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ASPECTOS EDUCATIVOS DO ESTUDO DA FILOSOFIA DOS DOZE PASSOS -
UM OLHAR SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DE COORDENADORES DOS GRUPOS
DE ALCÓOLICOS ANÔNIMOS – AA DO BRASIL E DE PORTUGAL
Joana Angélica da Costa
Dissertação de Mestrado em Ciências da Educação
Março, 2016
Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de
Mestre em Ciências da Educação, realizada sob a orientação científica da
Profª. Doutora Maria do Carmo Vieira da Silva
DEDICATÓRIA
Aos grupos de Alcoólicos Anônimos, essa valiosa irmandade que com 81 anos de
existência, espalhados em mais de 170 países, tem salvado mais de dois milhões de
alcoolatras em todo o mundo.
AGRADECIMENTOS
Um trabalho de investigação como este, onde há um percurso a se trilhar,
descobrimos rapidamente que apesar de ele se construir a partir de nós, esses nós, carregam
muitos. Não há como agradecer a esses muitos, porque eles estão espalhados tantos no Brasil
como em Portugal. No entanto pediria a esses muitos, a permissão para aqui fazer alguns
poucos e especiais agradecimentos:
Agradecer ao mestre da simplicidade, o médico, psiquiatra Luis Teixeira Neto,
responsável pela instituição Vila Serena no Ceará - Nordeste do Brasil, que dá suporte aos
dependetentes químicos. O ser humano que mais me ensinou sobre o cuidado, sobre o afeto,
a coragem, a força do trabalho com humildade e simplicidade e que tanto contribuiu para
que esta investigação aqui chegasse.
A Doutora Maria do Carmo Vieira da Silva, minha professora, minha mestra, minha
orientadora. Seu exemplo diário de coerência e beleza na prática docente, bem como seu
encorajamento, seriedade e comprometimento, me animam a alma e me faz ter esperança.
Agradecer a valiosa contribuição prática do Dr. Hyérides Macedo, para que eu
pudesse estar aqui em Lisboa e realizar o referido trabalho.
Meu agradecimento a AAFEC - Associação de Aposentados Fazendários do Estado
do Ceará, instituição onde pude desenvolver vários projetos de arte e que, de forma
significativa, contribui para que eu pudesse realizar esse trabalho investigativo.
Meu muito obrigada.
ASPECTOS EDUCATIVOS DO ESTUDO DA FILOSOFIA DOS DOZE PASSOS -
UM OLHAR SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DE COORDENADORES DOS GRUPOS
DE ALCÓOLICOS ANÔNIMOS – AA DO BRASIL E DE PORTUGAL
RESUMO
O trabalho investigativo que se apresenta lança o olhar para os aspectos educativos do
estudo em grupo da filosofia dos Doze Passos, nas salas de Alcóolicos Anônimos - AA, na
perspectiva dos coordenadores dos referidos grupos no Brasil e em Portugal. A fim de trazer
conhecimento sobre as questões referentes a dependência química, em especial o
alcoolismo, trouxemos a lume a sua problemática, bem como as estratégias de ajuda
desenvolvidas pelos grupos do AA, sob o roteiro de estudo do programa dos Doze Passos,
elaborado pela própria irmandade, assim como as dinâmicas e os processos educativos
aplicados nos referidos grupos. Nos debruçamos, em seguida, nas estratégias de educação
em saúde, o que nos trouxe a atenção para a educação do sujeito. Articulamos com quatro
teóricos que nos ofereceram subsídios valiosos para a referida prática, como Feuerstein
(1994), Dewey (1959), Freire (1996) e Makarenko (1975). Em seguida empreendemos um
estudo empírico entrevistando coordenadores dos grupos de AA no Brasil e em Portugal, e
fizemos o levantamento das impressões dos mesmos quanto aos aspectos educativos
existentes nas dinâmicas das salas de AA. Os resultados desse estudo apontaram não só para
o valor do conteúdo em si mas, especialmente, para o modo de os trabalhar, lançando um
olhar atento aos sujeitos do processo. Questões referentes ao valor das narrativas em sala, o
não protagonismo dos que conduzem o grupo de estudo, a auto-gestão e a autonomia
ficaram patentes, trazendo uma reflexão valiosa, a ser feita por todos aqueles que transitam
em cenários educativos diversos.
Palavras chaves: Grupos de Alcóolicos Anônimos, Doze Passos e Educação do Sujeito
EDUCATIONAL ASPECTS OF THE STUDY OF PHILOSOPHY OF THE TWELVE
STEPS - A LOOK ON THE ENGINEERS OF EXPERIENCES OF GROUPS
ALCOHOLICS ANONYMOUS - AA BRAZIL AND PORTUGAL
ABSTRACT
The investigative work that presents itself launches look at the educational aspects of the
study in the philosophy of the group of the Twelve Steps, in the rooms of Alcoholics
Anonymous - AA in view of the groups coordinators in Brazil and Portugal. In order to
bring knowledge about the issues of substance abuse, particularly alcoholism, brought to
light their problems as well as help strategies developed by AA groups in the study guide of
the Twelve Step program, prepared by own brotherhood, as well as the dynamics and
educational processes applied in these groups. We worked through and then in health
education strategies, which brought our attention to the education of the subject. We
articulated with four theoretical who offer us valuable information to that practice, as
Feuerstein (1994), Dewey (1959), Freire (1996) and Makarenko (1975). Then we undertake
an empirical study interviewing coordinators of AA groups in Brazil and Portugal and do the
survey of impressions of the coordinators as to the educational aspects existing in the
dynamics of AA rooms. The results of this study show not only to the value of content, but
especially for the way of working them, casting a closer look at the subject of the process.
Issues relating to value of room in narratives, lack of leadership of conducting the study
group, self-management and autonomy were patents, bringing a valuable reflection, to be
made by all those who move in different educational settings.
Key words: Alcoholics Anonymous groups, Twelve Steps and Education Subject
ÍNDICE
INTRODUÇÃO.....................................................................................................................01
CAPÍTULO 1- DEPENDÊNCIA QUÍMICA........................................................................07
1.1- A problemática da dependência química e os grupos de Alcóolicos Anônimos........07
1.2- Os Doze Passos nos grupos de Alcoólicos Anônimos - AA......................................12
1.3- Roteiro e processo pedagógico aplicado a cada um dos Doze Passos........................17
1.4- Dinâmicas e processos educativos nas salas de Alcóolicos Anônimos- AA..............24
CAPÍTULO 2 - EDUCAÇÃO DO SUJEITO........................................................................35
2.1- Educação em Saúde....................................................................................................35
2.2- Teóricos inspiradores da prática educativa nas salas de Alcóolicos Anônimos-AA..37
2.3- Educação mediada na perspectiva de Reuven Feuerstein...........................................44
2.4- Democracia e Liberdade de Jonh Dewey na prática do estudo dos Doze Passos.......49
2.5- Paulo Freire - A autonomia ao serviço da liberdade de escolha, na prática
pedagógica..................................................................................................................55
2.6- Anton Makarenko: o coletivo como pedra fundamental............................................58
2.7- Educação do Sujeito e Formação Humana.................................................................60
SÍNTESE GERAL..................................................................................................................64
CAPÍTULO 3 - ESTUDO EMPÍRICO..................................................................................65
3.1- Preâmbulo........................................................................................................................65
3.2- Metodologia da pesquisa.................................................................................................65
3.3 - Participantes do estudo...................................................................................................66
3.3.1- Informantes chave........................................................................................................67
3.3.2- Coordenadores de grupo de estudo nas salas de Alcóolicos Anônimos- AA..............70
3.4- Considerações sobre o levantamento dos dados das entrevistas.....................................70
3.5 - Análise e discussão dos dados........................................................................................73
SÍNTESE GERAL..................................................................................................................87
CAPÍTULO 4 – CONCLUSÃO E RECOMENDAÇÕES.....................................................88
BIBLIOGRAFIA....................................................................................................................92
ANEXOS
A- Guião de entrevistas
B- Transcrição das entrevistas dos portugueses
C- Transcrição das entrevistas dos brasileiros
D- Tabela de dados dos entrevistados portugueses
E- Tabela de dados dos entrevistados brasileiros
F- Símbolo dos Alcóolicos Anônimos- AA
G- Fotos de publicações dos Alcóolicos Anônimos – AA
H- Termo de autorização para citação em trabalho científico
Glossário de Siglas
AA - Alcóolicos Anônimos
NA- Narcóticos Anônimos
OMS- Organização Mundial da Saúde
AABR- Alcóolicos Anônimos do Brasil
EAM- Experiência de Aprendizagem Mediada
JUNAAB- Junta de Serviços Gerais de AA do Brasil
CID- Código Internacional de Doenças
PORDATA- Base de Dados Portugal Contemporâneo
IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
1
INTRODUÇÃO
A Dependência Química assim como o diabetes e a hipertensão são consideradas
pela Organização Mundial da Saúde - OMS como uma doença crônica, não havendo ainda
cura e sim controle, sendo importante para isso que o paciente aprenda a conviver com ela
e a controlá-la através de determinadas atitudes.
O trabalho a ser feito com esses pacientes está intimamente relacionado com a
educação, já que geralmente o controle só de forma medicamentosa tem se mostrado
insuficiente. Nesses casos se faz necessário instigar e promover uma mudança de estilo
de vida e isso é alcançado através de um processo educativo. O que se faz nesse
momento é educação em saúde. Por esse motivo o trabalho proposto procura se
debruçar sobre a referida questão e, em especial, a questão da Dependência Química e o
seu controle através do estudo em grupo da filosofia dos Doze Passos, sugerida pela
irmandade dos Alcóolicos Anônimos1 - AA. A referida i r m and ad e , co m o se
d e s i gn am , são um exemplo de controle através da educação em saúde, ainda não
superada por nenhuma outra intervenção, haja visto prêmios e reconhecimentos
recebidos.
Diante desse quadro é imprescindível investigar a fim de identificar quais os
aspectos educativos e características pedagógicas que são usadas na prática do referido
estudo dos Doze Passos, que faz com que s tenham resultados tão exitosos e por tanto
tempo e como podemos a partir da referida investigação sugerir, aplicabilidade em outros
cenários similares, em especial em salas de aulas.
Com a finalidade de compreender como este processo de aprendizagem se faz,
investigámos os atores que estão intimamente ligados à referida prática, que são os
coordenadores de grupo nas salas de Alcóolicos Anônimos - AA, onde o estudo se faz.
Investigámos, igualmente, os aspectos educativos, significados e importância atribuídos
por esses coordenadores, nas suas experiências e práticas diárias nas salas de AA no
Brasil e em Portugal.
1 O referido trabalho está escrito na língua portuguesa praticada no Brasil.
2
Centrámos a atenção em alguns valiosos educadores e suas perspectivas
pedagógicas que, nós entendemos, oferecem subsídios teóricos para a referida prática,
independente de terem desenvolvido as suas teorias antes ou depois do programa dos
Doze Passo se apresentar como é. A educação em saúde a serviço da educação do sujeito.
Por fim procurámos apresentar as questões, baseadas na referida pesquisa que possam vir
a contribuir com e outros cenários educativos.
Como Pedagoga e Pós-graduada em Arte-educação e com formação em
Arteterapia assumimos, em 2011, o desafio a convite do amigo Luís Teixeira Neto,
renomado médico do Estado do Ceará, no nordeste do Brasil, com experiência na área de
suporte ao dependente químico e sua família, para que nós viéssemos a implantar um grupo
de arteterapia na comunidade terapêutica Vila Serena, do qual ele era gestor. A referida
comunidade se dedica a dar suporte e acompanhamento ao tratamento dos dependentes
químicos que lá estão em sistema de internação.
Foi em contato com a realidade dos dependentes químicos em tratamento que
iniciamos o trabalho de realizar dois encontros por semana, onde a arteeducação e a
arteterapia cumpririam um papel fundamental no tratamento multidisciplinar no
adoecimento de dependência química. Foram três anos de intenso e valioso trabalho, onde
pudemos então tomar conhecimento do Modelo Minnesota2, bem como do estudo dos Doze
Passos e, com ele como norteador, pudemos desenvolver todo o nosso trabalho durante esse
tempo.
O roteiro para desenvolver o trabalho foi seguido através do estudo sistematizado
dos Doze Passos e foi o debruçar no referido estudo, que nos ampliou e possibilitou a
compreensão sobre a educação em saúde e nos motivou a empreender o estudo que agora se
apresenta. Como pode um modelo de estudo sistematizado, seguindo um roteiro de Doze
Passos, dar conta de forma tão eficaz e por tanto tempo do adoecimento de dependência
química em detrimento de tantos anos de investimento medicamentoso e psicoterápico? O
2 Modelo desenvolvido no Estado do Minnesota, onde integram membros do AA, em recuperação, que
atuavam como conselheiros combinando a psicoterapia humanista, a psicoterapia comportamental e a psicoterapia baseada na confrontação da realidade. O primeiro modelo de tratamento da dependência química a assumir uma base estruturada nos preceitos dos Doze Passos e a fazer uso, paralelamente, de uma abordagem e equipe multidisciplinar, onde pacientes e profissionais colaboram conjuntamente na definição do seu tratamento.
3
que esse modelo educativo tinha de tão valioso para suprir finalmente a grande lacuna que
fazia com que se enchessem as alas psiquiátricas dos hospitais?
Durante o processo de construção do referido trabalho na comunidade terapêutica,
foi possível observar o aspecto educativo de forma evidente, pois a condução do trabalho
em grupo, lançava à atenção para o modo de perceber a vida. Ali se apresentava uma
educação do sujeito na sua dimensão moral, onde a atenção estava voltada para sua
dimensão humana de forma holística. Mais do que o estudo dos Doze Passos, logo ficou
patente que o modo de o apresentar e aplicá-lo estava também extremamente alinhado com
a sua textualidade. Seria então de grande valia, investigar a forma de conduzir e estudar os
referidos passos.
A educação se apresentava nesse contexto como uma questão social e não apenas
de natureza pedagógica, ficando patente a perspectiva socioeducativa durante o processo. A
aprendizagem advinda do estudo dos Doze Passos é muito mais moral que cognitiva e se
estende desde a quem funciona no primeiro momento como estudantes do roteiro, aos que
exercem o papel de coordenar o grupo de estudo, trabalhando mesmo que de forma
empírica com mediação.
A partir das experiências na comunidade terapêutica Vila Serena, conforme
explicitado acima, cremos ficar patente o valor da educação no processo de controle da
doença da dependência química, utilizando como norteador o estudo sistemático e em
grupo dos Doze Passos. Acreditamos, portanto, ser de grande relevância, a investigação
do referido tema no que se refere aos seus aspectos educativos, a fim de descobrir que
especificidades podemos aplicar e ampliar em outros cenários.
Diante da problemática da dependência química e sua dimensão social, bem como
seus desdobramentos na área da saúde física, mental e emocional em grande escala e sem
considerável controle por parte das políticas públicas em saúde, surgem inúmeras tentativas
de intervenção sem êxito. A busca por saídas que viessem a ter significativos resultados,
fizeram com que dois alcóolatras se reunissem em busca de um suporte para o adoecimento
que enfrentavam.
4
Em 1935 foi criado o primeiro grupo autônimo nos Estados Unidos América,
com a proposta de criar uma comunidade de entreajuda para apoiar os que sofrem com o
alcoolismo. Nascia os Alcoólicos Anônimos - AA, que se difundiram por todo o globo,
numa clara indicação de que a dimensão puramente medicamentosa não estava dando
conta da problemática que se apresentava. Tornava-se necessário uma abordagem
multidisciplinar nesses casos. A educação em saúde ali se apresentava como uma
dimensão que fez a real diferença, tendo em vista os 81 anos de trabalho respeitado que
os grupos de AA têm desenvolvidos em todo o mundo até aos dias de hoje.
No que se refere aos grupos de Alcoólicos Anônimos, o mesmo é constituído
por mais de 90 mil grupos locais, em 175 países e com o número estimado de mais de
dois milhões de membros (Mota, 2006). Cada grupo realiza reuniões regulares, nas quais
os membros relatam entre si as suas experiências, tendo como norteador o Modelo
Minnesota sob a f i lo so f i a dos Doze Passos. A ideia da reunião se funda na
necessidade e importância de estar entre os “iguais”, os únicos capazes de compreender
verdadeiramente a problemática da dependência do álcool é um alcoólatra. O que
acontece nesse momento é o trabalho d e educação em saúde nas relações dentro da
irmandade do AA e com a comunidade fora dela.
O trabalho proposto procura se debruçar sobre a referida questão e em especial,
questão da dependência química e o seu controle através do estudo sistematizado dos
Doze Passos, aplicados nos grupos de autoajuda sugerida pelo AA. O referido estudo tem
se mostrado como um valioso exemplo de controle través da educação em saúde, ainda
não superada por nenhuma outra intervenção.
A dimensão e o valor dos referidos grupos têm um alcance tão grande que, na
literatura de AA (2004), é referenciado o reconhecimento dado pelo Prêmio Lasker3 em
1951 aos Alcoólicos Anônimos, em um claro reconhecimento da contribuição da
irmandade para as políticas públicas em saúde. Uma parte do texto diz o seguinte:
3 O prêmio Lasker (em inglês: Lasker Award) é concedido deste 1946 a pessoas que realizam contribuições
significativas à medicina, ou que realizaram serviços públicos notórios em medicina.É concedido pela Lasker Foundation, fundada por Albert Lasker e sua esposa Mary Woodward Lasker. Os prêmios são denominados “Prêmios Nobel da América”. Setenta e seis premiados com o Lanker Award receberam também o Prêmio Nobel.
5
A Associação Americana de Saúde pública atribui aos
Alcoólicos Anónimos, a título coletivo, o Prêmio Lasker para
1951, em reconhecimento da sua abordagem única e
altamente eficaz desse problema secular de saúde pública e
social, que é o alcoolismo...Ao evidenciar que o alcoolismo é
uma doença, o estigma social associado a esta condição está
a desaparecer...Talvez um dia os historiadores venham a
reconhecer que os Alcoólicos Anónimos representaram uma
obra pioneira no seu campo, ao criarem um novo instrumento
de ação social, uma nova terapia baseada na afinidade do
sofrimento comum, e que encerra um enorme potencial para
a solução de milhares de outros padecimentos da humanidade
(p.328).
Diante desse quadro é imprescindível investigar que estratégias e quais os
aspectos pedagógicos existentes no referido estudo que fazem com que eles tenham
resultados tão exitosos. De igual importância, lançar luz sobre as particularidades
pedagógicas a partir da perspectiva dos coordenadores de grupo de AA, quando da
práxis do estudo em grupo da filosofia dos Doze Passos, sugerida pela irmandade dos
Alcoólicos Anônimos - AA, para o controle da doença do alcoolismo. Para tanto,
constituem-se assim, objetivos deste trabalho:
- Identificar os aspectos educativos e particularidades do estudo sistematizado da
filosofia dos Doze Passos, que fazem com que o processo de construção do conhecimento
aplicado pelo referido estudo se mantenha por tanto tempo e de forma tão eficaz na
perspectiva dos coordenadores das salas de estudo do AA.
- Recolher informações e dados que se têm apresentado como mola propulsora para as
experiências ex itosas sobre o trabalho dos grupos de Alcóolicos Anônimos - AA,
através do depoimento dos coordenadores das reuniões de grupo dos Alcoólicos
Anônimos, no Brasil e em Portugal.
- Identificar que teóricos da educação oferecem suporte teórico a prática do estudo dos
Doze Passos, mesmo que de forma empírica, a fim de poder apontar os aspectos relevantes
e sua aplicabilidade em outros cenários pedagógicos.
Esta investigação é uma pesquisa qualitativa que utilizou como método para a
coleta de dados a entrevista. Foram entrevistados um total de dez coordenadores do
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estudo da filosofia dos Doze Passos nas salas de Alcoólicos Anônimos, sendo cinco do
Brasil e cinco de Portugal.
A referida entrevista foi dividia em três blocos de perguntas, onde a atenção
esteve voltada para o perfil dos coordenadores, como cada um sente, entende e percebe a
sua função, bem como que importância e especificidades que os mesmos atribuem ao
estudo em grupo dos Doze Passos.
O trabalho aqui apresentado está estruturado em quatro capítulos. O primeiro diz
respeito a dependência química, sua problemática, os grupos de Alcoólicos Anônimos, a
prática dos Doze Passos nos grupos de Alcoólicos Anônimos, um roteiro detalhado de
cada um dos Doze Passos e sua relação com as práticas pedagógicas vigentes e os
teóricos da educação que o subsidiam e, finalmente, a dinâmica e os processos educativos
nas salas de Alcoólicos Anônimos.
O segundo capítulo se debruça sobre a educação do sujeito trazendo a atenção
para a educação em saúde, teóricos inspiradores a prática educativa nas salas de
Alcoólicos Anônimos, com atenção voltada para quatro grandes teóricos que entendemos
estão de mãos dadas com a dinâmica educativa que acontece nos grupos anônimos como:
a educação mediada de Feuerstein, a democracia e a liberdade preconizada por Dewey, a
autonomia e a criticidade ao serviço da liberdade de escolha de Freire e Makarenko com
a educação do coletivo e a assembleia de turma. Por fim, ainda nesse capítulo, nos
debruçamos sobre a educação do sujeito e a formação humana.
No terceiro capítulo apresentamos o nosso estudo empírico, onde está descrito o
processo de investigação da pesquisa com as entrevistas, a metodologia usada, os
participantes do estudo, considerações sobre o levantamento dos dados e de cada
entrevista, bem como a análise e discussão dos dados. No quarto e último capítulo
trazemos as nossas conclusões e recomendações acerca do tema.
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CAPÍTULO 1- DEPENDÊNCIA QUÍMICA
No referido capítulo, nos debruçaremos sobre a problemática da dependência
química, a questão do adoecimento e as diversas intervenções a respeito. A questão dos
grupos de alcóolicos anônimos, juntamente com a programação dos Doze Passos e seu
estudo em grupo. Nos debruçaremos sobre cada um dos Doze Passos em uma análise
detalhada da forma de condução pedagógica e os teóricos que entendemos oferecem
suporte a referida prática. Por fim apresentaremos como funciona a dinâmica e o processo
educativo dentro das salas de AA, juntamente com algumas contribuições de autores que se
debruçaram sobre o tema e que consideramos de valia trazer à tona.
1.1- A problemática da Dependência Química e os Grupos de Alcoólicos
Anônimos
Em 1966, conforme relatório da Organização Mundial da Saúde – OMS, no
Código Internacional de Doenças- CID 10, a dependência química é reconhecida como
uma doença social grave, sendo a terceira doença que mais mata no mundo, é progressiva
e fatal, não há cura e sim controle, trazendo danos não só a quem é portador da
doença, mas também aos que estão vinculados ao dependente ou mesmo ao seu redor.
Semelhante a declaração da OMS, no folheto informativo publicado pelo AA, o
alcoolismo é definido como uma doença que se manifesta na maneira incontrolada de
beber da vítima. É uma doença progressiva que leva a loucura e a morte prematura. É
incurável e mesmo depois de muitos anos sem beber, o indivíduo não poderá voltar a
beber normalmente, pois logo estará bebendo mais do que nunca. O alcoolismo embora
não tenha cura, pode ser detido a sua marcha e para que não volte a beber é necessária
uma mudança na personalidade do doente.
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O adoecimento do alcoolismo passa por três fases bem distintas e progressivas
que diz respeito:
- Fase inicial (10 a 15 anos): começa bebendo socialmente, mais tarde habitualmente e
depois descontroladamente. Faz promessas para si e para os outros que vai se controlar.
Acredita que bebe só quando quer e que para quando quiser. Experimenta os primeiros
“apagamentos”, momentos de amnésia e não lembra o que fez na noite anterior.
- Fase intermediária (dura aproximadamente 5 anos): mente toda hora para esconder o
fato e passa a beber onde não o conhecem, perde a fome e come irregularmente. Anda
sempre nervoso, agitado e deprimido. Sempre culpa os outros por seu estado. Começa
então a parar de beber, mas acaba sempre voltando e com mais força.
- Fase final (que termina em loucura, morte ou no desejo sincero de se recuperar): sua
vida se torna intolerável com a bebida e impossível sem ela. Começam as internações em
hospitais e sanatórios. Ao sair desintoxicado, entra no primeiro bar para tomar uma só e
sai de lá bêbado. Perde o emprego, passa a depender da família, torna-se rebelde e
agressivo, perdendo totalmente o sentido de responsabilidade
O alcoólatra é uma pessoa cuja maneira de beber causa um contínuo e crescente
conflito em qualquer aspecto de sua vida. Quando o depende químico toma conhecimento
e consciência de que a sua problemática diz respeito a uma doença e não um desvio de
caráter, a problemática toma outros contornos, bem como a forma de tratar a mesma.
Parsons (1979) salienta:
Ao doente não podem ser imputadas culpas relativamente
à sua condição. Isto é, não é uma condição que dependa da
sua própria vontade. Contudo, o doente deve ser
responsabilizado pelo empenho em recuperar do seu
problema. É sua obrigação procurar e aceitar ajuda para
recuperar seu problema (pp.140-141).
Portanto, como já foi dito anteriormente, o diabetes e a hipertensão, a
dependência química foram consideradas pela Organização Mundial da Saúde - OMS
como uma doença crônica, não havendo ainda cura e sim controle, por isso sendo
importante que o paciente aprenda a conviver com ela e a controlá-la através de
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determinadas atitudes. O trabalho a ser feito com esses pacientes está intimamente
relacionado com a educação, já que geralmente o controle só de forma medicamentosa é
insuficiente. Nesses casos se faz necessário instigar e promover uma mudança de estilo
de vida. Isso é alcançado através de um processo educativo. O que se faz nesse
momento é educação em saúde.
Em 1935, a partir das experiências empíricas de dois alcoólicos desenganados
pelos médicos, Bill Wilson (Willian Griffith Wilson) e Dr. Bob Smith (Dr. Robert Smith),
surge o primeiro grupo autônimo nos Estados Unidos América, com a proposta de criar
uma comunidade de entreajuda para apoiar os que sofrem com o alcoolismo. Nascia os
Alcóolicos Anônimos - AA, que se difundiram por todo o globo, onde o principal
objetivo é a recuperação do membro que dela faz parte. Uma clara indicação que a
dimensão puramente medicamentosa e/ou psicoterápica, não estava dando conta da
problemática que se apresentava, com um grande número de alcoólicos que enchiam as
alas psiquiátricas dos hospitais e manicômios. Fazia-se necessário uma abordagem
multidisciplinar nesses casos.
A proposta dentro da referida abordagem multidisciplinar traz a atenção para a
educação em saúde e se apresenta como uma dimensão, que fez a real diferença, haja
vista atualmente já contar com 81 anos de trabalho respeitado que os grupos de AA, tem
desenvolvidos em todo o mundo.
A compulsão e o vício tornaram-se a “revolução cognitiva” da modernidade, uma
alternativa ao vazio interior característico do homem moderno. Daí surge inúmeras
associações humanitárias de autoajuda como fala Oliveira (2001, p.138, apud Mota,
2004). O autor destaca ainda que concomitante à problemática das drogas surge como
resposta o vazio existencial e em s e g u i d a , as comunidades de cooperação como os
grupos de autoajuda.
No que se refere aos grupos de Alcóolicos Anônimos, o mesmo é constituído
por mais de 90 mil grupos locais em 175 países. (Mota, 2006). Cada grupo realiza reuniões
regulares, nas quais os membros relatam entre si suas experiências, tendo como norteador a
filosofia e o ro t e i ro dos Doze P assos, sugeridos para o trabalho d e educação para a
saúde nas relações dentro da Irmandade e com a comunidade de fora dela. Nos grupos não
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existem líderes, a participação é voluntária, não há regras formais e obrigações e sim
sugestões, não há pagamento de nenhuma quantia ou qualquer formulário de inscrição. No
preâmbulo da publicação de Alcoólicos Anônimos (2004), a associação é assim definida:
Alcoólicos Anônimos é uma comunidade de homens e
mulheres que partilham entre si a sua experiência, força e
esperança para resolverem o seu problema comum e
ajudarem outros a se recuperarem do alcoolismo. O Único
requisito para ser membro é o desejo de parar de beber.
Para ser membro de AA não é necessário pagar taxas de
admissão nem quotas. Somos autossuficientes pelas nossas
próprias contribuições. AA não está ligado a nenhuma
seita, religião, instituição política ou organização: não se
envolve em qualquer controvérsia, não subscreve nem
combate qualquer causa. O nosso propósito primordial é
mantermo-nos sóbrios e ajudar outros alcoólicos a alcançar
a sobriedade (p.4).
Importante destacar a questão do anonimato dentro da irmandade e como essa
ferramenta se torna valiosa para o processo de reconstrução humana. Quanto ao anonimato
destaca Frois (2009); “são eliminadas as distinções pessoais” (p.93), fator importante para
que as referidas distinções não interfiram no processo de aprendizagem. Nesse caso é
possível haver uma uniformização do discurso e das práticas. Não há ali distinção
econômica, intelectual, política etc. O adoecimento é democrático, a todos alcança sem
distinção, a dor (nas devidas proporções) é a mesma e o desejo de parar também.
Resende (2000) fala de uma problemática que, por sua vez, formulou um
esquema tríade que é composto por: droga - indivíduo - meio; e os mesmos devem ser
objeto de análise quanto a sua relação e à dependência química. Paixão (1995)
apresentou quatro modelos de estudo; o modelo Jurídico/Moral que diz respeito a: o
Médico; o Psicossocial; o Sociocultural e o Religioso. Destacamos aqui para o referido
projeto o modelo Sociocultural. No modelo Sociocultural a ênfase é dada no contexto e
no ambiente, elementos esses que são vistas também como razões dos desvios ou não do
processo de aprendizagem. Nesse modelo os grupos de AA desempenham o seu papel.
Na abordagem sociocultural, há a utilização de atividades grupais que visam
estabelecer um ambiente terapêutico (socioterapia), onde a ênfase recai sobre os
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processos de socialização e na manipulação deste, a exemplo das comunidades
terapêuticas e dos grupos de AA. Um fator importante diz respeito a quem conduz os
grupos de estudo, que deve ser sempre um dependente químico em recuperação, já que
não consideram existir um ex - dependente químico.
Na Inglaterra há variações desta técnica desenvolvida conforme destaca Jones
(1943), onde a equipe pode e deve ser dirigida apenas por dependentes químicos em
recuperação. O autor do referido artigo considera difícil fazer uma avaliação científica da
efetividade da metodologia dos Doze Passos, porém, diz não poder deixar de considerar a
sua relevância social, em um cenário onde os modelos terapêuticos têm oferecido
avanços modestos e resultados poucos encorajadores. Acredita o autor ser importante
que se façam das irmandades dos Alcóolicos Anônimos - AA, bem como dos Narcóticos
Anônimos - NA, objetos de pesquisas.
Mota (2004) fala sobre o cenário atual e a importância da ajuda mútua quando
cita o clássico estudo de Durkheim sobre suicídio no século 19. Ele adverte que as
grandes elevações das mortes voluntárias estão relacionadas com um estado de crise e
perturbação atual, cujo prolongamento pode ser perigoso. O autor também cita Giddens,
quando diz que a nossa segurança foi afetada em várias áreas ligadas à afetividade.
Segundo White (2004), em 2002 foi registrado cerca de 20 mil grupos atuando
em 100 países. Atualmente os norte-americanos procuram mais esses grupos que os
serviços psiquiátricos especializados, refere Samhsa (2003). Cerca da metade dos
indivíduos com problemas de alcoolismo nos Estados Unidos, buscam os Alcóolicos
Anônimos, antes de qualquer recurso terapêutico afirma Room (1998).
De acordo com Habermas (1989), os grupos de estudos dos Doze Passos,
baseiam- se na premissa que rejeitam hierarquia rígidas e objetivam um modelo de
agir orientado para o entendimento mútuo. Utilizando uma terapia leiga na qual a
experiência de vida ocupa o lugar central na recuperação de seus integrantes, tais grupos
então desafiam a perícia médica.
Mota (2003) compara os Alcóolicos Anônimos a um movimento de auto
identidade emprestado pelo conceito de Self-Identity de Giddens. Estima que cerca de 3
12
milhões de pessoas no mundo inteiro estejam se recuperando através do programa dos
Doze Passos em diferentes grupos. O autor destaca que nesses grupos há o
desenvolvimento da autonomia e um espaço discursivo, também destaca o perfil do
trabalho em grupo onde os membros dos Alcoólicos Anônimos - AA e também os
Narcóticos Anônimos - NA não “governam”, “servem”.
O estímulo dentro do processo educativo é de cooperação e não competição.
Existe a postura da crença na capacidade de cada um em se recuperar, e que o mesmo
não está sozinho no seu processo de aprendizagem. Existe uma relação mediada das
coisas, e uma conduta de consciência coletiva de grupo e o princípio da cooperação de
Peter Tropotkin4. A linguagem é direta e objetiva, sem imposições e sim com sugestões,
essa é a tônica do processo educativo.
Frois (2009) no que se refere ao início dos grupos de AA em Portugal: “A
associação de Alcoólicos Anônimos é a mais antiga das associações de Doze Passos
existente em Portugal, sendo o ano de 1972 a data da existência do primeiro grupo
existente em Lisboa” (p.42).
No Brasil, o Alcoólicos Anônimos Brasil – AABR5, em seu websites apresenta
registros documentado no livro de registros do grupo em que a data oficial de fundação
do primeiro grupo de AA, se deu no Rio de Janeiro em 05 de setembro de 1947.
Importante destacar que mesmo sendo o Brasil um país mais jovem que Portugal
o mesmo implantou o referido programa vinte e cinco anos antes que Portugal viesse a
implantar o seu.
1.2 - Os Doze Passos nos grupos de Alcoólicos Anônimos
Em 1939, percebendo o valor das práticas, a princípio de forma extremamente
empírica, desenvolvidas por eles, o Dr.Bill Wilson (Willian Griffith Wilson) e Dr. Bob
Smith (Dr. Robert Smith), ambos publicaram a práxis que o ajudaram a manter-se sóbrios
4 Geógrafo, escritor e ativista político russo, considerado pai do “educacionismo” do século dezoito.
Defendia que somente educando um povo intelectual e moralmente esse se emancipa. 5 AABR- Alcóolico Anônimo do Brasil- Grupo on-line de A A do Brasil.
13
por esses anos, eles, e a um pequeno grupo que contava com cerca de vinte deles. A
publicação trazia um roteiro de Doze Passos do qual acreditavam que qualquer pessoa
que o seguisse conseguiria o mesmo e embora a referida publicação tivesse sido iniciada
pelos referidos autores, a mesma trazia depoimentos e história de vida de vários
alcóolatras, de forma que se definiu como autoria do livro o grupo de AA.
O referido roteiro é considerado um programa de recuperação e reformulação de
conceitos de vida, conhecidos também como um grupo de princípios espirituais na sua
natureza, que se praticados como modo de vida podem contribuir por afastar a compulsão
pela bebida de forma a tornar o indivíduo íntegro, feliz e útil. Embora não haja um
controle formal ou regras quanto ao estudo e a práticas dos Doze Passos, há no discurso
do grupo de que, quem trabalha diariamente o programa6, é capaz de ter um novo modo
de vida tão almejada como destaca Frois (2006).
O estudo do roteiro dos Doze Passos é conhecido como um Abordagem
evolucionária e multidisciplinar de recuperação para os que sofrem com a dependência
química. O referido modelo traz também em seu bojo uma abordagem humanista com
intervenção psicológica e educativa. Tal abordagem surge com a finalidade de apresentar
uma saída para as ações puramente medicamentosas ou psicológicas que se mostravam
ineficientes no tratamento e suporte dos que sofrem, no primeiro momento com a doença
do alcoolismo.
Os Doze Passos é um programa para ajudar o dependente químico a mudar
comportamentos que estão na gênesis das questões humanas que causam desequilíbrio,
através do estudo sistematizado e em grupo, que podem acontecer nas reuniões de
Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos, Comunidades Terapêuticas etc. Os Doze
Passos são descritos e enumerados da seguinte forma:1. Admitimos que éramos impotentes
perante o álcool - que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas; 2. Viemos a
acreditar que um Poder Superior a nós mesmos poderia devolver-nos à sanidade; 3.
Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O
concebíamos;4. Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos; 5.
Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano, a natureza exata
6 Quando se referem ao programa, estão falando do roteiro dos Doze Passos e das Doze Tradições.
14
de nossas falhas; 6. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses
defeitos de caráter; 7. Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas
imperfeições; 8. Fizemos uma relação de todas as pessoas a quem tínhamos prejudicado e
nos dispusemos a reparar os danos a elas causados; 9. Fizemos reparações diretas dos danos
causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-
las ou a outrem;10. Continuamos fazendo o inventário pessoal e quando estávamos errados,
nós o admitíamos prontamente;11. Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar
nosso contato consciente com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o
conhecimento de Sua vontade em relação a nós, e forças para realizar essa vontade; 12.
Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes Passos, procuramos transmitir
esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades.
Os Doze Passos trazem em seu bojo um forte elemento espiritual não religioso,
onde a concepção um Deus se apresenta da forma como cada um O entende e vê. Essa
característica particular de não impor forma nenhuma de compreensão das coisas como a
questão da espiritualidade, deixa claro a postura respeitosa, livre e democrática que existe
nesses grupos. Valiosa ferramenta que contribui significativamente para que os membros
que lá frequentem, permaneçam com um sentimento de pertencimento e autonomia quanto
a forma de pensar frente aos assuntos tratados.
Os dependentes químicos são encorajados a praticar os Doze Passos e a frequentar
as reuniões. Importante perceber que os passos têm uma linguagem simples e acessíveis a
todos os níveis culturais, são numerados indicando um processo e não um momento de
cura, aborda princípios fundamentais, incluindo a espiritualidade. Importante salientar que
quando se referem a questão da espiritualidade, diz respeito a tudo aquilo que sentimos que
existe, mas não percebemos diretamente ou percebemos mais que entendemos. Religião
pode ou não expressar ou imprimir espiritualidade. Outro ponto valioso é que há grupos dos
Doze Passos no mundo todo, o mais recende dado publicado pela JUNAAB7 conta com
cerca de 97 mil grupos, espalhados em 150 países, podendo assim o dependente químico
onde estiver a obter ajuda.
7 JUNAAB- Junta de Serviços Gerais de AA do Brasil
15
Assim como os Doze Passos, os Alcóolicos Anônimos, criaram para suporte e
orientação das ações nos grupos as Doze Tradições, as mesmas norteiam a dinâmica e os
processos dos grupos. Aqui as referidas orientações não mais se destinam aos indivíduos,
como os Doze Passos e sim ao coletivo. As orientações abaixo especificadas têm como
objetivo manter a unidade e a uniformidade, trazer orientação quanto ao funcionamento e
constituição dos grupos. São eles: 1. Nosso bem-estar comum deve estar em primeiro lugar;
a reabilitação individual depende da unidade de A.A; 2. Somente uma autoridade preside,
em última análise, o nosso propósito comum - um Deus amantíssimo que Se manifesta em
nossa consciência coletiva. Nossos líderes são apenas servidores de confiança; não têm
poderes para governar; 3. Para ser membro de A.A., o único requisito é o desejo de parar de
beber; 4. Cada Grupo deve ser autônomo, salvo em assuntos que digam respeito a outros
grupos ou a A.A em seu conjunto; 5. Cada grupo é animado de um único propósito
primordial - o de transmitir sua mensagem ao alcoólico que ainda sofre; 6. Nenhum grupo
de A.A, deverá jamais sancionar, financiar ou emprestar o nome de A.A, a qualquer
sociedade parecida ou empreendimento alheio à Irmandade, a fim de que problemas de
dinheiro, propriedade e prestígio não nos afastem de nosso propósito primordial; 7. Todos
os grupos de A.A, deverão ser absolutamente autossuficientes, rejeitando quaisquer
doações de fora; 8. Alcoólicos Anônimos deverá manter-se sempre não profissional,
embora nossos centros de serviços possam contratar funcionários especializados; 9. A.A
jamais deverá organizar-se como tal; podemos, porém, criar juntas ou comitês de serviço
diretamente responsáveis perante aqueles a quem prestam serviços; 10. Alcoólicos
Anônimos não opinam sobre questões alheias à Irmandade; portanto, o nome de A.A,
jamais deverá aparecer em controvérsias públicas; 11. Nossas relações com o público
baseiam-se na atração em vez da promoção; cabe-nos sempre preservar o anonimato
pessoal na imprensa, no rádio e em filmes; 12. O anonimato é o alicerce espiritual das
nossas Tradições, lembrando-nos sempre da necessidade de colocar os princípios acima das
personalidades.
Como os próprios membros afirmam, os Doze Passos e as Doze Tradições são um
conjunto de linhas orientadoras tanto para cada membro individualmente, como para a
associação enquanto coletivo.
16
Frois (2009) cita que a dimensão e o alcance do programa dos Doze Passos e das
Doze Tradições, ultrapassaram as fronteiras dos grupos de Alcóolicos Anônimos e foram
responsáveis por diversos outros grupos de autoajuda. Nesses outros grupos, o que se vê
são pequenas variações adequadas a outras problemáticas que não a dependência do álcool
e por isso com nomenclaturas diferentes, se referindo a outras patologias emocionais e
sociais, no entanto sem alterar o cerne e a filosofia dos Doze Passos, como uma clara
amostragem do alcance das ramificações que deles se fizeram.
A autora ainda apresenta um quadro onde é possível conhecer vinte seis novos
grupos anônimos que fazem uso do roteiro doa Doze Passos, destacando que o mesmo não
encerra o número total de novos grupos anônimos, apresentando somente uma amostra do
que foi recolhida entres os anos de 2003 a 2007, mas sem dúvida uma valiosa indicação da
importância do programa dos Doze Passos (p.37).
Frois (2009) aponta sete aspectos organizacionais que considera como principais nas
associações de Doze Passos:
01- Assentam num modelo de participação igualitária,
marcada pela ausência de controle formal e de líderes;
02- O funcionamento quer dos grupos (através das Tradições)
quer da conduta do indivíduo (através do Passos) é feito
através de sugestões, não tendo um caráter vinculativo a
que todos tenham de corresponder de igual modo;
03- A participação voluntária, autônoma e independente de
membro, não há sujeição relativamente à pertença, não há
filiação, não existem pagamentos e as contribuições são
entendidas como donativos;
04- Os membros podem decidir quando frequentam, quando
não frequentam, podem abandonar por completo a
associação, ficando o seu critério regressar ou não;
05- Os grupos, reuniões ou encontros mais alargados
(convenções, reuniões de serviços) são efêmeros no
tempo, circunscritos a um espaço que tem múltiplas
funcionalidades e que não é pertença física das
associações.
06- A principal característica de qualquer associação de Doze
Passos é a sua componente terapêutica direcionada para
uma determinada patologia.
07- O elemento espiritual, na formulação “Deus conforme
cada um O concebe”, obedece à mesma característica de
17
não imposição e democratização de valores e perspectivas
(pp.39 a 40)
As características acima apresentadas quantos a questão estrutural e
organizacional, nos dá um valioso indício de como podemos nos beneficiar com o referido
modelo em outros cenários.
1.3-Roteiro de condução do estudo, aplicado a cada um dos Doze Passos
Nos debruçaremos agora de forma pormenorizada a cada um dos Doze Passos e
seus desdobramentos quando da condução e estudo realizado em grupo pelos
coordenadores, sob a orientação da literatura de suporte para o mesmo fim. As publicações
“ Doze Passos e Doze Tradições” e Guia para Trabalhar os Passos de Narcóticos
Anônimos”, dão uma visão da forma como é feito trabalho educativo com os referidos
conteúdo.
Importante notar que toda a narrativa dos Doze Passos é escrita na primeira pessoa
do plural “nós”, de forma a promover a unidade daquilo que todos têm em comum, ou seja
a dependência química e a recuperação. No que se refere as perguntas que se desdobram
quando da reflexão de cada passo, a pessoa do verbo muda e passa a ser usado a primeira
pessoa do singular ”eu”, de modo que cada um se pergunte a si mesmo e com isso, o
processo de comprometimento e respostas seja tão somente de responsabilidade de cada um
que o responde. A unidade é apresentada e junto com ela o sentimento de pertença ao local
e o assunto em questão, seguida da individualidade quando das perguntas onde o
sentimento de comprometimento e responsabilidade é estimulado. Durante toda a nossa
reflexão aqui detida aos Doze Passo, estaremos apresentando não só os passos, mas
também as perguntas sugeridas, que acompanham os referidos passos e que com elas a
compreensão da textualidade do mesmo se amplia.
A clareza da textualidade, seu tempo do verbo na sua narrativa e nas perguntas, a
condução dos mesmos sendo apresentada de forma mediada por aqueles que coordenam o
grupo, bem como o estímulo a pensar, são patentes durante todo o processo do estudo dos
Doze Passos. Vejamos a seguir alguns exemplos para reflexão. Vale ressaltar que para que
o indivíduo comece com o primeiro passo se faz necessário que ele esteja abstêmio.
18
1. Admitimos que éramos impotentes perante o álcool - que tínhamos perdido o domínio
sobre nossas vidas.
O primeiro passo é considerado a base do tratamento e consiste em um processo
de reflexão prévia. Cada membro que deseja fazer parte do grupo tem que,
necessariamente, admitir a sua impotência diante do álcool. Somente àquele que reconhece
que precisa de ajuda pode se abrir a ela. Somente àquele que reconhece sua ignorância
sobre o assunto em questão pode se abrir a qualquer que seja o aprendizado. Nesse
momento se inicia o processo educativo com reflexões acerca do tema, bem como o
processo de aprender a aprender. Perguntas como: “Como me comporto quando estou
obcecado por algo? Tenho culpado outras pessoas pelo meu comportamento? O que é a
perda de controle significa para mim? ”, funcionam como mola propulsora na dinâmica
educativa que se apresenta. Desencadeia a partir daí o processo de reflexão crítica tão bem
fundamentada e descrita por Freire (1987) na sua pedagogia do oprimido, bem como a
educação socrática quando visava a formação das consciências.
2. Viemos a acreditar que um Poder Superior a nós mesmos poderia devolver-nos à
sanidade.
Esse é o primeiro passo que se relaciona a questão de um poder superior.
Importante notar que o referido poder superior aqui não é designado com nenhuma
nomenclatura em especifico. A ênfase é dada no que o poder superior pode fazer pelo
alcoólatra, devolvendo a sanidade. A palavra esperança é trabalhada nesse passo, o que nos
leva a Freire (1987), quando colocava que o tempo do medo já passou e que agora
começava o tempo da esperança. Perguntas como: “em que tenho esperança hoje? Acreditei
que poderia controlar meu uso? Tenho medo de vir a acreditar? Em que eu acredito? ”, são
questionamentos novamente apresentados pelo coordenador em uma postura de mediação
como preconiza Feuerstein (1980), com as ferramentas de EAM8, que detalharemos mais à
frente.
8 EAM- Experiência de Aprendizagem Mediada.
19
3. Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que
O concebíamos.
Nesse momento vemos o tempo e a ação na textualidade do verbo decidir, seguida
da forma integralmente democrática quando se referem a “Deus, na forma em que O
concebíamos”. A extraordinária expressão de liberdade e democracia tão bem defendida
por Dewey (1959) aqui se apresenta. O poder superior passará a ser o que cada um entende
como seu. Dentro da irmandade é comum se falar que o poder superior pode ser chamado
de Deus, Jesus, a família, uma corrente filosófica, o grupo, a família, etc. Cada um toma
para si o poder superior como O entende.
Um programa espiritual e não religioso, onde os ateus têm também seu lugar.
Perguntas como: “Por que tomar uma decisão é o trabalho principal desse passo? Que áreas
da minha vida é difícil entregar? Qual a minha compreensão de um poder maior do que eu
mesmo, hoje? ”. Novamente se apresenta a brilhante condução sem respostas e sim um
convite a cada um formular as suas a partir de uma mediação de intencionalidade e
reciprocidade preconizada por Feuerstein (1980).
Na história das bases de fundamentação do AA está registrado a carta escrita por
um dos fundadores da irmandade, o senhor Bill ao grande médico Carl Gustav Jung, datada
de 23 de janeiro de 1961, que o faz lembrar o conselho do renomado médico a um
alcoólatra amigo de Bill. O conselho dado por Jung que vinha tratando o referido amigo e
que veio a ser posteriormente também cofundador de AA, foi que o mesmo buscasse uma
experiência espiritual ou religiosa, em uma humilde e clara manifestação do quanto o
tratamento por ele quer medicamentoso e psicoterápico não estava dando conta de todas as
necessidades observada para o paciente. Esse conselho tornou-se a base para o programa
espiritual do AA. Boff (2011) mais tarde, corrobora com o conselho de Jung, quando fala
da necessidade de se ter uma experiência de espiritualidade, e do quanto é urgente a
necessidade dessa experiência em virtude das situações dramáticas em que vivemos. O
autor ainda destaca que essa espiritualidade não só se apresenta nas religiões, mas, nas
buscas humanas, na vida, do trabalho, nos estudos.
4. Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos.
20
O inventário moral, o ato de refletir sobre si mesmo com coragem é uma das mais
valiosas ações dentro do processo educativo dos membros de AA. Portasio (2008), destaca
a história da educação nos primórdios da filosofia, quando imortalizando a frase: “Homem
conhece a ti mesmo”, que teria sido elaborada por um dos sete sábios da Grécia antiga e
estava esculpida no pórtico do Templo de Apolo em Delfos. O filósofo grego Sócrates (469
a.C - 399 a.C) já dizia: “a vida sem exame é indigna do homem”, e nesse mister, o
inventário moral faz seu papel. Perguntas como: “O que significa para mim ser profundo e
destemido? Tenho reservas em trabalhar esse passo? Quais os benefícios poderei obter, ao
fazer um inventário moral destemido e minucioso de mim mesmo? ”
O referido inventário é sugerido que depois de feito, seja lido em voz alta para si
mesmo. Novamente um convite a reflexão crítica, de autoexame, séria e comprometida,
trazendo a atenção para a formação humana do sujeito.
5. Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano, a natureza
exata de nossas falhas.
O trabalho com o reconhecimento e admissão, bem como a avaliação das
fragilidades é outro valioso ponto neste trabalho educativo conduzido pelos passos. Ser
capaz de identificar e admitir as falhas e fragilidades é um grandioso passo que conduz
além de um conhecimento de si mesmo, o conhecimento de onde se deve investir para o
aprimoramento pessoal. Importante notar também que o assunto em questão, a fragilidade,
deverá ser estudada, identificada e reconhecida em três estâncias: perante um poder
superior, perante si mesmo e perante o outro, e nesse caso o outro é alguém que o membro
de AA escolhe para ser seu ouvinte e a ele se dirige quase que como forma confessional e
terapêutica apresentando suas fragilidades. O mundo de relação se abre assim como
também a necessidade de saber lidar com ele.
O conhecimento se estende além dos muros da sala, um conhecimento sendo
convidado a ser experiência como preconiza Dewey (1959), bem como a mediação de
transcendência, sendo aplicada conforme Feuerstein (1980) e explicitada no capítulo sobre
mediação do referido trabalho. Perguntas como: “ Que reservas tenho em trabalhar esse
passo? Estarei pronto para confiar na pessoa que ouvirá o meu quinto passo? De que
21
maneira a natureza exata das minhas falhas difere das minhas ações? ”, são ferramentas
fundamentais nesse processo.
6. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de
caráter.
Após identificar padrões de comportamentos e fragilidades reconhecidas e
explicitadas agora o convite é a estar inteiramente pronto a algo. A literatura sobre o guia
para trabalhar os Doze Passos de NA, descreve quando diz de “estar confiante de que Deus
da nossa compreensão, removerá o que for preciso”. Aqui o trabalho com a espiritualidade
no sentido de o ser humano buscar sentido, valor e confiança em algo que não material
como destaca Boff (2011) em sua obra sobre espiritualidade.
Perguntas como: “o que penso que será removido? O que posso fazer para
mostrar que estou inteiramente pronto? De que maneira tenho tentado remover ou controlar
meus próprios defeitos de caráter? Qual foi o resultado dessa tentativa? ” Importante notar
que cada passo sempre é trabalhado de forma pormenorizada, detalhada. Vem da parte para
o todo com o trabalho das perguntas que servem como condução do processo educativo de
cada passo em questão.
7. Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições.
Quando se referem ao sétimo passo, a literatura9 destaca a relação com os demais
e que embora os passos sejam autônomos, guardam em si uma relação estreita. Assim
acontece na textualidade do referido passo. A questão da humildade como uma atitude
estimulada para o processo de construção humana relacionada com a possibilidade de estar
livre das imperfeições e ignorâncias a respeito do aprisionamento que o adoecimento do
alcoolismo e seus desdobramentos se apresentam aqui nesse momento. Perguntas como:
9 Quando se usam o termo “literatura”, ela diz respeito a toda publicação escrita pelo AA.
22
“De que maneira a humildade influi na minha recuperação? Como se desenvolveu o meu
relacionamento com o poder superior? Quais podem ser os benefícios de permitir que um
poder superior influa na minha vida? ”. Esses questionamentos vão apontando caminhos
que deverão aos poucos ser estudados e refletidos.
8. Fizemos uma relação de todas as pessoas a quem tínhamos caudado danos e dispusemo-
nos a fazer reparação a todas elas.
Na literatura AA (2003) sobre os passos e as tradições, o grupo destaca que o
referido passo está intimamente relacionado a questão das relações pessoais. Aprender a
viver com outro. Necessidade de uma análise exaustiva do passado a fim de fazer a relação
das pessoas das quais devem fazer as reparações. Aqui também o trabalho de identificação
dos danos causados, o que pede do membro do grupo o trabalho com a reflexão,
comparação e identificação dos referidos danos. Perguntas como: “Por que apenas
modificar meu comportamento não é o suficiente para reparar o dano que causei? Estou
hesitando em fazer o referido passo? Existem nomes que não acrescentei a minha lista? ”
Percebe-se nitidamente o trabalho exaustivo de consciência em cada coisa a ser
tratada. Também o trabalho com a pormenorização das coisas, o detalhamento e ao
aprofundamento em tudo que se trata nas salas de AA, deixando claro o valor de não ser
superficial em nada, nem tão pouco deixar nada sem ser claramente respondido e
compreendido.
9. Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível,
salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem.
Este passo se apresenta como consequência do anterior. Uma clara indicação de
reflexões sobre a prática do oitavo passo que traz junto com ele a atenção para a prudência
e o cuidado na execução do mesmo. A questão da subjetividade das ações e suas
consequências é resultado de um trabalho de estudo das ações. Perguntas como: “De que
forma o trabalho com os oito passos anteriores me preparou para trabalhar o nono passo? O
que significa fazer reparações? Como deve ser feito as reparações? O que temo quanto a
fazer reparações? Devo reparações que poderiam trazer sérias consequências? ” Todo esse
23
roteiro de perguntas são um suporte ao entendimento da prática de cada passo. A questão
do bom senso é elemento a ser considerado mesmo que de difícil mensuração, o que nos
leva a Freinet (1996) e sua pedagogia do bom senso.
10. Continuamos fazendo o inventário pessoal e quando estávamos errados, nós o
admitíamos prontamente.
Aqui o inventário pessoal torna-se um hábito regular, necessidade de repetição para
melhor compreensão e fixação do que está sendo posto. Colocar a questão não como algo
pontual, mas que deve fazer parte integrante da vida daqui por diante é colocar o processo
de aprendizagem como parte integrante da vida e aqui novamente de forma a transcender a
outros tempos e cenários. Perguntas como: “Qual o propósito de continuar a fazer um
inventário pessoal? O que significa para mim admitir prontamente quando estou errado?
Como a pronta admissão de meus erros ajuda a modificar meu comportamento? ” As
referidas perguntas são caminhos para uma melhor compreensão do “eu”, que está sendo
estudado.
Portasio (2008) no capítulo sobre educação e autoconhecimento, destaca a fala do
mais influente pensador ocidental dos primeiros séculos da idade média, Santo Agostinho,
reforçando a referida prática do décimo passo, corroborando com a prática do referido
passo, quando diz:
...no fim de cada dia interrogava a minha consciência, passava
em revista o que havia feito e perguntava a mim mesmo se
não tinha faltado ao cumprimento de algum dever, se ninguém
teria motivo para se queixar de mim. Foi assim que cheguei a
me conhecer e ver o que em mim, necessitava de reforma
(p.32).
11. Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato consciente com
Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade
em relação a nós, e forças para realizar essa vontade.
24
Nesse passo há uma apropriação de conquistas já realizadas nos passos anteriores,
onde aqui o que se traz é a questão de melhorar, aperfeiçoar o que já se tem. Perguntas
como: “Como meu caminho espiritual contribui para minha recuperação? Como e quando
medito? Qual a minha visão sobre a vontade de Deus para mim? ”, deixa patente as
conquistas e o percurso traçado pelos membros do grupo dos passos anteriores de forma a
reforçar o trabalho que tem sido feito.
12. Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes Passos, procuramos
transmitir esta mensagem aos alcóolicos e praticar estes princípios em todas as nossas
atividades.
O referido passo funciona antes de mais nada como uma ação de retroalimentação
do programa dos Doze Passos. Aqui a auto-gestão preconizada por Makarenko (1975), bem
como a assembleia de turma e as decisões nas mãos dos próprios membros do grupo, se vê
aqui de forma patente. O mediado passa a mediar como é destacado na mediação de
compartilhar destacada por Feuerstein (1980). Perguntas como: “O que levar a mensagem
faz por mim? O que é para mim experimentar um despertar espiritual? Que tipo de serviço
estou prestando para levar a mensagem? ”, conduzem a um processo de continuidade do
trabalho.
É possível observar que o referido roteiro sem dúvida, tem se mostrado eficaz na
condução do tratamento da doença do alcoolismo, por todas as especificidades, método e
textualidade do mesmo. Almeida e Rodrigues (2002), na sua análise sobre os Doze Passos,
concluem que “se a programação dos Doze Passos tem sido tão repleta de êxitos, é porque
ela, mesmo sem disso dar-se conta, vem trabalhando com a dimensão da escolha, que
permite que cada um possa, a todo momento, determinar seu destino”. Falam do valor do
que chamam de “exercício de vontade”, quando o dependente químico tem a liberdade de
escolher e escolhe se manter limpo10
. Sem dúvida o trabalho com a liberdade e o respeito
são fatores valioso para o processo de aprendizagem significativa.
10
Termo usado para designar aquele dependente químico que se encontra abstêmio do álcool.
25
1.4 Dinâmica e processo educativo nas reuniões de Alcóolicos Anônimos
Nas salas de reunião do grupo de AA, há geralmente o símbolo11
do grupo
anexado a porta, como forma de identificação da mesma. Nessas salas uma dinâmica e um
programa de trabalho e de estudo ali se desenha, desde a preparação da mesma, o roteiro de
ordem das falas de quem conduz o grupo de estudo, a literatura disponível, a ordem das
falas e narrativas daqueles que estão na assistência etc. O que se apresenta é um programa
essencialmente didático que é aplicável a qualquer pessoa. Um mundo novo e impar se
apresentar àqueles que lá se dirigem a procura de ajuda e orientação e o processo educativo
por sua vez, já se apresenta de forma empírica na dinâmica das salas, a cada um que lá se
dirigem.
Aguiar (2011) destaca que quando um dependente químico se integra nos grupos
de Alcóolicos Anônimos - AA, a procura de uma solução para seu problema, com o
tempo e a participação, percebe que a superação de seus dilemas é viabilizada por uma
aprendizagem, em um processo socioeducativo e sociocomunitário. A autora ainda destaca
que o perfil e o processo do trabalho educativo dizem respeito a uma aprendizagem
espontânea, com troca de experiências e a partir da vivência do programa.
Destaca também que o caráter educativo do grupo é feito coletivamente, não há
obrigação formal com o mesmo e que os que o conduzem o fazem de forma alternada,
onde a unidade é reforçada pelo sistema de rotação daqueles que estão no serviço e onde a
posição de destaque é inibida pelo grupo. Não há cargos, mas sim encargos, ou seja,
responsabilidades na execução de determinadas tarefas. Descreve o que os p r o c e s s o s
e d u c a c i o n a i s a t r a v é s d o s D o z e P a s s o s t ê m como objetivo entre outros,
superar sentimentos e mudar comportamentos dentro de um processo educativo de
autogestão.
11
O símbolo do AA será explicitado nos anexos, como anexo G.
26
As regras são no máximo sugestões, jamais imposições, sendo o processo de
ajuda mútua. Ninguém é estudante passivo, todos podem opinar e manifestar-se, o que
gera um sentimento de pertença e de igualdade de condições, o que na visão da autora,
são condições que facilita a aprendizagem.
O primeiro passo nesse processo de aprendizagem se apresenta quando o indivíduo
reconhece a necessidade de receber ajuda, necessidade de aprender. Quanto a quem
coordena e conduz o grupo de estudo, é necessário já ter passado pela experiência. Nesse
caso conhecimento teórico não dá autoridade para conduzir a referida aprendizagem, a
autoridade se faz quando da experiência e vivência no assunto abordado.
O grupo funciona como facilitador de uma aprendizagem individual e ao mesmo
tempo coletiva, mas antes de tudo produzida pelo membro do grupo de estudo, através da
busca dele próprio, para as suas questões de conflito. O processo é similar a “Maiêutica
Socrática” – o parto das ideias, da procura da verdade através da autorreflexão. Como cada
um é um indivíduo ímpar, as soluções também são únicas para cada um
O modo informativo dos Doze Passos passa logo de início por uma dinâmica de
partilha onde fica patente o valor dado a experiência como sendo a base que fundamenta o
conhecimento ali partilhado. O conhecimento empírico, onde a sabedoria das coisas e
conquistada a partir das percepções e seus significados é a mola propulsora, no entanto a
instrução, baseada no conhecimento empírico do outro que se apresenta em forma de
partilha de depoimentos, bem como a literatura produzida pelo grupo, oferece o olhar de
esperança e ciência de possibilidades antes não observada. Ali se testemunha nos
depoimentos, mudanças de paradigmas de vida diante do quadro de adoecimento,
consideradas por muitos quase que impossível.
Nos grupos de AA existem dois tipos de reuniões, as abertas (onde é permitida a
participação e assistência de pessoas que não sejam membros do grupo, como familiares,
técnicos, profissionais de saúde, membros de outras associações etc) e as fechadas (para os
que são admitidos como membros ou pessoas que ali estejam pela primeira vez na condição
de pedir auxílio para o mesmo problema). Mais recentemente iniciou-se reuniões on-line.
Frois (2009) descreve de forma sucinta como acontece as reuniões depois dos
preparativos de organização do espaço como, mesas, cadeiras, organizações da literatura
27
nas mesas e paredes e pôr fim a Oração da Serenidade12
sendo recitada por todos em voz
alta:
Em seguida, o coordenador anuncia as regaras da reunião (por
norma tem 90 minutos) e pede a cada um para falar na sua
vez, tendo apenas que levantar o braço para solicitar o uso da
palavra. Pergunta ainda se existe algum membro novo ou
visitante.Caso haja algum presente, lhe é explicado que ele é
“a pessoa mais importante naquela sala”, e que não intervenha
ao longo da reunião, para que possa escutar o que os outros
membros têm para dizer, sendo-lhe reservado os últimos 30
minutos (p.77).
Valioso modo de preparar e conduzir a reunião. A atenção quanto a manter um
ambiente organizado e de disponibilizar a literatura de forma a deixar à mão de quem
quiser folhear, bem como comprar a preços módicos, em uma clara postura pedagógica. O
convite para que todos possam juntos dizer a Oração da Serenidade13
, marca o momento de
dar início da reunião em um convite a criar um ambiente respeitoso e unidade e
concentração.
Vê-se nitidamente a postura respeitosa, democrática como preconiza Dewey
(1959) quando de informar logo no início da reunião como ela acontecerá para os que não
estão ciente ainda de sua dinâmica, bem como deixando claro que para aqueles que ali
estão, que todos podem falar bastando tão somente levantar o braço para isso.
Aos que estão na reunião pela primeira vez é estimulado a primeiro ouvir e em
seguida lhe é avisado que terá um tempo falar o que desejar. Percebemos nesse momento
um cuidado quanto a estimular cada membro do grupo ao envolvimento com os assuntos,
que cada um possa se assumir agente ativo do processo, como tão bem estimula Feire
(1996) em sua Pedagogia da Autonomia.
A educação do coletivo e assembleia de turma defendida por Makarenko (1975)
onde os alunos votam e participam de forma efetiva nas decisões do grupo é outra tônica
12
Oração eleita pelo grupo como sendo a única oração lá recitada, com perfil abrangente e cheio de significados e que ainda hoje há controvérsias sobre o autor da mesma. 13
“Concedei-me senhor a serenidade para aceitar as coisas que eu não posso modificar, coragem para modificar aquelas que eu posso e sabedoria para distinguir umas das outras”
28
observada nos grupos de estudo dos Alcóolicos Anônimos, já que os coordenadores das
salas de AA, que conduzem os estudos do programa dos Doze Passos, são escolhidos pelos
membros do grupo de forma democrática, participativa e autônoma.
Nesse assunto em questão a escolha se dá levando em conta não a qualificação
profissional ou acadêmica e sim a experiência de estar limpo14
. A autoridade se faz pela
experiência, este é o fator importante para conduzir uma aprendizagem significativa,
portanto esse é o elemento a ser levado em conta quando da escolha para estar na função de
coordenadores de grupo.
Outro valioso destaque para a dinâmica dentro dos grupos, diz respeito a
participação dos membros no que se refere a falar. Há o estímulo e a orientação para que
toda a narrativa feita por cada indivíduo, seja ela feita na primeira pessoa, cada um pode
falar somente de si, em uma clara orientação de empoderamento e responsabilidade pessoal
para cada coisa ali dita. Nenhum julgamento de valor e /ou colocações sobre a partilha de
qualquer um. Frois (2009) descreve como isso acontece: “durante 90 minutos decorrem as
intervenções num discurso na primeira pessoa, confessional, sem diálogo ou comentários”
(p.78).
A questão do anonimato dentro das salas de estudo dos Doze Passos nos grupos de
AA, (pois os mesmos só se apresentam com o primeiro nome e não divulgam elementos
como profissão, escolaridade, etc), mais do que proteger os membros de estigmas sociais
associado à sua condição e os desdobramentos das ações muitas vezes insanas em
consequência do uso abusivo do álcool, permite aos membros se colocarem nas reuniões
em situação de igualdade. Nesse ambiente ninguém é medido pelo seu nível de
escolaridade, pelo seu trabalho, nível social ou econômico. Ali todos são tratados de forma
igual e tal tratamento facilita a narrativa de cada um e evita as inibições que em muitos
casos nós vemos em sala de aulas, quando alguns alunos consideram que suas colocações
podem ser sem valor, simplistas e ignorantes diante de outros. A atenção é voltada para o
que é dito e não para quem disse.
14
Expressão usada pelos membros do AA para designar àqueles que se encontram sem uso de álcool.
29
A ausência de pré-conceitos facilita o processo de quem fala, pois não se sente
associado ao que é ou deixou de ser, bem como quem escuta, pois não associa a fala de
quem quer que seja a sua posição, social, política, econômica etc. Não se agrega valor a fala
que o diz. Como destaca Frois (2009), “o anonimato funciona como nivelador de
diferenciações sociais entre os membros” (p75).
Fazendo uma reflexão sobre a sala de aula, a questão do fardamento escolar é um
elemento que funciona como nivelador social, no entanto ainda temos, todo o material
didático das crianças e jovens, como mochilas, material escolar... que podem fazer essa
diferenciação. Diferente do que acontece no Japão onde até o material didático é todo ele
igual, trazendo assim em seu bojo uma tentativa de que a questão do nivelador social
funcione de forma efetiva.
Outro ponto importante diz respeito a um código de ética previamente estabelecido
de que ninguém deve levar para fora do grupo falas qualquer que sejam sobre o que foi dito
nas reuniões, bem como quem o disse. Um elemento fundamental que contribui para a
liberdade das narrativas e o processo de aprendizagem em qualquer que seja o cenário.
Em outro momento Frois (2009) afirmar categoricamente que: “ ser membro de
uma associação de doze passos acarreta todo um processo de aprendizagem” (p.81). Ainda
sobre o processo de aprendizagem a autora descreve:
As próprias intervenções ilustram que há um processo de
aprendizagem, interiorização e racionalização nos membros
destas associações, uma vez que é fácil observar existir um
padrão nas exposições e nos comportamentos dos vários
membros quando estão em grupo. Esta aprendizagem verifica-
se, por exemplo, no uso comum de novos/velhos termos que
expliquem as situações que passaram e como as expõem,
revivendo um passado que poderia ser considerado como
antes e depois de ter conhecido o programa (p.83).
A possibilidade e o direito à livre expressão para falar de seus sentimentos em
relação ao adoecimento em si e seus desdobramentos pessoais e sociais, traz no membro do
grupo um sentimento de pertencimento e igualdade e tal sentimento favorece o processo de
aprendizagem através da identificação com o mesmo. Nessa perspectiva a problemática da
30
baixo autoestima, tão responsável pela dificuldade de aprendizagem, pois na maioria das
vezes está carregada de conceitos de incompetência e um sentimento de desesperança,
deixam de existir. Feire (1987), destaca essa questão quando diz que há necessidade de se
ter esperança e empoderamento do saber.
O processo educativo e terapêutico se constrói quando da possibilidade e estímulo
a fala e com ela a construção da narrativa através da estória15
de cada um. Miller (1981)
destaca:
Para contar uma estória precisa-se de voz, palavras, audiência
e outras pessoas. O dependente perde a voz, audiência,
palavras e as outras estórias. [...] É possível viver e encontrar-
se na estória de outro. Nenhuma estória é a estória total.
Precisamos de muitas estórias para contar uma estória inteira
(p.62).
Avens (1993) destaca que a maior descoberta de Freud não foi a inconsciência,
mas a afirmação de ser, de individualidade e de subjetividade conferida a uma pessoa pelo
simples fato de deixa-la contar sua estória para um ouvinte atento. A cura pela fala.
Novamente aqui a narrativa toma seu lugar de destaque e valor que tão bem é utilizada
pelos grupos anônimos de AA. Nessa questão muito mais do que um processo terapêutico,
há um processo educativo, que se constrói a partir das narrativas sobre a aprendizagem do
novo modo de se mover no mundo, sem o uso abusivo do álcool.
Hillman (1995) disserta sobre o que chama de “a poesia na estória”, referindo-se
ao processo de narrativa da história de cada um quando diz que ao ouvir sua própria voz, a
pessoa assume sua própria estória, ou como disse o filósofo e poeta Stevens (1990), ele
passa a ver o poema no coração das coisas. O dependente químico, perdeu o poema no
coração das coisas.
Um dos processos de adoecimento decorrente do abuso de álcool é a depressão e
quanto a ela Dinesesn (1972) diz que podemos aguentar todas as tristezas da vida, se
conseguirmos coloca-las numa estória e contar para outros. Novamente o valor da narrativa,
15
O autor destaca o termo estória e não história, pois considera que as narrativas de cada alcoólatra é uma narrativa cheia de particularidades que em muitos casos não podem ser entendidas como verdade. Por isso faz a alusão a escrita nesse caso como uma narrativa popular.
31
elaboração do discurso, falar e também ouvir a narrativa do outro. Processo constante
dentro das salas de AA.
Durante o processo de contar sua estória, a narração é cada vez mais comprovada
como sendo a mais profunda de todas as terapias e aprendizagem. Quando uma pessoa ouve
sua voz, ela assume sua própria estória. Esse é um modelo de tratamento narrativo, poético
e não literal e analítico. O poético aqui não se refere a romântico, mas no sentido filosófico
e político. Um contraponto ao classicismo racional. Como cada um elabora a sua estória,
cada um pode mudar, “reestoriar” e se “resignificar”.
No que se refere a unidade nos grupos de AA, a mesma é reforçada pelo sistema
de rotação daqueles que estão no serviço. Não há cargos, mas sim encargos, ou seja, o que
existe são responsabilidades na execução de determinadas tarefas. Nesse mister surge a
figura do padrinho e/ou madrinha16
, que mais recentemente temos visto nas corporações
empresarias como nome de Mentoring17
.
O padrinho ou a madrinha, nos grupos de AA é escolhido pelo novo membro e
baseado na empatia e confiança que o mesmo sente pelo padrinho escolhido. Solicita o
padrinho como guia para seu processo de aprendizagem significativa. Frois (2009) destaca
que o pedido de apadrinhamento é uma honra para quem o recebe e transcreve em seu livro
o depoimento de um membro apadrinhado e o trabalho com os Doze Passos.
A princípio sentia-me tão dilacerada que até tinha medo de
falar nas reuniões. Porém escolhi uma madrinha e, para mim,
foi uma verdadeira bênção poder contar com ela para lhe
telefonar a qualquer hora. Quando parecia que ia tudo
enlouquecer, não havia ninguém como ela para me ouvir
pacientemente durante horas e para me dizer, com alegria, a
mesma coisa vezes repetidas e guiar-me através dos Doze
Passos (p.100).
16
São pessoas que acompanham mais de perto o membro do grupo que ainda necessita de maior atenção e suporte. Nesse processo os laços são mais estreitos e no processo de apadrinhamento o membro do grupo apadrinhado recebe atenção mais direcionada e exclusiva de um membro do grupo onde haja maior afinidade. 17
Termo em inglês que normalmente é traduzido por mentor ou apadrinhamento. É considerada atualmente como uma ferramenta de desenvolvimento pessoal e consiste em uma pessoa experiente ajudar outra menos experiente em determinada área profissional de atuação.
32
Outro fator de suma importância no processo de aprendizagem nos grupos de
AA, acontecem quando os membros do grupo se envolvem com as tarefas de organização
estrutural da reunião de estudo e partilha. Ao se envolverem com ações simples como
organização na infraestrutura da sala, organização dos livros, serviço de água e café por
exemplo, surge nesse momento o sentimento de pertença e esse sentimento reforça o
sentimento de empoderamento, no sentido restrito da palavra e com isso um
comprometimento com o que acontece dentro da sala.
Sentir-se com poder de fazer as coisas diferentes de antes, voltar a ter controle da
própria vida que começa a se apresentar em pequenas coisas como essas citadas, mas que
na verdade representam grandes coisas , haja visto quando o alcoólatra estava como
chamam na ativa18
, não ser capaz muitas vezes até de arrumar a própria cama de dormir,
quanto mais uma sala e suas especificidades para determinado fim. Outro aspecto que essa
ação encerra, diz respeito ao 12º passo19
que se refere a levar a mensagem a outros
alcoólatras.
Outro fator de suma importância diz respeito a literatura. O primeiro foi o livro
“Alcoólicos Anônimos” também chamado de “O livro azul”, que contém o texto básico do
programa de recuperação de Alcoólicos Anônimos, publicado em 1939, sendo sua primeira
publicação em português datada do ano de 1965. No início de século XXI essa obra já
estava traduzida em mais de 40 idiomas e dialetos. A literatura de AA está distribuída
atualmente em cerca de 15 livros, 4 manuais e 30 folhetos / livretos. Em quase a totalidade
deles, a autoria é dada ao grupo. Destacaremos aqui alguns deles:
Quanto aos livros20
:
1- Alcoólico Anônimo, também chamado de Livro azul, publicado pela primeira vez
em 1935. Contém o texto básico do programa de recuperação de AA. Seu texto
básico do programa mantém-se inalterado desde a primeira edição. Traz nele a
história de muitos milhares de homens e mulheres que se recuperaram do
alcoolismo, bem a história do início do grupo.
18
Termo usado para designar o estado de embriaguez do alcoólatra em questão. 19
Tendo tido o despertar espiritual como resultados destes passos, procuramos levar esta mensagem a outros alcoólicos e praticar estes princípios em todos os aspectos de nossa vida. 20
Em anexo estarão fotos dos livros citados.
33
2- Viver Sóbrio, considerado como um manual de sobrevivência, mostra um conjunto
de métodos para não tomar o primeiro copo, que derivam da experiência dos
membros de AA, é um livro extremamente prático com perguntas básicas de como
enfrentar o cotidiano sem usar o álcool.
3- Alcoólicos Anônimos Atinge a Maioridade; escrito por Bill W., e traz uma breve
história do nascimento e desenvolvimento de AA e destina-se a todos aqueles que
estão interessados em conhecer a irmandade de AA.
4- Compartilhando a Sobriedade que é uma coletânea de depoimentos da Revista
Vivência, onde traz os depoimentos da vida de cada membro em seus processos de
recuperação.
5- Os Doze Passos e As Doze Tradições; este livro traz uma visão clara dos princípios
para o indivíduo e para o grupo em forma de um roteiro, um programa de ações
individuais e coletivas para se manter longe do álcool. São princípios de
recuperação pessoal (12 passos) e os que têm assegurado a sobrevivência dos
grupos (12 tradições).
6- Na opinião de Bill; este livro contém várias centenas de trechos da literatura já
publicada abordando os aspectos do modo de vida de AA.
7- Reflexões Diárias, contendo reflexões escritas pelos membros, destinado a leitura
diária. Tem um texto para cada dia do ano com o objetivo de ajudar o membro a
colocar em curso o plano das 24 horas.
Quantos aos folhetos e livretos:
1- Os Jovens e AA; contém dez histórias de jovens que ingressaram na irmandade entre
quinze e vinte e cinco anos.
2- A. A. Para Índios Norte-Americanos; partilha de índios que deixaram de beber e se
mantiveram fiéis aos ensinamentos espirituais indígenas.
3- Colcha de Retalhos; nesse folheto mulheres alcoólatras compartilham sua nova vida
em AA.
34
4- A.A. Para a Mulher; neste folheto há quinze perguntas dirigidas a mulheres que
suspeitam ter problemas com o álcool, juntamente com depoimentos de oito
mulheres, das diversas condições de vida que se encontram em recuperação em AA.
5- Perguntas Frequentes Sobre AA; traz perguntas frequentes que são dirigidas ao AA
pelo público leigo, esclarecendo de maneira simples e objetiva as questões da
irmandade.
6- Você Pensa Que é Diferente?; traz treze relatos que demonstram de forma cabal que
o alcoolismo atinge pessoas das mais diferentes condições.
7- Outros Problemas Além do Álcool; fala de como o AA lida com o problema de
dependência de outras substâncias químicas.
8- O AA é Para Mim?; traz perguntas visando o autoexame individual e confidencial,
formuladas na primeira pessoa do singular.
9- A.A. Para o Alcoólico Idoso; destinado aqueles que começaram a enfrentar o seu
alcoolismo por volta dos 60 anos.
10- Três Palestras às Sociedades Médicas por Bill W., Cofundador de AA; contém três
palestras proferidas por Bill W. destinadas a comunidade científica.
11- Perguntas e Respostas sobre Apadrinhamento; essa publicação apresenta 34
perguntas/respostas para quem procura um padrinho/madrinha e para quem deseja
ser padrinho/madrinha, ajudando e ser ajudado.
Quanto aos manuais:
1- Manual de Serviço de AA; oferece mais segurança no desempenho dos encargos da
estrutura do AA, com uma síntese do pensamento e da filosofia da irmandade.
2- Doze Conceitos Para Serviço Mundial; nela se apresenta uma interpretação da
estrutura de serviços mundiais de AA. Mostra a evolução pela qual a irmandade
passou o porquê de se manter da forma que é.
Toda essa literatura é disponibilizada por preços bem acessíveis e se transforma
em uma melhor forma de veicular a filosofia da associação. Sem dúvida ter literatura
especifica para o membro onde aborda as questões que estão intimamente ligadas a
35
qualquer um que passa pela experiência do alcoolismo é de suma importância e faz com
que os membros andem de mãos dadas com a literatura de suporte. Frois (2009) destaca:
O estudo e o trabalho dos Doze Passos e das Doze Tradições
são uma das mais importantes componentes da assimilação do
programa. Usando a literatura, materializada através dos
folhetos, manuais, livros de meditação e livros temáticos [...],
os membros têm acesso a toda a ideologia que servirá de
explicação passado que se teve, e integra o processo de
transformação da própria pessoa (p.104).
Nos grupos de estudo e nas salas de AA, há um incentivo constante a que o
membro do grupo se coloque, fale, exponha suas necessidades. Independente do conteúdo a
ser tratado no que se refere aos temas, o importante é que uma aprendizagem já começa a
ser construída - a da narrativa. Ali o membro do grupo inicia a aprendizagem de aprender a
falar sobre questões referente ao seu adoecimento e necessidade de ajuda. Inicia- se nesse
momento o processo de organização e exposição das ideias e sentimentos. Uma ação
proativa é estimulada e construída e ali se vê um indivíduo exercitando a autonomia, o
direito de falar, verbalizar em um ambiente que é democrático e acolhedor, sem
interrupções, críticas ou julgamentos de valor.
Frois (2009) destaca questão da aprendizagem nesse processo de estudo dos Doze
Passos:
[...] aprendendo a verbalizar os seus problemas recorrendo à
narrativa. Este processo de aprendizagem e transformação da
pessoa faz-se acompanhar de uma progressiva imersão nas
múltiplas esferas das associações, ocupando um lugar central
nas suas escolhas de vida. As ferramentas do programa,
permite aos membros das associações adquirir capacidades de
racionalizar, interpretar e agir em conformidade com a sua
nova condição (p.109).
A aprendizagem nos grupos de AA é um processo constante e dinâmico nas suas
salas espalhadas no mundo inteiro, em uma clara postura de comprometimento educativo.
36
CAPÍTULO 2 – EDUCAÇÃO DO SUJEITO
No referido capítulo traremos a atenção para a concepção de educação em saúde e
educação do sujeito em seus aspectos referentes e formação humana e moral. Faremos um
percurso e um olhar mais apurado, sobre os grandes educadores desde a Grécia antiga até
os dias de hoje, que entendemos são inspiradores mesmo que informalmente do modelo de
estudo sistematizado dos Doze Passos nas salas de AA. Traremos a atenção para quatro
teóricos que na nossa perspectiva estão mais alinhados com o que se pratica de forma
educativa nas salas com o referido programa. Caminharemos então com educação mediada
de Feuerstein (1994), a democracia e a liberdade de Dewey (1959), a autonomia e a
criticidade de Freire (1987) e a educação coletiva de Makarenko (1975).
2.1- Educação em Saúde
O conceito moderno de promoção da saúde desenvolveu-se nos últimos trinta anos
em uma reação ao aumento vertiginoso da cultura da medicalização em massa com ínfimos
resultados em detrimento de seu investimento. O primeiro documento oficial a usar o
conceito de promoção em saúde, onde a educação faz seu papel, e a colocá-lo como
prioridade nas políticas de saúde foi o Relatório Lalonde21
em 1974 no Canadá. Dentro do
relatório são descritas quatro determinantes de saúde/doença, 01 - biologia (genes, idade,
21
O Relatório Lalonde, foi um relatório produzido em 1974 no Canadá, sob o nome de A new perspective on the health of Canadians (uma nova perspectiva da saúde de canadenses). É considerado o primeiro relatório governamental moderno no mundo acidental a reconhecer que a ênfase em assistência médica sob um ponto de vista biomédico é errada, e que é necessário olhar além do sistema tradicional de saúde.
37
sexo); 02 - ambiente (físico, ar, água, radiação, agentes infecciosos; social e econômico;
pobreza, classe social, educação, emprego, desigualdades); 03 - estilo de vida (álcool,
tabaco, drogas, nutrição, exercício, atitudes sexuais) e 04 – serviços de saúde (acesso,
equidade, serviços, saúde pública, medicamentos, cuidados primários). Dentro dessas
determinantes nos voltaremos para a determinante “ambiente”, onde a educação cumpre seu
papel.
A Carta de Ottawa22
define Promoção de Saúde como “o processo que visa
aumentar a capacidade dos indivíduos e das comunidades para controlarem a sua saúde, no
sentido de a melhorar”. Nesse mister a Carta de Ottawa assume a definição do conceito de
saúde declarado pela Organização Mundial da Saúde - OMS em 1968 onde define
“Educação para a Saúde” - “uma ação exercida sobre os indivíduos no sentido de
modificarem os seus comportamentos, adquirirem e conservarem hábitos saudáveis,
aprenderem a usar os serviços de forma criteriosa e estarem capacitados para tomada de
decisões que implicam a melhoria do seu estado de saúde”. Buss (1999), traz a atenção
para a questão da educação em saúde quando afirma que a mesma, tem sido reconhecida
como ferramenta importante para a promoção da saúde de indivíduos e da comunidade.
Diante deste quadro, fica patente o valor da educação na promoção da saúde e por
isso o referido processo no qual nos debruçamos agora tem como centro de atenção a
Educação em Saúde, a educação como um bem semi-público de caráter individual e
coletivo. Por sua vez os agentes do processo aqui estudado estão em situação de
vulnerabilidade social, ou podemos chamar de pessoas que se encontram em condições
sociais desfavoráveis, haja visto serem um grupo de homens e mulheres de diferentes faixas
etárias e classe social, adoecidos de forma grave e sem suporte adequado, acessível e eficaz
pelo sistema.
Nesse momento a Pedagogia Social faz eco quando procura alcançar aqueles que
são esquecidos e objetivam a socialização do sujeito, a educação do homem em uma
perspectiva humanística. O grande educador Pestalozzi (1969) por sua vez, reconhece a
necessidade de contemplar as questões humanitárias, filosóficas e políticas em sua
22
Carta de Ottawa é um documento apresentado na primeira Conferência Internacional sobre Promoção as Saúde, realizado em Ottawa, Canadá, em novembro de 1986.
38
pedagogia, em uma clara indicação do quanto a educação tem papel a cumprir no processo
de construção humana.
Importante lembrar que a dependência química é uma doença de múltiplas causas e
por isso pede também um olhar e um tratamento multidisciplinar e a educação vem a esse
socorro.
2.2 - Teóricos Inspiradores a prática educativa nas salas de Alcoólicos Anônimos
Debruçando-me sobre os educadores que fizeram história, da Grécia antiga aos
dias de hoje, foi possível identificar particularidades em cada um deles em que o estudo dos
Doze Passos se assenta, mesmo que de forma empírica, já que o referido modelo de estudo,
dentro desse contexto, é consideravelmente jovem, com cerca de 81 anos. No entanto e
possível observar na sua filosofia e práticas pedagógicas, muitos desses grandes
educadores, a exemplo:
Sócrates (469-399 a. C), o grande filósofo grego, traz a atenção para o valor da
busca da verdade e o ato do homem se voltar para si mesmo, para seu interior a fim de
chegar a sabedoria. O aforismo escrito no templo de Delfos “conhece a ti mesmo”, era para
ele o ponto mais importante a ser cultivado. Algo tão antigo e ao mesmo tempo tão atual!
O programa dos Doze Passo tem como ponto central o olhar honesto para si mesmo a fim
de descortinar as demais fragilidades que contribuem para o adoecimento da dependência
química, como também o trabalho de mediação feito pelos coordenadores de grupo, tem
sua ressonância na maiêutica socrática do parto das ideias, que diz respeito a levar os seus
discípulos a reconstrução de conceitos a fim de a frente, poder parir as próprias ideais.
Em Aristóteles (384-322 a. C), o defensor da instrução para a virtude, onde a
mesma é conquistada através da prática e o exercício diário é visto nos membros do AA,
quando estão sempre atentos e trabalhando em prol do dia a dia, do seu cotidiano e isso fica
patente quando do uso comumente o termo “só por hoje”, que nos leva ao poema de
Horácio (65-8 a.C), que traz a expressão Carpe diem, e o estímulo a vive-lo. A prática
sendo estimulada a fim de desenvolver ações virtuosas no dia a dia.
39
Brachtendorf, J. (2008), traz a atenção a Santo Agostinho (354-430), o idealizador
da revelação divina. Ele afirmava que o homem só tem acesso ao conhecimento quando
iluminado por Deus. A concepção espiritual do AA é descrita na sua literatura, quando
fala sobre o chamam de despertar espiritual 23
, descrito no 12º passo. No livro Confissões,
Santo Agostinho, narra a própria conversão, trazendo o princípio da confissão, onde
encontramos similaridade no trabalhado no 8º, 9º e 10º passo subsequentemente: “Fizemos
uma relação de todas as pessoas a quem tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar
os danos a elas causados”; “ Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas,
sempre que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem”; e “
Continuamos fazendo o inventário pessoal e quando estávamos errados, nós o admitíamos
prontamente”.
Em Tomás de Aquino (1225-1274), o pregador da razão e da prudência, podemos
identificar no 9º Passo - “Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas,
sempre que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem”, bem
como a ênfase que dava ao mundo real e ao aprendizado pelo raciocínio. Para o filósofo, há
dois tipos de conhecimento; a sensível, captado pelos sentidos, e o intelectivo, que se
alcança pela razão. Lauand (2013), destaca que Tomás de Aquino, chama de inteligência
ativa, em complemento a inteligência passiva, com o qual cada um pode formar seus
próprios conceitos. Ele introduz assim um princípio pedagógico moderno e revolucionário
para sua época, onde diz que o conhecimento é construído pelo estudante e não somente
pelo professor. Todo o programa de Doze Passos foi construído por um grupo de pessoas,
os mesmos que se beneficiam deles. Por esse motivo não há nas publicações do AA um
autor, uma personalidade e sim um grupo.
Em Lutero (1483-1546), vemos o conceito da utilidade social da educação,
intensamente trabalhado nos grupos de AA. Em Montaigne (1533-1592), o estímulo para
que o indivíduo viesse a ser investigador de si mesmo, cultivando a interiorização é
encontrado nos grupos de estudo de AA. O referido filósofo e jurista, fazia crítica ao
trabalho das escolas que era de encher as memórias, deixando o entendimento e as
23
Momento descrito pelos membros de AA, em que o indivíduo entrou em contato consciente com uma nova forma de ser, livre do álcool.
40
consciências vazias. Dele é a famosa frase “uma cabeça bem-feita vale mais do que uma
cabeça cheia”. A referida expressão “cabeça bem-feita”, foi mais tarde escolhida por Morin
(2005) para título de um dos seus livros. Aqui vemos a ressonância nos grupos de AA
quando todo o trabalho está voltado para a consciência e aprofundamento das coisas a
serem trabalhadas dentro das salas.
Lago (2002) destaca a obra de John Locke (1632-1704) o explorador do
entendimento humano, quando ele dizia que os homens não são bons ou maus, úteis ou
inúteis, tudo diz respeito a educação dos mesmos. Aqui novamente vemos a ressonância
valiosa do processo educativo para formação humana. Trabalho exaustivamente realizado
nos grupos de AA.
Em Rousseau (1712-1778), a liberdade como valor supremo é a sua máxima. Um
dos princípios fundamentais de toda a sua obra diz respeito a afirmar que o homem é bom
por natureza, mas está submetido à influência corruptora da sociedade. Com o
entendimento de que o alcoolismo é uma doença e não um defeito de caráter e que as
dificuldades do alcoólatra estão intimamente relacionadas com sua doença e com a forma
como se relaciona com ela e a influência do meio, traz nesse momento a ressonância do
filósofo. Pissarra (2006) destaca que o filósofo Rousseau preconizava um mergulho interior
por parte dos indivíduos rumo ao autoconhecimento, mas isso não se dá por meio da razão,
e sim da emoção, e traduz-se numa entrega sensorial à natureza. Importante notar que no
12º passo é possível observar especificamente essas particularidades da filosofia do referido
pensador quando diz: “Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes Passos,
procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as
nossas atividades”.
O educador suíço Pestalozzi (1746-1827), chega trazendo o afeto na prática
pedagógica. Para ele os sentimentos tinham o poder de despertar o processo de
aprendizagem autônoma na criança. Incontri (1996), destaca que a escola idealizada por
Pestalozzi deveria oferecer uma atmosfera de segurança e afeto. Indiscutivelmente esse é o
ambiente nas salas de AA. Um lugar onde cada membro se sente plenamente seguro e
receptor de muito afeto, haja vistos àqueles que chegam pela primeira vez no grupo, lhe é
dito que ele é naquele dia a pessoa mais importante, mais valiosa. O sentimento de afeto é
41
relatado por todos os membros como sendo um dos fatores responsáveis pelo retorno e
permanência dos mesmos ao grupo.
O surgimento do que veio a ser chamado de sociologia da educação, tem na figura
do sociólogo Durkheim (1967) a referida concepção. Para ele o homem, mais do que
formador da sociedade, é um produto dela. A influência do meio surge como fator
preponderante a ser considerado quando se fala em educação. Todo o trabalho da filosofia
dos Doze Passos, está intimamente relacionada com a maneira de viver e agir consigo e
com a sociedade. Uma educação social para o meio é o objetivo de todo o trabalho
desenvolvido nas salas de AA. Aprender a viver em sociedade e viver bem, sem causar
danos a si e aos outros. Encontramos também Dewey (1959), onde a democracia, liberdade
e a prática em foco, encontra ressonância nos grupos de estudo dos Doze Passos nas salas
de AA, e do qual dedicaremos mais a frente um capitulo detalhado da sua contribuição à
dinâmica nas salas.
Na pesquisadora italiana Montessori (1870-1952), encontramos a valorização do
aluno e a crença no potencial de aprender de cada um. Para ela objetivo da escola é a
formação integral do jovem, uma educação para a vida destaca. Machado (1986) destaca
que o principal legado da italiana Montessori foi afirmar que as crianças trazem dentro de si
o potencial criador que permite que elas mesmas conduzam o aprendizado e encontrem
um lugar no mundo. É o que Montessori chamou de “ajude-me a agir por mim mesmo”.
No estudo da filosofia dos Doze Passos é possível observar o trabalho constante para esse
fim, pois o estímulo a consciência e a ação comprometida de cada um, bem como o
estímulo a autonomia é a tônica dentro das salas de AA.
Encontramos na teoria da emoção e a educação integral de Wallon (1879-1962),
contribuições valiosas que se repercute nas salas de AA. Oliveira (1992), traz a atenção
para a construção do eu na teoria de Wallon, que depende essencialmente do outro, seja
para ser referência, seja para ser negado. Tal relação é observado de forma patente quando
no estudo dos seguintes passos: o 5º- “Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e
perante outro ser humano, a natureza exata de nossas falhas”; o 8º - “Fizemos uma relação
de todas as pessoas a quem tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a
elas causados”; o 9º-“Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre
42
que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem” ; e o 12º “Tendo
experimentado um despertar espiritual, graças a estes Passos, procuramos transmitir esta
mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades”. Em
Makarenko (1888-1939), o mestre ucraniano e professor do coletivo, iremos nos debruçar
mais detalhadamente em um capítulo mais a frente, visto ter o mesmo, muitas contribuições
valiosas para a prática do estudo dos Doze Passos, nas salas de AA.
Em Freinet (1896-1966), encontramos uma pedagogia do bom senso, pela qual a
aprendizagem resulta de uma relação dialética entre ação e pensamento, ou teoria e pratica.
Para ele todo conhecimento é fruto do que chamou de tateamento experimental - a
atividade de formular hipóteses e testar a sua validade. Nada mais parecido do que acontece
nos grupos de AA, quando se formula a hipótese de viver de outra maneira e com essa
experimentação se certificar de sua validade. A questão da cooperação e não competição,
quando do estímulo ao espirito colaborativo, a afetividade e o valor do eu e a questão do
bom senso, tão defendida por ele, é bem claro quando do trabalho com o 9ºpasso: “Fizemos
reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando
fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem”.
Elias (2002) descreve quatro eixos no qual se fundamenta a pedagogia de Freinet e
do qual podemos observar uma similaridade nas práticas em salas de AA, vejamos: O
primeiro eixo - a cooperação - para construir o conhecimento comunitariamente - aspecto
permanente nos grupos de AA, onde se propaga a necessidade do outro no processo de
conhecimento; o segundo e o terceiro eixo - a comunicação - para formalizá-lo, transmiti-
lo e divulga-lo - e a documentação - com o chamado livro da vida , para registro diário dos
fatos históricos. Exatamente que acontece nos grupos anônimos que diz respeito a
comunicar, criando laços e fortalecendo o entendimento com os depoimentos e narrativas
das histórias de vida em grupo, bem como com a publicação de folhetos, revistas e livros; o
quarto e último eixo - a afetividade - com vínculo entre pessoas e delas com o
conhecimento. O apadrinhamento, prática exercida nos grupos para com os membros que
ingressão, a fim de oferecer suporte e orientação, mostra claramente esse eixo sendo
aplicado.
43
Em Vygotsky (1896-1934), o ensino como processo social e com ele as correntes
pedagógicas chamadas de socioconstrutivismo ou sociointeracionismo, mostra o papel
preponderante das relações sociais e a compreensão de que o aprendizado decorre da
compreensão do homem como um ser que se forma em contato com a sociedade. Oliveira
(1998) destaca que para Vygotsky, a formulação do conhecimento se dá numa relação
dialética entre o sujeito e a sociedade ao seu redor. Para ele o que interessa é a interação
que cada pessoa estabelece com determinado ambiente, a chamada experiência
pessoalmente significativa. Exatamente o que acontece nos grupos de AA, onde o trabalho
vinculado a relação com o meio e a forma de se relacionar com o mesmo, tão bem
apresentado no roteiro dos Doze Passos, tem papel preponderante no processo de
recuperação de um alcoólatra. A relação com a experiência é patente assim como Dewey a
defende, bem como a relação com o significado e o fazer sentido como os membros do AA
descrevem, alinham com a referida teoria. Para Vygostky, o saber que não vem da
experiência não é realmente saber. Outra contribuição significativa diz respeito ao conceito
chave de mediação, onde mais a frente iremos dissertar com a EAM de Feuerstein.
Em Skinner (1904-1990), o cientista do comportamento e da aprendizagem, temos
conceitos complexos em virtude da carga de cientificismo ao comportamento, mas é
possível identificar sua a ressonância no comportamento em especial do dependente
químico em processo de recuperação através da educação em saúde, com o conceito
“condicionamento operante”, uma formulação acrescida ao conceito de “reflexo
condicionado”, formulado pelo cientista Ivan Pavlov. Skinner (1984) defende que o
condicionamento operante é um mecanismo que premia uma determinada resposta de um
indivíduo até ele ficar condicionado a associar a necessidade da ação. A diferença entre
reflexo condicionado e o condicionamento operante é que o primeiro é uma resposta a um
estímulo puramente externo; e o segundo, o hábito gerado por uma ação do indivíduo. A
teoria do reflexo condicionado de Pavlov e o condicionamento operante de Skinner
consegue responder muitas facetas do adoecimento da dependência química, ela também
oferece subsídios para o tratamento quando do exercício visando o condicionamento
contrário e isso se dá quando há o que Skinner chama de reforço positivo, onde ao aluno é
dado ênfase nos resultados positivos de determinada ação. Fica patente tal condicionamento
aplicado nos grupos de AA quando do estudo do 12º passo - “Tendo experimentado um
44
despertar espiritual, graças a estes Passos, procuramos transmitir esta mensagem aos
alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades”.
Em Freire (1921-1997), e sua teoria da educação para a consciência, a pedagogia da
autonomia e do oprimido, iremos dissertar mais detalhadamente a fim de trazer suas
contribuições significativas ao trabalho desenvolvido nos grupos de AA. Em Morin
(2013), encontramos o conceito de complexidade e o saber passa a não mais ficar estanque
a uma forma. Ele traz o conceito de vários saberes. A compreensão da complexidade
humana e do seu saber corrobora com a prática pedagógica que o grupo de AA se debruça,
pois, para um adoecimento que tem múltiplos fatores, se faz necessário uma abordagem
multidisciplinar - conceito desenvolvido pelo autor e aplicado nas salas de AA pelo modelo
Minnesota e na condução do estudo sistematizado dos Doze Passos.
É possível ver que epistemologicamente falando, os trabalhos educativos
desenvolvidos nos grupos de AA apresentam em suas práticas elementos e princípios em
maior ou menor grau de diversos pensadores da educação, mesmo muito antes e/ou muito
depois do modelo de trabalho nas salas com os Doze passos terem sido desenvolvidos,
conforme explicitado acima. No entanto é importante notar que aqueles que iniciaram e
construíram o que é hoje o programa dos Doze Passos, não registram em nenhuma obra por
eles publicadas ou registros de declarações mesmo que informal, a menção sobre qualquer
teórico que poderiam dizer tiveram como referência para construção do programa. As
declarações acerca do tema estão sempre relacionadas a uma construção coletiva a partir
das práticas, do ensaio e erro e do conhecimento tácito.
Não há escola ou teóricos a seguir, no entanto é possível observar que há em
muito do seu fio condutor, teóricos e teorias que se desenvolveram depois do programa dos
Doze Passos ser criado e desenvolvido, que traz similaridades nas práticas em salas do AA.
Fica a pergunta no ar sobre como o referido modelo educativo tomou corpo e se
desenvolveu sem apontar para nenhuma referência teórica, embora comporte tantas delas,
ainda mais quando é sabido que o referido programa dos Doze Passos não sofreu
modificações no que cerne a filosofia, prática e forma de condução.
45
2.3 - Educação mediada na perspectiva de Reuven Feuerstein
O surgimento da experiência de aprendizagem mediada se deu entre 1950 e 1963,
por Reuven Feuerstein, psicólogo israelense que desenvolveu o conceito de Experiência de
Aprendizagem Mediada (EAM). A referida concepção surgiu a partir da experiência de
Feuerstein, quando incumbido de ajudar na educação das crianças do pós-guerra que
apresentavam desvantagens intelectuais e baixo rendimento escolar.
Feuerstein (1994) afirma que duas são as formas de aprendizagem humana. Uma
delas é a experiência direta de aprendizado - que é a interação dos organismos com o meio
ambiente; a outra é a Experiência de Aprendizagem Mediada - que requer a presença e a
atividade de um ser humano para organizar, selecionar, interpretar e elaborar aquilo que foi
experimentado e essa presença e ação deve acontecer intencionalmente para desenvolver o
estímulo entre o sujeito e o conhecimento. Feuerstein tem na sua base de estudos as
influências do psicólogo bielo-russo Lev Vygotsky (1896-1934), considerado o precursor
da ideia de mediação.
Vygotsky (1999) por sua vez, traz a lume a teoria do ensino como processo social,
a compreensão do homem como um ser que se forma em contato com a sociedade. Para ele
o que o que interessa é a interação que cada pessoa estabelece com determinado ambiente, a
chamada experiência pessoalmente significativa. Oliveira (1995) destaca a compreensão
do saber e da experiência por Vygotsky quando ele diz que o saber que não vem da
experiência não é realmente saber. A mediação estava ali formulada, colocando o professor
como instrumento dessa mediação, que mais tarde é desenvolvida por Feuerstein de forma
mais patente.
Feuerstein e Vygostsky acreditavam na existência de um potencial não-manifesto e
na necessidade de elaborar metodologias avaliativas mais eficientes e voltadas para a
potencialidade do indivíduo. Ambos buscavam desbravar potenciais humanos que não eram
observáveis pelos métodos tradicionais, como destaca Gomes (2002). Influenciado por
Vygotsky, Feuerstein traz à atenção três critérios que são Sine Qua Non, para que haja de
fato uma mediação. São eles:
46
- Mediação de Intencionalidade e Reciprocidade: intencionalidade por parte do mediador e
reciprocidade perante o mediado focando na satisfação das necessidades do mediado.
Nesse processo há ali consciência do mediador embora nem sempre no primeiro
momento essa consciência se apresenta para o mediado, no entanto todo o processo tem um
objetivo claro e simples. Ao mediado o que se espera é que venha a se sentir estimulado e
com predisposição de interagir e de cooperar no processo de construção do conhecimento.
- Mediação de Transcendência: transcendência da realidade concreta, “do aqui e agora” e
da tarefa aprendida, generalizando para posterior aplicação da compreensão de um
fenômeno aprendido em outros cenários e contextos.
Nesse processo o valor do aprendizado se faz quando o mediado consegue aplicá-lo
de fato, fora do contexto apreendido, descobrindo a aplicabilidade do referido aprendizado
em outras situações de sua realidade.
- Mediação de Significado: construção (estimulada pelo mediador) de significados que
permitam compreender a importância da aprendizagem e interpretar os resultados
alcançados.
Nesse processo, a relação com os afetos se apresenta de forma patente tendo em
vista que todo significado tem em sua gênesis cargas afetivas. Outra questão diz respeito a
leitura de mundo24
e os conceitos de significado que são específicos para cada indivíduo ou
grupo de indivíduos, fator que favorece a aproximação e a identificação com o referido
saber. Essa simpatia em relação ao conhecimento aproxima e facilita o processo de
aprendizagem, bem como um envolvimento emocional no processo.
Além destes três critérios considerados primordiais para o processo de
aprendizagem mediada, Feuerstein (1994) elenca mais nove que são: 01-Sentimento de
Competência; 02-Controle e Regulação da Conduta; 03-Comportamento de Compartilhar;
04-Individuação e Diferenciação Psicológica; 05-Conduta de Busca de Planificação e
Realização de Objetivos; 06-Desafio de Busca Pelo Novo e Complexo; 07-Percepção da
24
Termo usado pelo teórico Paulo Freire para designar que leitura não parte só da interpretação dos símbolos gráficos, mas antes dela ser feita, existem a leitura das coisas, ou a forma como cada um percebe e interpreta o mundo, e que essa leitura precede a interfere na leitura das palavras.
47
Consciência da Modificabilidade Humana; 08-Escolha da Alternativa Otimista e 09-
Sentimento de Inclusão. Identificamos em quase a totalidade dos critérios apontados por
Feuerstein, a aplicação nas salas de AA.
A EAM, assim como a experiência de existência em estado de dependência
química, possui características e fatores diversos. O tratamento do adoecimento da
dependência química só se mostrou eficaz, quando o mesmo passou a ser feito de forma
multidisciplinar, a bordando fatores diversos do referido processo.
A mediação naturalmente proporciona ao sujeito mediado o exercício da
autonomia, autonomia essa que ele terá que aprender também a possuir e fazer uso, com tão
bem defendeu Freire (1996), em sua pedagogia da autonomia.
Turra (2007) destaca que “essa autonomia por sua vez leva o mediado a exercer
naturalmente a função de mediador, quando consegue partilhar, descrever e aplicar a
aprendizagem construída no momento em que procura resolver as tarefas propostas. Nesse
caso o mediador possibilita ao mediado maior capacidade de comunicação estendendo-se às
necessidades de outros sujeitos” (p.306).
A função destacada pelo autor é claramente observada quando o dependente
químico em recuperação, seguindo as orientações do programa dos Doze Passos, inicia a
aplicação do 12º passo onde ele “procura levar esta mensagem a outros adictos”,
corroborando com a referida teoria.
Gomes (2002) destaca que a EAM, tem o seu foco no diálogo intencional entre o
emissor e o receptor da mensagem e não especificamente no conteúdo das informações. O
referido destaque nos leva novamente a Freire (1987) e à sua crítica ao conceito de
educação depositária, chamando-a de educação bancária 25
porque impossibilita o
desenvolvimento do pensamento livre e autônomo do sujeito.
Em lugar de comunicar-se, o educador fez “comunicados” e
depósitos que os educandos, meras incidências, recebem
pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a concepção
“bancária” da educação, em que a única margem de ação que
25
Conceito criado pelo educador Paulo Freire para designar uma educação depositária de informações, onde o professor só fala e não escuta e onde não há possibilidade de diálogo e questionamentos críticos por parte dos alunos.
48
se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos,
guarda-los e arquivá-los. Margem para serem colecionadores
ou fixadores das coisas que arquivam. No fundo, porém, os
grandes arquivados são os homens, nesta (na melhor das
hipóteses) equivocada concepção “bancária” da educação.
Arquivados, porque, fora da busca, fora da práxis, os homens
não poder ser. Educador e educandos se arquivam na medida
em que, nesta destorcida visão da educação, não há
criatividade, não há transformação, não há saber (Freire 1987,
p.33).
Conforme Turra (2007), para Feuerstein, a EAM, é importante porque acontece,
justamente, em interações sociais nas quais as pessoas produzem processos de
aprendizagem que lhes possibilitam apropriar-se de conhecimentos e reelabora-los,
chegando a elevados patamares de entendimento. A modificabilidade do sujeito é,
necessariamente, a modificação da relação do sujeito consigo próprio no e com o seu
entorno. Feuerstein (1980) destaca que “ [...] há uma relação dinâmica constante do sujeito
com o ambiente, estando ambos em movimento e interagindo com a realidade
sociocultural” (p.9).
Importante notar que as teorias de comprometimento cognitivo resultante do abuso
de drogas e sua relação com a dificuldade de aprendizagem, aqui não acham ressonância
em face aos estudos de Feuerstein. Em seus experimentos o psicólogo israelense, obteve
resultados significativos em paciente com comprometimento cognitivos como portadores
da Síndrome de Down e pessoas com danos cognitivos causados por traumas de guerra,
abusos, choques culturais ou extrema pobreza, deixando patente o valor de sua teoria diante
de um cenário tão desprivilegiado.
Turra (2007) também destaca outro ponto importante do processo de mediação de
Feuerstein, que diz respeito a tomada de consciência do processo, bem como as
possibilidades de escolhas, que devem ser um aspecto central do desenvolvimento humano
e exige que o sujeito, além de escolher, seja capaz de usufruir a transcender as
oportunidades sociais. A referida ação está alinhada ao segundo critério de mediação
apontado pelo autor que é a mediação de transcendência, onde o mediado consegue aplicar
a aprendizado fora do contexto aprendido, transcendendo para outros cenários.
49
É possível observar o referido critério se processar na ação estimulada dentro das
salas de AA, quando da indicação do 8º- (Fizemos uma relação de todas as pessoas a quem
tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados); 9º- ( Fizemos
reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando
fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem) e 12º passo - (Tendo experimentado um
despertar espiritual, graças a estes Passos, procuramos transmitir esta mensagem aos
alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades). A ação de reparação a
outras pessoas, bem como a prática de ajudar a outros que sofrem é apresentada nesses
passos como processo importante para a educação e recuperação.
Para Feuertein (1980), uma mediação educativa deve ter integrados três elementos:
o educador (ou qualquer pessoa que propicie desenvolvimento a outra), o aprendiz (ou
qualquer pessoa na condição de mediado) e as relações (tudo o que é
expressado/vivenciado no processo de ensino e aprendizagem). O primeiro - o
educador/mediador- realiza a valiosa função de ser um elo entre o mediado e o saber, entre
o mediado e o meio e entre o mediado e os outros mediados.
Entendemos que a EAM e as suas especificidades, fazem parte integrante do
processo de construção do conhecimento que acontecem no estudo da filosofia dos Doze
Passos nos grupos de Alcoólicos Anônimos. Importante notar que sua aplicabilidade
acontece, independente de ele ter sido aplicado de forma consciente ou não, o fato é que foi
possível observar que o mesmo se apresenta de forma patente durante todo o processo. O
mediador realiza a função de impulsionar a maturação da estrutura cognitiva do sujeito.
Tzuriel (1994) no que refere a mediação de Feuerstein, afirma que o mediador
modula os seguintes aspectos no processo de aprendizagem:
- Filtra os estímulos e “embala-os”, em um grau de ordem por valores de relevância;
- Modula a intensidade do estímulo de acordo com a necessidade do mediado;
- Intervém na capacidade do mediado para planejar e responder com eficiência, inibindo a
ação por impulsividade;
-Estabelece relações temporais e espaciais sobre o plano concreto;
50
- Promove a interpretação do mundo através do raciocínio intuitivo e /ou lógico,
relacionando-os com as necessidades mais imediatas;
- Extrapola o dia-a-dia, o aqui e agora da situação imediata, transcendendo relações e
produzindo “verdades” junto ao mediado.
Ao observar os referidos aspectos apontados por Feuerstein , entendemos que os
mesmos estão intimamente ligados às práticas que ocorrem na dinâmica das salas de AA,
haja visto a condução do estudo nas salas seguir um roteiro que está bem alinhado com os
referidos aspectos que incluem: apresentar o que vai ser estudado naquela hora, deixar claro
como a reunião ocorrerá no que se refere a tema, ordem das falas, acordos que facilitam o
andamento da mesma, intervenções em momentos específicos, estimulo ao trabalho fora
dos muros da associação etc. Embora não se tenha registros de que os fundadores da
irmandade de AA tenham ido buscar na metodologia de Feuerstein algum norte para suas
práticas, o fato é que é possível observar tais aspectos na dinâmica de estudos nas salas de
AA.
2.4 - A Democracia e a Liberdade de Jonh Dewey na prática do estudo dos Doze
Passos.
Westbrook26
(2010), destaca as contribuições do filósofo norte-americano Jonh
Dewey para a educação, quando desenvolveu e advogava a unidade entre teoria e prática.
O pensamento de Dewey baseava-se na convicção moral de que “a democracia e a
liberdade de pensamento são instrumentos para a maturação emocional e intelectual das
crianças” (p.8).
Como para ele a prática deveria está sempre em foco e estar unida a teoria. A
referida questão trouxe muitos questionamentos que dizem respeito a muitos considerarem
Dewey como um educador que não estava interessado nas questões teóricas das letras e em
26
Robert B.Westbrook, foi professor no Scripps College antes de ser professor da Universidade do Rochester (Nova York), onde é professor associado de História. Autor de numerosos artigos e ensaios sobre a história cultural e intelectual americana. È também autor de Jonh Dewey and the American Democracy e de Pragmatism and politics.
51
alfabetizar as pessoas. A questão, no entanto, não era essa, na verdade Dewey (1959)
lançava luz sobre o valor de uma aprendizagem significativa, cotidiana e que pudesse ser
exercitada.
Westbrook (2010) também destaca em seu livro, que Dewey estava convencido
que não havia nenhuma diferença na dinâmica das experiências de crianças e de adultos.
Que ambos são seres ativos, que aprendem mediante o enfrentamento de situações
problemáticas que surgem no curso das atividades que merecem seu interesse. Importante
notar que o processo de aprendizagem significativa que acontecem nas salas de AA, são
exatamente essas, tendo em vista o fato de que elas precisam estar sendo aplicadas
diariamente na vida cotidiana. Elas só se fazem de fato na prática e no enfrentamento de
situações reais, experiências de um dia de cada vez, com costumam explicitar nas reuniões
e de fato só se tornam prática cotidiana quando as mesmas têm significado para quem as
pratica.
Dewey não hesitava em afirmar que “a formação de certo caráter constituía a única
base verdadeira de uma conduta moral” (Dewey,1897b). Para ele a função principal da
educação em toda a sociedade é a de ajudar as crianças a desenvolver um caráter - conjunto
de hábitos e virtudes que lhes permitam realizar-se plenamente desta forma.
Nos grupos de AA, vimos a ressonância do referido teórico quando a atenção se
volta para a educação do sujeito, o conjunto de seus hábitos e virtudes e sua aplicabilidade
no seu cotidiano.
No Brasil, Dewey, inspirou o movimento da Escola Nova, liderado por Anísio
Teixeira e embora tenha sido conhecido como fazendo parte da corrente filosófica
conhecida como pragmatismo, ele preferisse o nome instrumentalismo. Para ele a
aprendizagem se dá quando compartilhamos experiências e isso só é possível em um
ambiente democrático, onde não haja barreiras ao intercâmbio de pensamentos. Ambiente
similar é encontrado nas salas de AA.
Teixeira (1971) destaca em sua obra sobre a pedagogia de Dewey, o valor dado a
experiência que sustenta essa prática, e sendo ela reflexiva, onde se atenta para o antes e o
depois do seu processo, faz com que haja aquisição de novos conhecimentos mais extensos
52
do que antes como resultado natural do processo. No processo de educação nos grupos de
AA, é patente que todo raciocínio pedagógico ali estabelecido está intimamente ligada as
práticas cotidianas dos membros do grupo e, o processo comparativo funciona como
referencial. Nesse momento a teoria só funciona quando de mãos dadas com a prática
como preconiza Dewey.
A educação para Dewey era um processo de reconstrução e reorganização da
experiência, pelo qual lhe percebemos mais agudamente o sentido, e com isso nos
habilitamos a melhor dirigir o curso de nossas experiências futuras. Essa contínua
reconstrução em que consiste a educação, tem por fim imediato melhorar pela inteligência a
qualidade da experiência.
Mais uma vez aqui esse processo é observado dentro dos grupos de AA quando da
reflexão e estudo das práticas necessárias para viabilizar a melhor experiência na vida
cotidiana através do estudo da filosofia dos Doze Passos. A educação acontece de forma
concreta por intermédio das experiências vividas inteligentemente. Nesse momento a
educação que afeta de forma significativa o indivíduo.
Quando pensamos na escola, identificamos a necessidade de que a mesma, deve
proporcionar práticas conjuntas e promover situações de cooperação, em vez de lidar com
as crianças de forma isolada. Dewey acreditava que, para o sucesso do processo educativo,
basta um grupo de pessoas se comunicando e trocando ideias, sentimentos e experiências
sobre as situações práticas do dia -a dia. Nesse ponto podemos dizer que o autor descreve a
exata prática nas salas de estudo nos grupos de AA.
Para ele o objetivo da escola é ensinar a criança a viver no mundo e que deve
oferecer aos alunos um material de instrução que é da vida. Nesse momento a educação
tácita e não formal naturalmente se apresenta na prática da experiência cotidiana e o
processo de crescimento se opera por uma constante reorganização e reconstrução da
experiência. Para Dewey de forma errônea, a aprendizagem na escola é extrínseca à vida,
por isso faz a referida crítica e traz atenção a essas questões e lança luz ao movimento da
escola nova.
Dewey (1959) dizia que educar, portanto, é mais do que reproduzir conhecimentos.
Aqui vemos nitidamente o que Freire (1998) mais à frente colocou como crítica a Educação
Bancária. É incentivar o desenvolvimento contínuo, preparar pessoas para transformar
53
algo. Dewey defendia a necessidade de preparar o aluno para a vida, promovendo constante
desenvolvimento e interação. Nesse sentido a educação é social. Nada se ensina nem se
aprende senão pela compreensão comum ou de um uso comum.
O referido autor, lança o olhar sempre para a prática e as questões cotidianas é o
interesse fundamental no processo de educação para a vida. Portanto aprender significa
adquirir um novo modo de agir, novo comportamento e como a aprendizagem deverá ser
reflexiva, a pessoa não somente poderá agir, mas agirá do novo modo aprendido, assim que
a ocasião que exija esse saber, apareça. Aqui novamente a aprendizagem transcende a sala
de aula como também corrobora Feustein (1994), com sua mediação de transcendência.
Essa é a grande questão que Dewey valoriza, a prática de mãos dadas com a teoria,
reforçando, ampliando o saber.
No que se refere a objetivos da educação (Dewey 2007) destaca: “Um objetivo
educacional deve basear-se nas atividades e necessidades intrínsecas (incluindo instintos
naturais e hábitos adquiridos) de determinado indivíduo a ser educado” (p.24). Aqui
novamente a ressonância nos grupos de AA quando a educação está intimamente ligada às
necessidades intrínsecas de cada membro do grupo que lá procura suporte.
Em outro momento Dewey (1959) traz atenção a educação ministrada por um
grupo, bem como a questão dos hábitos e aspirações do mesmo. É possível observar em seu
texto a ressonância com o que acontece nos grupos de AA quando afirma que “ toda
educação ministrada por um grupo tende a socializar seus membros, mas a qualidade e o
valor da socialização dependem dos hábitos e aspirações do grupo. Para terem numerosos
valores comuns, todos os membros da sociedade devem dispor de oportunidades iguais para
aquele mútuo dar e receber” (p.93).
Quando o pensamento reflexivo não é estimulado e trabalhado, as ações ficam à
mercê da impulsividade. Trazendo à atenção para o objeto de investigação em questão,
temos como exemplo, o adoecimento da dependência química que tem em seu cerne o
comportamento compulsivo, quando do desejo incontrolável de agir de determinada forma
sem refletir em suas consequências. Dewey (1959) traz a atenção para o valor do estímulo a
educação e o pensamento reflexivo quando diz que “o pensamento faz-nos saber a quantas
andamos ao agir. Converte uma ação puramente apetitiva, cega e impulsiva, em ação
54
inteligente” (p.26). Valiosa reflexão impulsionadora da necessidade de mudança e de
valiosos desdobramentos quando aplicados a temática da educação em saúde com atenção
voltada para o adoecimento da dependência química, em especial o alcoolismo.
Mais à frente em seu livro Dewey (1959), acrescenta a necessidade de dar e ter
sentido, bem como o valor das coisas que nos rodeiam, para pôr fim agirmos de forma que
possamos intencionalmente e deliberadamente controla-las. Quanto a essa questão Dewey
escreve que “somente quando as coisas que nos rodeiam têm sentido para nós, somente
quando significam consequências que poderemos obter se manejarmos essas coisas de certo
modo, somente então é que se torna possível controla-las intencionalmente e
deliberadamente” (p.27). Noção de significado e consequência é o que vemos no trabalho
educativo nas salas de AA e que por sua vez impulsiona mudanças.
Nesse processo reflexivo então é possível compararmos uma coisa ou
acontecimento como era antes com o que é depois de obtermos domínio intelectual sobre
ele e a partir daí, seguindo a teoria de Dewey, unindo a teoria à prática, transcender a outros
cenários da vida cotidiana com grandes ganhos a existência. É exatamente isso que
acontece nos grupos de AA, quando os membros se reúnem no estudo sistematizado dos
Doze Passos, partilham seus depoimentos encorajadores sobre o antes e o depois da
aplicabilidade do referido programa, comparado e decidindo caminhos a partir das referidas
comparações.
Similar aos conceitos sugeridos no AA, quanto as características que venham a
facilitar o trabalho educativo, a filosofia dos Doze Passos estimula ao membro do grupo a
ser e estar com “ a mente e coração aberto”, para receber o que chamam de “a graça da
sobriedade”, Dewey também salienta essa ação, o que chama de cultivar atitudes favoráveis
facilitadoras ao processo de aprendizagem.
No que se refere a atitudes facilitadoras ao processo de aprendizagem, Dewey
(1959) destaca três que são:1º- Espírito aberto (entendida como independência de
preconceitos, partidarismo e outros hábitos de cerrar a mente para novas ideias), 2º -De
todo coração (Quem esteja absolutamente interessado em determinado objeto, em
determinada causa, como dizemos “de coração” ou “de todo coração”, que aqui é
55
reconhecida como questões práticas e morais) e 3º- Responsabilidade (como a sinceridade
ou devotamento de todo coração, também a responsabilidade é comumente concebida como
traço moral, mais do que recurso intelectual). Novamente acha-se nas referidas atitudes
destacadas por Dewey, ações constantes e assinaladas nos grupos de AA.
Teixeira (1971) fala sobre o influxo das atitudes pessoais sobre a prontidão para
pensar relacionada às três atitudes mencionadas:
As três atitudes mencionadas, espirito aberto, de todo coração
ou responsabilidades de enfrentar as consequências, são em si
mesmas, qualidades pessoais, traços de caráter. Não são as
únicas importantes para o desenvolvimento do hábito de
pensar de maneira reflexiva. Mas as outras que se poderiam
apresentar constituem igualmente, traços de caráter, atitudes
morais, no sentido próprio da palavra, como traços, que são,
de caráter pessoal, merecedores de cultivo. (Teixeira 1971,
p.127)
Novamente acha-se nas referidas atitudes destacadas por Dewey (1959) e Teixeira
(1971), ressonância nas práticas educativas de AA, quando sempre destacam o valor da
mente aberta, boa vontade e honestidade para que a aprendizagem se faça. Nesse momento
mais do que o conteúdo a ser apreendido, o que vem à tona é a postura diante do conteúdo a
ser apreendido, bem como identificar de que maneira o indivíduo lança mão do que
apreendeu, deixando claro nesse momento o valor da educação do sujeito
Quando Dewey (1959), traz a atenção para o valor da educação e o pensamento
reflexivo, onde sua conquista está intimamente ligada a atitudes e escolhas, ele apresenta
como consequência a construção de um indivíduo que tem como prática ser
Intelectualmente Responsável.
Ser intelectualmente responsável é examinar as
consequências de um passo projetado; significa estar disposto
a adotá-las, quando seguem, como de razão, qualquer posição
já tomada. A responsabilidade intelectual assegura a
integridade, isto é, a consistência e harmonia da crença. É
comum ver-se pessoas continuarem a aceitar crenças cujas
consequências lógicas recusam a conhecer. Professam-nas,
56
mas não querem admitir os seus efeitos. O resultado é a
confusão mental (p.39).
A nova aprendizagem referente a um novo modo de vida que acontece nas salas de
AA, tem a atenção voltada para o processo reflexivo e a construção de um indivíduo
intelectualmente responsável, como defende Dewey e mais a frente veremos as
contribuições de Freire (1996) a esse respeito.
2.5 - Paulo Freire - A autonomia ao serviço da liberdade de escolha na prática
pedagógica.
Em Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa, Freire
(1996) traz reflexões valiosas sobre a autonomia e a prática docente, quando destaca que
ensinar não é transferir conhecimentos. Sendo assim, professor e aluno são sujeitos ativos
no processo de ensino e aprendizagem, nessa relação ambos aprendem juntos com o
estímulo a conquista da autonomia. Para ele os sujeitos autônomos são sujeitos críticos,
com maiores possibilidades de apropriação e recriação do conhecimento.
Similar a Dewey, Freire (1996), traz atenção a interrelação entre a prática e a
teoria, como pares essenciais e afirma que a prática sem teoria se torna ativismo e a teoria
sem a prática discurso. A prática precisa ser pensada para ganhar sentido e para que o
processo educacional seja compreendido, de modo que, dessa concepção, a docência seja
vista relacionada a discência. Destaca o autor:
[...] ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos, nem
formar, é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo
ou alma a um copo indeciso e acomodado. A docência
inexiste sem a discência, o professor não é o detentor do
saber, nem o aluno é destinado a ser apenas um mero
receptor, ambos são sujeitos ativos a sua condição de
aprendentes (p.25).
Ensinar não é um ato mecânico, pronto, é uma questão de construção e requer
metodologia. O docente precisa instigar, inquietar mexer com a curiosidade do seu
educando para que este tenha meios de aprender criticamente. Aqui fica patente a
aprendizagem reflexiva de Dewey e a mediada de Feuerstein.
57
Freire (1996) destaca ainda que o aprender criticamente não se faz através de
transferência, mas da construção, pois é na verdadeira aprendizagem crítica que os
educandos se transformam em sujeitos do processo. Quando os sujeitos passam a olhar o
mundo de modo inquieto e começa a indagar os porquês, há uma promoção da ingenuidade
à criticidade desenvolvendo a curiosidade epistemológica. A crítica faz parte da natureza
humana, ele considera que “somos seres históricos - sociais, nos tornamos capazes de
comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de decidi, de romper, por tudo isso, nos
fizemos seres éticos” (p.34). A escola é lugar para formação humana, por isso o pensar
certo é requerido.
O professor precisa ser o que defende, fazer o que se cobra, ser coerente. Aqui a
ressonância novamente com os grupos de AA, quando aquele que coordena os grupos de
estudo têm que necessariamente ter autoridade para isso e essa autoridade diz respeito a
agir como partilha o conhecimento. Essa é a autoridade reconhecida e que dá àquele que
conduz o estudo dos Doze Passos a condição de fazê-lo.
Além de associar seu discurso a sua prática, ter a generosidade para respeitar a
discordância alheia, pois pensar certo exige o risco do novo e ou do respeito ao novo. Para
Feire (1996), faz parte do pensar certo a rejeição de qualquer forma de discriminação. Por
isso o pensar certo é uma ação dialógica que tem que ser produzida entre o fazer e o pensar
fazer. Nos grupos de AA, o que é considerado regra é o fato de que ninguém pode se
colocar fazendo juízo de valor de ninguém e que o comportamento de confronto diante das
diferenças não tem lugar nas salas estudo. Nesse momento a democracia e a liberdade
preconizada por Dewey faz ressonância, no entanto haverá que estar de mãos dadas com o
respeito às diferenças.
No que se refere a necessidade de apontar às demandas a respeito do ato de
educar, Freire (1996) indica que ensinar exige reflexão crítica sobre a prática, quando
destaca: “uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as
condições em que os educandos em suas relações um com os outros e todos com o
professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se” (p.42)
Assumir-se para reconhecerem-se como agente ativo do processo de construção do
seu próprio conhecimento. O primeiro passo do roteiro dos Doze passos diz respeito a esse
58
“assumir-se”, pois traz a atenção para a responsabilidade individual quando do
“reconhecimento da impotência diante da droga”27
.
Freire (1996) defende a necessidade de construir o conhecimento e não transmitir.
Para construir é necessária humildade pois, parte da premissa que o outro vai estar nesse
processo e que o trabalho não é feito sozinho. A consciência real, do inacabado, de que algo
está sempre em constante movimento é a tónica da defesa do autor.
Quando fala sobre o respeito a autonomia do educando, isso naturalmente pede do
professor uma consciência plena de quem se é. Um professor que não tem plena
consciência do seu saber e/ou não saber, não irá conseguir trabalhar com alunos autônomos.
Esses mesmos alunos que ele mesmo estimulou a referida autonomia.
O exercício da autonomia implica em muitos casos discordância do aluno em
relação as práticas do professor, tal ação, faz parte do processo do referido exercício. Se o
professor não está ciente de quem ele é e faz, inevitavelmente entrará em confronto com o
aluno. O estímulo e o exercício da autonomia pedem do professor essa consciência plena de
quem se é, a fim de que a referida autonomia no aluno possa se manifestar em sua inteireza,
independente se na mesma, habita conteúdos considerados corretos ou não.
A famosa frase atribuída ao filósofo e historiador francês Voltaire (1694-1778),
pseudônimo de François-Marie Arouet, que defendia a liberdade de ser e pensar diferente é
capaz de traduzir muito bem a fala de Paulo Freire sobre o exercício da autonomia quando
diz: “Posso discordar daquilo que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito de o
dizer”.
Nos grupos de AA, o respeito a forma de pensar, perceber, entender e conduzir sua
vida é exercida por cada um dos membros. Umas das sugestões é que nenhuma expressão lá
produzida seja de julgamento, enfrentamento, embate ou disputa. O respeito às diferenças é
tônica nas reuniões, haja visto o 3º Passo - ( Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida
aos cuidados de Deus, na forma em que O concebíamos), que se relaciona a questão
espiritual e a ideia de Deus, que se apresenta na forma como cada um entende e percebe
essa entidade.
27
1º passo: Admitimos que éramos impotentes perante o álcool - que tínhamos perdido o domínio
sobre nossas vidas.
59
Como já destacamos anteriormente, mais do que o conteúdo a ser estudado, o
mesmo têm que estar de mãos dadas com a prática. A forma como o aprendente28
faz uso,
lança mão do que foi apreendido é fator intrínseco ao conhecimento adquirido. Semelhante
a Dewey quando diz que não se está vivendo em um momento e em outro momento
ensinando, trazendo assim a atenção para as práticas cotidianas, Freire (1996) diz: “o
mundo não é, ele está sendo” (p.39). Nesse momento coloca cada um como agente do
processo de construção do conhecimento, agentes da sua própria história e por isso capaz
de mudá-la se assim o desejar, par a passo com a teoria e a prática.
2.6 - Anton Makarenko: o coletivo como pedra fundamental.
Makarenko, professor na Ucrânia, país do leste europeu, marcou a história da
educação quando abraçou o desafio de dirigir um colégio interno na zona rural, cheio de
crianças e jovens infratores, muitos órfãos, que não sabiam ler e escrever de 1920 até 1928.
Sua atenção estava voltada para pôr em prática o ensino que privilegiava a vida em
comunidade e a participação da criança na organização da escola. Na sua gestão, concebeu
um modelo de escola baseado na vida em grupo, na autogestão, no trabalho e na disciplina,
contribuindo para a recuperação de jovens infratores.
Sua pedagogia tornou-se conhecida por transformar centenas de crianças e
adolescentes marginalizados em cidadãos. Organizava a escola como coletividade e levava
em conta os sentimentos das crianças na busca pela felicidade. Um conceito que só teria
sentido se fossem para todos. As crianças tinham direitos impensados na época que era de
opinar e discutir suas necessidades no universo escolar.
Luedemann (2002), aponta para a contribuição valiosa de Makarenko quanto a
forma de ver e tratar as crianças, quando destaca em seu livro: “foi a primeira vez que a
infância foi encarada com respeito e direitos” (p.117). Mais do que educar com rigidez e
disciplina ele quis formar personalidades conscientes principalmente com seu papel social e
coletivo, preocupados com o bem-estar do grupo e solidários.
28
Termo utilizado por Freira para designar àqueles que estão em situação de aprendizagem, seja alunos ou professores.
60
A ideia do coletivo preconizada pelo autor, no entanto, se opõe a visão massificada
e que despersonaliza a criança. O grupo estimula as individualidades no sentido de seu
desenvolvimento e a noção de coletividade trazia juntamente a noção de responsabilidade,
já que tudo estava interligado e todos dependiam de todos. Como exemplo, o trabalho
coletivo em oficinas que era amplamente estimulado.
A noção de responsabilidade, cumprimento de planejamento e metas construídas
coletivamente davam o norte do processo de construção da aprendizagem. Se houvesse
punição pelo não cumprimento das regras essas eram aplicadas depois de muita discussão
entre alunos e professores, sendo decididas assim conjuntamente.
Makarenko publicou em 1938 de forma incompleta o Livro dos Pais, onde tinha o
objetivo de mostrar a importância da participação da família na escola e na vida dos alunos.
Os pais que não conseguiam educar seus filhos deveriam ser reeducados por essa escola.
Criticava os pais “melosos” ou “ausentes”, dizendo que dessa forma seriam incapazes de
educar uma pessoa forte, madura e inteligente.
Para ele os alunos devem ter voz. A eles eram dados o direito de voto nas decisões
que diz respeito a sua dinâmica social e escolar onde transitavam. O espírito de grupo e
noção do valor da coletividade eram a tônica desse valioso educador. Apesar do olhar e
atenção para os direitos das crianças e liberdade para opinar, votar em assembleias para
decisões da própria escola, Makarenko também dava grande valor a disciplina e
questionava o excesso de permissividade. Aqui a noção de equilíbrio entre limites e
liberdade é que se apresenta como um grande desafio, no que se refere a poder mensurar,
dentro da teoria de Makarenko.
Em seu livro Poema Pedagógico, Makarenko (1975) escreve como que um diário
de campo, onde cada capitulo se destina a determinada circunstância vivenciada no período
em que era diretor do colégio interno. No referido livro as lições que o autor pretende
ensinar se fazem presentes na prática do seu dia a dia, no modo como conduz cada situação.
A exemplo, quando no início do seu trabalho na escola, entrando em contato com o antigo
funcionário que atendia pelo nome de senhor Kalina Ivanovitc, um contato um tanto tenso e
cheio de ruídos de comunicação no primeiro momento, o autor descreve: “Kalina Ivanovitc
61
tornou-se o primeiro objeto da minha atividade educadora. O que sobretudo me tornava a
tarefa difícil era encontrá-lo atafulhado das convicções mais diversas” (p.24).
Uma clara indicação de como o autor via a educação. O quanto seu olhar estava
voltado para as práticas cotidianas, assim como Dewey e como a educação se podia fazer
em qualquer ambiente e situação, trazendo nesse momento a transcendência da prática
educativa.
Autogestão, assembleia de turma, praticas cotidianas sendo valorizadas,
responsabilidade social e da coletividade, bem-estar do grupo, direito a voto, educação em
qualquer espaço etc, são elementos trabalhados diariamente nos grupos de AA durante seu
processo de educação do sujeito, assim como defendia Makarenko.
2.7 - Educação do Sujeito e Formação Humana
O processo de construção humana passa por várias eras conhecidas a exemplo
como sendo: a era da informação, da tecnologia e do conhecimento. Hoje esse
conhecimento pede criticidade, seleção, empoderamento e decisão. Um olhar coletivo e ao
mesmo tempo individual e singular, trazendo uma construção do sujeito de forma integral,
em todas as suas dimensões. Como destaca Boff (2003), é preciso pensar diferente e agir
diferente. Pensar outro modo de vida, valores e forma de convivência, ter a educação a
serviço da formação humana e educação moral.
Morin (2013) traz a atenção para o que chama de Antropoética (a ética em escala
humana), salienta que em nenhum lugar nos é ensinado a compreender os outros. Isso vai
mais além do que entender o ser humano não só como objeto, mas também como sujeito. É
a proposição de um trabalho coletivo, e o ensinar a compreender, destacado pelo autor,
carece de lugar para ser realizado.
Boff (2003) traz a atenção para o que chama de crise da perca de sentido e da
necessidade de filosofar no sentido de pensar a vida e como Morin (2000) sua crítica se
debruça ao homem como sujeito e não objeto e descreve que, no sistema capitalista em que
vivemos, o que se ama no indivíduo e a cabeça, os músculos etc. Não a pessoa, mas o que
nele pode virar mercadoria e nesse caso importante lembrar que existem coisas que tem
62
valor, mas não têm preço. Se faz necessário então, para falar sobre os problemas da
humanidade, ter uma visão sistêmica29
. Nesse momento a abordagem multidisciplinar no
processo de aprendizagem da filosofia dos Doze Passos nos grupos de AA, têm feito seu
papel. Sobre a necessidade de construção humana do sujeito, Tonet (2005) destaca:
[...] percebemos que não nascemos humanos, nos tornamos. É
nesse momento que descobrimos a natureza e a função social
da educação. Cabe a ela, aqui conceituada num sentido
extremamente amplo, a tarefa de permitir aos indivíduos a
apropriação dos conhecimentos, habilidades e valores
necessários para se tornarem membros do gênero humano
(p.25).
O grande desafio dos nossos dias é articular a educação e formação humana,
dentro de uma sociedade de consumo como a nossa atualmente. Questões e valores
subjetivos em que a filosofia e em certo grau a educação do sujeito se debruça. A educação
para a vida passa a ser o foco central nesse processo de construção humana.
Pestalozzi (1969), lança luz sobre o valor da educação moral quando escreve:
“...sou feito das forças físicas, sociais e morais. A primeira advém de minha natureza
animal; a segunda de minha associação com meus iguais; mas a terceira vem somente de
meu interior quando empenhado na virtude” (p.15).
Quando a irmandade de AA diz da prática do programa como sugestão e não a
obrigação, quanto sugere tomar essa ou aquela ação com o objetivo de obter determinado
fim, no caso a sobriedade, os conceitos de Kant (2006) fazem ressonância quando descreve:
Como, no entanto, o uso dos meios não tem outra necessidade
senão aquela que é atribuída ao fim, então todas as ações, que
a moral prescreve sob a condição de certos fins, são,
entretanto, acidentais e não podem ser designadas
obrigatoriedades enquanto não forem subordinadas a um fim
necessário em si.[...] fiquei convencido de que a regra “ faz o
mais perfeito que através de ti é possível” é o primeiro
princípio formal de toda obrigação de agir, assim como a
proposição “ abandona aquilo através do qual a maior
perfeição possível realizada por ti seja impedida”, é o
princípio formal em relação ao dever de se abster ( p. 103).
29
Consiste na habilidade em compreender os sistemas de acordo coma abordagem da teoria geral dos sistemas, ou seja, ter conhecimento do todo, de modo a permitir a análise ou a interferência no mesmo.
63
Kant (2006), quando se refere às regras de comportamentos que considera
importante a ser exercida pelo professor quanto ao processo de educar, saliente em seu
texto o valor de exercer uma ação educativa voltada para uma educação para a vida e para
a autonomia:
Por conseguinte, a regra de comportamento é esta: em
primeiro lugar, amadurecer o entendimento e acelerar o seu
crescimento, na medida em que o exercitamos em juízos de
experiências e o tornamos atento àquilo que lhe podem
ensinar as impressões comparadas dos sentidos. [...] Em
resultado, ele não deve aprender pensamentos, mas sim a
pensar; não devemos carrega-lo, mas sim conduzi-lo, se se
quiser que ele esteja apto, no futuro, a caminhar por si mesmo
(p.115).
Sobre a questão da necessidade de ter boa vontade, tão falada nos grupos de AA,
para que o processo de aprendizagem se faça, destaca Kant (1960) “...esta vontade não será
na verdade o único bem nem o bem total, mas terá de ser, contudo, o bem supremo a e a
condição de tudo o mais, mesmo de toda a aspiração de felicidade” (p.20).
No que se refere a questão da capacidade de julgar, condição importante para
tomada de decisões, saber julgar que caminho ou práticas tomadas, serão ou não valiosas
para o processo de recuperação, é algo que não se ensina. Kant (1980) destaca quando
afirma que “ o entendimento é capaz de ser instruído e abastecido por regras, mas que a
capacidade de julgar é um talento particular, que não pode ser ensinado, mas somente
exercitado” (p.102).
Nesse momento fica claro a importância da prática cotidiana para o fortalecimento
do conhecimento, com o papel de corroborar ou não com as teorias apresentadas como
afirma Dewey (1959) e Freire (1996), bem como o valor da experiência que fortaleça e
contribua para uma aprendizagem significativa ao longo da vida. Nesse aspecto a
UNESCO (1996) destaca como sendo essa educação a porta de entrada no século XXI.
Azevedo (2006), destaca:
64
Uma educação que já não se resume às escolas, que já não se
acantona na infância e na juventude, uma educação que já
não se confunde com o ensino. O que está em jogo é
aprender, aprender a todo tempo, em todo lugar e ao longo do
tempo de toda a vida, com a vida, porque este aprender é a
prender a ser. [...] não é só fomentar a aquisição de saberes,
mas também o desenvolvimento de competências, a aquisição
de novas atitudes, de novos comportamentos, novos modos
de vida em comum. O objetivo central do ensino-
aprendizagem não será a emissão de diplomas, mas a
construção lenta e quotidiana, responsabilidade de todos, de
formas superiores de vida comum (p.10).
É nessa perspectiva que a educação em saúde aplicada nos grupos de AA se
debruça, com a educação do sujeito. Um lugar onde se vai mais longe do que os currículos
propõem, se vai mais longe do que ensinar a se mover para viver abstêmio e sim viver
sóbrio. É uma aprendizagem para a vida, pois como os membros dos grupos de AA
destacam; viver sóbrio é diferente de viver abstêmio. Você pode estar abstêmio, mas são
está e ser sóbrio e a sobriedade é o grande objetivo dos que se encarceram na dependência
química, e nisso Azevedo (2006), destaca; “ é aprender a acolher o outro, aprender a
desenhar e fortalecer os laços humanos que, por mais débeis que sejam, são os espaços e
tempos que podem dar sentido à vida” (p.11).
Como recomenda a UNESCO (1996), a ideia central para a educação está em
ajudar cada um a conhecer-se, a conhecer o outro e a transformar a “interdependência real”
entre as pessoas em “ solidariedade desejada”. Não se trata de um discurso romântico e
irreal, é na verdade uma necessidade premente nos dias de hoje, características da
“modernidade líquida”, conceito tão discutido atualmente e trazido por Bauman (2003),
onde a liquidez, a incerteza, a fluidez, volatilidade e a insegurança são a tônica. As
constantes transformações, características do nosso tempo, assim como aponta o autor,
pede uma mudança também de paradigmas no que se refere as questões da educação do
sujeito, esse sujeito que está se movendo em uma sociedade líquida.
Quando a esse processo de aprender a ser, Azevedo (2007) chama de
“aprendente”, relaciona a importância das relações, bem como um espaço onde essa
aprendizagem se faz. Identificamos nitidamente as especificidades apontadas pelo autor,
65
acontecer nas salas de AA, com destaques para o trabalho em grupo, fortalecimento de
vínculos e interesses em comum.
[...] ninguém aprende a ser sozinho. A comunidade de
aprendizagem é uma longa mesa posta (e sempre posta), feita
de relações e de instituições fortes, de acordos, associações
de interesses e compromissos, projetos conjuntos, vínculos
sociais fortes, onde todos têm um lugar, independentemente
da sua idade. Do seu sexo, da sua origem social e do seu nível
de escolarização (p12).
O que se vê é uma ação socioeducativa que se desenvolve na comunidade - a
comunidade de aprendizagem que os membros do AA estão inseridos, em uma clara
manifestação da necessidade premente de se construir como sujeito pleno e apto para a
vida de significados.
66
SÍNTESE GERAL
Foi nossa intenção, ao abordar as temáticas dos capítulos 1 e 2, darmos a conhecer
no primeiro momento a problemática da dependência química, em especial o alcoolismo,
sua dimensão, complexidade e efeitos nocivos quer em escala individual como social.
Juntamente com a referida problemática, trazer a lume as estratégias educativas
desenvolvidas por uma associação de anônimos, os Alcoólicos Anônimos – AA, que há
cerca de 81 anos têm apresentados significativos resultados em detrimento de tantos
investimentos científicos, medicamentoso e psicoterápico. Apresentando nesse contexto o
processo de educação em saúde oferecido pelo programa de estudo sistematizado da
filosofia dos Doze Passos, desenvolvido pela referida associação, bem como a sua práxis
nas salas de AA.
Em um segundo momento nos debruçámos sobre a educação do sujeito, aspecto
desenvolvido nas salas de AA, e articulámos com os teóricos das ciências da educação que
oferecem subsídios para a referida prática. Destacámos as contribuições de quatro teóricos
que entendemos alinham com as práticas educativas de promoção da saúde eda educação
do sujeito nas salas de AA como: Feuerstein (1994), com a educação mediada, Dewey
(1959) com a tenção voltada a liberdade e a prática, Freire (1996), com a pedagogia da
autonomia, os diversos saberes e a criticidade e Makarenko (1975), com a defesa do
coletivo e assembleia de turma.
A fim de oferecer contribuições acerca do estudo em questão, considerámos
fundamental a articulação com o estudo empírico, ouvindo os sujeitos ativos desse
processo educativo, que são os coordenadores do estudo sistematizado dos Doze Passos
nas salas de AA em Portugal e no Brasil. Dessa forma acreditamos que poderemos além de
dar a conhecer as práticas educativas e estratégias pedagógicas existentes nessas salas,
também oferecer contribuições significativas para outros cenários de aprendizagem.
67
CAPÍTULO 3 – ESTUDO EMPÍRICO
3.1- Preâmbulo
Neste capítulo debruçamo-nos sobre o estudo empírico, descrevendo os primeiros
encontros com os membros do AA, bem como encontros com os pesquisadores na área.
Apresentamos a metodologia da pesquisa e os participantes do estudo. Fazemos, ainda,
considerações sobre o levantamento dos dados de cada entrevista referente à percepção e ao
entendimento dos coordenadores de grupo de estudo da filosofia dos Doze Passos para a
educação e controle do adoecimento da dependência química, em especial o alcoolismo.
Finalizamos com a análise e discussão dos resultados.
3.2- Metodologia da pesquisa
Esta investigação é uma pesquisa qualitativa que utilizou como instrumento para
a coleta de dados a entrevista direta com perguntas semiabertas. Foram entrevistados um
total de dez coordenadores do estudo da filosofia dos Doze Passos nos grupos de
Alcoólicos Anônimos, sendo cinco do Brasil e cinco de Portugal, no que se refere aos
aspectos educativos do estudo da filosofia dos Doze Passos nos referidos grupos.
A recolha dos dados foi feita, com os coordenadores portugueses, através de
entrevistas, tendo um guião previamente construído para tal fim, e quanto aos
entrevistados brasileiros, a coleta dos referidos dados também seguiu o mesmo guião,
mas o procedimento utilizado foi por escrito, via e-mail, em virtude da limitação do uso
da ferramenta tecnológica Skype, anteriormente planejada.
A entrevista está dividia em três blocos de perguntas, estando o seu foco centrado
em: a) o perfil dos coordenadores, como cada um sente, entende e percebe a sua função;
b) a questão do estudo dos Doze Passos; c) a importância e as especificidades que os
coordenadores atribuem ao estudo e ao grupo.
68
No que se refere ao perfil dos coordenadores, fizemos o levantamento relativa a
idade, tempo de coordenação, escolaridade, número de participantes do grupo
coordenado, postura e pré-requisitos para coordenar. Quanto à função de coordenar,
listámos como cada um entende e designa a sua função, como afeta e é afetado pelo
grupo e sobre as diferenças de compreensão do conteúdo quando coordena e quando é
coordenado. Sobre as questões do estudo, levantámos as diferenças entre fazê-lo em
grupo e individualmente, o uso da literatura e livros de destaque, os pré-requisitos para a
aprendizagem e fatores que facilitam o entendimento do estudo. Finalmente no que se
refere ao grupo, levantámos as contribuições do mesmo para a aprendizagem, fatores de
êxito do estudo em grupo, bem como os aspectos importantes das dinâmicas nas salas de
AA.
Em termos de procedimentos, começámos por recolher os dados dos
entrevistados portugueses, seguidos dos entrevistados brasileiros. Na continuidade
fizemos a análise dos dados, articulando com os teóricos das ciências da educação que,
entendemos, oferecem subsídios valiosos para a referida prática educativa nas salas de
AA. Finalmente procedemos às nossas conclusões, tendo por objetivo a formulação de
hipóteses para oferecer recomendações da sua aplicabilidade em outros cenários
pedagógicos e em especial nas salas de aula.
3.3- Participantes no estudo
Nesse ponto incluímos todos os participantes que de forma direta e menos direta
contribuíram para este estudo. De forma indireta obtivemos as contribuições do grupo de
Alcoólicos Anônimos - AA da freguesia dos Anjos em Lisboa, e de informantes chave
como o médico psiquiatra Dr. Domingos Neto, dedicado ao tratamento de álcool e outras
drogas, a doutora e pesquisadora em antropologia, Catarina Frois, que investigou sobre a
dependência, estigma e anonimato nas associações de Doze Passos, bem como três
membros de Alcoólicos Anônimos, sendo um de Portugal, um de Angola e outro do Brasil.
Com os participantes de forma direta, fizemos uma entrevista a dez coordenadores
do grupo de estudo dos Doze Passos nas salas de Alcoólicos Anônimos, sendo cinco de
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Portugal e cinco do Brasil. Iniciámos o estudo com as entrevistas aos coordenadores de
grupo de estudo nas salas de AA em Lisboa.
Concomitante às pesquisas em Portugal, fizemos os contatos com os
coordenadores de grupos de estudo da filosofia dos Doze Passos nas salas de AA no Brasil,
com a ajuda de um dos membros da irmandade no Brasil, a fim de realizar a referida
investigação, dessa vez por Skype. Durante o processo de investigação, no que diz respeito
ao Brasil, ficou patente a dificuldade em obtermos as referidas entrevistas via Skype, pois
esta ferramenta, para muitos dos coordenadores de grupo, se transformava em um
impedimento quanto à habilidade do seu uso. Por esse motivo optou-se por recolher os
referidos dados enviando as perguntas das entrevistas para que os mesmos respondessem
por escrito e enviassem via e-mail. Assim ocorreu e, finalmente, todos os dados
necessários foram colhidos.
3.3.1- Informantes chave
Os informantes chave aqui apresentados esclarecem algumas particularidades a
respeito dos caminhos que a investigação pode tomar, oferecendo, em muitos casos, um
valioso norte para o processo de pesquisa. Foi assim que obtivemos o contato e marcámos
um encontro com o Dr. Domingos Neto, renomado professor e psiquiatra responsável pela
implantação do Modelo Minnesota bem como a filosofia dos Doze Passos em Portugal.
Dr. Domingos Neto nos recebeu em seu consultório, onde em uma breve conversa
pudemos conhecer um pouco mais sobre o seu trabalho com a dependência química e um
pouco da sua história sobre o contato com o Modelo Minnesota e o estudo dos Doze
Passos, que se iniciou por volta do ano de 1986. O Dr. Domingos Neto informou-nos que,
nessa oportunidade, em uma comunidade terapêutica dirigido por ele, foi procurado por um
membro do AA que, naquele momento, fazia o pedido para usar o espaço a fim de realizar
reuniões da irmandade de AA, para estudo, ao que ele acedeu. No entanto o Dr. Domingos
Neto confessou que, na altura, lançava um olhar de descrédito quanto ao AA, bem como se
sentiu intrigado em ver um homem tão bem vestido se dizer alcóolatra em recuperação,
olhar esse bem diferente atualmente.
70
Foi em contato com a realidade dos grupos de AA, a partir desse encontro, que o
Dr. Domingos Neto, dez anos depois, em 1996, se desloca aos Estados Unidos da
América a fim de entrar em maior contato com o Modelo Minnessota e a filosofia dos
Doze Passos. De volta a Portugal, cria o Centro de Alcoologia de Lisboa e a sua trajetória
se apresenta cada vez mais consistente, oferendo um valioso contributo para a questão da
drogadição em Portugal. Questionado por nós sobre a sua visão a respeito dos aspectos
pedagógicos do estudo do programa dos Doze Passo nos grupos de AA, o mesmo
afirmou que, para ele, o referido programa não se reduz a um modelo psicopedagógico,
porque ele é muito maior que isso.
Em outra oportunidade, estivemos em Angola por três meses e aproveitámos a
para entrar em contato com os grupos de AA em Luanda. Tomámos conhecimento que na
Igreja da Sagrada Família, no centro de Luanda, existia um grupo que lá se reunia.
Através do endereço eletrônico do AA em Angola, entrámos em contato com um membro
do grupo que prontamente marcou um encontro conosco para uma conversa informal.
Importante destacar a facilidade de entrar em contato e a inteira disposição dos membros
em ajudar no que fosse possível, quando o assunto diz respeito aos grupos de AA. E
notória a atenção e a disposição de ajudar seja em que continente for, americano, europeu
ou africano pelos seus membros, a qualquer um que os procure.
O membro do grupo que neste estudo é designado por o nome fictício de João se
colocou ao nosso inteiro dispor. Ele, um trabalhador braçal em uma construção de um
centro comercial perto de onde residíamos, se prontificou em nos encontrar ao lado do
canteiro de obras, ao final do expediente.
Conforme a sua narrativa, Luanda contava com apenas dois grupos de AA, que os
mesmos eram pequenos, cerca de 4 a 6 membros, e que o primeiro grupo de AA em
Luanda se iniciou no ano de 2007. Fácil verificar o quanto esse grupo tem tido
dificuldade de crescer pois, nove anos depois, continua com o mesmo cenário frágil. No
entanto os que ali estavam, conforme nos relatava, eram quase sempre os mesmos, não
havendo novos membros.
Quando colocámos o assunto do processo de aprendizagem nesses grupos, ele se
antecipou para falar do nível de analfabetismo em Luanda, o que nos trouxe a impressão
71
de ser esse um dos elementos fundamentais para a pouca representatividade da
irmandade de AA em Angola.
Voltando a Portugal e a fim de iniciar o processo de investigação empírica com as
entrevistas, entrámos em contato telefônico com o AA de Lisboa e solicitámos um
encontro com algum membro a fim de poder explicar e apresentar o referido trabalho
investigativo e o pedido de ajuda nessa questão. Depois de alguns telefonemas e
encaminhamentos, fomos recebidas por uma distinta senhora, um membro de AA de
Lisboa, para uma conversa informal, como o objetivo de averiguar a possibilidade de
fazer um levantamento sobre os que poderiam ser objeto da nossa investigação. Em nossa
conversa sobre ser membro do AA e seu percurso, algo em especial nos chamou a
atenção, no decorrer da conversa, que descrevemos a seguir:
Quando eu entrei no AA, eu tinha algo muito forte em mente,
eu dizia: quero minha vida de volta, quero voltar a minha
vida antes de eu me tornar o que tornei uma alcoólatra, esse
era meu objetivo. Com o tempo fui descobrindo que não era
mais essa vida que eu tinha antes de me tornar uma alcoólatra
que queria de volta, essa vida também não era a melhor.
Queria a vida que tinha agora. Essa vida depois de passar
pela experiência do alcoolismo, é que é verdadeira vida!
A reflexão dessa senhora, quanto à sua vida antes e depois da experiência do
abuso do álcool, nos levou a Swora (2004) quando diz:
Para muitos membros, o alcoolismo torna-se uma “doença
divina”; os membros veem o seu alcoolismo como algo que
os conduziu a uma vida melhor e mais significativa do que
teriam tido caso não tivessem sido alcoólatras (p.206)
Ainda no processo de investigação do tema, entrámos em contato com a
publicação da Doutora em Antropologia Cultural e Social no Instituto de Ciências Sociais
da Universidade de Lisboa, Catarina Frois. O seu trabalho de investigação foi desenvolvido
junto das associações de Doze Passos em Lisboa, Portugal. Por e-mail, solicitámos uma
oportunidade para nos encontrar, para uma conversa mesmo que informal sobre o tema, do
qual se prontificou de imediato para um encontro ainda na mesma semana. Reunimo-nos
72
no Instituto Universitário de Lisboa- ISCTE, em um encontro rápido, mas proveitoso. Nos
falou sobre o seu trabalho de investigação e suas impressões sobre a investigação
desenhada por nós até àquele momento. Corroborou em grande parte com o nosso
raciocínio sobre educação em saúde e os caminhos por nós percorridos. Chamou a atenção
para o fato de que devemos estar muito atentos aos discursos dos entrevistados a fim de
observar as nuanças e subtextos neles contidos.
3.3.2- Coordenadores de grupo de estudo do AA
Os coordenadores de grupo de estudo dos Doze Passos nas salas de alcoólicos
Anônimos são o centro da pesquisa. Foram escolhidos os coordenadores de grupos pois
eles são os membros dos alcoólicos Anônimos que estiveram no papel de receptores /
estudantes do programa de estudo dos Doze Passos e depois passaram a exercer a função de
coordenadores do mesmo estudo do qual foram receptores/estudantes. São homens e
mulheres numa faixa etária que varia entre 40 e 70 anos, na sua maioria com escolaridade
de nível superior e com cerca de 10 anos na função de coordenação de grupo.
3.4 - Considerações sobre o levantamento dos dados das entrevistas.
Nas entrevistas foram investigados aspectos relacionados com o perfil dos
coordenadores, a função de coordenar o grupo, questões referentes ao estudo e ao grupo.
Apresentaremos a seguir os dados de cada um desses aspectos, sendo no primeiro momento
referente aos entrevistados portugueses, a que se seguem os entrevistados brasileiros. No
final apresentamos uma comparação e conclusão dos referidos dados (ver Anexos).
Quanto aos entrevistados portugueses foi possível observar o seguinte:
1- No que se refere ao perfil dos coordenadores de grupo, os mesmos têm entre
45 e 70 anos, 60% deles são do gênero feminino, têm uma média de 10 anos de
coordenação e o nível de escolaridade na sua maioria é licenciado. Coordenam em média
10 membros no grupo e destacam como perfil ideal para coordenar serem assertivos, não
protagonistas, empáticos, honestos, conhecer e ter experiência no assunto a ser trabalhado,
gostar de ler, ter boa vontade, conhecer as tradições, ter respeito e saber ouvir o outro.
73
2-No que se refere à função do coordenador de grupo nas salas de AA, descrevem
como entendem a referida função como sendo a de orientar, motivar as pessoas a seguir o
programa, conduzir o tema sem se sobressair ao assunto, dar a conhecer o programa de
forma clara e sem imposição. Em relação a afetar e ser afetado durante o processo de
estudo dos passos, todos são unânimes em dizer que o afetar e o ser afetado está
intimamente relacionado com a identificação que vierem a ter de cada partilha feita nos
grupos, quer seja uma identificação positiva ou negativa. No que se refere à existência ou
não de diferenças de compreensão do conteúdo quando estão a coordenar e quando se é
coordenado, todos concordam que sim. Descrevem alguns aspectos que consideram
relevantes como o fato de ao elaborar o raciocínio, bem como quando estudam para
coordenar um tema, o aprendizado se faz de forma mais efetiva e por isso o ato de
coordenar favorece mais o aprendizado, pois o comprometimento com o tema a ser
estudado é maior.
3- Quando respondem sobre as questões referente ao estudo dos Doze Passos, a
totalidade dos entrevistados concordam que estudar em grupo os referidos temas é de maior
valor do que individualmente, e atribuem esse valor ao fato de que, durante esse processo, a
partilha das experiências enriquece e facilita o entendimento dos temas estudados. Quando
falam sobre a literatura, descrevem o modo como cada um faz uso da mesma e 90% dos
entrevistados destacam o livro “Viver Sóbrio” como sendo o de maior importância para a
sua recuperação, seguida do livro “Alcoólicos Anônimos”. Referente aos pré-requisitos
necessários para facilitar o entendimento do estudo dos Doze Passos, 90% afirma que é
necessário ter boa vontade, humildade e mente aberta. No que se refere aos fatores que
consideram ser imprescindíveis para o entendimento do que é estudado, destacam o
respeito, as partilhas das experiências, o espírito de grupo e a crença de que se uns
conseguiram eles também podem conseguir, trazendo ali a questão da esperança.
4-Referente às questões relacionadas com o grupo, destacam que as contribuições
para o aprendizado se dão quando do sentimento de integração e pertença, um lugar onde se
pode expressar sem ser criticado, onde se pode ser ouvido e ouvir respeitosamente e
74
aprender com as experiências de todos. Quando questionados sobre os fatores que
consideram responsáveis pelo grande êxito do grupo, destacam como sendo o fato de terem
um programa simples de vida aplicado ao cotidiano, um programa de estudo constante onde
há o exercício dos passos e o cumprimento do programa. Outro destaque se refere ao fato
de ter um alcoólatra, um igual, conduzindo o estudo em grupo. No que se refere aos
aspectos importantes da dinâmica nas salas de AA, são destacados o fato de não haver
obrigatoriedade e sim sugestões, o fato de todos poderem e serem estimulados a falar, a
questão da ordem das intervenções e o respeito pela partilha de cada um, contribuindo
assim para o aprendizado do ouvir.
Quanto aos entrevistados brasileiros foi possível verificar os seguintes
elementos:
1-No que se refere ao perfil dos coordenadores de grupo, os mesmos têm entre
45 e 70 anos, 90% deles são do gênero masculino, têm uma média de 5 anos de
coordenação e o nível de escolaridade na sua maioria é licenciado. Coordenam em média
15 membros no grupo e destacam como perfil ideal para coordenar serem membros do AA,
ter experiências no serviço, ter liderança e ser facilitador, não monopolizar, saber manter a
ordem, ser sereno, ter conhecimento da literatura e saber encaminhar as questões na sala.
2- No que se refere a função do coordenador de grupo nas salas de AA, descrevem
como entendem a referida função como sendo a de passar o conhecimento do AA, acreditar
no programa, mostrar a aplicação na vida cotidiana, realizar um serviço para a irmandade e
liderar como serviço de ajuda. Em relação a afetar e ser afetado durante o processo de
estudo dos passos, todos são unânimes em dizer que o afetar e o ser afetado está
intimamente relacionado com a identificação que vierem a ter de cada partilha feita nos
grupos, onde a experiência é a grande mola propulsora na narrativa das histórias de vida.
No que se refere se à existência ou não de diferenças de compreensão do conteúdo, quando
estão a coordenar e quando se é coordenado, todos concordam que sim, há diferenças
valiosas quando o fazem em grupo. Descrevem alguns aspectos que consideram relevantes
como a troca de experiência, a comparação de antes e depois de aplicarem o programa, o
75
amadurecimento quando desenvolvem a escuta ativa e com isso a capacidade de aceitação e
empatia com o outro, facilitando assim o desenvolvimento individual e em grupo.
3- Quando respondem sobre as questões referente ao estudo dos Doze Passos, a
totalidade dos entrevistados concorda que estudar em grupo os referidos temas é de maior
valor do que individualmente, e atribuem esse valor ao fato de que, durante esse processo, a
partilha das experiências enriquece e facilita o entendimento dos temas estudados.
Destacam questões como: identificação com o outro, aprofundamento e melhor
compreensão da literatura quando em grupo. Quando falam sobre a literatura, descrevem o
modo como cada um faz uso dos mesmos e 80% dos entrevistados destaca o livro “Viver
Sóbrio” como sendo o de maior importância para a sua recuperação, seguida do livro
“Alcoólicos Anônimos”. Referente aos pré-requisitos necessários para facilitar o
entendimento do estudo dos Doze Passos, 90% afirma que é necessário ter boa vontade,
humildade e mente aberta, e 10% acrescenta a necessidade de se ter fé no futuro. No que se
refere aos fatores que consideram ser imprescindíveis para o entendimento do que é
estudado, destacam o fato de ser um serviço gratuito e haver o estímulo para dar de graça o
que receberam de graça. Outro ponto diz respeito ao fato de ser ele um programa de vida
simples com práticas cotidianas, bem como o fato de ser dirigido por outro alcoólatra.
4-Referente as questões relacionadas com o grupo, destacam com grande ênfase o
valor do mesmo para a recuperação. Relatam o valor das narrativas e da dinâmica com as
trocas de experiências que trazem identificação e fazem crescer individualmente. Quando
questionados sobre os fatores que consideram responsáveis pelo grande êxito do grupo,
destacam como sendo o fator preponderante a unidade do grupo, o aprofundamento dos
conhecimentos de forma constante e o ouvir e passar adiante exercendo o que sugere o 12º
passo. No que se refere aos aspectos importantes da dinâmica nas salas de AA, 90%
menciona o fato de poderem se expressar sem se sentirem julgados ou interrompidos; outro
destaque diz respeito a haver várias formas de levar a mensagem.
76
.5- Análise e discussão dos dados
A apresentação dos quadros abaixo segue uma estrutura por categoria e
subcategorias, conforme guião de perguntas das entrevistas. Os dados estão tratados por
percentual e a partir da análise dos entrevistados portugueses e brasileiros.
Relativamente ao perfil dos coordenadores, não iremos nos deter aos dados
quantitativos dos entrevistados, mas analisaremos com atenção a subcategoria que diz
respeito ao entendimento dos coordenadores e aos requisitos necessários para a prática de
coordenação nas salas de AA, pois endentemos que a referida subcategoria nos oferece
subsídios teóricos significativos para a nossa investigação.
Quadro 1- Perfil dos Coordenadores
ATEGORIA SUBCATEGORIAS INDICADORES/ MÉDIA
Perfil
Dos Coordenadores
- Idade e Gênero
Entrevistado Português Entrevistado Brasileiro
- 55 Anos.
- 80% Feminino.
-50 Anos.
- 90% Masculino.
- Tempo de Coordenação - 13 Anos. - 4 Anos.
- Nível de escolaridade - Licenciado. - Licenciado.
-Nº de participantes da
reunião que coordena - 10 -16
- Requisitos para
coordenar
- 40% ser assertivo e ter
experiência, ter boa vontade
e conhecer o assunto.
- 30% saber ouvir.
-30% outros
- 60 % ter conhecimento
- 40% ser facilitador
No que se refere ao perfil dos coordenadores, os entrevistados portugueses têm no
gênero feminino a sua maioria, e uma média de idade de 55 anos. Apresentam um tempo
médio de 13 anos de coordenação com nível de escolaridade de licenciado. Têm um
número médio de dez participantes por reunião e destacam, como requisitos importantes
77
para coordenar, características como ser assertivo, ter experiência, boa vontade, conhecer o
assunto e saber ouvir.
Importante perceber o que os coordenadores de grupo de estudo português
apontam como sendo requisito necessários para coordenar. Quase que a metade deles
destacam características como ser assertivo, ter experiência, boa vontade e conhecer o
assunto. A questão da experiência é o grande elemento, o que nos leva para Dewey (1959) e
o valor atribuído por ele à experiência para um aprendizado significativo.
No que se refere ao perfil dos coordenadores, os entrevistados brasileiros têm no
gênero masculino a sua maioria, e uma média de idade de 50 anos. Apresentam um tempo
médio de 4 anos de coordenação, com nível de escolaridade de licenciado. Têm um número
médio de dezesseis participantes por reunião e destacam como requisitos importantes para
coordenar, ter conhecimento do que está a falar e ter habilidade em facilitar o grupo.
Nesse aspecto os coordenadores brasileiros chamam a atenção para o conhecimento
do assunto e em especial ao modo de trabalhar esse conhecimento, trazendo o foco para a
ação, bem como de se ter habilidade de facilitar a aprendizagem dentro da sala. Nesse
aspecto a teoria de Feustain (1994), Experiência de Aprendizagem Mediada – EAM,
cumpre o seu papel, em especial a mediação de intencionalidade e reciprocidade.
Fazendo uma análise comparativa do quadro do perfil dos coordenadores
portugueses e brasileiros no que se refere a idade e o gênero foi possível observar, em nossa
amostra, que as mulheres são a maioria em Portugal, diferente do Brasil, onde os homens
são a maioria, embora tanto o portal PORDATA30
em Portugal , como o IBGE31
no Brasil,
acuse a maioria da população feminina. Concomitante a isso a idade média das mulheres
em Portugal é um pouco mais acima da idade média dos homens no Brasil. Fator ao que
nos parece previsível quando studos apresentados pela OMS32
em 2014 apontam Portugal
como fazendo parte do ranking dos dez países onde as pessoas vivem mais tempo, e
somando a isso, o fato das mulheres portuguesas terem uma maior expectativa de vida. No
entanto pesquisas realizadas tanto em Portugal, pela World Health Statistics 2014, como no
30
PORDATA é uma base de dados sobre Portugal contemporâneo com estatísticas oficiais e certificadas. Todas as suas informações provêm de entidades oficiais como Instituto Nacional de Estatística ou Eurostat. 31
IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 32
OMS – Organização Mundial da Saúde.
78
Brasil, pelo Ministério da Saúde em 2010, apontam para o aumento considerável do
número de mulheres dependentes do álcool.
Importante ponderar o porquê de nos dois países haver mais mulheres que homens,
e concomitante a esse dado o de que elas têm aumentado também em número no que se
refere ao abuso de álcool, porque no Brasil o número de coordenadores do gênero feminino
é menor, levando em conta o fato de que, historicamente, as mulheres são mais dedicadas a
questões referentes ao ensino. Entendemos que uma pesquisa antropológica com atenção
voltada para a questão do gênero e a relação com o preconceito de que a mulher também
detém na problemática do alcoolismo, pode vir a responder a essas questões.
No que se refere ao tempo dedicado ao serviço de coordenação, há uma distância
considerável de tempo; enquanto em Portugal há uma média de 13 anos, no Brasil o tempo
médio é de 4 anos. No que se refere a esses questionamentos, alguns entrevistados
apontam a questão da rotatividade no serviço de coordenação, umas práxis do AA, para que
não haja o que chamam de protagonismo, e que os princípios do AA estejam acima das
personalidades. Portanto, se há a orientação do grupo para que haja rotatividade a fim de
que não se permaneça muito tempo em determinada função, porque há um número maior
de permanência de coordenador na função em Portugal do que no Brasil?
Não atribuímos a esse fato o não cumprimento das orientações da irmandade de
AA e sim ao fato de que há um número menor de grupos, bem como de tempo de existência
em Portugal em comparação ao Brasil, o que se justifica também no que se refere ao
número médio de participantes dos grupos, tendo em consideração a diferença de densidade
demográfica dos dois países, bem como o fato do AA ter sido implantado no Brasil 25
anos antes do que em Portugal, acarretando com isso a possibilidade de uma maior
sensibilidade e conhecimento por parte brasileiros quanto à problemática da dependência
química e às estratégias de educação em saúde implementadas pelo AA.
No que se refere ao nível de escolaridade, importante perceber que, em ambos os
países, a média diz respeito a coordenadores licenciados e que, por isso, acreditamos,
ambos destacam como requisito para coordenar ter conhecimento do assunto do qual vai
coordenar, valorizando assim o estudo.
79
Quadro 2- Função dos Coordenadores
CATEGORIA SUB-CATEGORIAS INDICADORES/ MÉDIA
Função
De
Coordenadores
- Como designa a função.
Entrevistado Português Entrevistado Brasileiro
-70% orientar o grupo
- 30% outros
- 30% função de liderar
-70% outros
- Como afeta e é afetado
no grupo.
- 100% quando partilham e
recebem experiências dos
membros do grupo.
- 100% quando partilham e
recebem experiências dos membros do grupo.
- Se há diferenças de
compreensão do conteúdo
quando coordena e quando
é coordenado.
- 100% sim, quando
coordena o aprendizado é
maior, pois há maior
comprometimento do estudo
e maior atenção ao
depoimentos dos demais.
- 90% sim, quando coordena o
aprendizado é maior. pois há
maior comprometimento do
estudo e maior atenção ao depoimentos dos demais.
No que se refere à função dos coordenadores, os entrevistados portugueses, 70%
deles, atribuem a essa função o papel de orientar. As demais especificidades da função,
cerca de 30%, estão relacionadas a não ser protagonista nem exercer imposições.
Importante perceber que todas as especificidades destacadas pelos coordenadores
portugueses estão intimamente relacionadas com uma atitude de encaminhar de forma não
impositiva e em não se destacar dos demais.
Quando questionados sobre como se sentem afetados e como afetam dentro da
função de coordenador, todos relacionam com o processo de partilha das experiências uns
dos outros dentro das salas de AA. O valor atribuído a essa dinâmica é imenso e se estende
quando nas entrevistas falam a esse respeito, como exemplo quando relatam:
“...a experiência daquele que já vivenciou é importante
para aquele que está a começar. A experiência da partilha
do passo que estamos a falar tem... fica mais rico”.
“Eu sou afetado muito com a realidade da vida de outra
pessoa. A tal identificação em que eu vou buscar
identificação da minha, seja do passado seja do presente
com o outro. Portanto isso afeta-me e isso sempre de forma
positiva, pode ter alguma memória, alguma recordação
menos boa, mas o que é verdade que até isso me ajuda a
olhar para ela e arrumar isso. E penso que ao contrário
80
também acontece. Acho que a identificação é a palavra-
chave”.
Quando perguntados sobre a diferença de compreensão do conteúdo quando
coordena e quando são coordenados, 100% enfatiza que a função de coordenar oferece para
os mesmos a possibilidade de aprofundamento e comprometimento com o estudo. Segue-se
alguns fragmentos nos depoimentos dos entrevistados portugueses:
“Sim, há diferença. Quando eu falo eu elaboro o raciocínio
e assim fico mais próximo do entendimento”. “Sim há
diferença, quando eu me escuto eu me situo e quando eu
escuto o outro eu me identifico”. “Há diferença, porque
espera-se que quando eu falo, eu tenha estudado antes
melhora minha aprendizagem”.
No que se refere à função dos coordenadores, os entrevistados brasileiros, embora
não sejam uma maioria, 30% deles, atribuem a essa função o papel de liderar. Entre outros
aspectos apontados pelos entrevistados, observamos com especial atenção a atribuição do
aspecto espiritual, nas respostas descritas por alguns deles, o que nos leva à conhecida
compreensão de muitos sobre a função de ser professor, como sendo a de exercer uma
missão, trazendo em seu cerne o elemento espiritual/religioso da função.
“A função de acreditar no programa dos Doze Passos e
mostrar a aplicação dele na vida cotidiana”. “A função de
realizar um serviço para a irmandade”.
Quando questionados sobre como se sentem afetados e como afetam dentro da
função de coordenador, 100% dos entrevistados brasileiros aponta para a experiência de
ouvir os depoimentos de vida dos demais, como a grande chave para o processo de
aprendizagem significativa. Seguem-se algumas afirmações que trazem grande validade ao
valor e significado da partilha de experiências na fala de todos os entrevistados:
“Nas trocas constantes das experiências de recuperação”.
“Na identificação das experiências dos outros”. “Sou
afetado pela mudança de vida que os seguidores dos Doze
Passos conseguiram em suas vidas”. “Sou afetado na hora
da partilha, quando me identifico com o companheiro”.
81
“Sou afetado na partilha minha e do outro que conta sua
história de vida”.
Neste particular, a teoria de Dewey (1959), sobre o valor da experiência, e a
necessidade de se ter esperança apontada por Feire (1987), para que o processo de
aprendizagem se faça, reverberam neste momento.
Quando perguntados sobre a diferença de compreensão do conteúdo quando
coordenam e quando são coordenados, 90% aponta para a função de coordenar como sendo
a de mais valia para o processo de aprendizagem. Segue-se alguns fragmentos dos
depoimentos de alguns dos entrevistados brasileiros:
“Sim, há diferença. Muda mais quando você escuta o
outro”. “Sim. A aceitação faz com que escutemos e
aceitemos boas sugestões, melhorando minha auto
percepção da minha recuperação”. “Sim. Quando eu me
escuto eu amadureço mais a compreensão da minha
doença”.
Fazendo uma análise comparativa do quadro referente á função dos coordenadores
aos entrevistados portugueses e brasileiros, foi possível observar que embora não haja uma
similaridade nas respostas no que se refere à sua maioria, pois enquanto um grupo diz
respeito a orientar o outro diz respeito a liderar, ambos destacam outros aspectos
fundamentais que nos remetem a Freire (1996) e à sua crítica a educação bancária, vertical
e autoritária, e a Feustain (1994) com a sua atenção voltada para a mediação, quando
chamam a atenção para o não protagonismo dos que coordenam: deixar fluir os assuntos
em sala e só intervir quando necessário, trazer os assuntos de forma clara e sem imposição.
A mediação de controle e regulação de conduta faz ressonância, nesse momento.
No que se refere a afetar e ser afetado dentro do processo de coordenação do estudo
em grupo nas salas de AA, todos os entrevistados portugueses como brasileiros apontam
para o valor da partilha das experiências como condição fundamental para o processo de
aprendizagem efetiva. Quanto à diferença de compreensão dos conteúdos quando coordena
e quando é coordenado, quase que a totalidade dos entrevistados nos dois países afirma que
o ato de coordenar contribui de forma mais significativa para o processo de aprendizagem.
82
Destacam que, dentro do referido processo, há a aprendizagem da escuta ativa, condição
indiscutivelmente assinalada por eles para uma aprendizagem significativa.
É possível observar nessas características assinaladas pelos entrevistados
portugueses e brasileiros, a mediação preconizada por Feuerstein (1980) como a Mediação
de Comportamento de Partilha e a Mediação de Sentimento de Inclusão. A Mediação de
Significado surge para que permitam compreender a importância da aprendizagem e
interpretar os resultados alcançados.
Quadro 3- Sobre o estudo dos Doze Passos
CATEGORIA SUB-CATEGORIAS INDICADORES/ MÉDIA
Sobre o estudo dos
Doze Passos
- Diferença e valor do
estudo em grupo e
individual.
Entrevistado Português Entrevistado Brasileiro
- 100% estudo em grupo é
mais valioso, em virtude da
partilha das experiências
- 100% estudo em grupo é mais
valioso, em virtude da partilha
das experiências
- Como faz uso da
literatura.
-100% ler regularmente - 90% ler regularmente
- Literatura de destaque. - 90% livro “AA” e “Viver
Sóbrio”.
-10% outros .
- 90% livro “AA” e “Viver
Sóbrio”. -10% outros .
-Pré requisito para
compreender o estudo
- 80% mente aberta e boa
vontade.
- 20% outros
-90% mente aberta e boa vontade -10% outros
- Fatores que facilitam o
entendimento do estudo. - 60% a partilha do outro.
- 40% outros
- 60 % ser gratuito e replicado
pelos demais.
- 20% ser prático, simples e
cotidiano.
- 20% outros
No que se refere ao estudo dos Doze Passos, os coordenadores portugueses, em
sua totalidade, destacam o valor do estudo em grupo em detrimento do estudo individual.
A esse estudo em grupo associam a importância dele para o aprendizado, pela possibilidade
de entrar em contato com os depoimentos das experiências dos membros do grupo.
83
Destacamos alguns depoimentos dos entrevistados portugueses contidos nas entrevistas
sobre o referido tema:
“Muita diferença. Em grupo a partilha e a experiência
enriquece o aprendizado”. “Em grupo o estudo é mais
importante pelas partilhas das experiências”.
Individualmente é perigoso. É necessário a partilha das
experiências para facilitar a aprendizagem”. “O programa
funciona porque há o outro. Por isso o grupo é essencial”.
“Eu acho que ganho muito mais se eu estudar em grupo”.
Quando perguntado sobre o uso da literatura e qual deles destacam como valioso
para o seu processo de aprendizagem, 100% deles afirmam ler regularmente e 90% deles
destacam os livros Alcoólicos Anônimos e Viver Sóbrio, como material didático que mais
contribui para o seu processo de aprendizagem. Questionados sobre qual pré-requisito
consideravam importante para compreender o referido estudo, quase que a totalidade deles
afirma ser: ter mente aberta e boa vontade. O que se vê é um apontar para a qualificação
humana e não acadêmica. Àqueles que podem compreender o programa de estudos são
todos indistintamente dispostos a ter mente aberta e boa vontade. Não há necessidade de
formação X, Y e Z, em qualquer que seja a área, podendo inclusive analfabetos
compreender o estudo, graças à dinâmica das partilhas que trazem o conhecimento através
da oralidade, nem tão pouco diz respeito a faixa etária (aqui não incluem crianças).
Perguntados sobre os fatores que facilitam o entendimento do estudo, 60% deles
sinalizam para a questão da partilha das experiências. Outros aspectos importantes
assinalados, dizem respeito a ser um estudo conduzido por um alcoólatra e a perspectiva de
esperança tão bem apontada por Freire (1996). Vejamos alguns fragmentos dos referidos
testemunhos sobre o que cada um aponta como fatores que facilitam o entendimento do
estudo.
“O respeito as partilhas e o espirito de grupo”. “Ser
conduzido por um alcoólatra, pois só um alcoólatra
entende um outro alcoólatra e a partilha das experiências”.
“Não sei bem, acho que é eu saber que outros conseguiram
eu também posso conseguir”. “A partilha é a grande
chave”.
84
Novamente identificamos a EAM dentro das salas de AA, quando da Mediação de
Comportamento de Compartilhar, de Individuação e Diferenciação Psicológica e a
mediação de Sentimento de Inclusão. Identificamos que o coordenador, mesmo que
algumas vezes não tenha consciência disso, realiza a função de modular alguns aspectos no
processo de aprendizagem como destacou Tzuriel (1994) em relação a EAM. Conseguimos
identificar nas respostas aos questionamentos referente aos fatores que facilitam o referido
estudo, os aspectos apontados pelo autor como: Filtra os estímulos e “embala-os”, em um
grau de ordem por valores de relevância; Modula a intensidade do estímulo de acordo com
a necessidade do mediado; Intervém na capacidade do mediado para planejar e responder
com eficiência, inibindo a ação por impulsividade; Estabelece relações temporais e
espaciais sobre o plano concreto; Promove a interpretação do mundo através do raciocínio
intuitivo e /ou lógico, relacionando-os com as necessidades mais imediatas e Extrapola o
dia-a-dia, o aqui e agora da situação imediata, transcendendo relações e produzindo
“verdades” junto ao mediado.
No que se refere ao estudo dos Doze Passos, os coordenadores brasileiros, em sua
totalidade, destacam o valor do estudo em grupo em detrimento do estudo individual. A
esse estudo em grupo associam a importância dele para o aprendizado, os depoimentos dos
demais do grupo e a troca de experiências. Destacamos alguns depoimentos dos
entrevistados brasileiros contidos nas entrevistas sobre o referido tema.
“Em grupo o estudo traz mais compreensão pela
identificação com o outro”. “Individualmente não
funciona. Em grupo com a experiência viva de cada um a
mudança é afetiva”. “Em grupo há o enriquecimento do
conteúdo da literatura”. “As duas são muito importantes,
mas em grupo é mais profundo”. “O estudo é individual,
mas sendo ele feito em grupo, é melhor pela troca de
experiências”.
Quando perguntado sobre o uso da literatura e qual deles destacam como valioso
para o seu processo de aprendizagem, 90% deles afirmam ler regularmente e 90% deles
destacam os livros Alcoólicos Anônimos e Viver Sóbrio, como material didático que mais
contribuiu para o seu processo de aprendizagem. Perguntados sobre qual pré-requisito
85
consideravam importante para compreender o referido estudo quase que a totalidade deles
afirmam ser ter mente aberta e boa vontade.
Perguntados sobre os fatores que facilitam o entendimento do estudo, 60%
associa ao fato de ser ele disponibilizado a todos de forma gratuita e em ser replicado por
um igual, um alcoólatra em recuperação. Ainda destacam o fato do roteiro de estudo ser
prático, simples e cotidiano. Vejamos alguns depoimentos:
“Ser gratuito, ser realizado por alcoólatras e aplicação do
12º Passo”. ‘O fato de dar de graça o que recebeu de graça
e a pratica dos Doze passos”. “Eu acho que é o fator de
ouvir e passar adiante. Dar de graça o que recebeu de
graça”. “Ser ele um programa de vida com princípios
espirituais para a prática cotidiana”.
Fazendo uma análise comparativa do quadro referente ao estudo dos Doze Passos,
dos entrevistados portugueses e brasileiros, foi possível observar que há uma grande
similaridade em quase todos os questionamentos. 100% deles concordam em que o estudo
em grupo tem mais valia, e que isso se dá em virtude da possibilidade de ter depoimentos
de experiências compartilhadas. O mesmo quando se referem a prática da leitura regular. E
algo em especial nos chamou a atenção: o fato de todos os entrevistados destacarem
exatamente os mesmos dois livros como material didático de maior valia para o processo de
aprendizagem.
O livro Alcoólicos Anônimos é o livro básico e primeiro a ser escrito, onde há
nele os depoimentos dos fundadores da irmandade, bem como a criação e aplicabilidade do
programa de estudo que se construiu a partir de ensaio e erro em um processo extremante
empírico. O livro Viver Sóbrio traz um roteiro de perguntas e respostas de situações
cotidianas a serem enfrentadas de forma prática e simples. É possível observar na própria
literatura eleita pelos membros, o perfil de programa de estudo que funciona: Ser simples,
fácil de compreender por ser cotidiano e com partilha de experiência. Não há
distanciamento no programa de estudo seja ele em sala ou na própria literatura.
No que se refere aos pré-requisitos para a compreensão do estudo não se vê em
nenhuma das respostas, quer dos portugueses ou dos brasileiros, menção sobre formação
86
escolar. Todas dizem respeito a experiência e disposição de aprender. Novamente a
experiência como situação Sine Qua Non de facilitação do processo de aprendizagem, nos
levando a Dewey (1959), quando destaca o espírito aberto como uma das atitudes
facilitadoras ao processo de aprendizagem.
Quadro 4- Sobre o grupo das salas de AA
CATEGORIA SUB-CATEGORIAS INDICADORES/ MÉDIA
Sobre o grupo das
salas de AA
- Contribuição do grupo
para o aprendizado
Entrevistado Português Entrevistado Brasileiro
- 100% de contribuição com
fatores distintos, entre eles,
sentimento de confiança,
aceitação,
responsabilidade...
- 100% de contribuição com os
depoimentos de experiências de
vida.
- Fatores de êxito para o
estudo.
- 100% apresentaram fatores
distintos, entre eles, ser um
programa simples e
cotidiano, a constância e ser
dirigido por um alcoólatra.
- 100% apresentaram fatores
distintos, entre eles, a unidade
do grupo, o apadrinhamento,
aprofundamento de
conhecimentos...
- Aspectos importantes na
dinâmica das salas de AA.
- 70% o fato de todos
poderem falar.
-30% outros
- 70% o fato de todos poderem
falar. 30% outros
No que se refere ao grupo das salas de AA, os coordenadores portugueses, em sua
totalidade, destacam as contribuições do grupo para a sua aprendizagem e elencam
contribuições diversas e significativos aspectos como o sentimento de confiança, aceitação
e noção de responsabilidade que o grupo aciona dentro deles. Chamam a atenção para as
dinâmicas do processo de construção do conhecimento dentro das salas. Destacamos alguns
depoimentos dos entrevistados portugueses contidos nas entrevistas sobre o referido tema:
“O grupo me dá o sentido de integração e aceitação”. “Me
faz sentir que eu tenho um lugar para chamar de meu e isso
me deixa à vontade para eu me desenvolver”. “A noção de
87
responsabilidade, humildade e confiança. Isso me ajuda no
meu aprendizado”. “Ele me trouxe um conjunto de
vivências importantes que eu não teria sozinho”. “Me
contribui muito quando me mostra a necessidade do
respeito a fala do outro. Noção de honestidade e
responsabilidade”.
Dewey (1959) já preconizava a esse respeito quando afirmava que as partilhas das
experiências só se dão em um ambiente democrático, exatamente o que se observa nas salas
de AA. Outro fator importante diz respeito ao valor atribuído ao clima nas salas que
permite um sentimento de pertença, integração e confiança, nos leva a Freire (1987),
quando traz a atenção para que a escola seja um ambiente de prazer e alegria, um lugar
onde se cultiva a esperança. Makarenko e a sua atenção voltada para o coletivo repercute-se
nas salas de AA.
Quando perguntado sobre os fatores que poderiam elencar para que se justificasse
o êxito durante tanto tempo do referido grupo, vários são os fatores apontados, dentre eles,
aspectos como o fato do programa de estudo ser simples e cotidiano, haver constância e ser
conduzido por um alcoólatra. Segue-se alguns depoimentos acerca do tema:
“Por ser um programa de vida simples e aplicado para o
dia de hoje e pelo respeito e o espírito de grupo”. “O êxito
está relacionado com o fato de que só um alcoólatra
compreende outro alcoólatra e também a questão da
partilha”. “A constância, o exercício dos passos e cumprir
o programa”.
Perguntados sobre os aspectos que consideram importantes na dinâmica nas salas
de AA, 70% deles destacam o valor de poderem se expressar livremente, sem crítica ou
censuras. Vejamos alguns depoimentos sobre os referidos aspectos valiosos da dinâmica
nas salas de AA.
“O fato de não haver obrigatoriedade e todos poderem
falar”. “Que todos podem e são estimulados a falar”. “Ter a
partilha, a ordem das falas, a continuidade, a repetição e a
constância. Pode ser um lugar onde todos podem falar sem
88
ser criticado”. “A ordem das falas, o respeito aos
depoimentos de cada um e o aprender a ouvir”.
Importante notar que mesmo havendo um ambiente livre e democrático como
preconiza Dewey (1959), que facilita o processo de aprendizagem, traz juntamente o olhar
de ordem como preconiza Makarenko (1975), quando da criação da assembleia de turma,
mas, junto com ela, a elaboração de regaras básicas de convivência no grupo, inclusive com
sanções preestabelecidas e decididas pelos professores e alunos.
Nas salas de AA, é sugerido que ninguém entre em confronto com a opinião do
outro. Cada um tem a sua opinião e lugar para expressa-la. Também é de acordo que um
membro que comparece ao grupo embriagado é convidado a se retirar para voltar quando
estiver pleno nas suas faculdades de raciocínios para participar da reunião. Todas essas
ações são acordadas previamente, facilitando assim que quando a situação surge todos
podem dizer que já a conhecem e que estão de acordo com o procedimento.
No que se refere ao grupo das salas de AA, os coordenadores brasileiros em sua
totalidade destacam as contribuições do grupo para a sua aprendizagem e atribuem essa
contribuição às partilhas das experiências dos membros do grupo. Quando perguntados
sobre os fatores que contribuem para o êxito do estudo, destacam a questão da unidade do
grupo, o apadrinhamento e o aprofundamento de conhecimentos. Segue alguns
depoimentos sobre o tema:
“ O êxito do grupo e a contribuição para minha
aprendizagem, se deve ao fato do aprofundamento dos
conhecimentos sobre a programação através da discussão
em grupo dos Doze Passos”. “ A unidade do grupo e o
desejo de superar seu alcoolismo”.
Quando perguntados sobre os aspectos que consideram importantes na dinâmica
das salas de estudo do AA, 70% afirma que dizem respeito ao fato de poderem se expressar
livremente. Novamente a partilha da experiência e a livre expressão são elementos
fundamentais que estão presentes nas salas de AA. Conseguimos identificar, na dinâmica
89
das salas de AA, a Experiência de Educação Mediada – EAM, preconizada por Feuestein,
em especial a mediação de intencionalidade e reciprocidade.
Fazendo uma análise comparativa do quadro referente ao grupo nas salas de AA,
dos entrevistados portugueses e brasileiros, foi possível observar, embora tenham elevados
aspectos distintos, a totalidade deles concorda em que o estudo em grupo tem mais valia, e
que isso se dá em virtude da possibilidade de ter depoimentos de experiências
compartilhadas. Do mesmo modo, ou seja, com fatores distintos os entrevistados
portugueses e brasileiros elencam vários fatores, mas todos sinalizam para um local de
partilha e de afetividade, quando trazem a questão do apadrinhamento e de ser um
programa conduzido por um igual.
Há uma perfeita sintonia de compreensão e entendimento sobre os aspectos
importantes da dinâmica nas salas de AA e todas elas apontam para o fato de que todos
podem falar.
Identificamos novamente o valor de ser ouvido como um grande indicio da carência
nas salas de aula desse valioso elemento em qualquer continente.
90
SÍNTESE GERAL
Com o objetivo de identificar os aspectos educativos do estudo da filosofia dos
Doze Passos, nos grupos de Alcóolicos Anônimos, resolvemos nos debruçar sobre as
experiências de coordenadores do referido estudo nas salas de AA em Portugal e no Brasil.
Para tal fim decidimos empreender uma pesquisa qualitativa, tendo a entrevista com
perguntas semiabertas o instrumento a ser usado. A mesma foi aplicada a dez
coordenadores do estudo sistematizado dos Doze Passos nas salas de AA, sendo cinco de
Portugal e cinco do Brasil.
Antes da aplicação das entrevistas, considerámos relevantes contatar com alguns
informantes chave para a pesquisa, como o médico e professor Dr. Domingos Neto,
psiquiatra responsável pela implantação da filosofia dos Doze Passos no Centro de
Alcoologia de Lisboa, a professora e doutora em antropologia Catarina Frois, que
pesquisou e escreveu sobre os grupos anônimos e os Doze Passos, e três membros de AA,
sendo um de Portugal, outro do Brasil e um outro de Angola.
Após colher algumas valiosas impressões sobre o tema da nossa dissertação,
incluída a análise da literatura relevante, construímos o nosso guião de entrevistas que foi
dividido em três blocos de perguntas, estando o seu foco centrado no perfil dos
coordenadores, como cada um sente, entende e percebe a sua função, a questão do estudo
dos Doze Passos, a que importância e especificidades os mesmos atribuem ao estudo e ao
grupo.
Foi nossa intenção levantar as impressões dos coordenadores do estudo em grupo,
sistematizado dos Doze Passos, sobre os aspectos educativos que ocorrem nas dinâmicas
das salas de AA, e a partir da referida investigação identificar teóricos da educação que
corroboram com a referida prática, bem como que métodos são utilizados. Colhemos
informações significativas que nos ofereceram um valioso roteiro que em muito
corroboraram com os nossos pressupostos teóricos a respeito do modo de conduzir o
referido estudo. Por isso entendemos ser de grande valia construir um modelo de trabalho
baseado no programa de estudos dos Doze Passos que possa vir a contribuir em outros
cenários pedagógicos. Por esse motivo e a fim de oferecer contribuições acerca dos
91
resultados apresentados neste estudo empírico, apresentamos as nossas conclusões e
recomendações a respeito do tema.
92
CAPÍTULO 4 - CONCLUSÃO E RECOMENDAÇÕES
A investigação em curso levantou os aspectos educativos existente nos grupos de
Alcoólicos Anônimos como estratégia de educação em saúde para o controle da
dependência química, em especial o alcoolismo, a partir do olhar dos atores intimamente
relacionados com a referida prática. – Os coordenadores de estudo sistematizado da
filosofia dos Doze Passos.
Contando atualmente com 81 anos de existência, os grupos de Alcóolicos
Anônimos estão espalhados em mais de 170 países e contam com cerca de dois milhões de
alcóolicos em recuperação. Tal feito tem se desenvolvido a partir de estratégias educativas
e terapêuticas e tendo como guia o roteiro do referido programa de estudos da filosofia dos
Doze Passos. O referido roteiro é considerado um programa de recuperação e
reformulação de conceitos de vida, conhecido também como um grupo de princípios
espirituais na sua natureza, que se praticados como modo de vida podem contribuir para
afastar a compulsão pela bebida de forma a tornar, como os próprios membros designam, o
indivíduo íntegro, feliz e útil.
A referida investigação nos levou da atenção voltada para a educação em saúde
para a educação do sujeito, o que evidenciou a patente fragilidade no nosso cenário
educativo convencional. No estudo empírico, foi possível levantar, na perspectiva dos
coordenadores de estudo da filosofia dos Doze Passos nas salas de Alcóolicos Anônimos
do Brasil e de Portugal, as impressões e compreensão a respeito dos aspectos educativos e
sua dimensão prática na vida dos que se apropriam e fazem uso do mesmo. Os resultados
apontaram na sua grande maioria para questões relacionadas a compreensão de mundo e a
forma de se mover nele, bem como o modo como os conteúdos são tratados e trazidos à
tona.
Foi possível observar que os teóricos apresentados por nós, como Feuerstein
(1994), com a educação mediada, Freire (1996), com a educação crítica e para autonomia,
Dewey (1959), com a atenção voltada para a liberdade, democracia e a prática em sala de
aula, juntamente com Makarenko (1975), e seu olhar para o coletivo, tiveram significativa
93
relação com as práticas educativas nas salas de Alcóolicos Anônimos, quer seja no Brasil
ou em Portugal.
Embora os membros dos Alcóolicos Anônimos não pretendessem apresentar
teorias que justifiquem o modo como estudam e como conduzem os grupos de estudo, e
que por sua vez tem tanto êxito e alcance por tanto tempo em detrimento de muitas outras
estratégias, o fato é que quando apontaram para o que é relevante, inevitavelmente nos
mostra o que não é.
E isso se faz quando destacam o valor de um modelo onde todos podem se colocar
de forma democrática e livre como preconiza Dewey (1959), e onde a hierarquia vertical,
tão conhecida por nós educadores, está fadada ao fracasso. E se muitos de nós ainda não
entenderam isso, não demorará muito para entender, mesmo que a duras penas. Talvez o
modelo hierárquico vertical, rígido e depositário, tão bem apontado por Freire (1996),
quando sua crítica a educação de depósito de informações ou Educação Bancária, tenha
acarretado dificuldades que só quando o indivíduo se sente capaz de optar por novos
lugares de aprendizagem, o faz, diferente de onde esteve.
O fato é que não há saída, a necessidade de uma reflexão crítica hoje se apresenta
forçosamente à nossa volta, quer queiramos ou não. A pedagogia de Freire (1996), sobre a
criticidade e a autonomia é um imperativo que não tem volta e por isso a associação
anônima de Doze Passos dos Alcóolicos Anônimos tem cumprido de forma tão eficaz o
seu papel.
O conceito de irmandade e não protagonismo por parte dos que a priori detêm o
saber, foi apresentado de forma ostensiva pelos coordenadores de grupo de estudo,
lançando o olhar para o conteúdo a ser trabalhado e não a personalidade ou o personalismo
de quem o conduz. Uma crítica ao distanciamento entre o professor e o aluno. Uma
aprendizagem que nós professores precisamos de fato estar investidos se quisermos ir além
da borda que nos cerca.
A autoridade para mediar o processo de aprendizagem, dentro das salas de AA,
está relacionada com a experiência, ela é a grande mestra que é capaz de contribuir para
94
uma aprendizagem significativa. O professor nesse momento está ao serviço do saber e,
como diz Silva (2007), ele é “o arquiteto de pontes entre os saberes e as pessoas” (p.119).
Durante toda a pesquisa, quer seja bibliográfica ou o estudo empírico, foi possível
observar a educação muito mais como uma questão social do que puramente pedagógica; a
partir dela é que os outros saberes são capazes de se fazerem entender. A tenção para o
indivíduo que irá ou não fazer uso desse conteúdo é que é de grande valia. Afinal de nada
vale o conhecimento encerrado, sem aplicabilidade, sem uso prático e cotidiano, se ele não
exerce uma função na vida de quem o detém. E o mesmo ter consciência disso. A
aplicabilidade prática dos conteúdos é que o torna poderoso e o valida para novas
situações.
Nessa perspectiva tencionávamos construir um modelo a partir das estratégias
utilizadas nos grupos de Alcóolicos Anônimos, baseado na filosofia dos Doze Passos, que
viesse a ser aplicado mesmo que eventualmente em algum contexto escolar. Foi possível a
partir do estudo empírico identificar como aspecto mais relevante a liberdade de expressão.
Nela a construção de narrativas, que funcionam como grande mola propulsora para a
construção do conhecimento de si e do outro, nos levou a reflexões filosóficas sobre a
natureza das narrativas como processo de reflexão pedagógica e como processo de
formação de Ricoeur (2010). A história de vida e formação cumprindo seu papel e
trazendo a atenção para que todos, indistintamente, têm contribuições significativas para a
construção do seu próprio saber; afinal ninguém é uma folha em branco.
Outro destaque dado pelos coordenadores diz respeito à existência de uma
estrutura hierárquica horizontal, auto-gestão, exercício da prática, ambiente que facilita a
criação de vínculos e sentimento de pertença, corroborando com os teóricos por nós
apontados, que vieram a oferecer mesmo que de forma empírica, contribuições ao estudo
da filosofia dos Doze Passos.
O que identificamos diante do referido quadro apresentado pelos coordenadores
dos grupos de estudo do programa de Doze Passos em questão é que o que está em cheque
é, na verdade, a aquisição de competências.
95
Portanto, foi possível observar que, em seu cerne, o trabalho com a educação
desenvolvido nos grupos de AA, está relacionado a «aprender a aprender» e a «aprender a
ser». Não só fomentar a aquisição de saberes mas também a aquisição de competências e
novas atitudes, comportamentos e modo de vida comum, simples e cotidiano, o que faz
dele ser uma aprendizagem significativa. Afinal se o saber não está ao serviço de quem
dele se apropria de nada há valia e significado.
É importante, então, estarmos atentos ao que orienta e o que não orienta a ação e
para isso precisamos estar vigilantes às necessidades dos alunos, seu contexto e modo de se
mover no mundo. Muito mais do que o que vai ser tratado em sala, ressalta o como vai ser
tratado e porquê vai ser tratado. A educação nesta perspectiva vem dar suporte à
fragilidade que se apresenta hoje em um contexto marcado pela desvinculação, pela
fragmentação, desigualdades sociais e grandes incertezas, características da nossa pós-
modernidade ou modernidade liquida como salienta Bauman (2003).
Tencionávamos criar uma equação com as especificidades encontradas nas
práticas educativas nas salas de AA, seguindo o roteiro similar ao que acontece nas
mesmas; no entanto, constatamos a dificuldade em mesurar o que é trabalhado nas
referidas salas, em virtude do trabalho estar intimamente relacionado ao modo de conduzir
e tratar o conteúdo. O que acontece nessas salas se relaciona a um processo contínuo de
aprende a aprender, e aprender a ser, em uma relação carregada de subjetividade e que
naturalmente pede a contribuição dos chamados “aprendentes” dentro do referido processo.
O que podemos assinalar e recomendar, como fator imprescindível para que toda a
construção do conhecimento se faça em outros cenários de aprendizagem, diz respeito à
possibilidade de se poder expressar livremente, sem censuras ou amaras. A escola precisa
estar preparada para acolher e instigar a construção de alunos autônomos e críticos
inclusive com a sua prática, e para isso é necessário ter um educador pronto para tal
experiência.
Sabemos que esta pesquisa não esgota todas as possibilidades da mesma, até
porque as especificidades educativas, apontadas pelos coordenadores de grupo de estudo
sistematizado dos Doze Passos nas salas de AA, não representam algo novo. Os teóricos
por nós sugeridos já traziam as suas contribuições e teorias que discorriam sobre o valor
96
das especificidades apontadas pelos mesmos. No entanto entendemos que ter podido lançar
luz sobre um modelo de educação em saúde, existente há 81 anos, com resultados antes
não alcançados por nenhuma escola ou corrente pedagógica, possui grande significado e é
de grande valia para os nossos cenários educativos ainda tão frágeis e inseguros a fim de
que possam se inspirar.
É preciso pensar a vida e transcender para fora dos muros da escola. Deve ser
esse o papel das ciências da educação, e para isso ela deve estar a serviço e aberta.
97
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