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aspas duplas ‘‘ arte e educação, educação e arte ANO 1 DEZEMBRO 2017 revistaaspasduplas.com.br ENTREVISTA Fundador da Revista Aspas Duplas. Professor e escritor rafael duarte caputo 2 POESIAS CRÔNICAS CONTOS NAS TERRAS DE ALÉM-MAR Atividade de Artes Plásticas: Como fazer uma Árvore Geométrica TAMANHO NÃO É DOCUMENTO Microcontos

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aspas duplas‘‘arte e educação, educação e arteANO 1DEZEMBRO 2017

revistaaspasduplas.com.br

ENTREVISTA

Fundador da Revista Aspas Duplas. Professor e escritorrafael duarte caputo

2

POESIAS

CRÔNICAS

CONTOS

NAS TERRAS DE ALÉM-MAR

Atividade de Artes Plásticas:Como fazer uma Árvore

Geométrica

TAMANHO NÃO É DOCUMENTO

Microcontos

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4 ASPAS DUPLAS | setembro 20172 ASPAS DUPLAS | dezembro 2017

6 LETRA DE MÚSICA É POESIA ?Reflexão

NESSA EDICAO

22 ENTREVISTA COMRAFAEL DUARTE CAPUTOFundador da Revista Aspas Duplas

4 ASPAS DUPLAS | setembro 2017

~~12 NAS TERRAS DE ALÉM-MARAtividade de Artes Plásticas: Comofazer uma Árvore Geométrica

POESIAS5 Depois da Grande Escuridão 19 Dos sentimentos inomináveis 33 Não sou mais 39 A Busca 40 Estalactite

CRÔNICA36 O Mito das Ruas da Ilha de Santo Amaro

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dezembro 2017 | ASPAS DUPLAS 3

no

aspas duplas‘‘arte e educação, educação e arte

@revistaaspasduplas

aspas duplas‘‘

Editor-chefe Rafael Caputo

Revisão Ericson Henrique Caron

Fotografia Ana Carolina Paiva

Colaboradores desta edição

TextosJosé Huguenin

Designer gráfico

Rua André João Gasparin, 215/805 - Novo MundoCuritiba/PR - CEP: 81020-240

www.revistaaspasduplas.com.br

Contos Alex Xavier

Maria João TorresRafael Caputo

Poesias Cleonice Alves Lopes-Flois

Crônica Rudolph Parreira

Fotos Maria João Torres

Maíra Carneiro (Modelo)

Rafael CaputoDiagramação

Entrevista Carolina Weiss Deiques

Paulo Ribeiro NetoRoselaine Hahn

Danielle Vilas BôasPriscila MancussiRicardo Lacava

Thiago Scarlatta

Revista eletrônica de publicação trimestral, distribuição gratuita e produção colaborativa.

Os artigos publicados são de inteira responsabilidadedos autores e não refletem, necessariamente,a opinião dos editores. A reprodução parcial ou

total dos textos é permitida desde que devidamente citada a fonte e autoria.

CONTOS9 Tiro Curto 20 Maria, O Cara

28 Meu Nariz de Buldogue, Às Vezes de Poodle

34 TAMANHO NÃO É DOCUMENTOO Sucesso dos microcontos

Claudia Jeveaux Fim

Rodrigo Menezes

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EDITORIAL ssa é a segunda edição da Revista Aspas Duplas. Se você ainda não leu a nossa edição de lançamento, sugiro que o faça. Para atrair a atenção de colaboradores, criamos um concurso literário aberto a escritores de todo o Brasil e, também, de outros países. O resultado dessa iniciativa pode ser conferido, justamente, na primeira edição. Grande parte do material recebido vem sendo publicado, como é o caso das poesias, contos e crônicas aqui presentes. Voltando a falar desta edição, o leitor irá se deparar com uma reflexão interessante: letra de música é poesia? Nem todos concordam. Qual a sua opinião? Temos ainda duas novas colunas que queremos manter nas próximas edições: ‘Nas Terras de Além-mar’ e ‘Tamanho Não É Documento’. A última, trata do sucesso dos microcontos. Uma forma contemporânea, leve e divertida de escrita. Fica o convite para quem quiser participar, basta enviar material. A primeira, por sua vez, a cargo da amiga Maria João Torres, nos traz os aconteci-mentos de nossos patrícios portugueses, fazendo da revista um periódico luso-brasileiro. Nesse número, explorando as Artes Plásticas, temos o passo a passo de como fazer uma Árvore Geométrica, tema propício para a chegada do Natal. Dessa vez, eu mesmo sou o entrevistado. Em outubro, respondi às perguntas de uma jovem futura jornalista chamada Carolina Weiss Deiques, em nome da Revista Revi, pertencente ao Grupo de Ensino Bom Jesus/Ielusc. Tal entrevista deu origem à matéria ‘Professor encontra na poesia motivos para vencer a depressão’. Gostei tanto que a convidei para participar da Revista Aspas Duplas como voluntária. Ela aceitou, e por conta disso, decidi publicar tal entrevista na íntegra. O link da matéria que ela escreveu para a Revista Revi encontra-se na página 27. Como capa desta edição, mais uma vez, compartilhamos o olhar da fotógrafa Ana Carolina Paiva. Agradecimentos especiais à modelo Maíra Carneiro, que, gentilmente, cedeu o uso de sua imagem. Por fim, temos ainda poesias e contos maravilhosos, além de uma crônica muito animal. Todos frutos do I Concurso Literário Aspas Duplas. Espero que gostem do resultado. Boa leitura!

RAFAEL CAPUTO | Fundador e editor-chefe da Revista Aspas Duplas.

@revistaaspasduplasGostaria de contribuir com a Revista e ver seus trabalhos publicados:

[email protected]

Procure essa e outras edições, que podem serlidas na íntegra, no nosso site:

www.revistaaspasduplas.com.br

E

4 ASPAS DUPLAS | setembro 20174 ASPAS DUPLAS | dezembro 2017

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THIAGO SCARLATTA | Aurora

Depois da Grande EscuridãoDeixei a fresta da porta abertaP'ra que a Luz pudesse entrar.

Mudei as coisas de lugar...

Convenci-me, enfim, de queNada é tão ruim assimQue não possa melhorar.

Levei a felicidade p'ra passear...

Mas de quando em quandoA velha voz rouca volta a sussurrarAs mesmas frases soltas pelo ar.

"— Nada é tão bom que não possa piorar."

Ouço o chamado das trevas,O doce uivo dos lobos,As noites já não têm mais luar.

"— P'raquê se enganar?"

Mantenho no poço a velha cordaPara o caso de querer, quem sabe,Um dia ao fundo voltar...

ESCURIDÃODEPOIS DA GRANDE

RODRIGO MENEZES Depois da Grande Escuridão

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NOTA: Em dezembro de 2016, Dylan recebeu o Prêmio Nobel de Literatura “por ter criado novas expressões poéticas dentro da grande tradição musical americana”. Em 2012, obteve a Presidential Medal of Freedom, a mais alta honraria civil dos Estados Unidos, além de receber um Prêmio Pulitzer especial em 2008 por “seu profundo impacto na música popular e cultura americana, marcado por composições líricas de poder poético extraordinário”.

Ele também recebeu o título de Officier de la Legion d'honneur em 2013, o Polar Music Award da Suécia em 2000, doutorados da Universidade de St. Andrews e da Universidade de Princeton, bem como inúmeras outras honrarias. Bob Dylan já vendeu mais de 125 milhões de álbuns no mundo todo.

Imagem: bob_dylan1-1024x640.jpg em www.atribuna.com.br/blognroll.

Em 2016, Bob Dylanrecebeu o PRÊMIO

NOBEL de literaturapor ter criado

novas expressõespoéticas dentro

da grande tradiçãomusical americana.

6 ASPAS DUPLAS | dezembro 2017

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por JOSÉ HUGUENINe poesia sta questão levanta discussões acaloradas e reacendeu intensamente com o Prêmio Nobel de Literatura dado a Bob Dylan. Os defensores da premiação dizem que Dylan tem obras literárias também além das músicas, e que suas canções são poesias no sentido amplo da palavra. Os que não defendem a láurea conferida ao cantor norte-americano, dizem que sua literatura é tímida frente a outras obras e que as canções, apesar de serem poéticas, não são obras literárias. Este é o cerne da questão, que vem de muito tempo. Letras de música são poesias? O poeta, crítico literário, professor titular da UENF, com Pós-Doutorado em Tradução Poética pela Sorbonne, Pedro Lyra, escreveu o livro “Poema e Letra-de-música - um confronto entre duas formas de exploração poética da palavra”, onde descreve ao longo de 222 páginas as diferenças entre as duas formas de manifestação artística em nada menos do que 14 campos estéticos. A conclusão dele é que…não, não são a mesma coisa, mas formas diferentes do uso da palavra. Em recente visita a Volta Redonda, em homenagem da Poeart Editora e AVL, o poeta tocou neste tema afirmando que a letra de música, associada à melodia, mexe com o corpo do ouvinte, despertando outros sentidos que não a reflexão de sentimentos, do se ocupa mais a poesia. No livro, Lyra comparou estas manifestações quanto, entre outros aspectos, à estrutura, à enunciação, à autonomia, ao destinatário e, vejam só, ao consumo! Esta obra surgiu de uma polêmica causada por Pedro Lyra ao não incluir letristas entre 45 poetas da antologia Sincretismo - A poesia da Geração-60. Este trabalho acadêmico

?E mostrou seu ponto de vista, defendendo sua escolha

em não ter incluído letristas em uma antologia que reunia poetas. Posição semelhante tem o linguista, livre docente em semiótica da canção e professor da USP, Luiz Tatit. Em uma matéria para o jornal o Estadão, consta sua afirmação que “Poeta é poeta, letrista é letrista.” Cada um no seu quadrado. O argumento de Tatit leva em conta o fato de os versos das canções funcionarem por estarem entremeados por uma melodia. O que dizer, então, de lindas melodias que foram feitas para musicar…poemas? Temos vários exemplos bem-sucedidos. Chico Buarque, que talvez seja o letrista brasileiro mais vezes chamado de poeta, já admitiu a irresponsabilidade de na juventude ter musicado poemas de “Vida e Morte Severina” de João Cabral de Melo Neto. É difícil para quem ouviu “Funeral de um lavrador” pela primeira vez, e não conhece a obra de João Cabral, conceber que “letra” e “música” foram concebida independentemente, tamanho sincronismo. Mérito para o músico Chico. Outro exemplo marcante é o caso de “Traduzir-se” de Ferreira Gullar, musicado por Fagner. Eu, na adolescência, conheci a música antes do poema. Nunca consegui lê-lo sem cantá-lo! Existem vários outros exemplos. De Vinicius de Moraes é difícil distinguir os poemas musicados ou as letras produzidas. Por exemplo, “Gente humilde” foi letra feita para música de Garoto. Já “Minha namorada” (Ah, que linda namorada) foi poema musicado. Paulo Leminski, Alice Ruiz, enfim, vários poetas tiveram versos musicados. Por ironia, o próprio Pedro Lyra teve

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José HugueninNatural de Santa Rita da Floresta, Cantagalo - RJ, é Doutor em Física e professor da Universidade Federal Fluminense de Volta Redonda - RJ, onde mora. Laureado em vários prêmios literários de poesias e contos. Tem 5 livros publicados. Teve em 2015 o conjunto de poemas ‘O movimento das palavras’ publicado na Revista Brasileira, tradicional publicação da Academia Brasileira de Letras - ABL. É Grebalista e ocupa a Cadeira 17 da Academia Volta-redondense de Letras (AVL), onde atua como Coordenador Editorial.www.josehuguenin.com

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vários de seus sonetos de versos brancos musicados, alguns por ele mesmo. O resultado pode ser visto no youtube. Em Volta Redonda, o poeta e músico Rafael Clodomiro desenvolveu o projeto “A Lira” (você encontra o projeto na internet facilmente) onde musicou inicialmente alguns poemas de Drummond. “E agora José” ficou muito bonito. E nesses casos, a letra é poema? Sem dúvidas! Mas vale ressaltar que aqui a criação musical é que se adaptou aos versos, que foram concebidos como poesia. Nem todo poema tem musicalidade. E quanto a “trenzinho do caipira”, música divina de Heitor Villa-Lobos que Ferreira Gullar letrou? Poema ou letra? Essa questão ajuda bastante, pois fez-se uma letra com métrica que se encaixava na métrica da música. Neste caso o poeta fez uma letra de música, não uma poesia. Para comparar na dimensão estética, repare na diferença reflexiva entre “Traduzir-se” e a letra de “Trenzinho do caipira”, feitas pelo mesmo poeta Gullar. Dito isso, será que as canções poéticas de Dylan podem ser consideradas literatura?Canção poética? Pode uma criação artística (prosa, música, artes plásticas) ser poética? Certamente que sim! Por exemplo, a passagem do estouro da boiada em “Os sertões”, de Euclides da Cunha, é repleta de

poesia, como salientou o grande poeta, doutor em Letras, professor da UFRJ, Marco Lucchesi. O mesmo posso dizer de o “Trenzinho do caipira”. É poética ainda que sem a letra de Gullar. Creio que seja este o ponto. A poética contida na não poesia. Vanguardistas diriam que a poesia tem uma ampla definição e não tem forma rígida. De fato, a poesia brasileira pós-modernismo, em sua maioria, é de versos brancos, ao passo que canções podem apresentar métricas e rimas rígidas. Se qualquer obra com determinada poética for considerada poesia e poesia é literatura, então Bob Dylan é um grande poeta e merecia o Nobel. Contudo, se levamos em conta os fatores estéticos destas duas manifestações Dylan não tem uma “literatura” consistente, no que eu concordo, para não ficar em cima do muro. Não vejo saída. Tudo pode ser questão de definição e neste caso, aceita-se ou não. Vou terminar evocando a música “Solução de vida” com melodia de Paulinha da Viola (um poeta musical) e letra de Ferreira Gullar (um poeta letrista) que diz que a vida “… não é uma equação, não tem que ser resolvida, a vida, portanto, meu caro, não tem solução”!

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CONTOSTIRO CURTO

CONTOS

por ALEX XAVIER

m velocista olímpico leva de 0,12 segundo a 0,20 segundo pra reagir ao tiro nos cem metros rasos. Abaixo disso já não é reação, mas suposição. Ele não parte porque escutou o estouro viajar da pistola eletrônica do juiz até seu ouvido a 340,29 metros por segundo e sim por tentar adivinhar o momento do disparo. Em 99,99 por cento dos casos irá queimar a largada e ser desclassificado. Por isso, agradeço o silêncio das arquibancadas ao me encaminhar à raia oito. É a disputa dos cem metros rasos da Olimpíada de Tóquio e há três décadas um brasileiro não chegava à final dessa prova. Tenho 24 anos e aqui estou. Posiciono-me com os dedos da mão perfilados na linha e aguardo o comando de “preparar” pra empinar a lombar. O estampido virá em seguida. Não chute, ouça. Preparar... – O Bolt largou mal pra caralho – lembrou Bereba a caminho da escola. – Sim, ele é sempre o último a ficar de pé – ressaltou Filé. Somos três moleques de doze anos nos cafundós de Parelheiros impressionados com a medalha de ouro de Usain Bolt nos Jogos de Pequim. Ontem, os dois foram para a minha casa ver a prova na televisão da minha mãe e ainda estamos falando sobre isso hoje. Realmente, a saída não é o forte do jamaicano. Grandalhão e pesado, acaba tardando um fiapo a mais. Lá pelos cinco segundos, porém, suas passadas largas já o colocaram em primeiro. O disparo nos últimos cinco segundos foi assombroso. Finalizou sorrindo, com 9,29 segundos, recorde mundial. – Não importa – retruco – Ele se recupera muito rápido. Sai de trás e liga o turbo. Eles riem quando imito o som de um motor envenenado. De repente, Bereba se cala e barra nossa passagem com o braço. Empalidecemos junto com ele. O silêncio dá espaço a um rosnar, que começa em mono e passa logo a double stereo. A dez metros, no portão entreaberto da casa do açougueiro Néias, um rottweiler olha com empáfia para os garotos que se atreveram a cruzar seu caminho. Conhecemos bem. Chama-se Minotauro, em homenagem ao campeão do UFC, e tem fama de ser

U

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possuído por um demônio. Fica sempre preso. Não hoje, quando já mastigou o rosto do dono, há três dias vítima fatal de ataque cardíaco sem que ninguém notasse a ausência dele. Quando penso em dizer pra ninguém se mexer, tarde demais, os amigos já correm. Levo 0,65 segundo pra sair do lugar. – O Bolt tá puto porque não bateu o recorde – ri o velho Bernardo antes de virar um copo de cachaça. O Bar do Tião está em polvorosa em torno da TV. Usain Bolt acaba de ser tricampeão dos cem metros na Olimpíada do Rio de Janeiro. De novo, partiu atrás e se recuperou, fechando em 9,80 segundos. Ele tem quase trinta anos e voa abaixo dos dez segundos e eu com vinte, tentando vencer a barreira dos onze segundos. Estava no treino há um par de horas. Queria voltar antes, pra ver a corrida em casa. Se o ônibus não atrasasse meia hora eu não precisaria parar nesse boteco de pinguço na entrada da comunidade, ainda carregando o tênis de corrida. Alguém derruba uma garrafa e penso em ir embora logo. Nem bebo, pratico todos os dias, estudo, trabalho. Bate um cansaço e relaxo o corpo por alguns instantes preciosos. O relinchar do pneu de um carro obriga todo mundo a se calar. Ao olhar pra trás, vemos um Corola preto se aproximar velozmente com farol alto ameaçando nossa esquina. Não é a primeira vez. Todos sabem do que se trata. Polícia querendo acertar as contas pela morte de um colega, ontem mesmo, pelas mãos do traficante Relâmpago, antes conhecido como Bereba. Dessa vez, acho melhor não aguardar o tiro de largada. Tempo de reação, 0,15 segundo, nada mal. Todos os outros ficarampra trás. Durante a fase de aceleração, após o primeiro impulso da largada, o organismo do atleta precisa estar preparado pra sofrer bastante. Cada passada dessas recebe até 3,5 vezes o peso do corpo. É um baque atrás do outro. Faço certinho, como aprendi nas primeiras aulas, no campinho de futebol: começo com o tronco ainda inclinado, avanço e depois endireito a postura, emparelhado com os outros sete competidores, todos ainda em pé de igualdade. Lá pelos sessenta metros, a aceleração atinge o máximo. Dizem que o Usain Bolt chega a 45 quilômetros por hora nesse ponto. É quando ele acaba com qualquer esperança dos adversários, antes empolgados por não o terem no seu campo de visão nas primeiras pernadas. Eu sou uma criança e não tenho técnica nenhuma. Sei apenas que a bocarra de um cão impiedoso está a poucos centímetros do meu calcanhar e não quero sentir a força de sua mordida. O medo funciona como motivador e passo entre Bereba e Filé. A arrancada final não tem a mesma força da aceleração. O velocista mantém seu “voo” e cada passada dura menos que 0,1 segundo. Antigamente, havia uma

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desaceleração natural nessa fase. Os treinos, porém, evoluíram de uma maneira que os campeões não tiram o pé e mantêm sua velocidade máxima quando cruzam a linha de chegada. Embora isso só seja possível em uma pista profissional, retinha. Ali na comunidade o terreno é bastante irregular, cheio de calombos, valetas, postes, poças e lixo. E ouvir os pipopos dos milicianos nas minhas costas só me faz desejar ir mais e mais rápido. Não consigo saber se estou entre os medalhistas quando projeto meu peito e jogo os braços pra trás. Só tenho certeza de ter atingido a minha melhor marca na carreira e sigo correndo como se minha vida dependesse disso. De repente, o som de um tiro me surpreende. Ainda tentando convencer minhas pernas a pararem, vejo, de longe, Filé caído, com o pé sangrando, e Bereba ainda apontando um revolver para a cabeça estourada do Minotauro. Espera, vamos devagar. Talvez não seja o cão ali estirado e sim eu, ao lado do meu par de tênis. Sim, faz sentido. Afinal, uma bala de uma espingarda calibre 12 viaja a 360 metros por segundo. Nem o Bolt seria rápido o suficiente para escapar daquele tiro nas costas.

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Alex XavierAlexander Hochiminh Leite Xavier é um jornalista refugiado na ficção. Aluno do Curso Livre de Preparação de Escritores (Clipe), da Casa das Rosas, integra o coletivo Discórdia (www.facebook.com/ColetivoDiscordia/) e publica no Medium (medium.com/@alexxavier_27042) e em revistas literárias.

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nas terras de por MARIA JOÃO TORRES

alem mar-

o longo das próximas edições da revista “Aspas Duplas”, este será um espaço dedicado à apresentação de algumas atividades de Expressão e Educação Plástica, área curricular do 1º ciclo do ensino básico – em Portugal.

Para além das atividades, que incluem sugestões dos procedimentos metodológicos a adotar, é feito o enquadramento das mesmas no programa, são descritos os passos a seguir na sua execução e apresentadas propostas de como poderão ser utilizados/explorados os produtos resultantes, nas áreas curriculares de Português, Matemática e Estudo do Meio. De referir que o 1º ciclo do ensino básico é a etapa que sucede o pré-escolar e é composto por quatro anos de escolaridade. A idade de ingresso dos alunos compreende os 5/6 anos.

Por último, e antes de passar à apresen-tação da atividade selecionada para esta edição, parece ser pertinente clarificar que na área de Estudo do Meio...

A

E porque se aproxima o Natal, aqui fica a proposta para a construção de uma “Árvore Geométrica”

…concorrem conceitos e métodos de várias disciplinas

científicas como a História, a Geografia, as Ciências da Natureza, a Etnografia, entre outras, procurando-se, assim,

contribuir para a compreensão progressiva das interrelações entre a

Natureza e a Sociedade.

‘ ‘

Ministério da educação, OrganizaçãoCurricular e Programas –

1º ciclo ensino básico, 4ª Edição

Como fazer umaÁRVORE GEOMÉTRICA

Atividade de Artes Plásticas para o 1º ciclo do ensino básico

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ÁRVORE GEOMÉTRICA Enquadramento no programa

Bloco 1- Descoberta e organização progressiva de volumes- Construções Ligar/colar elementos para uma construção.

Bloco 2 — Descoberta e organização progres-siva de superfícies- Pintura Explorar as possibilidades técnicas da têmpera; Pintar construções.

Bloco 3 — Exploração de técnicas diversas de expressão- Recorte, colagem, dobragem Fazer dobragens.

Procedimentos metodológicos (sugestões)

Para introduzir a atividade, o professor pode dispor sobre uma mesa todo o material que vai ser utilizado na construção da árvore geométrica e informar os alunos que alguns desses materiais têm descrito o que vai ser feito com eles (exemplos: no cartão vão ser traçadas figuras geométricas com o compasso; com as cartolinas verdes vai-se construir a forma de um sól ido geométr ico; com a têmpera e o algodão/esponja vai-se pintar, em tons de verde, as figuras geométricas traçadas no cartão…). Se os alunos, depois de observarem o material e de terem conhecimento (através da leitura efetuada pelo professor ou de alguns alunos) do que se encontra escrito, não conseguirem descobrir qual é a atividade, o professor pode complementar a informação dando mais algumas pistas (exemplos: encontra-se na

natureza, tem tronco e ramos…) até que os alunos a descubram.

Descoberta a atividade o professor pode apresentar os passos a seguir na construção da árvore geométrica, e que se encontram descritos no ponto referente ao “processo de execução”.

PASSO A PASSO

Enrola-se a cartolina até conseguir a forma de um cone. Com a fita-cola prende-se para que a forma fique segura. Em seguida, com a tesoura, acerta-se o fundo para que a forma do cone possa assentar.

Processo de execução da árvore geométrica - Materiais necessários

- Folhas de papel (várias cores)- Cartolinas- Tesoura- Fita-cola- Caixas de cartão- Têmperas- Algodão/esponja- Recipiente (para colocar a têmpera)- Agrafador

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No cartão, traçam-se duas circunferências de tamanhos diferentes, ou seja, começa-se por traçar a circunferência maior e depois fecha-se a abertura do compasso para se obter a circunfe-rência mais pequena. Em seguida, com a tesoura, recortam-se as circunferências. Este processo repete-se o número de vezes que se considerarem necessárias tendo sempre em atenção, à medida que se vai traçando uma nova circunferência, que se deve ir fechando a abertura do compasso.

Com o algodão/esponja e têmpera pintam-se as formas recortadas. Assim que estiverem secas podem-se colocar na forma do cone.

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Para a decoração (tendo em conta por exemplo o Natal) da árvore geométrica podem ser elaborados laços a partir de um quadrado ou retângulo. O processo é muito simples sendo necessário apenas utilizar as folhas de papel para cortar vários quadrados/retângulos e dobrar cada um desses quadrados/retângulos em forma de harmónica. Em seguida agrafa-se o centro da dobragem e abrem-se as extremidades de modo a chegar à forma de um laço.

Espaço de Português, Matemática e Estudo do Meio

A árvore geométrica pode constituir uma mais-valia aquando da introdução/consolidação de conteúdos relacionados com as figuras geométricas e/ou os sólidos geométricos. No entanto, e apesar da sua conceção estar direta-mente associada à área de Expressão e Educação Plástica e Matemática é possível utilizar este recurso em outras situações do processo de ensino/aprendizagem. Assim, e a título de exemplo, o professor pode:

(i) Num 1º ano, introduzir/consolidar um número e colocar situações problemáticas que envolvam as propriedades da adição subtração, através da montagem/desmontagem dos vários elementos que compõem a árvore geométrica (a forma do cone mais as formas que forem sendo colocadas/retiradas dele) ou do número de árvores existentes na sala de aula. Na área de Estudo do Meio podem ser colocadas situações (a árvore está

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em cima da mesa ou entre dois objetos e ser solicitado aos alunos que digam onde se encontra a árvore) que permitam aos alunos localizar espaços em relação a um ponto de referência (perto de/longe de; entre; ao lado de; à esquerda de/à direita de…).

Na área de Português, o professor pode explorar a palavra “árvore” para trabalhar as vogais (através da identificação das que se encontram na palavra), os casos de leitura (ar/r) ou aproveitar a designação do cone, por exemplo, e selecionar a consoante que pretender abordar.

(ii) Num 2º ano, solicitar aos alunos que observem o número de elementos que constituem a árvore geométrica e colocar situações problemáticas que envolvam a multiplicação (exemplos: Quantos elementos há em dez árvores iguais a esta? Uma árvore é constituída por quatro elementos. Quantos elementos têm sete árvores?...).

Ainda com base na observação da árvore geométrica, o professor pode incitar os alunos a identificarem algumas árvores que poderão encontrar na natureza e deste modo abordar os se res v i v os do seu amb iente (p lan tas espontâneas/cultivadas, ambientes onde vivem as plantas…). Após esta abordagem pode distribuir e explorar um texto relacionado com o tema de Estudo do Meio ou sugerir aos alunos que elaborem um texto narrativo que contenha as palavras: árvore(s) geométrica(s) ou árvore(s) e geométrica(s).

(iii) Num 3º e 4º anos, solicitar aos alunos que observem a árvore geométrica e que tentem desenhar três árvores. A primeira deve conter apenas figuras geométricas, a segunda, sólidos geométricos e a terceira, figuras geométricas e

sólidos geométricos. Em seguida, e de forma aleatória, o professor vai chamando os alunos ao quadro para que eles reproduzam uma das árvores que desenharam de modo a que fique representada a “floresta geométrica”.

A partir desta representação, o professor pode explorar/abordar conteúdos relacionados com as figuras geométricas e os sólidos geométricos e introduzir, no caso do 3º ano, a exploração florestal do meio local (espécies florestais da região, floresta como fonte de matérias-primas…) e, no 4º ano, as principais atividades produtivas nacionais (a silvicultura). Na área de Português pode ser distribuído/explorado um texto relacionado com o tema abordado em Estudo do meio ou sugerir aos alunos que a partir do cenário “a floresta geométrica” criem, em conjunto, uma história.

PINHEIRO DE NATAL - ÉPOCA IDEAL PARA DIVERSIFICAR

Para além dos exemplos enunciados, a árvore geométrica pode ser decorada com os laços que os alunos elaboraram, na área de Expressão e Educação Plástica, e transformada no “pinheiro de Natal”. Deste modo, por altura da época natalícia, poder-se-á aproveitar o momento da decoração e o facto de no final se obter um “pinheiro de Natal” para explorar este recurso em outras situações do processo de ensino/aprendizagem. Assim sendo, o professor pode:

(i) Num 1º ano, introduzir/consolidar um número e colocar situações problemáticas que envolvam as propriedades da adição e subtração, através do número de laços a colocar na árvore geométrica (se o número a introduzir/consolidar se tornar insuficiente para que a árvore fique decorada de modo a parecer um “pinheiro de

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Natal”, o professor pode distribuir pelos alunos o número de folhas (de várias cores) que está a trabalhar com eles e solicitar que as amachuquem até conseguirem obter a forma de uma bola). Depois de decorado o “pinheiro de Natal”, o professor poderá encetar um diálogo com os alunos de modo a que eles falem do Natal como sendo a festa da família (abordando assim conteúdos relacionados com os membros da sua família – relações de parentesco, nomes próprios…). Na área de Português poderão ser utilizadas algumas das palavras abordadas no decorrer da aula (Natal, laço(s), pai, avô…) para introduzir/consolidar consoantes ou casos de leitura e, ainda por cima, elaborar frases com algumas dessas palavras.

(ii) Num 2º ano, aquando da decoração (com os laços) da árvore geométrica, abordar os números pares e impares e/ou colocar situações problemáticas que envolvam a multiplicação, o cálculo do dobro, triplo, quádruplo e quíntuplo (exemplos: Se num “pinheiro de Natal” há uma dezena e meia de laços, quantos laços têm seis “pinheiros de Natal”? Se num “pinheiro de Natal” há 30 laços, quantos laços tenho que colocar num outro pinheiro para que fique com o triplo dos laços?...).

Após a decoração do “pinheiro de Natal”, pode ser distribuído/explorado um texto que fale sobre o Natal ou ser solicitado aos alunos que elaborem um texto descritivo sobre o último Natal que passaram em família.

Em seguida, o professor pode questionar os alunos se no decorrer de um ano civil apenas existe a festa de Natal, conduzindo-os deste modo, à identificação de outras datas e factos significativos (abordando assim o passado próximo familiar).

(iii) Num 3º e 4º anos, formar vários conjuntos de laços de modo a que os alunos identifiquem o número (exemplo: para criar o número 3465, o professor pode formar um conjunto de três laços, ao seu lado direito formar um outro conjunto de quatro laços e assim sucessivamente até atingir o número pretendido).

Com base na identificação dos números criados o professor pode solicitar aos alunos que: (i) façam a leitura e a decomposição dos números; (ii) que enunciem situações problemáticas com alguns dos números que foram sendo formados. Após esta abordagem e do “pinheiro de Natal” estar decorado, pode ser solicitado aos alunos que elaborem uma carta a contar como decor-reu o último Natal.

Em seguida, o professor pode colocar algumas questões: Para além da ceia de Natal, o que é que acontece na noite de Natal? Quem é que costuma dar os presentes? Onde será que são comprados esses presentes?... de modo a abordar, num 3º ano, o comércio local e, num 4º ano, as principais atividades produtivas nacionais. A acrescentar, e no que diz respeito à área de Português, importa mencionar que os conteúdos referentes à Gramática (nomes, verbos, adjectivos…) deverão ser selecionados de acordo com o que é pretendido neste domínio e a atividade a desenvolver.

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Maria João TorresMestre em Design e Marketing pela Universidade do Minho. É Docente do 1º CEB, tendo lecionado

no Instituto Politécnico de Bragança, no período de 2001 a 2009. É autora de vários artigos científicos em revistas e atas de encontros nacionais e internacionais.

Publicou o seu primeiro livro “Crescer com histórias” em 2016 e um conto infanto-juvenil “A libertação das letras” pela Editora Litere-se, em 2017.

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DOS SENTIMENTOS INOMINÁVEISCostumeiramente sinto muito.

Mas não é esse sentir banal e furtivo dos dias comuns.Eu experimento um sentir sem causa.É visita delicada e abstrata de impactante presença.É como se chovesse sem nuvens, ou o mar se agitasse sem o vento.Toca-me somente a chuva e as ondas, sem razão, sentido ou tempo.E afogo-me sempre.Percorrem-me essas águas, de um extremo ao outro, banham meus pensamentos.Redemoinhos se formam em meu coração e orvalham meus olhos, caindo sobre mim o sereno.Se me perguntares por que choro, não saberei explicar. Direi que é uma saudade ou uma lembrança para tua curiosidade saciar.Faltam-me recursos para definir esse estado em que me encontro.É uma dor que não fere, um júbilo que não perturba.Incomoda-me apenas a ausência de mote, o objeto incitador dos sentidos.Então me percebo um mau “sentidor”, pois que procuro rapidamente a causa. Necessito explicar-me: De onde vem tal emoção?E me perco em interrogações sinuosas... E quando volto, sem respostas nas mãos, ele já partiu...O sentimento anônimo quando vem não se demora.Sai sorrateiro, deixando a porta entreaberta, e aquela antiga sensação de que novamente não o reconheci.

DANIELLE VILAS BÔAS | Dos Sentimentos Inomináveis

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CONTOSMARIA, O CARA

CONTOS

por PAULO RIBEIRO NETO

confissão veio em um happy hour: — Você parece um cara, Maria. Não tem essas crises emocionais, sabe? É por isso que eu aposto tanto em você. Ele queria que fosse um elogio, mas o álcool revelou mais do que normalmente diria. Foi meio ofensivo, mas Maria agradeceu. Significava que o chefe a via no mesmo patamar que os outros, que ela tinha o respeito que sempre almejou. — Continua assim e você chega longe! Dez anos foi o tempo que levou para chegar ali. Jornadas exaustivas, Natais distantes dos familiares, reuniões que atravessavam a madrugada... Teria valido a pena? Não saberia dizer. Respondeu que queria voar ainda mais alto, mas mentiu. Algo a impedia. Algo ou alguém, isso varia de acordo com a sua concepção. Fato é que um ser crescia dentro dela. Ninguém sabia de sua existência naquele momento. Se antes ela já pensava em dar um fim àquele invasor, o comentário fez esse anseio ganhar mais força. Maria nunca quis ser mãe, foi Benício quem forçou essa sombra no relacionamento. Fraldas sujas a repeliam desde a juventude e, para ela, não havia nada mais perturbador que o choro estridente de um recém-nascido. Assim como toda garota, ela foi bombardeada desde a infância com o ideal de maternidade. As brigas com sua mãe acabavam com a sentença do futuro traçado: — Quando você for mãe, vai entender. Durante a adolescência, ao observar a tia cuidando dos primos e das tarefas domésticas sem qualquer auxílio, confirmou que “mãe” era sinônimo de “prisioneira”. Por que qualquer mulher, em sã consciência, escolheria esse caminho?! Só que o tempo passou e Benício surgiu em sua vida, um amor avassalador que mudou todos os seus planos. Tudo evoluiu naturalmente e, em pouco tempo, já dividiam o mesmo teto. O primeiro ano de casamento foi um sonho, só que logo começaram os clamores por filhos.

A

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Ela queria agradar o marido, mas as discussões ofuscaram a relação. Argumentou que o momento no trabalho era tenso e que precisava manter o foco. O esposo, entretanto, sofria com a sua resistência. A gravidez foi um descuido. Atribulada com o serviço, ela se esqueceu de comprar mais anticoncepcionais depois que um surto de Benício fez com que ele jogasse fora todo o estoque que mantinham em casa. Ao se dar conta do lapso, já era tarde demais. “O que é que eu vou fazer agora?” A verdade é que estava cansada de todas as cobranças envolvidas com a função que exercia. Foram anos de dedicação exclusiva e ela nem pôde aproveitar os luxos que o bom emprego poderia lhe proporcionar. Porém, uma vida como dona de casa também não a deixaria feliz. Por mais que estivesse apaixonada, o Benício que a encantava havia dado lugar a um homem ranzinza, obcecado pelo desejo de formar uma família tradicional. A fala do chefe voltou a ecoar em sua mente. Se ela parecia “um cara”, deveria agir como um. Um homem optaria pelo trabalho desmotivador ou pelo casamento naufragado? Os homens são criados de forma muito diferente das mulheres. Uma mulher é criada para pensar sempre no todo, enquanto o homem só pensa em si. “Um cara seria egoísta”, concluiu. Por isso, divorciou-se. Pela mesma razão, abandonou o emprego. Viajou para a Itália, decidiu viver por um tempo na terra mágica de seus ancestrais. Contudo, antes de seguir para lá, tomou algumas pílulas que a fizeram sangrar até que fosse livre novamente. Ficou orgulhosa de si mesma porque reconheceu o ato como sendo de muita coragem, até porque fez tudo sozinha. Completou a sua tese: “o homem pode ser egoísta, mas a mulher que é corajosa”.

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Paulo RibeiroNascido em São Bernardo do Campo (SP) em maio de 1994. Graduou-se em Relações Internacionais (UNESP) e é mestrando em Integração da América Latina (USP). "Maria, o cara" é um conto integrante de seu livro "Nossas Marias", ainda inédito.

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Por que escolheu a poesia dentre tantos gêneros? Ou você escreve outros gêneros também? As poesias são o mais puro sinônimo de liberdade. Não existem regras ou normas. As palavras ganham novos sentidos. O poeta tem o poder de ‘mutar’ o significado das coisas, reinventar termos, criar palavras e muito, muito mais. É o eternizar do pensamento, o legado da imaginação e do próprio sentir registrado em versos. Isso é fascinante. Definitivamente uma libertação. Mas sim, também escrevo outros gêneros como contos e crônicas. Recentemente escrevi ainda um livro em forma de diário e, acredite, também um livro infanto-juvenil, prestes a ser publicado.

Como começou a escrever poesias? O que te levou a escrevê-las? Sempre gostei de escrever, mas confesso que intensifiquei esse processo como uma terapia após o fim de um longo relacionamento. Infelizmente, depois de quinze anos casado, me vi sozinho e triste. Mergulhei fundo na depressão. Acabei canalizando muito do que sentia nas poesias, foi exteriorizando tais sentimentos que consegui retornar a superfície. Agora me encontro boiando, ainda à deriva, mas pelo menos não morri afogado (risos).

RAFAEL DUARTE CAPUTOProfessor e Escritor

ENTREVISTARafael

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Nunca é tarde demais

para ser quem você poderia

ter sido.

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George Elliot

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Duarte CaputoEntrevista com o fundador e editor-chefe da Revista Aspas Duplas.

De quais concursos já participou com suas poesias? Quantos venceu? No geral, participei de cerca de onze concursos literários, entre contos e poesias. Ainda espero o resultado de alguns. Comecei a escrever, de fato, no fim do ano passado (dezembro de 2016) e obtive alguns resultados positivos. Com a poesia “Presente, passado e futuro”, por exemplo, recebi o Prêmio Poesia Livre 2017 do Concurso Nacional Novos Poetas – CNNP, promovido a nível nacional pela Editora Vivara. Com a poesia “À deriva” fiquei em primeiro lugar no concurso literário da Revista Inversos. Já a poesia “Malus da Vida” me trouxe o Prêmio Poeta Adauto Borges. Com o conto “Ditos populares” recebi o Prêmio SFX – São Francisco Xavier – de Literatura 2017 promovido pela J. A. Cursino & Editores e com outro conto intitulado ‘‘Marias da Boca Maldita”, o Prêmio José Endoença Martins - Novos Talentos da Literatura, organizado pela Fundação Universidade Regional de Blumenau - FURB. Por último, recebi uma menção honrosa da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais pela poesia “Retorno adiante”.

Alguém lhe incentivou a participar ou foi por conta própria? Foi por conta própria mesmo. Porém, quando alguns amigos começaram a perceber que eu estava escrevendo, me indicaram alguns concursos literários específicos. Foi uma grande amiga que, inclusive, sugeriu que eu participasse do Prêmio Poesia Livre, organizado pela Editora Vivara. Essa acabou sendo a minha primeira publicação.

Como foi sua experiência com esses concur-sos? Quais aprendizados teve? Como foi a expectativa? Em algum momento estava menos confiante e quis desistir? Tudo começou quando voltei de Brasília. Fui até lá para fazer a prova da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA. Estava focado nos concursos públicos e participei de vários. Fui aprovado e classificado em alguns, mas ainda não fui chamado. Na verdade, ninguém foi. Ao retornar para casa, comecei a pesquisar na internet quais seriam os próximos concursos públicos e acabei me deparando com os concursos literários. Fiquei curioso e decidi participar. O maior aprendizado que tive foi que “nunca é tarde para ser quem você poderia ter sido” – frase de George Elliot. Também tive que aprender a conviver comigo mesmo e controlar meus demônios internos, às vezes, incontroláveis. Criei vários personagens literários, alguns bem peculiares, que me impediram de enlouquecer, ou que trouxeram certa lógica e entendimento à minha loucura latente. Não me vi mais tão sozinho e isso me ajudou. Então continuei a escrever cada vez mais. A verdade é que não tinha pretensão alguma em ganhar esses concursos.

Quais foram as sensações com a(s) vitória(s)? Como disse, não tinha pretensão em ganhar, mas confesso que é sempre bom ser reconhecido pelo seu trabalho. Alimenta o ego. O que busco ao parti-cipar é mostrar o que escrevo às pessoas. A publicação das obras, seja numa antologia ou não, é que traz a sensação de vitória. Essa sim é viciante.

por CAROLINA WEISS DEIQUES

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condição, ou ainda das citações expressas dessa mesma forma. A Revista aborda assuntos ligados à dupla: arte e educação, educação e arte. Nome propício, portanto.

Quanto tempo ela tem? Ela acabou de nascer. A primeira edição saiu em setembro (2017). É uma revista trimestral, colabo-rativa e com distribuição gratuita.

Pretende levar a revista para o impresso ou só no eletrônico? Por enquanto, apenas no meio eletrônico. É preciso recursos para uma versão impressa. Gostaria muito de encontrar alguém interessado em atuar – voluntariamente – como Produtor Executivo, pois assim, teríamos um intermediário em busca de patrocínio e investimentos. Já basta acumular a função de editor-chefe da revista, colunista, diagramador e arte-finalista.

Muitas pessoas enviam suas obras para serem publicadas na revista? Para o lançamento da revista criamos um concurso literário a nível nacional e também aberto a países lusófonos. O resultado foi incrível. Recebemos muitos materiais em forma de contos, poesias, crônicas e inclusive fotografias. Tudo isso foi selecionado e pode ser conferido na primeira edição, nessa e nas que virão. Recebemos tanto material que temos o suficiente para as próximas edições, mas nada impede de publicarmos novos artigos e reflexões. A quem quiser participar, fica o convite.

Como tem sido o crescimento da revista na sua visão? Tem algum plano futuro para ela? Estamos começando nesse cenário, que é carente de iniciativas assim, apesar de existirem algumas revistas eletrônicas independentes real-

Suas poesias ganharam mais público após os concursos? Acredito que sim. Novas oportunidades estão surgindo por conta dessa exposição. É uma boa maneira de começar e conquistar o público. Fica a dica! Prova disso é o interesse de uma editora em publicar meu livro infantil e essa entrevista de agora (risos). Quem poderia prever isso?

Como surgiu a ideia da revista eletrônica literária? Quais os conteúdos dela? Para ocupar a cabeça e fugir da depressão, comecei a assumir – ou criar – vários projetos ao mesmo tempo. Muita coisa mesmo, loucura! Além de atuar como Coordenador Pedagógico em uma instituição de ensino particular, dava aulas em cursos preparatórios à noite, estudava para concursos públicos, participava de concursos literários, fazia academia e voltei para a faculdade. Optei por uma licenciatura em Letras, justamente por essa paixão literária contida e reprimida. E foi em um trabalho de faculdade que encontrei o gatilho da revista. A chamo de “Aspas Duplas”, uma alusão ao significado ambíguo das expressões que aparecem nessa

Rafael Duarte Caputo

As poesias são o mais puro sinônimo de

liberdade... É o eternizar do pensamento, o legado da imaginação e do próprio

sentir registrado em versos. Isso é fascinante.

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ENTREVISTAmente muito boas e isso nos inspira. A primeira edição, sem anúncio patrocinado nas redes sociais e sem divulgação paga, obteve 355 visitas conforme o relatório da plataforma onde está hospedada. Um número bem modesto, mas que já nos dá um norte. Somente com as próximas edições é que teremos ideia do crescimento verdadeiro. Vamos trabalhar para chegar às 500 visitas, depois 1000 e assim por diante. No momento, a revista precisa atrair colaboradores. Sem eles, nada acontece. Já temos algumas pessoas que decidiram abraçar a ideia de forma muito profissional, apesar de voluntária – sem remuneração – e essa contribuição é enriquecedora. Temos a Maria João Torres, uma professora e escritora de Portugal e o também professor José Huguenin, membro da Academia Volta-redondense de Letras – AVL. Que o futuro continue nos trazendo novos colaboradores e, consequentemente, novos leitores.

Qual a sua relação de escritor com professor? Você leva suas obras para a sala de aula? O que os alunos acham? Os meus alunos são uma droga (risos). Afirmei isso em aula e eles ficaram surpresos. “Vocês são uma droga”, eu disse. Depois expliquei, é claro. Dependo mais deles do que eles de mim, essa é a verdade, por isso a analogia. No fim, eles ficaram emocionados. Amo ser professor e essa troca de energia dentro da sala de aula é contagiante. Eu tenho a obrigação de entende-los, afinal de contas, já tive a idade deles. Exigir que eles me entendam é irracional, eles ainda não tiveram a minha idade. Todos os adultos deveriam pensar assim, inclusive os pais. Iríamos contribuir para a formação de jovens menos inseguros, ansiosos e, principalmente, depressivos. Me assusta o número de casos de depressão dessa nova geração. Sei na pele o que é estar nessa condição. Alimentar pensamentos autodestrutivos dia

a dia é potencializar uma condição que pode se tornar insustentável. E as consequências podem ser desastrosas, e vêm sendo. A escrita me salvou, compartilho com eles essa experiência. Tento incentivá-los a escrever também. Levo algumas obras para a sala, apesar de dar aulas de administração em uma unidade de cursos livres, sempre aproveito um tempo para influenciar um ou outro aluno. Muitos acham que poesia tem que ser doce. Mostro a eles o outro lado. Nem todo poeta contempla o amor, há os que beiram a loucura, namoram a morte, sucumbem à dor. É assim que deve ser. Certa vez, um deles, que eu sequer imaginaria que se interessaria por poesia, me procurou no fim da aula e perguntou onde poderia comprar a antologia poética que tinha a minha poesia publicada. Na aula seguinte trouxe um exemplar do livro, fiz uma dedicatória, autografei e o presenteei. É sobre o brilho nos olhos dele que me refiro. Plantei uma semente. Espero que ela floresça. Depois de formado em Letras quero atuar em escolas de ensino fundamental/médio do ensino regular e também em faculdades. Pretendo continuar a plantar sementes, só que em outros terrenos. Vamos ver no que vai dar.

Nem todo poeta contempla o amor, há os

que beiram a loucura, namoram a morte, sucumbem à dor.

É assim que deve ser.

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ENTREVISTAPoesia - Prêmio Poesia Livre 2017 - Editora Vivara‘Presente, passado e futuro’

Meu presente é sofrimento. É dor, é tormento! Lasca de um pensamento perdido no tempo.Meu passado é passado. Simples ato inacabado.Resíduos e ecos de um desconhecido perdido no espaço.Meu futuro é incerto. Pobre, decerto! Um longo deserto a ultrapassar.Um subjugar da sobrevivência. Um sobreviver de plena sofrência.Um destino insano de delírios mundanos com demônios profanos a me observar.

Poesia - Primeiro lugar no concurso literário da Revista Inversos ‘ À deriva’

Sem o Norte que gostaria, mais ao Sul do qual imaginara.Um instante, um momento, uma saudade cor de rosa dos ventos.Tempos perdidos em vários anseios. Tudo abstrato, nada concreto: tesouro perdido, enterrado, incompleto. Adição de incertezas, aflição de desejos. Efêmera espera que me aborrece, me consome, me angustia, me enlouquece.Do baú das lembranças esquecidas vasculho em vão Palavras de alento.Dor e sofrer são alimentos da alma. De tempero: tomilho e tormento.Naufragado ao passado, ancorado no tempo.Preciso fugir, navegar, correr, sair, escapar. Nada me resta senão atracar. Mas onde?Estou fraco e abatido, cansado e iludido.Sonhando com a utopia de uma esperança fúnebre.Pulsos ilesos, pelo menos por enquanto.E se o infinito do horizonte não for suficiente?Navego há tempos num mar de dúvidas. Os remos já deixei para trás. À deriva me encontro: pálido, enjoado, sujo salgado de lágrimas.Lamentando a boiar distante do cais com vaga esperança de terra firme.Maldita pirata!

Rafael

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perfilRAFAEL DUARTE CAPUTO nasceu em 16 de junho de 1977, no Rio de Janeiro, mas vive e trabalha em Curitiba, Paraná. É professor de informática, administração e demais disciplinas preparatórias para concurso público. Ocupa atualmente o cargo de coordenador pedagógico em uma instituição de ensino particular. Considera-se um autor em início de carreira com alguns contos e poemas já escritos. Tamanha paixão pelo universo literário fez com que se tornasse, recentemente, um acadêmico do curso de Letras. Como todo geminiano, é imcompre-endido e taxado de bipolar, mas isso não o incomoda. Só de vez em quando.

Duarte Caputo

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NOTA: Entrevista concedida à Carolina Weiss Deiques para a Revista Revi do Bom Jesus/Ielusc. Tal entrevista deu origem à matéria ‘Professor encontra na poesia motivos para vencer a depressão’, escrita pela autora em 27 de outubro (2017).

Link da matéria: http://www.ielusc.br/aplicativos/wordpress_revi/professor-encontra-na-poesia-motivos-para-vencer-a-depressão/

Carolina Weiss DeiquesQuase jornalista de 22 anos. A um ano de se formar, já tem planos de morar no exterior e

seguir sua carreira lá fora. Além de amar a escrita, seja jornalisticamente ou não,

também gosta muito de música, filmes e séries. Os assuntos que mais a envolvem são cultura, moda, saúde, gênero e sexualidade. Gosta desde livros até HQs. Convidada pelo

entrevistado a colaborar com a Revista Aspas Duplas, aceitou o convite e agora é uma de

nossas colaboradoras.

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CONTOSMEU NARIZ DE BULDOGUE,

ÀS VEZES DE POODLE

CONTOS

por ROSELAINE HAHN

m dia antes dos grandes olhos glaciais mergulharem na viagem de retorno à casa do Todo-Poderoso, ela entregou-me uma carta e pediu para eu procurar o meu pai. Sim, eu tenho pai. Agora. Agora eu sei que ele não morreu na guerra, nem foi comprar cigarros e tampouco pouco abduzido por um E.T. Ela tinha a rotina de deixar-me bilhetinhos de controle, antes de sair para o trabalho, feito lista de supermercado, num caderno quadriculado: “lava a louça, seca a louça, recolhe a roupa, tem nega maluca no armário, não fica à tarde toda no computador”. Eu não entendia bulhufas do que estava escrito, tipo a fonte script MT Bold, tamanho 10, e mesmo se entendesse, não faria a menor diferença. Na carta, o diacho da letra embaralhada parecia arame farpado enrolado, culpa da presença da senhora dona morte, que não arredava o pé da cabeceira da cama do hospital. Consegui decifrar, com uma lupa, a concessão do perdão ao meu pai e o pedido de cuidados à minha pessoa. Não sei por que fez isso, se tinha certeza de que Deus a salvaria. Acho que as pessoas à beira da morte perdem a arrogância, que deve ser o mesmo que perder todas as certezas. A sua irmã sabia. Ela pediu segredo. Era para me proteger. Eu não queria ser protegida. A tia contou-me que ele chamou minha mãe de vadia e disse que o filho não era dele, quando ela o procurou cheia de enjoos. Ela falou que os homens agem assim porque não querem assumir compromissos e nem pagar pensão. Também afirmou que a doença da irmã era porque ela viveu cheia de raiva e mágoas, que as doenças nos países baixos das mulheres têm a ver com a maldade dos homens, e que as doenças do emocional apodrecem o corpo. Tudo baboseiras que ela leu nos livros de autocura. Num ataque de fúria estraçalhei a nega maluca em picotadas na faca de serra. A tia tomou de mim as chaves do apartamento. Era desejo de minha mãe de que eu morasse com ela na sua ausência. Ninguém perguntou o que eu desejava. Eu não queria acordar todos os dias com um sorriso festivo esgaçando as cortinas e irritantes saudações melosas ao novo dia. Ela quer vender o apartamento, tem procuração, vai

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guardar tudinho para o meu futuro, como a irmã pediu. Sei. Outra prova de que as certezas de mãezinha estavam falidas, como o seu ovário. Sentei no fundo do ônibus esperando um pescoço envergar a cara antipática pra mim. Não deu outra. Uma moça com cabelos de Barbie, sentada na terceira poltrona à frente, olhou pra trás e me encarou com o queixo nas alturas; estiquei as fuças pra ela de um jeito debiloide com o meu nariz de buldogue. Bem, quando eu tomo o remedinho, o nariz é de poodle. Dois rapazes cheios de frufrus entraram no ônibus fedido a repolho cozido, com umas calças muito justas de cantor sertanejo. Franzi o nariz de buldogue. Meninos normais não são assim animados. O remedinho ainda não fez efeito. A mãe dizia que são aberrações da natureza, e que se eles se entregassem a Deus, seriam curados. Não foi difícil chegar até a revendedora de veículos, havia um painel enorme de publicidade em frente à rodoviária. Segui o meu faro, agora de poodle. Não gosto de pedir ajuda quando me perco, é melhor continuar perdida a pedir ajuda a um adulto. Não havia ninguém na porta da loja segurando cartaz com os dizeres “bom dia minha filha, seja bem-vinda”. Sei que a gentileza não me faria melhor, assim como não o fazem os estúpidos “bom dia” do WhatsApp, mas porra, me sentiria acolhida. Entrei na loja com o pé direito, o que tanto faz, tanto fez. O atendente me acompanhou até o seu patrão, no momento em que me viu alongou o queixo com a mão feito um sábio. Bem, sábio com certeza, não deveria ser. Apontou a uma porta, tomou a dianteira,- voltou atrás, deixou-me entrar primeiro, espremeu a testa suada com os dedos peludos. Deve ser o escritório. Três máquinas de cartões de crédito no balcão. Deve-se ganhar muito dinheiro por aqui. Sentei. Ele também, do outro lado da mesa, pronto para me sabatinar, como fazem os orientadores educacionais do instituto certinho imaculado coração de Maria. Batuquei os tocos de unha na calça jeans, fissurada nos posters dos automóveis bala grudado nas paredes das salas dos vendedores. Deve-se vender muito por aqui. “A carta?”. “Oi?” “Deixa eu ver a carta”. Entreguei o papel, mas naqueles olhos espremidos não vai conseguir entender a letra. Segurou- a com a ponta dos dedos e punhos fechados para eu não perceber a tremura das mãos, arregalou os olhos e arqueou as sobrancelhas de O Iluminado, igual as minhas quando tomo o remedinho da felicidade. “Dezesseis né?”, “Sim, mês passado”. Uma mulher de cabelos castanhos chocolate ao leite e cara de madrasta da Disney apareceu na porta, de mãos na cintura, feito uma xícara sem pires. Mãezinha dizia que eu tinha um sexto sentido aguçado, pois Deus capacita todos aqueles que

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creem Nele. Não precisa de muita capacidade para perceber que a mulher é uma megera. Imagina quando souber quem eu sou. “Está com fome?”, perguntou o homem. “Não”. A mãe levou a fome junto com ela. A sua partida aconteceu num dia carregado de nuvens cor de chumbo − ao menos a moça da previsão do tempo não decepcionou. A primeira lágrima rolou do meu olho direito preto de pálpebra caída, depois do esquerdo, da mesma cor do outro, seguido de uma enxurrada nos dois, misturados à tromba d´água desabada no jardim das almas mortas. “Uma água?”, “Sim”. Fixei o olhar opaco no porta-retratos em cima da mesa, no escritório do dinheiro. Deve ser a sala dela, as madrastas sempre cuidam do dinheiro. O casal esbanjava felicidade dentro da moldura, ao lado de um menino de sobrancelhas iguais às do pai, iguais as minhas com remedinho. Um pensamento tenebroso desejou que ele fosse uma aberração da natureza quando crescer. Espanei as ideias palha e bebi o copo d´água em guti guti mirando o pôster da máquina turbinada. “Vou levar a carta para o advogado”, “tá”. Fedeu. Ele colocou gente da lei na história, anotou o telefone da tia, não quis o meu − esse troço de justiça é para os fortes. A mulher, em pose de xícara, continuava encostada no balcão de pagamentos, ao menos descansou uma alça. Na minha saída estufou uma covinha sinistra no canto da boca. Da porta do quarto, podia-se ver o violão encostado na parede e o quadro do Green Day, e só. A parede avançada não permitia enxergar a escrivaninha, o roupeiro, e, plasmada na cama, eu. Ninguém tinha permissão para entrar, a não ser minha mãe, porque não ia adiantar não dar permissão. E quem mais poderia entrar numa morada habitada por duas criaturas tão solitárias? Havia a tia, e os ministros da igreja, e as senhorinhas com as capelinhas da novena, e a vizinha enxerida do quinto andar, e o síndico às voltas com consertos inventados para arrancar um extra dos moradores. Esses não entravam. A última entrada dela foi para comunicar do tumor, que seria tratado com a graça divina, que ela era forte, que o sangue de Jesus tem poder e blá blá blá. Por horas seguidas, castiguei os dedos na rudeza das cordas de aço do violão. Passaram-se quatro meses do meu aniversário, e o homem da revendedora não deu sinal. A tia entrou no quarto aos berros, esgaçou a cortina e mandou eu me arrumar. Eu preferia continuar sonhando o sonho mal sonhado a ouvir a sua voz de gralha gritar “ele está pensando o quê? Deu!”. Ela quer ir às ganhas, fazer exame de DNA, botar a boca no trombone; eu lembrei que ele ficou com a carta, a prova da paternidade. Senti uma pontinha de orgulho do meu raciocínio de sora de sociologia, ou filosofia, sei lá, e aflição pela

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minha babaquice. Mas não subestime uma mulher de negócios para assuntos familiares. A tia tirou uma cópia. O orgulho continuou batendo no peito, porque na verdade, eu não quero o dinheiro dele. Mas na boa, eu bem posso tirar uma onda às custas da sua grana. Subimos no mesmo ônibus com cheiro de repolho cozido. A tia não fechava a matraca, sussurrou no meu ouvido que colocou o apartamento à venda − o meu apartamento −, pensava em comprar um carrinho popular, desses que sobem a lomba em primeira marcha, talvez uma cozinha modulada. Perguntou o que eu achava. Dei de ombros. Olhei pela janela, os postes na estrada viajavam apressados. Antes que eu abrisse a boca cheia de dentes costurados com ferros metálicos ortodônticos, ela cuspiu um palavreado de exigências a serem despejados no homem de boa cabeça para negócios. Mostrou-me um papel da defensoria pública a ser esfregado na sua cara, caso ele não se emocionasse com os argumentos da tutora da menina sangue do seu sangue. Nunca pensei que fosse dizer isso, mas sinto saudade das saudações melosas ao novo dia. Por sorte, chegamos antes do homem sair para almoçar com a família feliz. A barriga roncava, a fome voltara. Contentei-me com uma lasca de unha. Fazer refeições com o pai deve ser algo destinado aos escolhidos por Deus. O menino do maldito porta-retratos, que eu desejei que fosse uma aberração quando crescesse, deve ser um escolhido. O vendedor abriu a porta envidraçada com um cordial bom dia, faltou outro cartaz com os dizeres “Satisfação em revê-la, filhinha do papai”. O moço risonho nos acompanhou até a sala do dinheiro contando os passos, decerto para apreciarmos o cenário das máquinas turbinadas; avistei o dono da loja na sala ao lado. Ele despachou o sujeito de macacão de oficina mecânica e veio ao nosso encontro com cara de poucos amigos. Na verdade, de amigo nenhum. A tia chegou chegando, sem dar tempo dele atirar primeiro, apresentou-se como a minha tutora e falou da urgência de resolver o assunto da paternidade de forma amigável, enquanto eu bocejava e a barriga se retorcia. Oh, oh! Vai feder. A madrasta da Disney abriu a porta bufando o fogo dos dragões e fuzilou a tia com um olhar de cão feroz; a irmã da minha boa mãe nem se abalou, rosnou pra ela. As duas descambaram o barraco, xingamentos, empurrões, “Quem você pensa que é?”, “Vou chamar a polícia”, “Então chama”, “Esse pau mandado não diz nada?”, e o pau mandado encolhido num canto. Usei os superpoderes de ficar invisível e saí de fininho até o salão dos carros, enquanto os vendedores com cara de bom moço e os homens de macacão engraxado correram para assistir à baixaria na sala do dinheiro, e a tia esfregou o papel da defensoria na cara da megera, e o dono da loja pegou o telefone, e a tia arrancou o aparelho da mão dele, e

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ele gritou para um mecânico tirar aquela doida dali e eu babando nas máquinas com computador de bordo, banco de couro, teto solar. E tudo o que eu precisava era apenas de um prego. Cara, você não vai acreditar! Eu tinha um prego no bolso do moletom. Do salão eu enxergava a sala do dinheiro, vi a tia prestes a ser arrancada de dentro da sala por um vendedor sem sorrisos. Tinha sete automóveis expostos, me agachei na lateral de um, escondida da vista da plateia de big brother, segurei o prego feito a faca que estraçalhou a nega maluca e risquei uma profunda cicatriz na pintura metálica, de fora a fora, tal qual o rasgo profundo no peito, tal qual a cova funda da minha mãezinha, tal qual o buraco de fome no estômago. O vuco-vuco continuava no balcão das máquinas de cartão de crédito, ouvi um “não é minha filha” no débito, enquanto eu apertava, espremia e retorcia o prego nos automóveis estacionados. Terminei o serviço e esperei a tia na porta, com cara de paisagem. Ela saiu gentilmente escoltada por três grandalhões de macacão, acostumados a fazer o serviço sujo, gritando que a justiça dos homens falha, a divina não, e mais um monte de palavrões impróprios para a minha idade. Descarreguei a vontade de fugir numa espaçonave maltratando as cordas de aço do violão. A fome sumiu de novo. As câmeras de segurança me flagraram detonando as belezuras de quatro rodas. O homem da lei disse que alguém disse que para os pobres a lei é dura − para os ricos também, mas amolece. A tia repete esse poema feito um papagaio. No final das contas, não ficou de todo o ruim. Depois das aulas encaro a rua empoeirada de chão batido até a casa de correção para jovens infratores, a fim de receber medidas socioeducativas. Pelo menos nessa casa não tem cortinas nas janelas, e as meninas têm o nariz igual ao meu. A tia ficou fula da cara comigo, terá de acelerar a venda do apartamento para pagar o prejuízo, desistiu da ideia de comprar a cozinha modulada.

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Roselaine HahnPós-graduada em Gestão de Pessoas, Prêmio Miró de Literatura com o conto “Devoção”.

Finalista do concurso Oasys Cultural, selecionada na Revista LiteraLivre e na mostra Ecos do Wattpad. Participação nas antologias: Escritor Profissional da Editora Oito e Meio;

Escritores Malditos e Rir é o melhor remédio da Editora Illuminare; contos publicados no site Entrecontos e As Contistas. Administra o blogdosmilagres.blog.br e a fanpage

O Mundo de Rose Hahn sobre autoconhecimento.

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CLEONICE ALVES LOPES-FLOIS | Não Sou Mais

Não sou mais a mesmanem que queira não sou mais

sou a mistura das minhas sujeiçõesatitudes, escolhas, opções

sou um misto das oportunidades que perdiNão sou mais a que querem

sou a mescla das minhas omissõese das omissões ao que não vividas mentiras que me contaram

e das que tive que contar para me garantirNão sou mais aquela que eu eranem em sonho volto a ser assim

o vento soprou minhas velaseu já colhi invernos e primaveras

e me despetalei em outonos de jasmins

Não existe mais a que conheceramnão existe mais em mimo que há é o que sou agoraque poderá ter mudado em uma horamas que pode permanecer sem mudançapor tempo sem fimNão sou mais aquela com os pés no chãotenho a cabeça nas nuvense os pés firmes em alguma constelaçãovivo de fantasias e água de cheirosorrio com histórias de amore pão de queijo mineiroe estou sempre entretida com as nuvensformando imagens comestíveis de algodão

NÃO SOU MAIS

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por CLAUDIA JEVEAUX FIM

O sucesso dos MICROCONTOS

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Pulou em cima dela já buscando um beijo. Não correspondido, mordeu-lhe o lábio. Inevitavelmente, a boneca explodiu.

Queria engordar a todo custo. Após 15 brigadeiros no café da manhã, emagreceu 1 quilo!!! Só não perdeu mais, graças ao Imosec.

Foi maquiadora de cadáver. Largou a profissão quando começaram os agradecimentos.

Comprou uma fazenda de mil hectares de terra, e só usou 7 palmos.

Com 8 anos, queria ser maestro. Ganhou uma guitarra, um piano de cauda e um violino. Aos 18, orquestrou o maior assalto a bancos da cidade.

Construiu sua casa à beira do precipício. De lá, jogou cada um de seus filhos. Também de lá, realizou seu último voo.

tamanho e

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nao

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documento

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Claudia Jeveaux Fim

Capixaba de Vitória/ES, poetisa e consultora patrimonial. Participou do Projeto Palavra é

Arte-Poesia com 15 textos de sua autoria em 2014 e lançou o livro Alter Egos em 2015,

incluído na Biblioteca Nacional. Agregando os estilos de contos e microcontos, participa de

projetos e concursos via web.Admiradora dos escritos de Mário Quintana, utiliza o cotidiano como meio de inspiração.

Enquanto isto, na Nasa… – É da casa do Juno? – Juno, que Juno? O robô? – Este mesmo. Acho que ele está perdido, amigo. Fica procurando por Paris! – Mas ele está na Europa! – Exatamente! Aqui em Júpiter não tem ninguém com este nome!

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O MITO DAS RUAS DA ILHADE SANTO AMARO

por RUDOLPH PARREIRA

yson, desde que chegou (ainda adolescente) cuida da Padaria Glamour, do Restaurante Pérola do Atlântico e do Bar Bebemus. A rotina dos três estabele-cimentos mudou completamente depois que ele fixou moradia por ali. Tyson é um cachorro. De rua. E ele é como seu homônimo humano, o ex-pugilista: quando não está batendo em alguém, está mordendo. Ai de quem olhar torto, de frente, pra ele. Ninguém tem coragem. Ele intimida a gente, humilha quem baixa a guardaou a cabeça. – Ontem o Tyson mordeu a Judite na canela, custou a estancar o sangramento! – Miga, ela mereceu. Jogou um tomate pra ele! E ela também é tão desele-gante, com aquelas calças jeans. Tyson tem uma dieta rigorosa. Nada de carboidratos ou vegetais. Só carne vermelha. Se alguém joga uma fatia de pão francês, ele encara a pessoa com o queixo alto e ares de desprezo. Com o Tyson é na base da proteína, deve ser assim que ele mantém aquela postura altiva, aqueles pelos dourados sempre brilhando, aquela musculatura, peito pra fora, barriga pra dentro. Discute-se muito sobre a provável árvore genealógica dele: – Isso tem sangue azul, certeza – diz, convicto, Bell, um dos habituées do Bar Bebemus, na Mário Ribeiro –, essa cor de pelo a gente só vê em labrador, emgolden retriever. – É mesmo. E essa força, esse instinto batedor? Certeza de que tem pitt bull misturado ali. Mas o Tyson não era isso tudo. Na Ilha de Santo Amaro (que os locais teimam em chamar de Guarujá, daqui a pouco não insisto mais), ele apenas aumentava as estatísticas de vira-latas de rua. Às vezes fico meio injuriado, esse povo puxa demais o saco do Tyson. É gente que já foi mordida, certeza. – Já são quase 7 da noite, daqui a pouquinho passa o cabo Borges com o Átila – me avisa o Bell.

T

CRONICACRONICA

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– Será que hoje ele se redime? Tenho razões pra fazer este questionamento. Átila é um pastor belga magnífico, negro da ponta do focinho ao último pelo do rabo, treinado até pra descobrir droga em pneu de carro, mas pro azar dele, quando foi fazer a primeira ronda com o cabo Borges, novinho ainda, Tyson fez uma tocaia e deu-lhe uma tunda que ele nunca mais esqueceu. Quando o cabo ordenava “passear”, Átila se sentia num misto de euforia e terror. Não sabia se abanava o rabo ou murchava as orelhas. Preferia morder ladrão de moto armado a ter que cruzar com o Tyson na rua. Estava mesmo desmoralizado, Átila, pobre canídeo. Coitado. Toda primeira quarta-feira do mês, justo em dia de futebol na TV (o Bebemus sempre deixa as TVs ligadas em dia de jogo), mais gente e cachorros pra testemunhar nova humilhação, cabo Borges o puxava pra rua, numa tentativa tão inútil quanto constrangedora, de ajudar o animal a reaver sua autoestima. Até os gatos se equilibravam nas janelas e em cima de muros, pra acompanhar aquele acontecimento mensal e deixar o Átila ainda mais ansioso e depressivo. – Átila! Passear! Junto! Anda, Átila! Ô bicho frouxo, deixe de manha, Átila! Anda, junto! Vamos! Vê se não me mata de vergonha hoje, seu filho de uma rapariga! Era sempre um evento memorável, mesmo. Mas desta vez Átila não demorou muito a sair do canil, o rabo abanou, as orelhas de pé, detalhes que aumentaram consideravelmente os fluxos da bolsa de apostas gerenciada por Gislene, na esquina da calçada do Pérola do Atlântico – ela tinha um olheiro com WhatsApp de prontidão passando as coordenadas para prospecções na bolsa de apostas. – Átila hoje vem mais cedo! Tyson anda meio sumido! Vamos lá, quem vai de Átila? Quem vai de Tyson? – 15 mango no Tyson! Não vai ser hoje ainda! – Sei não, acabei de passar pelo posto policial, Átila já desmurchou um pouco o rabo, parece que hoje a casa cai. – Tyson é Tyson, meu caro. Os cachorros machos da redondeza se acotovelam na frente da imobiliária, do outro lado da rua. As fêmeas se acomodam, delicada e preocupadamente, embaixo das mesas da calçada da Padaria Glamour. De lá dá pra acompanhar em segurança qualquer movimento mais brusco e elas sabem que o Tyson não gosta que elas fiquem de rabo solto quando o Átila, aquele galã, vai passar por ali. Lá vem cabo Borges com Átila, pela Mário Ribeiro. Já atravessaram a Rio de janeiro, estão a menos de 80 metros do Bebemus. Procuro por Tyson. Ninguém sabe dele. Será que amarelou? Tyson, com toda a sua fama, não passava de um engodo?

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Era mesmo, afinal, um cão de rua sem-vergonha, malandro e corrupto? Onde está o mito quando precisamos dele? As dúvidas não permaneceram por muito tempo. Quando o cabo e Átila estavam a 10 metros da sorveteria, sorrateiro e rápido como um raio, Tyson deu um bote certeiro e mordeu a canela esquerda de Átila. Até hoje não se tem notícia de onde ele saiu. O pobre pastor ganiu como um filhote e bateu em retirada, sob protestos ruidosos de Borges e apupos acalorados da plateia, que lotava as duas calçadas da rua. Tyson ainda fez que ia correr atrás de Átila, pra acabar de vez com a moral do cão policial. Depois voltou-se pra trás e seguiu, num trote arrogante, rumo às cachorras da calçada da Glamour. Que cachorro. Que cachorro.

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Rudolph ParreiraRedator e roteirista publicitário mineiro de Uberlândia, hoje com 47 anos - bem vividos em

vários cantos do Brasil e algumas partes do mundo, não muito distantes. Recentemente, decidi começar a escrever crônicas, baseadas, de forma bem-humorada (sempre que possível), no

cotidiano de Guarujá-SP (onde estou morando atualmente), que chamo carinhosamente de Ilha de Santo Amaro. Estórias sobre relacionamentos, pesca, bebida, cigarro, cultura, sexo, esportes,

enfim, essa miscelânea que a gente vive todo dia, então andei me achando meio escritor (pela rotina que minha profissão me exigiu) e me arrisquei a redigir umas linhas.

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Te procureiNos variados olhares

Nas tempestades diáriasE nada achei

Te busqueiComo alguém que perde algoComo um sedento no deserto

E não te avistei

Te perdiSem te encontrar

Sem ver para ondeE não percebi

Te seguiE não foi o suficienteMas foi inconscienteE não compreendi

Te perseguiCom a fúria do maresCom a esperança dos desesperadosE te achei

Te encontreiEra pra ser contigoEra pra ser vocêMe entreguei.

A BUSCA

PRISCILA MANCUSSI | A Busca

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Pinga a gota!Da caneta ao papel,

Daqui ao mais distante povoado!Pinga a gota!

Que enaltece o céu,E me torna eternamente enraizado!

Pinga a gota!Que me retira o fel,

Molhando meu corpo enferrujado!Pinga a gota!

Mostrando ao alambique o gosto do mel,Abrindo meus horizontes deste universo tão fechado!

Pinga a gota!Fermentada lentamente,

Inspirando-me em palavras verdadeiras!Pinga a gota!

Absorvida pelo meu corpo latente,Sintetizada por enzimas certeiras!

Pinga a gota!Que de líquido se transforma em semente,

Metamorfoseando-a mesmo que não queira!Pinga a gota!

Que alimenta uma míope mente,Que passará a enxergar de outra maneira!

Pinga a gota!E deixe que continue pingando!

RICARDO LACAVA | Estalactite

ESTALACTITE40 ASPAS DUPLAS | dezembro 2017

Imagem: Icicles_on_my_roof.jpg em wikimedia.org. Autor: Henryk Zychowski

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colaboradoresdesta edição

Cleonice Alves Lopes-FloisProfessora e mestranda em Letras pela UNIOESTE/PR. Autora de duas coletâneas de poemas com o coletivo Clube da

Poesia. Mantém as páginas: https://www.facebook.com/muitezasversoeprosa/; http://cleoemversoeprosa.blogspot.com.br/ e https://medium.com/@cleonicelopesflois com publicações próprias.

Poetas que colaboraram:

Priscila MancussiEscreve poemas desde 2003. Em 2014, teve sua primeira publicação, através do Concurso Nacional de novos poetas

Sarau Brasil 2014 com o poema “Súbito”. De lá para cá, participou de várias antologias. Em 2015, criou um grupo com jovens entre 14 e 18 anos, onde orientava-os referentes suas produções artísticas como poesia, música e contos.

Danielle Vilas BôasNascida em Poços de Caldas, sul de Minas Gerais, no ano de 1984. Casada, ocupa a função de auxiliar administrativo. Descobriu ainda na escola o gosto pela leitura e pela escrita, mas veio a dedicar-se à poesia recentemente, em meados de 2016, quando passou a integrar um grupo artístico. Iniciou sua participação em diversos concursos literários em 2017. Compõe o trio de escritores do site Literatura da Gente ( [email protected] ), e participa de eventos artísticos com a proposta de levar, através da poesia, mensagens de ânimo e reflexões.

Ricardo LacavaMédico veterinário graduado pela Universidade Estadual Paulista, mestrado pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutorado pela Universidade Estadual Paulista e Harper Adams University (Reino Unido). Servidor público federal do Ministério da Agricultura, membro da International Society of Applied Ethology. Mais de vinte participações em antologias. Vencedor do XIV Prêmio Literário Livraria Asabeça 2015 com a obra “O Canto do Urutau (A Lenda do Mãe-da-lua)”, publicada na 24°Bienal Internacional do Livro de São Paulo em 2016.

Rodrigo Menezes(Brasília/DF, 26/08/1989) iniciou-se na poesia durante a adolescência, é psicólogo mestrando em Psicobiologia e reside

em Natal/RN desde os dois anos de idade. Foi vencedor do “Concurso Novos Poetas – Prêmio Sarau Brasil 2013”, promovido pela Editora Vivara. Desde então, acumula várias premiações em diversos concursos literários. Publicou de

forma independente os livros Catarses & Levezas (2014) e Mortalha das Horas (2015), ambos pelo Clube de Autores, além de uma série de sete e-books. Esporadicamente é colaborador em periódicos culturais e antologias literárias.

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aspas duplas‘‘arte e educação, educação e arte