
das linguagens podem manifestar, nem por isso ele é o
objeto intemporal de um saber que, pelo menos ao nível
dos seus direitos, seria, ele próprio, sem idade. Ainda
quando evitam toda referência à história, as ciências
72
humanas (e, a esse título, pode-se colocar a história entre
elas) não fazem mais que pôr em relação um episódio
cultural com outro [...]; e se elas se aplicam à sua própria
sincronia, é ao próprio homem que reportam o episódio
cultural donde procedem. De sorte que o homem jamais
aparece na sua positividade sem que esta seja logo
limitada pelo ilimitado da História (FOUCALT, 2002,
p.514).
As vozes sociais de El Sapo que apontam para o contexto histórico
necessitam do plano de representação literário da obra, já o plano de representação
literário da obra necessita do motivo principal da ação para testar a condição de
existência dessa representação. Uma vez que a história e os motivos são reunidos,
a representação literária ganha espaço e aproxima-se da veracidade dos fatos, por
conseguinte, aproxima-se também da poeticidade já que quanto mais verdadeiro,
mais poético (BOSI, 2000, p.162).
Quanto ao contexto, a região amazônica justificaria a presença dos
personagens caricaturais já que, inseridos nesse universo, esclarecem
acontecimentos históricos ocorridos em tempos anteriores e que, uma vez
reunidos, testemunham a ocorrência da veracidade desta representação literária
presente em Toada do Esquecido (2006). Oliveira (1999), discorrendo sobre a
fonte histórica desses conflitos sociais, assim se posiciona: Conflitos sociais no
campo, no Brasil, não são uma exclusividade de nossos tempos. São isto sim, uma
das marcas do desenvolvimento e do processo de ocupação histórica do campo no
país (OLIVEIRA, 1999, p. 11).
A história, juntamente com o mote da violência no campo, – plano de
Toada do Esquecido (2006) – não compõem um tema cânone na literatura
brasileira. Muitos outros autores escreveram sobre essas considerações, ou seja,
observaram, durante o contexto histórico que viveram, as várias sublevações de
poder, as quais buscavam denunciar:
73
A história da violência no campo, como já salientamos,
não é recente: é talvez um traço da história dos vencidos
no Brasil. Contratar jagunços pistoleiros para matar não
é um expediente dos grileiros e latifundiários de nossos
tempos. A história está repleta de muitos casos, tentativas
dos vencidos em romper com a injustiça reinante no país
(OLIVEIRA, 1999, p.15).
Tal vigilância histórica converge agora na representação literária dos
personagens que estudamos. Refletindo sobre esse aspecto, vemos que a
representação histórica dos personagens, generalizados ou caricaturais, como
policiais, traficantes, contrabandistas, missionários, CNS, garimpeiros (DICKE,
2006, p.65), fazem parte tanto do plano de colonização histórica do estado de
Mato Grosso, como fazem parte do plano de colonização histórica do Brasil e, por
conseqüência, da Amazônia, enquanto região geográfica. Entendendo este fato,
observamos que seria perfeitamente aceitável que as representações referentes aos
personagens generalizáveis estivessem presentes tanto na região amazônica como
na região mato-grossense, já que, no plano da exploração econômica, essas
“histórias” se confundem com a história da exploração dos países latinos: A
literatura de R. G. Dicke não é romance histórico (Miguel, 2007, p.52). Todavia,
devemos levar em consideração que (...) a produção dickeniano dialoga com
os escritos dos viajantes, dos cronistas e dos memorialistas, com a
literatura, com a fala dos políticos e com a narrativa histórica (MIGUEL, 2007,
p.49).
Além do mais, resta-nos, além de seguir os rumos históricos que as vozes
sociais de El Sapo apontam, guiar as mesmas vozes históricas ao encontro do
reconhecimento do poder central da ação representado pela personagem. O
reconhecimento desse poder central utiliza-se da generalidade da representação
literária dos personagens inseridos neste ambiente para denominar os “dentes” ou
os componentes das “engrenagens” do poder (THERBORN, 2006, p.22).
É importante esclarecer que a colocação dos personagens caricaturais
policiais, traficantes, contrabandistas, missionários, CNS, garimpeiros (DICKE,
74
2006, p. 65) não podem ser postos à deriva sem que haja uma explicação sobre
sua existência, isso porque os personagens, fora de contexto, estariam à mercê de
outras interpretações. Porém, quando observadas todas as hipóteses discorridas ao
longo deste capítulo, o contexto histórico, os caminhos das vozes internas de El
Sapo, o poder centralizador da ação e até mesmo uma parte da representação de
que faz parte a perseguidora, os personagens caricaturais citados passam a ter
ainda outra proposição.
Nessa direção, podemos refletir que, quando unimos as engrenagens do
sistema social imperante com as engrenagens do poder (THERBORN, 2006,
p.22), a generalização destes personagens pode representar, sintetizadas, as
condições sociais pertinentes ao contexto histórico da época.
Uma leitura cuidadosa a esse respeito ligaria os policiais às leis sociais
vigentes, ligaria os missionários aos dogmas da religião, ligaria a sigla CNS à
condição política imperante e ligaria os contrabandistas, garimpeiros e traficantes
à condição dos excluídos que, ao não se condicionarem ao sistema social
civilizatório, buscam, à beira das sociedades, refúgio acolhedor no interior dessas
inóspitas regiões.
O poder é singular, mas a personagem El Sapo, enquanto detentora do
poder, universaliza-o, as ordenações presentes em suas articulações tornam
possíveis os acontecimentos, para tanto, as vozes sociais que representa dialogam
com esse poder, regendo o sistema social e a apropriação de suas idéias, como
caminho do enredo da produção de Toada do Esquecido (2006).
2.4. El Diablo: O Lado de Lá
Após discorrermos sobre alguns dos perfis femininos da novela Toada do
Esquecido (2006), trataremos, nesta seção de uma das mais importantes peças
dentro desse campo de posições e de valores definidos, a personagem feminina El
Diablo, fundamental para o entendimento do texto.
A ficção Toada do Esquecido (2006) faz-nos mergulhar num mundo onde
um grupo de garimpeiros, após um baile de máscaras no carnaval, foge dos
75
garimpos do Peru, para abandonar aquele país e adentrar em terras brasileiras, o
grupo de garimpeiros rouba o produto do garimpo peruano. O ouro roubado no
garimpo peruano é a ação que permite as outras ações deste plano literário,
conforme vimos, El Sapo é a líder e proprietária deste garimpo. A personagem El
Diablo está inserida no grupo dos fugitivos.
Notemos que a abordagem utilizada no transcorrer deste capítulo valoriza
o enredo da novela Toada do Esquecido (2006), esta valorização deverá
evidenciar a existência da personagem El Diablo diante do plano de escrita de
Dicke, o enredo da ficção vai conferir os papéis investigados a respeito da
personagem El Diablo enquanto presença de vozes sociais e de estabelecimento
de poder, porém não há de se estranhar esta condição, já que, como estudamos na
seção anterior, a ação ficcional não acontece do “lado de lá” onde se posiciona El
Sapo, identificada como síntese do perfil das mulheres ricas. A esse propósito, a
ação ocorre do “lado de cá,”, simbolicamente representando o espaço onde El
Diablo, opositora de El Sapo, tem presença e, portanto, deve representar o enredo
onde tudo se processa.
Ao percebermos a ação da ficção como ponto de partida da análise da
personagem El Diablo, gostaríamos de reiterar importante sentido da “travessia,”
como já dissemos no início deste estudo. Naquele momento já anunciávamos que
os personagens fariam, durante a ação, algumas “travessias”, incluindo o
reconhecimento das vozes sociais presentes em alguns personagens da narrativa,
que iriam conferir aos mesmos e, por conseguinte ao leitor, um processo de
identificação junto a eles. Especificamos para tanto que, ao contrário de El Sapo,
que representa as ações passivas, El Diablo está no bojo destas ações e, portanto,
configura a síntese destas já que lidera todo o grupo de ladrões. Em vias de que as
“travessias” estejam ocorrendo, na mesma medida, El Diablo passa pela
“travessia” existencial, já que reconsidera muitas reflexões psicológicas e
existenciais ao longo do enredo literário, passa pela “travessia” topográfica
plano do enredo literário, os campos peruanos são substituídos pelos brasileiros
tanto quanto os amazônicos pelos mato-grossenses, passa pela “travessia”
histórica pois, o que torna a ação próxima da veracidade do mundo em que
vivemos é a proximidade histórica com os limites geográficos e políticos, por
76
último, passa também pelo reconhecimento das vozes sociais presentes na fala de
El Diablo, visto que em ambiente hostil esta fora a única forma de defender-se
dos poderes interiores aos perfis masculinos da narrativa.
Portanto, é o grupo dos garimpeiros fugitivos, sintetizado por El Diablo
quem vai sofrer a ação proposta pela novela, em contrapartida de estarem
localizados no bojo de boa parte das ações que regem o texto por completo.
Seguindo o enredo, na fuga passando pela Amazônia e por Vila Bela da
Santíssima Trindade, El Diablo vai testemunhando a mudança do cenário e a
“travessia” topográfica. A transformação geográfica opera no plano interno da
produção, não só como formação de cenário geográfico, mas também opera como
formação do plano do tempo cronológico, pois a transformação do cenário
obedece ao sentido da “travessia” enquanto fuga, uma vez reunidos, a mudança de
referenciais espaciais e, por , o discorrer da fuga, significam também a passagem
do tempo.
O diálogo com o cenário é também uma forma de diálogo com o tempo e,
conforme estudado, o cenário dickeano marca o tempo cronológico, promovendo
a sensação cíclica dos elementos que são pertinentes a essa transformação, um
exemplo mais específico deste acontecimento é a presença ficcional do papagaio
no ombro de El Diablo, animal que emite um discurso retinente. O papagaio, tal
como os elementos naturais estudados anteriormente, traz as mesmas
características, ou seja, repete ciclicamente tal qual a composição temporal
dickena seu mote de costume: “pensas que sou idiota?” (DICKE, 2006, p.36). A
despeito desta consideração, importante salientarmos que, retomaremos ao
princípio desta narrativa, a posição de El Diablo em relação ao grupo de fugitivos
é de aparente indiferença, não operando para isso nem fala nem poder junto aos
mesmos, ou seja, El Diablo, por não falar, não opera poder e, em conseqüência
não se é perceptível a presença das vozes sociais em seu discurso, o seu silêncio é
simbolicamente substituído pelos sons cíclicos do cenário da natureza
representado em seu ombro pelo animal de estimação, ou seja, imóvel diante do
plano acional, ainda sim, o tempo opera sobre a condição de efemeridade dos
personagens inerentes a ele.
77
Após o esclarecimento da primeira, a segunda “travessia,” intitulada
histórica, marca uma El Diablo detentora de um testemunho que a interliga com
elementos pertinentes aos acontecimentos da época. Os suscitados registros
apontam que o ouro que El Diablo carrega não é debutante na condição histórica
do surgimento da América, que ela insiste em cruzar geograficamente – do Peru
ao Brasil – ao contrário da efemeridade da personagem na ação, o ouro é o
duradouro articulador de boa parte da condição histórica da geografia deste
continente. Rubel (1970) esclarece a despeito em sua obra intitulada Karl Marx:
Ensayo de Biografia Intelectual:
O descobrimento das jazidas de ouro e prata da América,
a cruzada de extermínio, escravização e sepultamento nas
minas da população aborígene, o começo da conquista e o
saqueio das Índias Orientais, a conversão do continente
africano em local de caça de escravos negros: são todos
feitos que assinalem os alvores da era de produção
capitalista. Estes processos idílicos representam outros
tantos fatores fundamentais no movimento da acumulação
original (RUBEL, 1970, p.638).
Já que a segunda “travessia”, intitulada histórica, opera com elementos
inseridos no plano integrante da ação, a última das “travessias”, a “travessia”
psicológica opera com um conjunto de reflexões existenciais que, articuladas com
a grandeza da prosa poética de Ricardo Guilherme Dicke, coincidem no plano do
enredo com a proximidade do rádio e da personagem El Diablo, uma vez que
nesta estreita relação, o rádio representa significativamente um dos “ópios” da
fuga: Pensas que sou idiota? Grita o papagaio no ombro de El Diablo que come
da marmita, enquanto o rádio fala em loteria: quem ganhou: o Cavaleiro dá uma
gargalhada, com a boca cheia de porco (DICKE, 2006, p.33)
Lembremos que, ficcionalmente, a rádio da Kombi dos libertinos mantém-
se ligada desde o início da fuga e que, na presença do som, silenciam as vozes
sociais internas a El Diablo, o silêncio dos personagens torna-os passivos acionais
78
diante da transmissão radiofônica. Esta transmissão radiofônica lhes substitui a
fala, conforme o enredo, por muitas estações, já que estas representam uma parte
das vozes e do poder social a que estão acostumados a fazer reverência.
A “transmissão radiofônica” também se volta para outro plano
interpretativo, vejamos se acaso El Diablo pode se aproximar do som do rádio,
devido ao silêncio da fuga. Inferimos a este respeito que El Diablo pode se
aproximar do som do rádio também porque esta deve se aproximar daquilo que o
rádio possa efetivamente representar. Refletindo nesse sentido, a partir do que já
vimos observando: ao fazer uma “travessia” existencial, El Diablo pode se
aproximar do som do rádio não somente porque, em contraposição, o silêncio da
fuga se faz presente, mas também porque o som do rádio, dentro dos limites das
novelas dickeanas, confunde-se com a própria consciência dos personagens,
conforme vimos estudando. Para tanto, a aproximação com o rádio pode
significar a própria aproximação com a consciência. Diante dessa “travessia” de
questionamentos que condicionam a existência humana. Acrescentamos que a
“travessia” existencial não cessa a nenhum ser humano, quando a passagem por
esses “sertões” se faz presente, concomitante a isso, podemos notar que a
interlocução da rádio também não cessa diante do enredo da novela, isso inclui a
mudança na condução do automóvel dos fugitivos: da Kombi para o Jipe, tanto
quanto inclui a mudança geográfica espacial – do interior do Peru ao interior do
Brasil – no entanto, não há inclusão na mudança das vozes sociais representativas
de El Diablo e, mesmo assim, tal qual a reflexão existencial, o rádio permanecerá
ligado.
A partir dessa leitura, parece-nos ser necessário dividir nossa análise em
duas oposições referentes ao enredo da novela Toada do Esquecido (2006), essa
divisão se processará em primeiro plano na condição em que a personagem El
Diablo é silenciada e comumente confundida com outros personagens fugitivos e,
no segundo plano, em que El Diablo se torna líder, proprietária do poder do bando
e para que isso fosse possível se utilizasse das vozes sociais como projetor desta
liderança.
Para objeto de estudo, interessa-nos o segundo plano em que El Diablo se
torna líder, proprietária do poder do bando e falante o suficiente para que suas
79
vozes internas se mostrem presentes, já que neste segundo plano é onde
encontraremos os ingredientes já identificados nesta análise. Ainda seguindo a
ficção novelística, observamos que a liderança de um personagem masculino,
intitulado O cavaleiro, é marca expressiva durante o início da obra, tanto quanto é
expressiva a presença do rádio que escutam, porém, ao contrário do duradouro
som do rádio, a liderança do Cavaleiro é passageira, uma vez que será substituída
pela liderança de El Diablo.
A personagem El Diablo não é declarada mulher, tão logo a narrativa se
inicia, caso acontecesse, um já conhecido “estranhamento” poderia se mostrar
presente, evidenciando a dificuldade mostrada pelo contexto histórico de que a
mulher pudesse se tornar líder de um grupo de garimpeiros, como aponta o
enredo. Entretanto, podemos observar que o “estranhamento” percebido em
El Sapo, também tem ocorrência em El Diablo, tal como El Sapo, a evidência é a
dificuldade mostrada pelo contexto histórico, que descreve a mulher como líder
dos fugitivos, como também evidencia o enredo, esse “estranhamento” em ambas
situações seria percebido na recorrência dos personagens androcêntricos inseridos
no enredo, posicionados em ambientes masculinizados e brutalizados, onde a luta
pela vida se faz presente. Nesse contexto, o perfil feminino nada mais significaria
historicamente do que fraqueza e submissão, símbolos estes que não combinariam
com a liderança exercida pela personagem. Assim, a liderança e o poder de El
sapo são estabelecidos pelo poderio econômico e não por seu gênero conforme o
que acontece com El Diablo.
Para que isso fosse possível, para que não ocorresse um “estranhamento”
em relação ao gênero feminino de El Diablo, a representação literária dickeana
refugia-se numa promessa coletiva feita por todos os fugitivos do garimpo
“Esquecido”: todos os componentes do bando, El Diablo, Zabud, Gepetto,
Palinuro e o Cavaleiro possuem a caracterísitca de não permitirem saber sobre
sua identidade antes que todo o ato de fuga e divisão de riquezas estivesse
resolvido. Dito de outro modo: não era permitido retirar as máscaras de carnaval
enquanto tudo estivesse ocorrendo. As máscaras utilizadas pelos fugitivos tinham,
no enredo, o fundamento de gerar segurança, portanto impediriam que as
verdadeiras personalidades fossem postas em evidência, mas, apesar de servirem
80
como forma de justificar a organização do assalto, as máscaras trazem dubiedade
de sensações.
Uma explicação se faz necessária antes de continuarmos o eixo da ficção:
as máscaras sempre foram usadas como acessórios em diferentes manifestações
culturais, de fato, ainda conseguimos perceber o exemplo de muitas culturas que
delas se utilizam para a função mágica e ritualística utilizada, para proteger do
inimigo ou desconhecido.
A máscara serviu aos egípcios quando mumificavam seus faraós, às
civilizações antigas que personificavam seus deuses. As máscaras foram
apropriadas também pelo teatro grego, inicialmente confeccionadas com folhas,
madeira, argila e couro, possuíam diferentes funções quando em cena
dramatúrgica, entre outras, acentuavam os traços expressivos do ator para que
todo o público pudesse assimilar o caráter do personagem (JANSEN, 1952).
Assim, em Dicke, a utilização das máscaras tem significação ampliada,
quando comparada ao enredo de produção das novelas, pois a máscara teria a
indumentária ritualística de proteger contra seus inimigos, posicionados no
interior de Toada do Esquecido (2006), já, que um inimigo persegue.
Sobre as máscaras, lembramos que, por produzirem sensações paradoxais,
sentidos duplos, abrem não só a perspectiva da leitura enquanto fato histórico,
mas também enquanto interpretação simbólica de sua existência. Brecht, poeta
alemão, utilizou-se, certa feita, da palavra “gestus” para se referir às atitudes
sociais nas inter-relações dos personagens; para o autor, as relações de poder são
os grandes causadores do “gestus” brechtiano, ou da máscara social, no caso das
vozes internas à personagem. Assim, a “máscara social” de Brecht não se refere
apenas ao objeto “máscara” em si, mas traz uma referência sobre nossas atitudes
sociais, na verdade a máscara representa nossas vozes e atitudes sociais diante dos
espaços que circulamos, além do tempo e do contexto que vivemos, são estas
atitudes que podem definir socialmente o que somos.
Desse modo, a representação literária dickeniana ganha vivacidade, com a
presença das máscaras quando descobrimos que as atitudes sociais dos
personagens podem centralizar-se na idéia de representação social ou de
81
“máscaras” que traduzem gestos, induzidos pelas relações de poder, encenar a
personalidade que queremos ter. No caso a personagem El Diablo, silenciosa,
inicialmente sem as vozes sociais, traz a máscara como incorporação de gênero,
transformador de atitudes e de enredo, formatadora de vozes que, incorporadas ao
sistema social vigente, trazem, à luz da representação, o poder de modificar a
ação.
O retorno à ficção reserva-nos o espaço da representação social como
sendo um terreno a ser explorado enfim, ao observarmos El Diablo e enxergarmos
a definição de sua sexualidade, percebemos que se utiliza das máscaras ficcionais
propostas à novela, ou seja, o sexo feminino presente num ambiente
masculinizado e brutalizado só conseguiria manter-se vivo se “mascarasse” sua
personalidade, reproduzindo as vozes regentes de outros personagens, ou seja, sua
vida depende exclusivamente das vozes sociais que são emanadas pela sua fala. .
De fato, as vozes sociais que ocupam o discurso de El Diablo. Trata-se de
um perfil feminino que se condiciona diante do lugar, do tempo e das proposições
sociais em que se inserem, conforme propõe Brecht, cada um em seu contexto de
produção.
No caso da novela em estudo, em que o tempo e o ambiente são
androcêntricos, observamos que as vozes do discurso patriarcal se fazem
presentes. Por sua vez, são as vozes do discurso patriarcal que fazem com que El
Diablo não morra durante a novela, levando em consideração sua
representatividade simbólica, já que no enredo, esta não só morre como mata os
outros fugitivos, pois a reprodução dos discursos por intermédio de sua
fala “mascarada” a condiciona temporalmente nos primórdios das civilizações
humanas. Embora sendo mulher, El Diablo deve aceitar as vozes patriarcais
presentes em seu ambiente e, ao reproduzi-las, mantem-se viva: (...) El Diablo
que é um rapaz imberbe e moreno de fala fina e cabelos encaracolados, que tem
algo de enfeitiçadamente feminino( ...) (DICKE, 2006, p.109), (...) Só El Diablo a
conhece, só ele a sabe cantar (DICKE, 2006, p.112).
El Diablo “teatraliza” sua fala, reproduzindo as vozes que regem o
patriarcado e o ambiente androcêntrico para que sua segurança seja evidenciada,
além de sua “máscara social” estabelecida, seu físico é disfarçado, assim como é
82
disfarçada a sua sexualidade, e, por essa razão o poder lhe é possível. Depois de
sua transposição de personalidade, a liderança lhe será conferida no enredo da
ação.
Não percamos de vista que o poder central da ação está localizado em El
Sapo, porém poderes menores, internos à produção da novela são conferidos à El
Diablo, isso por que esta se configure como a líder ficcional dos “excluídos”, ou
seja, se El Sapo pode representar a “engrenagem” tanto do sistema como do poder
vigente, sua opositora, El Diablo, pode representar os seres sociais representativos
do “baile de mascarados,” que simbolizam as vozes sociais no contexto em que se
inserem.
Parece-nos pertinente, aproximarmos o que Simone Beauvoir (1980) disse
a respeito das sensações de duplicidade comportamental, proporcionadas pelas
máscaras durante o enredo: O corpo da mulher é um dos elementos essenciais da
situação que ela ocupa neste mundo (BEAUVOIR, 1980, p. 57) com o fato de que
as máscaras proporcionam a El Diablo a liderança sem questionamentos, as
cicatrizes de sua história não são suficientes para torná-la submissa. O resultado
desta relação é uma incógnita que sempre perseguiu as relações sociais do ser
humano: a essência do ser e do parecer.
Sabemos, então, que as sensações de dubiedade que as máscaras trazem
em seu conceito contaminam a ficção, estabelecendo a dicotomia do ser e do
parecer, a este limite tudo o que deve ser nem sempre o é, enquanto tudo que é
nem sempre parece ser. Vejamos, por exemplo, O Cavaleiro, além de líder, é
homem, mas finge ser mulher, já que percebe a autoridade da fala feminina em El
Diablo “mascarada” de homem, ou seja, regida pelas vozes do patriarcado e
posterior poder, a fala de El Diablo gera no Cavaleiro a inveja proporcionada pela
imitação:
– É bom para nós todos que ninguém saiba um quem é o
outro, quem é ninguém entre nós, formalidades – diz o
cavaleiro aproximando a caratonha perto dos outros três
com o dedo em riste aflautando a voz para que pensem
83
que é uma mulher – para que ninguém de entre nós roube
o ouro de cada qual (DICKE, 2006, p.17).
A personagem feminina El Diablo é fugitiva, mas se tornará líder, sua
chegada ao poder necessita de uma representação social diante do ambiente e do
tempo em que acontece, por isso, engrossa a fala. Engrossa para parecer homem,
já que este é o único caminho que pode ser trilhado em direção ao poder de
liderança.
Essa mudança comportamental é resultado da dubiedade das “máscaras”,
porém as “cicatrizes” no corpo feminino parecem convergir na formação de
androgenia. O autor de Dicionário de Símbolos, Chevalier (1990) refere-se à
mescla dos sexos como formação de androgenia, Pois o andrógino é muitas vezes
representado como um ser duplo, possuindo a um só tempo os atributos dos dois
sexos, ainda unidos, mas a ponto de separar-se (CHEVALIER, 1990, p.52).
O andrógino aparece em várias culturas, mostra-se como antropomórfico
do ovo cósmico (p.52) e se estende como configuração dual em diversas regiões e
religiões do mundo. Quase sempre ligados à figura do homem, aparentam
sexualidade como primeiro tema, é visto como a união, na fusão da realidade
divina e a dualidade do desconforto do mundo em que vivemos (CHEVALIER,
1990).
A androgenia esclarecida por Chevalier (1990) é destaque na novela Toada
do Esquecido Dicke teoriza sobre esse mote narrativo anteriormente a sua
produção, quando, observando criticamente a célebre obra de João Guimarães
Rosa, declarou: A união dos contrários está em Guimarães Rosa no mito do
Andrógino, encarnado em Diadorim, o Homem/Mulher, símbolo incluinte, ora
excluente, não totalmente exclusivo” (DICKE, 1999, p. 38) Nesta direção, o autor
ainda reflete:
O tema Homem/Mulher, no “Grande Sertão: Veredas”,
está velado por um grande suspense, escondendo todo o
denso mistério, cujo desenlace é a revelação de que
Diadorim é uma mulher e aparece nas suas últimas
páginas. Durante quase todo o livro, o herói passa por
84
homem, de quem Riobaldo se apaixona, empresa que leva
todo romance (DICKE, 1999, p. 39).
O texto de Dicke sobre Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa,
antecipa não só a sua futura inspiração literária, como também mostra uma das
motivações de Toada do Esquecido (2006): a androgenia reveladora do sexo
traduz a revelação do poder de liderança. Observado pelos olhos masculinos, El
Diablo aparenta masculinidade: (...) El Diablo que é um rapaz imberbe e moreno
de fala fina e cabelos encaracolados, que tem algo de enfeitiçadamente feminino
(...) (Dicke, 2006, p.109). Observado pelos olhos femininos, El Diablo aparenta
feminilidade:
El Diablo é apenas uma bonita moça que deixou suas
roupas junto à margem e se banha tranquilamente no rio,
donzela nua, dá braçadas, nada, vai e vem, lava-se com
um pedaço de sabão velho. O espanto que não é tanto
assim. Moça, moça, moça. Sobe de novo no Jipe com uma
admiração meio abortada, é verdade, porque há muito ele
vinha tal como o Cavaleiro, seu mestre, o dr. Nigrius, há
muito que imaginava ser esta a verdade: El Diablo não
era homem, não é mais que uma mulher: uma mulher que
tirou quatro da colheita da vida, desse rol de incertezas,
quem será El Diablo, madame El Sapo, a peruana?
(DICKE, 2006, p.127)
Desta forma, El Diablo, confundindo as definições de gênero do até então
líder do bando, já que a dubiedade das máscaras pode gerar, tanto a oposição de
personalidade, quanto oposição de sexualidade, consegue chegar ao poder
seguindo o caminho da mais antiga das armas veiculadas à mulher nas sociedades
primitivas: a sensualidade de seu corpo.
Aos poucos O Cavaleiro – líder dos fugitivos – vai sucumbindo silencioso
diante das prerrogativas das vozes da sensualidade do corpo feminino de El
85
Diablo, permitindo assim que o poder possa ser transferido, sem que essa
transferência seja percebida:
Olha seus tênis, suas luvas amorosamente, pensa consigo
mesmo: quem vai ai dentro é uma mulher, ninguém me
tira isso da cabeça, El Diablo tem uma certa leveza de
movimentos, certos jeitos curvilíneos, uma voz quente,
que a momentos chega a ser ardente: só pode ser uma
mulher, e eu estou me apaixonando doidamente por essa
mulher (DICKE, 2006, p.48-49)
A sedução presente nas vozes de El Diablo vai, aos poucos, ruindo
a liderança do Cavaleiro conforme trecho abaixo:
Sob esse macacão ela tem cintura, acima da cintura tem
seios, sob essa máscara de diabo de carnaval dos
altiplanos de Oruro, ela é mulher, uma saborosa,
deliciosa mulher: ah aqueles cabelinhos na nuca... Aquela
pele acetinada... Aos solavancos do carro ela finge uma
maior aproximação com essa mulher, e deixar-se ir ao
encontro, batem-se aos lados dos corpos, que vontade ele
teve de apertar-lhes nas mãos aquele corpo que tem
aquela voz tão cálida... Dar-lhe um beijo... (DICKE, 2006,
p.40)
Por último, o poder é concedido a El Diablo diante da descrição
proposta pela novela:
(...) El Diablo dá a partida, seus cornos entre os meandros
castanhos de seu focinho movem-se vermelho, toda a
armação da velha Kombi treme, o motor pega sob a
pressão do seu pé direito vestido de tênis no acelerador
um pé elegante e fino, pequeno, nota- o de repente o
86
Cavaleiro ao seu lado, dá a marcha à ré, faz a manobra,
voltam- se para onde vieram, agora quem manda é El
Diablo... (DICKE, 2006, p.44)
A presença constante da morte nos enredos dickeanos mostra-se mais uma
vez presente, o perfil feminino de El Diablo irá, por asfixia, silenciar um a um dos
outros personagens, incluindo o antigo líder. Assim como a efemeridade do
mundo, os símbolos efetivos da humanidade serão apagados, enquanto El Sapo,
tanto quanto o rádio, permanecerão exercendo suas funções.
Notemos, antes de finalizar, que as oposições binárias (1988, p.104) no
que se refere à utilização das vozes internas à produção, propostas por Michel
Foucault fazem-se presentes, vejamos, se de um lado El Sapo representa a
referência do mundo em que vivemos El Diablo representa os excluídos deste
mundo, portanto os desreferenciados (MAGALHÃEs, 2001, p.208). Se, de um
lado, El Sapo representa o poder social do mundo em que vivemos: polícia,
religião e política, El Diablo representa os arredores sertanejos aonde estes
poderes não chegam: traficantes, contrabandistas e garimpeiros, se, de um lado, El
Sapo é eleita como sendo a engrenagem do Sistema (DICKE, 2001, p.208) e a
engrenagem do poder, El Diablo representa os excluídos deste mundo, esmagados
por esta “engrenagem”. Se, de um lado, El Sapo identifica-se com o plano da
condição social de riqueza, El Diablo identifica-se com o plano social da pobreza.
Enfim, as contradições fortalecem o estabelecimento do poder totalitário a El
Sapo e de poderes menores guardadas as proporções à El Diablo. Não devemos
para isso, subtrair o papel das vozes sociais presentes na fala de El Diablo durante
a ação, tais quais as relações internas à produção, as vozes dão autonomia à
representação dickeana, tornando-a, por essa razão, próxima do mundo em que
vivemos.
87
CAPÍTULO 3: SINFONIA EQUESTRE
3.1. Janis Mohor: Liderança no Sertão
A segunda novela, intitulada Sinfonia Equestre (2006), tanto quanto Toada
do Esquecido (2006), reserva instrumentos ora diferentes ora parecidos entre si
em relação a presença das vozes sociais nos perfis femininos.
Comecemos esta análise pelos tópicos que unem essas produções
novelísticas, palmilhando as veredas do que já tivemos oportunidade de estudar
em capítulos anteriores, inferimos que o tamanho reduzido das páginas de
Sinfonia Equestre (2006) não deve refletir, literariamente, inferioridade em
relação à Toada do Esquecido (2006), já que, conforme o ângulo estudado, não é
a repetição nem a maior incidência de quadros que tematizam o poder e as vozes
sociais que o subordinam a qualidade de um texto, ao contrário, as vozes
aleatórias podem estar no mesmo grau de importância de vozes que são
reafirmadas por diversas vezes, em diversos trechos, e em número maior dentro
do mesmo romance.
Recordamos, conforme dissemos anteriormente, as configurações ligadas
à morte (MIGUEL, 2007, p.203) referem-se a um dos motes da produção
novelística dickeniana que, ao representar literariamente uma parte da história de
Mato Grosso, confunde-se com a história de outros cantos destes “sertões”
espalhados pelo mundo afora. Como mencionamos, já que pelos “sertões” a
“morte” se alonga como motivação temática do enredo, o modelo desta motivação
temática tem, no falecimento do proprietário de terras Hildebrando Mohor, uma
prévia das mortes que a este primeiro falecimento se seguirão em Sinfonia
Equestre (2006).
Retomando a temática da morte, podemos observar que esta é condutora
da ação e sofre a marcação do tempo nessa novela, ou seja, a cada personagem
morto, por quaisquer acontecimentos no plano de ação interno à novela – a
presença cíclica do cavalo que representa a natureza e, por conseguinte, o tempo
88
dickeano – inseridos neste contexto histórico estão diretamente ligados. A
tradução literária deste fato incorreria na ideia de que, com o esgotar do tempo de
vida, os seres humanos são “lembrados” por sinais que, quase sempre, avisam
sobre o exaurir de suas vitalidades, remetendo-os ao esquecimento proporcionado
pela morte. Jean Chevalier (1990) nos auxilia nessa leitura, ao aproximar
simbolicamente cavalos e morte: A valorização negativa do símbolo ctoniano faz
do cavalo, por sua vez, uma cratofania infernal, uma manifestação da morte
análoga à da ceifeira do folclore mundial (p.205).
O diálogo com o cenário é também uma forma de diálogo com o tempo e,
conforme estudado, o cenário dickeano marca o tempo, proporcionando a
sensação cíclica dos elementos que são pertinentes a essa transformação, porém
no caso de Sinfonia Equestre, conforme o titulo já evidencia, o cíclico e os
cavalos se aproximam, cada qual de sua representação, conforme podemos ver no
trecho: Depois de enterrado, ficou Belizário, o contador de histórias, amigo de
Hildebrando, que olhava na janela o cavalinho correndo em círculos no pátio
verde lá embaixo (DICKE, 2006, p.136). A evidência desta característica se
alonga no trecho: Foi o pai quem lhe contara, Janis estava rica, mas não feliz.
Desceu à cavalariça, onde estavam vários cavalos. O cavalinho corria em
círculos no pátio com gramado verde (DICKE, 2006, p.136).
Encontramos exemplos inclusive do caminhar das idéias cíclicas
(MIGUEL, 2007, p. 109), relacionadas com outros elementos da natureza
dickeana como no exemplo a seguir: Nisso encontrou uma borboleta azul enorme
pela janela, que voou em círculos pelo quarto (DICKE, 2006, p.143). De fato
estas ocorrências correspondem à idéia do movimento circular e aproximam às
dimensões temporais e espaciais (MIGUEL, 2007, p.109), desta feita, “os pinos
do relógio” do tempo dickeano estão girando e, ao girar, depreendem a
transitoriedade das coisas do mundo, a ligação dos animais e dos elementos em
círculos, lembra-nos, respectivamente, do tempo e dos sons da natureza que regem
e fazem parte deste tempo que se esgota. Tanto quanto os círculos condicionam o
efêmero do mundo, a natureza também o faz, já que estão emparelhados na
mesma síntese, nesse sentido, os cavalos, que aqui representam esta natureza, são
89
posicionados durante o enredo, sempre postos junto a trechos que condicionam a
morte, conforme observaremos a seguir:
Um cavalo corre em círculos por um pátio verde (da
janela alguém olha). Um homem, gigante de dois metros,
rodeou a sala, caminhou para a cama, deitou-se nela,
cobriu-se com o cobertor até o peito, juntou as mãos sobre o
coração, pensou numa enorme cavalaria de enormes cavalos e
deu seu último suspiro. Sua filha, uma bela moça de vinte anos,
ajoelhou-se no chão perto dele e começou a chorar
abraçada ao seu cadáver. Era Janis Mohor (DICKE,
2006, p.135).
Indo além, tanto o título Toada do esquecido, quanto o título Sinfonia
Equestre representam a união dessas idéias sintetizadas. Dito de outra forma: os
títulos observados servem de conjunto para o reunir da “orquestra humana”, ou
seja, as marcações temporais simbolizadas pelas musicalidades naturais da Toada,
nos rádios, e da Sinfonia, nos currais, avisam quando o ciclo se fecha, quando
todo o acontecimento ficcional finaliza com a morte dos personagens que se
seguem. No primeiro, a morte de El Diablo; no segundo, a morte de Janis,
costuram uma importante junção, na verdade, ambas estão atando o fim ao
princípio e fechando a circunferência de um círculo (MIGUEL, 2007, p.109). O
fechamento deste círculo, proposto pelo conjunto de sons da natureza e as
marcações do tempo dickeanos sintetizam o enredo da ação proposta em Sinfonia
Equestre e, por isso mesmo, a Sinfonia da existência humana, da “orquestra” que
opera os “pinos do relógio” se feche diante da morte, porque a morte é o fim do
ciclo dos seres humanos, sufocados pelo peso da existência (MAGALHÃES,
2001, p.208).
Tendo em vista esses argumentos, ao que tudo indica, não são apenas estes
pontos de convergência que unem as análises das novelas em questão, assim, além
das abordagens desenvolvidas, observamos a natureza dos conflitos permeados
pelo ambiente ficcional dickeniano como outra importante motivação de Sinfonia
Equestre.
90
Assim como em Toada do Esquecido, o cenário dickeano em Sinfonia
Equestre é condicionador de conflitos sociais no plano acional, porém, ao
contrário respectivamente do primeiro, em que a disputa se dá pelo ouro em
território de garimpo, no segundo, o conflito agrário ou a disputa pela posse da
terra se faz presente. Sem dúvida, para fins de análise, de Miguel retomaríamos
parte de sua tese anteriormente exposta: conflitos de diversas naturezas: (...)
relações com a terra, e, ao fazermos, ligaríamos à idéia do processo de ocupação
histórica do campo no país (MIGUEL, 2007, p. 11) conforme mencionado por
Oliveira (1999). Somamos as intenções literárias, a literatura obedece a sua
representação com as intenções históricas, no caso de Dicke, sua representação
literária dialoga com os escritos dos viajantes, dos cronistas e dos memorialistas,
com a literatura, com a fala dos políticos e com a narrativa histórica (MIGUEL,
2007, p.49), desse modo, as bases para a análise das primeiras vozes sociais
pertinentes a este cenário se fazem presentes. Importante salientarmos que as
vozes sociais presentes não se referem ainda ao perfil feminino da novela, mas aos
outros personagens representativos deste sistema. Aliadas a essa representação
brutal do sertão mato-grossense, as vozes sociais que depreendemos por
intermédio do que este cenário nos reserva, são as vozes que reproduzem a
condição de vida e de morte da sociedade, ou seja, os símbolos que compõe este
“jogo” humano no qual as vozes sociais ganham corpo e esclarecimento.
Portanto, as primeiras vozes perceptíveis, apesar da morte física, conferem
à Hildebrando Mohor uma subjetiva imortalidade, pois o ambiente formado no
cenário da novela é condizente com a sociedade descrita e, desta forma, apesar de
sua morte, as vozes sociais que ele representa continuam vivas.
A primeira condição de vivacidade dessas vozes é relacionada, como
vimos, ao ambiente: os componentes tempo, do espaço e do cenário, ambiente de
cercas pecuárias e a disputa pela terra mostram no personagem masculino
Hildebrando Mohor suas ramificações: a fazenda Mutum é um ambiente hostil,
onde conflitos de toda ordem estão ocorrendo, juntamente com o tempo e a
natureza arredia. A morte de Hildebrando Mohor não significa a morte do sistema
imposto a aquele ambiente, pelo contrário, todo o sistema de coisas que envolve a
91
fazenda localizada no sertão de Mato Grosso terá continuidade consentida pelas
mãos de uma outra personagem.
Reunindo, o ambiente, o tempo e o cenário do enredo da novela Sinfonia
Equestre, todos os ingredientes e motivos literários para a formação das vozes
sociais do “Patriarcado” deverão estar presentes, isso fica claro porque a união
desses ingredientes aproxima-se de sociedades fora do padrão da normalidade
condicionadas pela democracia de gênero.. Devido a esses fatores que a
supremacia masculina irá marcar boa parte das relações sociais primitivas, como
as observadas internamente à fazenda Mutum, onde residem os descendentes e
signatários de Hildebrando Mohor. Dentre as regras que possibilitam as vozes
sociais patriarcais neste ambiente, destacamos a supressão das vozes femininas ou
das vozes que gerem democracia de gênero, já que esta deva ser a regra
fundamental para que este sistema tenha ocorrência. Recuperamos, como
facilitador, o que French (1992) destaca: o homem em civilizações antigas sempre
fora visto com superioridade (FRENCH, 1992, p.18), a esta superioridade,
chamamos patriarcado.
Patriarcado, tomado na acepção de um tipo de dominação, que encontrou
na mulher a primeira e maior de todas as barreiras para sua consolidação. Em A
guerra contra as mulheres (1992), Göran aponta o poder paterno como o
significado central do patriarcalismo (p.22), no seu livro: Sexo e poder: a
família no mundo, Göran Therborn aponta, além do poder do pai e da
supressão das vozes femininas, o poder da dominação do marido (THERBORN,
2006, p.29) como sendo um complemento desta razão de existência.
Descobrimos que o latifúndio e o conflito de terras deva ser o
condicionador para que as vozes sociais do patriarcado estejam presentes em
Hildebrando Mohor. Ele, enquanto personagem, compreende o poder como
extensão de seu domínio territorial e é a perda desse poder, representado por seu
domínio territorial, que causará sua morte, para tanto as marcas do latifúndio são
expressas durante a narração e podem ser percebidas no pequeno trecho: Duraria
um dia inteiro cavalgando de uma fazenda a outra (DICKE, 2006, p.136).
Indo além, poderes e vozes paralelos aos da fazenda Mutum são também
pertinentes a fazenda dos turcos, intitulada Piúva, apesar de diferenciadas pelas
92
descrições dickeanas, as fazendas Piúva e Mutum sobrevivem em meio ao sistema
e são condicionadas igualmente pela mesma fusão regida pelo ambiente, pelo
tempo e pelo cenário. Já que são semelhantes em muitos aspectos, resta-nos
buscar as diferenças nas descrições que regem a simbologia do que representam,
observemos algumas antíteses. De um lado, o protagonista Hildebrando:
Hildebrando tinha muitos amigos e todos eles vieram ao seu velório, pois o fato
ocorrera por todo município. Mas como Janis sabia que fora ele, o turco Tariq
Muza, quem lhe assassinara o pai? (DICKE, 2006, p.136).
De outro lado, o antagonista, Turco Tariq:
– O fazendeiro havia criado três filhos na sua larga vida:
MIrko, Jorgo e Gael. A mãe deles havia morrido há muito
tempo, os filhos eram como cavalos, como suas rubras
crinas, cabelos vermelhos que nunca viram tesoura nesta
vida. E as terras de Jeron lindavam com os horizontes.
Haviam sido molestados pelos vizinhos do lado norte, uns
turcos mal- encarados (DICKE, 2006, p.140).
Ou ainda:
O turco Tariq Muza era baixinho, com uma cara
demoníaca (DICKE, 2006, p.148).
A contraposição entre os dois opositores convergem nas vozes do
patriarcado que, ao que consta, não os deixará órfãos, as vozes sociais do
patriarcado reviverão nas falas dos filhos de Tariq, tanto quando se mostrarão
presentes nas vozes de Janis Mohor, filha de Hildebrando, isso porque
Hildebrando morre, mas o sistema sobrevive. Sabemos que, a partir de agora, um
“estranhamento” se fará possível já que seria mais facilmente justificável que o
filho de Tariq atendesse a esse sistema, por se tratar de personagem do gênero
masculino, porém Janis, pertencente ao perfil feminino, e ao atender às vozes de
reafirmação do masculino, estabelece possibilidades surpreendentes.
93
Para explicarmos a surpresa causada pela portabilidade das vozes sociais
condicionadas a Janis, lembramos que todas as vozes ouvidas no discurso da
produção literária devem ser respeitadas enquanto sociais ou históricas, pois as
mesmas portam posturas sócio ideológicas que nem sempre coincidem com as do
autor, às vezes não coincidem nem mesmo com as do personagem, porém estas
vozes podem ser orquestradas por este autor já que ele se apodera das mesmas
para a maior representação da realidade, assim concluímos que Janis pode
apropriar-se de vozes contrárias a ela enquanto gênero, desde que estas a ajudem a
atingir seus objetivos, refletindo por isso as intenções que obedecem ao cenário do
contexto histórico em que reside:
Nossas palavras não são „nossas‟ apenas; elas nascem,
vivem e morrem na fronteira do nosso mundo e do mundo
alheio; elas são respostas explícitas ou implícitas às
palavras do outro, elas só se iluminam no poderoso pano
de fundo das mil vozes que nos rodeiam (TEZZA, 1988, p.
55).
Duas heranças são deixadas por Hildebrando quando de sua morte, a
primeira trata– se de um tesouro feminizado representador de fortuna: Moedas de
ouro e prata, correntes, colares, tiaras, pedras preciosas (DICKE, 2006, p143), a
segunda, trata-se da transmissão das vozes sociais do patriarcado a sua filha Janis,
conclusão que atende aos interesses deste estudo.
A segunda herança deve contaminar a herdeira: Janis herda o tesouro, as
terras latifundiárias e as vozes sociais anteriormente percebidas no falecido pai,
por sua vez, estas heranças não a satisfazem, isso mesmo depois de conseguir
todos os seus propósitos, o que a identifica é a lacuna existencial, o vazio que a
identifica, segundo Miguel (2007), antecipa o acontecimento seguinte à morte do
patriarca quando teoriza:
94
A vingança é o esteio das decisões, das reações, dos objetos
de vida, em muitos casos. Mesmo quando são frágeis, seus
personagens têm a capacidade das ações sanguinárias, têm
o poder da vingança violenta e, até, hedionda (Miguel,
2007, p.137).
A vingança de Janis será a marca expressiva deste enredo, esta
consideração é presente em diversos episódios da novela, conforme podemos
observar nos pequenos trechos a seguir: Veio-lhe ao pensamento a idéia de vingar
o pai. Vararia o mundo até achar o assassino. Ou em atravessaria todas as
fazendas em redor da sua, até achar o culpado (DICKE, 2006, p.135). A busca
pelo assassino marcará o perfil feminino com diversas considerações já
conhecidas pelas características concernentes ao escritor Ricardo Guilherme
Dicke: a morte, a violência, a vingança e a portabilidade das vozes do patriarcado.
Vejamos que a portabilidade das vozes do patriarcado por Janis interfere
no plano do enredo condicionando seu comportamento em relação ao ambiente
em que reside, uma prova disso é a relação que o matrimônio reserva a ela, pois
devido ao que o perfil feminino representa, o relacionamento amoroso proposto
pela novela deve ganhar outros consideráveis encaminhamentos.
Logo retornaremos à condição de matrimônio de Janis, enquanto isso,
outro considerável encaminhamento deve ser percebido em relação ao
comportamento dela diante da morte do pai, já que estando distante do padrão
histórico de feminilidade, ou seja, já que ela não representa a passividade histórica
feminina, esta resolve reagir contra os acontecimentos impostos, fazendo com que
o perfil feminino seja guiado pela violência e pela vingança, portanto, a
portabilidade destas ações deve ser produto da portabilidade das vozes que carrega
em si e, não por acaso seja também herdeira de outros arquétipos
comportamentais passivos de análise. French (1992) ajuda-nos a entender este
arquétipo proporcionado pela portabilidade das vozes sociais quando reitera à
orientação do comportamento feminino: a mulher é vista como parelha ao sexo
masculino, tem disposição de lutar pelas mesmas conquistas e diretrizes.
95
Ao juntarmos a orientação do comportamento feminino proposto por
Marilyn French (1992) com a de Koltuv (1990), notamos uma visível proximidade
de definições, isso ocorre porque o arquétipo definido no trecho aproxima-se do
arquétipo evidenciado por Koltuv (1990) quando estuda o complexo
comportamento de Lilith conforme o trecho:
A identificada com o animus assume-se como o pai, é
como se se transformasse nele, o herói masculino. O ego
feminino incapaz de separar-se do estágio anterior
depende do herói masculino, este a liberta pela força, pela
palavra e pela ação. Normalmente resulta na perda de
contato com o self feminino e seus valores, é filha do
patriarcado – atualiza os valores negativos de Ártemis,
Atena ou Hera (KOLTUV, 1990, p.107).
Assim, ambos se referem às mesmas condições de procedimentos e podem
para tanto justificar as atitudes de Janis, todavia porque o perfil feminino de Janis
se aproxima do arquétipo de Lilith (KOLTUV, 1990, p.107), tanto quanto se
aproxima do arquétipo das antigas guerreiras Amazonas (p.107), devido a este
fato, esse papel incomum é fruto de seu comportamento desajustado diante do
ambiente e do que as vozes sociais representam, portanto, pode-se depreender
generalizadamente que, apesar de que houvesse mulheres guerreiras por toda a
história dos povos em geral, a luta sempre fora exclusividade masculina e, por
isso, a mulher impulsionada pela vingança represente um comportamento
minoritário (French, 1992). O trecho abaixo define uma parte destas
considerações comportamentais:
O tipo Amazona, por sua vez, tem uma orientação
coletiva articulada a uma atitude objetiva, não se dando
facilmente a um envolvimento pessoal. Nele, a mulher é
auto-referente e independente, é mais companheira e
competidora que esposa e amante. Embora em muitos
96
povos houvesse mulheres guerreiras, aos poucos o ato de
guerrear tornou-se uma atividade predominantemente
masculina – provavelmente pelas mesmas razões que
levaram a caça a essa situação. Os conquistadores
escravizavam os povos vencidos, condenando-os a
servidão; impunham-lhes impostos e às vezes
apropriavam-se de suas terras. Assim nasceu o Estado.
Nessas primeiras organizações as mulheres pertenciam à
elite, mas, como poucas delas foram conquistadoras,
geralmente eram subordinadas aos homens. Todos os
Estados iniciais decretaram por lei que o corpo da mulher
– sua capacidade sexual e reprodutora – era propriedade
dos homens e tornaram difícil ou impossível a ela possuir
ou legar bens (KOLTUV, 1990, p.107).
Uma vez esclarecido sobre o comportamento de Janis, retornaremos à
condição de seu matrimônio e, ao fazermos, percebemos que, durante o enredo da
novela, os arquétipos entre o par que compõe este matrimônio são opositivos, na
verdade essa oposição possui ocorrência típica em casais historicamente
estereotipados, porém, em conformidade com o arquétipo “masculinizado” de
Janis tanto por Lilith como pelas guerreiras Amazonas, conforme observado, é
antagonizado com seu marido Jan, pois ele obedece ao comportamento histórico
da condição feminina operada pelo tempo. Desta feita, chegamos à conclusão de
que os arquétipos estão invertidos, historicamente Janis se comporta como
guerreira enquanto seu marido Jan se comporta como regente da passividade
feminina. Para compreendermos melhor o papel histórico da mulher, Michele
Perrot (2003) discorre sobre o tema:
Sem dúvida jamais os papéis sexuais foram definidos com
maior rigor normativo e explicativo. O poder político é
apanágio dos homens – e dos homens viris. Ademais, a
ordem patriarcal deve reinar em tudo: na família e no
97
Estado. É a lei do equilíbrio histórico (PERROT (2003,
p.175).
A autora Michele Perrot (2003) reitera estas qualidades quando condiciona
o perfil histórico feminino e, ao fazê–lo internamente a Sinfonia Equestre, as
qualidades condicionadas pela teórica aproximam– se das qualidades
condicionadas de Jan, esposo de Janis, tanto quanto enxergamos Janis, esposa de
Jan, próxima das qualidades condicionadas opositivas destas. Estudaremos para
tanto o comportamento ficcional de Jan:
Seu marido Jan era um pobre coitado, medroso, que
nunca se meteria num assunto como esse. Virgem, porque
nunca dormira com ele? A sombra de alguém continuava
na janela, olhando o cavalinho dando voltas no pátio
verde. E Jan tinha amor por ela. Por que se casara
com tal tipo? Pensava ela. Jan só entendia de cavalos,
pobre. Era a única coisa que sabia fazer no mundo: tratar
cavalos (DICKE, 2006, p.136).
Ou ainda no trecho:
Jan era o marido de Janis, mas nunca dormiram juntos.
Casto, puro, medroso, pequenino, Jan vivia escondido dos
olhos da esposa. (...) olhava-se o rosto num pequeno
espelho que levava consigo. Via o rosto oval, bem feito, os
olhos azuis, os cabelos louros, e dentes perfeitos, e
demorava olhando, Narciso analisando o próprio
semblante, e se achava belo. Então, por que Janis, sua
esposa, o desprezava? (...) Onde estaria Janis Mohor? Ela
não lhe tinha amor; ele, por sua vez, lhe ofertava um
sentimento terno, profundo que só se acabaria com a
morte. Mas ela não sabia. Mas isso para ele não tinha
importância. Grande coração o seu, bom coração,
98
profundamente piedoso, ele passava o tempo rezando o
seu rosário (DICKE, 2006, p.145)
O comportamento ficcional de Jan aproxima-se, pelo que lemos nos
trechos anteriores, aos primórdios do comportamento feminino, seguindo as
características propostas por Emanuel Araújo (2009). Para o autor, o
comportamento feminino é povoado de resumos conceituais, exemplo disso é o
arquétipo de Maria (Araújo, 2009, p.52), a mãe de Jesus não é apenas um
exemplo ou conceito a ser seguido, mas é também um conjunto de simbolizações
e comportamentos que fazem uma ligação entre o pensamento moral e a tradição.
Nem toda mulher é Maria, mas toda Maria serve de símbolo para que a imagem
da mulher por ela se estabeleça.
Desta feita, elencadas as oposições comportamentais, a fragilidade do
marido em relação à Janis designa nele condição de inferioridade, pois ele é quem
possui “inabilidade para a competição no mundo masculino” (Monteiro, 1998, p.
87) e, por conseqüência disso o desprezo da esposa esteja presente conforme
ainda leremos:
– Janis, sinto-me indefeso contra o mundo.
– Jan, você é um fraco, não sei o que fazia quando me
casei com você.
– Não fale assim, Janis.
– Como queres que te fale, infeliz? (Dicke, 2006, p.149)
Janis abomina o espelho do que deveria ser quando enxerga e analisa o
comportamento do marido, essa abominação é fruto das vozes sociais do
patriarcado que não permitem que ela possa usufruir da feminilidade, já que as
condições sociais imperantes estão presentes. Comparando, ao contrário do
disfarce das “máscaras” de El Diablo em Toada do Esquecido, Janis mostra-se
claramente mulher, mas condicionalmente patriarcal e masculinizada.
99
Como sabemos, em busca de vingança, as “travessias,” como foco
motivador, devem iniciar- se em Sinfonia Equestre, como é costume nas
produções dickeanas, porém, para que a “travessia” de Janis seja possível, seu
companheiro de viagem não deve se tratar do esposo já que ele parece
incapacitado para tal empreitada. Então, eis que surge Belizário, um homem que
por trinta anos viveu num monastério e que, cansado da religião que exercia,
acabou por se recolher na fazenda Mutum. Belizário, ao contrário do respeito que
o esposo tem por Janis, liga-se a ela não só platonicamente como Jan o faz, mas
também porque obedece tanto quanto Jan ao tom de sua fala potenciadora e
regedora das vozes sociais.
Separadamente, todas as “travessias” vão sendo condicionadas. Com
efeito, a “travessia” histórica fortalece a representação literária dos
acontecimentos ocorridos naquela época: “Contratar jagunços pistoleiros para
matar não é um expediente dos grileiros e latifundiários de nossos tempos”
(Oliveira, 1999, p.15). Ficcionalmente, Janis reúne todos os jagunços e pistoleiros
para dar cabo do turco Tariq Muza, fazendo com que o contexto histórico
atribuído por Oliveira (1999) quando da contratação de mão de obra assassina,
tenha referência de igual forma diante do enredo desta novela.
Continua o autor com a segunda “travessia” intitulada geográfica,
conforme o trecho a seguir:
Serras e serras em redor e o horizonte zumbindo
infinitamente. E além das serras, rios e florestas. O céu
era todo um fulgor azul dos pontos cardeais. Só se ouviam
os cascos dos cavalos nas pedras do caminho. (...)
Enquanto isso ia assim pensando, começou a chover.
Eles entraram num riacho e foram acompanhando-o,
enquanto a chuva aumentava (DICKE, 2006, p.138– 139).
Já a última das “travessias,” que culminará com o desfecho do enredo tal
qual Toada do Esquecido, será a travessia existencial, assim, podemos acreditar
que a linguagem reflexiva de Dicke estará em contato com as vozes sociais que
determinam o comportamento de Janis e, ao mesmo tempo em que este contado
100
se contabiliza, a linguagem reflexiva permitirá que o universo do mundo patriarcal
representado por estas vozes seja posto em análise:
Os Desertos do Tempo: vaguearei por esse deserto a pé e
sentirei todo o abrasor desse calor sob o sol mordente dos
desertos, seus milênios, nos desertos. Minha alma não via
nada a não ser areia e pedras, e comia do musgo que
nascia e renascia no fundo das cavernas onde habitava
então e bebia a água do sereno que pingava em minhas
mãos abertas para o céu nas madrugadas frias. E rezava.
No fim dos tempos todos aprenderão a rezar (os vivos e os
mortos), porque todo olho verá a Deus. E irão viver nos
desertos. Eu vim dos desertos, mas a eles voltarei. Os dias
dos desertos são plenos e férteis de beleza e
contemplação. Contemplar-se-á a cada grão de areia,
assim como a cada onda do mar e a cada folha das
árvores das florestas imensas e virgens. Olhos puros e
limpos verão em cada grão de areia a face de Deus
(DICKE, 2006, p.137).
O poder patriarcal presente nas vozes de Janis transformam o
comportamento deste perfil feminino em conformidade com aquilo que Miguel
(2007) caracterizou como sendo o comportamento violento: que se tornou marca
identitária na história mato-grossense tanto quanto marca igualmente a
identidade dos personagens dickeniamos (p.137). Sobre este aspecto, a identidade
de Janis é condicionada pelas vozes sociais, enquanto as vozes sociais são
condicionadoras do plano de enredo.
Podemos perceber, ainda, a fala do perfil feminino em Sinfonia Equestre
está a serviço das vozes sociais, funciona como um canal ou veículo para que as
vozes sociais mantenham-se presentes na personagem por esta via de acesso, a
ideologia pertinente ao ambiente é inserida no plano literário, já que, para isso,
é necessário que o plano literário venha conter este ambiente ideológico. A fala de
101
Janis, potencializa diversos aspectos temáticos sob o prisma das vozes sociais do
patriarcado durante o plano literário, por exemplo, a presença simbólica da
temática religiosa:
Pássaros pelos matagais cantam e cantavam em miríades
e trançavam seus cantos com os poemas que Janis dizia. E
à frente da piscina cresciam mangueiras, goiabeiras,
ateiras, mamoeiros, coqueiros dando frutos, cujas
extensões ofereciam uma sombra doce. Constante e denso
rumor de folhas em gargalhadas espessas se
entrechocando. Aqui era um lugar onde seu pai gostava
de vir... Era tão grande a magia das águas que ela
encompridava as horas dentro do ambiente aquático,
sempre e cada vez mais feliz. Intramuros, era um lugar
que retumbava de cantos de pássaros. Sob as árvores se
estendia uma sombra enorme e profunda, espessa e terna
que endulcorava tudo o que dela se aproximava. Frutas
adocicavam as sombras. Um bentevi esburacava um
mamão e assobiava e periquitos comiam duma manga
madura.
– Paraíso... Parece o interior de um grande diamante
(DICKE, 2006, p.145)
A temática filosófica existencial também se mostra presente:
Janis: todos os sonhos que sonhamos em vida voltam
ausentes. As idades: infância, juventude e maturidade vão
em sotoposto. A vida se afundou no abismo dos abismos.
Mulheres: choram, homens: ladram, os maus são de
vidro, os bons são de carne nova. Inquestionável o dilema
que ataca as almas mortas. Os homens descem aos
abismos ou sobem aos abismos? (DICKE, 2006, p.163)
102
Levado por este estudo, concluímos que Belizário – o homem que desistiu
da religião e Jan – o homem que deseja a religião, direcionam convergentes o
amor platônico à Janis, uma vez escolhida pelos dois, Janis dá-se ao luxo de
emparelhar-se a Jan em sua virgindade e a Belizário em suas reflexões, porém, há
algo que a potencializa líder e detentora do poder interno à produção enquanto
personagem principal, criadora e principiadora das ações ficcionais: para tornar-se
líder, Janis valida sua fala como instrumento de dominação e formação de poder,
já que atende às vozes sociais patriarcais que são regidas pelo sistema imposto.
Em nosso ponto de vista, a fala de Janis sinaliza formas de aproximação
do conhecimento do mundo, já que, apesar de representar simbolicamente as
vozes do patriarcado, estas estão subordinadas ao sistema criado pela existência
humana. A fala de Janis reflete, simbolicamente, a Razão: – Não, Belizário –
respondeu- lhe Janis. (...) – Você está delirando, Belizário (Dicke, 2006, p.139);
a Sabedoria: – Dostoievsky disse que a Beleza salvará o mundo (Dicke, 2006,
p.143) e até mesmo a poesia:
Mater Sallus
Água sagrada
Me Limpa me lava me sagra
Me transmuta me sagra
Água sagrada
Mater Sallus (DICKE, 2006, p.144)
Como podemos observar, a “travessia” existencial de Janis é construída
pelo eixo das vozes sociais presentes nesse perfil feminino e, por isso, a fala
dominante e representativa do conhecimento do mundo, inferioriza os homens que
a seguem fervorosamente. Os perfis masculinos são postos à prova de sua
condição histórica – restando a eles imitarem aquilo que a articuladora Janis lhes
ordena: – Que queres? – perguntou Janis. – Eu também quero meditar sobre a
Beleza (DICKE, 2006, p.143).
Como em Toada do Esquecido (2006), Sinfonia Equestre (2006) também
termina com o silenciamento de todos os personagens constituidores da ação, são
103
mortos durante conflito que trazia os capangas de Janis e do patriarca Tariq. O
perfil feminino compila as ações dos homens que lhe acompanham em seu último
ato de morte: reza como Jan e reflete como Belizário – deixa para eles apenas o
horror representativo dos sons dos cavalos, denunciadores dos óbitos, não
necessitando, para isso, de perdão celestial, já que, enquanto pertencente ao
gênero feminino, o perdão já tenha sido concedido: Perdoai, Senhor, o horror,
porque as mulheres já nascem perdoadas (Dicke, 2006, p.166).
As vozes sociais e a fala de Janis, assim como as vozes e as falas dos
personagens masculinos, são substituídas e os sons da morte lembram Sinfonias
Equestres. A morte da Amazona é simbolizada por um cavalo correndo em
círculos: O mundo é redondo e anda em círculos. Tudo anda em círculos. Juntou
as mãos em oração e deu seu último suspiro (Dicke, 2006, p.164), tanto quanto os
círculos da vida deverão se fechar diante da morte.
104
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma vez realizada a análise do corpo textual das novelas dickeanas que
acreditamos abarcar uma amostra da qualidade poética do autor, chegamos a
algumas importantes considerações, dentre elas, grande parte serve para
definirmos os resultados deste estudo. Para nos auxiliar, levamos em consideração
as produções anteriores desse exímio prosador – a exemplo de Madona dos
Páramos (1982) – para que a leitura crítica fosse posta à disposição de algumas
conclusões, uma vez que o tema levantado é confrontado com a bibliografia
estudada, para defendermos a hipótese proposta. Assim, cabe agora, neste
momento final, tecermos alguns comentários e fazermos algumas digressões, de
forma a avistar as futuras possíveis perspectivas, já que este trabalho pode inspirar
novos estudos acadêmicos.
Ricardo Guilherme Dicke é um autor apaixonante que exige uma leitura
febril, já que exige uma leitura cuidadosa. A representação social existe dentro de
sua produção, porém sabemos que seu tema principal gira, sobretudo, em torno de
suas reflexões existenciais, filosóficas que enchem o coração de qualquer leitor.
Por ser seguramente o maior prosador mato-grossense de todos os tempos, Dicke
tem sua obra revisitada por diversos pesquisadores e leitores, trazendo assim
diversas visões e pontos de vista, enriquecendo ainda mais a fortuna critica já
avolumada do autor.
Em nossa proposta de leitura, elegemos as vozes sociais e o poder como
fio condutor, realizando e tornando possível a presente análise: enxergamos a
coesão textual dickeana e sua ligação com o ambiente social, na elaboração das
duas novelas. Levando em consideração o passado histórico do estado do Mato
Grosso, Dicke permite-nos entender o ponto de partida de ambas: a mulher –
símbolo de liderança e poder – desnudando os silêncios dos sertões que queimam
silenciosos e esquecidos pelos homens, um diálogo com um mundo mítico de
onde nunca se tem volta.
105
As conclusões parecem não ter fim, porém o espaço serve de combustível
para a formação muito próxima da realidade, tão próxima que o leitor chega a
acreditar na veracidade dos fatos narrados, levando-se em conta a liderança
feminina em ambas produções do autor.
Enfatizando o paradigma que rege as vozes sociais e o poder do gênero
feminino, descobrimos que ambos estão entrelaçados num texto que se explica por
estas amarras, ou seja, quem rege as vozes sociais e reproduz a fala daquilo que
o social quer dizer detém o poder, o poder é exercido por todos aqueles que se
condicionam em situações estratégicas ao exercer liderança. Surpresa mesmo é
saber que, nas obras analisadas, o gênero feminino é quem o faz, quando
descobrimos o que o gênero feminino realmente representa.
Trata-se, enfim, de uma rica representação artística proposta pela
narrativa, El Sapo é uma líder que representa a sociedade dominante, está do lado
dos opressores, El Diablo é uma líder que representa a sociedade dominada,
fugitiva, está do lado dos oprimidos, Janis Mohor é uma liderança masculinizada,
representa o discurso androcêntrico, impetrado de geração em geração, assim
como as vozes femininas do rádio, vozes que guiam as vidas humanas em
detrimento das próprias escolhas humanas.
Todos, como num turbilhão, são sugados pela efemeridade da vida,
transtornados e passageiros, comandam e são comandados, silenciados como
todos os cíclicos processos diários da representação literária, silenciados pela
eternidade.
Tudo o que o homem faz é medido pelo quadrado. Mesas
quadradas, janelas quadradas, salsa, tudo quadrado.
O mundo é redondo e anda em círculos. Tudo anda em
círculos. Juntos as mãos em oração e deu seu último
suspiro.
(Ricardo Guilherme Dicke)
106
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