aspectos semÂnticos e morfossintÁticos da … · os alinhamentos morfossintáticos como...
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
Instituto de Estudos da Linguagem
DIRCEU FERNANDES LIRA DE SENA
ASPECTOS SEMÂNTICOS E MORFOSSINTÁTICOS DA INCORPORAÇÃO NOMINAL
CAMPINAS
2017
DIRCEU FERNANDES LIRA DE SENA
ASPECTOS SEMÂNTICOS E MORFOSSINTÁTICOS DA INCORPORAÇÃO NOMINAL
Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Estudos
da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas para
obtenção do título de Mestre em Linguística.
Orientador: Prof. Dr. Angel Humberto Corbera Mori
Este exemplar corresponde à versão
final da Dissertação defendida pelo
aluno Dirceu Fernandes Lira de Sena
e orientada pelo Prof. Dr. Angel
Humberto Corbera Mori.
CAMPINAS
2017
BANCA EXAMINADORA
Angel Humberto Corbera Mori
Aquiles Tescari Neto
Cláudio André Cavalcanti Couto
IEL/UNICAMP
2017
Ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA
– Sistema de Gestão Acadêmica.
DEDICATÓRIA
A Heitor
AGRADECIMENTOS
À CAPES, pela concessão da bolsa de Mestrado, possibilitando o desenvolvimento desta pesquisa.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Angel Humberto Corbera Mori, pela compreensão, paciência,
disponibilidade e dicas bibliográficas preciosas.
Ao Prof. Dr. Cláudio André Cavalcanti Couto, pela correção atenta desta dissertação e pelas dicas
expostas durante a defesa deste trabalho.
Ao Prof. Dr. Aquiles Tescari Neto, pelas valiosas dicas teóricas tanto na qualificação quanto na defesa
final. Agradeço também a leitura atenta do texto e as observações minuciosas que foram feitas.
À Profª Drª Zoraide dos Anjos Vieira, pelas observações feitas durante a qualificação.
À Ticiana, pelo amor e amizade que estamos cultivando há tantos anos.
À Cristina Blink, por ter despertado em mim o interesse pelas línguas estrangeiras e por ter me
ajudado financeira e intelectualmente a entrar na Unicamp.
Aos inúmeros tutores e professores que tenho tido desde meus primeiros anos de vida, pela dedicação
e entusiasmo em orientar meus estudos nas diversas áreas do conhecimento.
Aos meus amigos, pelas palavras e ações de conforto nos momentos de dificuldade.
RESUMO
O principal objetivo deste trabalho é trazer para a literatura escrita em português uma revisão
bibliográfica dos principais textos que tratam da conceituação e da explicação de um fenômeno
conhecido da literatura como “incorporação nominal”. O trabalho é dividido em duas partes. Na
primeira parte, abordaremos as questões morfológicas, sintáticas e semânticas desse fenômeno. Nessa
parte, explicaremos com detalhes as principais teses explicativas que envolvem esse fenômeno: a
hipótese lexicalista e a hipótese sintática. Também traremos com detalhes a argumentação e a
classificação propostas por trabalhos como Mithun (1984), Baker (1988) e Farkas & Swart (2003).
Na segunda parte, o texto pretende dar atenção a algumas questões semânticas que envolvem a
incorporabilidade de certos substantivos em detrimento de outros. Nessa parte, usaremos a tipologia
proposta por Mithun (1984) como ponto de partida, embora o foco seja a semântica do nome
incorporado, com o objetivo de apontar padrões tipológicos que mostram que há uma assimetria
lexical quanto à possibilidade de um nome ser incorporado ou não. Além disso, pretende-se colocar
os alinhamentos morfossintáticos como possíveis variáveis que determinem uma maior ou menor
frequência dos raros casos de incorporação nominal de sujeito.
ABSTRACT
The main objective of this work is to bring to linguistic literature in Portuguese a
bibliographical review of the main texts that deal with the conceptualization and explanation of a
phenomenon known in linguistic literature as "noun incorporation". This dissertation falls into two
parts. In the first section, we will address the morphological, syntactic and semantic issues regarding
this phenomenon. In this first section, we will explain in detail the main explanatory theses involving
this phenomenon: the lexicalist hypothesis and the syntactic hypothesis. We will also present the
argumentation and classification proposed by works such as Mithun (1984), Baker (1988) and Farkas
& Swart (2003). In the second section, we will focus on some semantic questions involving
incorporability of certain nouns and not of others. In this second section, we will use the typology
proposed by Mithun (1984) as a starting point, although the focus is on the semantics of the
incorporated noun, thereby aiming to point out typological patterns that show that there is a lexical
asymmetry as to the possibility of a name being incorporated or not. In addition, we intend to place
the morphosyntactic alignments as possible variables that might determine a greater or less frequency
of the rare cases of noun incorporation of subject.
Lista de Abreviaturas
1 primeira pessoa singular
2 segunda pessoa singular
3 terceira pessoa singular
1S/2O primeira pessoa sujeito/segunda pessoa objeto
3SS concordância de terceira pessoa sujeito
ABS absolutivo
AC activo
APPL aplicativo
ASP marcador geral de aspecto
DUR duração
FUT futuro
IN inactivo
IND modo indicativo
IPRF aspecto imperfectivo
M gênero masculino
N gênero neutro
NEG negação
NOM nominalizador
NP sintama nominal
PASS passiva
PAST passado
R2 indicador de determinante não-contíguo
REDPL reduplicação indicando plural
RFL reflexivo
S marcador clítico de sujeito
SUF sufixo nominal inflexional
SP prefixo de concordância de sujeito
Obs.: Não foram citadas pelos autores as abreviaturas dos seguintes exemplos citados
nesta dissertação: (1) e (3)-(15) (Mithun, 1984); (36)-(38) (Axelrod, 1990); (39)-(41) e
(43-44) (Haugen, 2004).
Sumário
Introdução .......................................................................................................................................... 11
Metodologia ....................................................................................................................................... 14
1. A Hipótese Lexicalista e a Classificação de Mithun (1984) .......................................................... 17
1.1. Tipos de IN por Mithun (1984) ............................................................................................... 17
1.2. Evidências de IN como um processo de lexicalização ........................................................... 20
1.3. Tipo IV de IN: um processo sintático ou morfológico? .......................................................... 23
1.4. IN ao longo do tempo.............................................................................................................. 25
1.5. Conclusões .............................................................................................................................. 31
2. As Hipóteses Sintáticas .................................................................................................................. 34
2.1. A hipótese sintática de Baker (1988) ...................................................................................... 34
2.2. Incorporação e os processos de mudança na função gramatical ............................................. 35
2.3. O Princípio do Espelho ........................................................................................................... 38
2.4. Composições de processos de mudança na função gramatical ............................................... 40
2.5. A estrutura profunda ............................................................................................................... 41
2.6. A estrutura superficial ............................................................................................................. 43
2.7. Movimento de um núcleo ....................................................................................................... 44
2.8. A incorporação nominal .......................................................................................................... 45
2.9. Poder explicativo do modelo proposto por Baker (1988) ....................................................... 47
2.10. A hipótese de pseudo-incorporação de Massam (2001) ....................................................... 48
3. O conceito de “palavra” e suas implicações para o conceito de “incorporação nominal” ............. 50
4. Incorporação semântica e incorporação nominal de partes do corpo ............................................ 55
4.1. Incorporação semântica........................................................................................................... 55
4.2. Partes do corpo humano e ascensão do possuidor .................................................................. 58
4.3. Incorporação nominal como um processo de desfocalização de zonas ativas ........................ 62
4.4. Quais termos de partes do corpo podem ser incorporados? .................................................... 63
5. O alinhamento morfossintático e a incorporação nominal de sujeito ............................................ 66
6. Conclusões ..................................................................................................................................... 73
Referências Bibliográficas ................................................................................................................. 74
11
Introdução
Dentro da literatura linguística, a discussão que envolve o fenômeno conhecido como
“incorporação nominal” remonta aos trabalhos de Kroeber (1909) e de Sapir (1911). Se formos mais
a fundo dentro da história dos conceitos, pode-se afirmar que autores anteriores já tratavam do tema.
Wilhelm von Humboldt (1767-1835), linguista alemão famoso por suas obras de linguística e de
educação, irmão do famoso geógrafo e naturalista Alexander von Humboldt, já havia empregado o
termo “Einverleibung”, que pode ser encontrado em Humboldt (1936), obra editada um ano após sua
morte.
Nessa obra, Humboldt (1836) apresenta uma tipologia em que ele divide as línguas entre seus
processos predominantes no que diz respeito à unidade da palavra (Worteinheit) e no que diz respeito
à unidade da oração (Satzeinheit). Quanto à unidade da palavra, o autor coloca a flexão (Flexion) e o
isolamento (Isolierung) como os dois extremos quanto à unidade da palavra. Em uma flexão, temos
uma única palavra, tipicamente formada por uma raiz e por morfemas que se juntam à raiz com a qual
formam uma única unidade de palavra. No processo de isolamento, não há nenhuma junção de raízes
e morfemas, de modo que a distinção entre palavra e morfema é fraca e teríamos apenas palavras,
teoricamente. O processo de aglutinação (Agglutination) seria um processo intermediário quanto à
unidade da palavra.
Dentro dessa tipologia proposta por Humboldt (1836), teríamos as línguas flexionais, isolantes
e aglutinantes. Um exemplo de língua flexional é o Português, em que o morfema -o em “canto” tem
uma unidade com a raiz verbal cant-, formando uma única palavra. O morfema carrega várias
informações gramaticais, tais como primeira pessoa, singular, presente, modo indicativo, primeira
conjução. Um exemplo de língua isolante é o Vietnamita, em que o morfema aparece como palavra
independente, sem formar nenhuma unidade com a raiz. Por exemplo, em tôi chúng ‘nós’ [lit. ‘eu
plural’], o morfema de plural chúng aparece como palavra independente. Um exemplo de língua
aglutinante é o Turco, em que um radical carrega vários morfemas com cada morfema carregando
tipicamente uma única informação gramatical. Por exemplo, em da-kar-tza-t ‘eu os trago’, o morfema
da- indica tempo presente, kar- é a raiz do verbo ekarri ‘trazer’, o morfema -tza indica plural e o
morfema -t indica sujeito de primeira pessoa.
No que diz respeito à unidade da oração, o autor encontra três processos comuns entre as
línguas naturais. Analogamente, em um extremo, temos o “método sintático” (syntaktische
Verfahren), que seria ligado ao processo de flexão e com o qual a oração é construída a partir dos
pedaços já preparados segundo sua função na oração. No outro extremo, temos palavras
completamente isoladas, de modo que a unidade da oração é dada por “meios silenciosos” (lautlose
Mittel), como a posição (Stellung). Entre esses dois extremos, teríamos o processo chamado pelo
12
autor literalmente de incorporação (Einverleibung), processo este em que a língua trata a oração como
uma única palavra. Esse processo foi chamado pelo autor de Einverleibungsmethode, segundo o qual
o verbo da oração e seu complemento seriam tratados como uma única palavra (TRABANT, 1986).
Em termos mais recentes, o que usualmente se chama de incorporação nominal seria um
subtipo do que Humboldt chamou de Einveileibung, já que este autor do século XIX não distinguia
se a formação do “verbo complexo”, palavra que conteria as informações de uma oração, seria
realizada por meio de morfemas ou por meio de raízes. Na literatura mais recente, quando este verbo
complexo, que também contém seu complemento, é formado por apenas uma raiz e diversos
morfemas, diz-se que se trata de um processo de polissíntese. Quando o verbo complexo contém,
além da raiz verbal, uma ou mais raízes nominais que usualmente são realizadas como complementos
verbais e que são palavras independentes em línguas indo-europeias, diz-se que se trata de um
processo de incorporação nominal (COMRIE, 1989:46).
Comrie (1989:45-46) traz alguns exemplos para ilustrar a diferença entre línguas
incorporantes e línguas polissintéticas. Um exemplo de língua incorporante é Chukchi. Nessa língua,
dizemos tɘ-meyŋɘ-levtɘ-pɘɣt-ɘrkɘn ‘Eu tenho uma dor de cabeça feroz’. Esta palavra-sentença
contém três morfemas lexicais (meyŋɘ- ‘grande’, levt- ‘cabeça’ e pɘɣt- ‘dor’), além dos morfemas
gramaticais t- (primeira pessoa do singular sujeito) e -rkɘn (aspecto imperfectivo). Um exemplo de
língua polissintética é o Esquimó. Nessa língua, dizemos angya-ghlla-ng-yug-tuq ‘ele quer adquirir
um barco grande’, literalmente ‘barco-aumentativo-adquirir-desiderativo-3singular. Segundo o autor,
no Esquimó, ao contrário do Chukchi, uma palavra contém apenas um morfema lexical, todos os
outros são gramaticais, de modo que Esquimó é uma língua polissintética, mas não incorporante.
Assim, incorporação é um caso particular de polissíntese, em que morfemas lexicais podem ser
combinados em um único complexo polissintético.
Na literatura mais recente, o tema continua sendo debatido em trabalhos de linguistas das mais
diversas formações e linhas teóricas, entre os quais podemos citar os trabalhos de Mithun (1984),
Baker (1988), Velázquez-Castillo (1995), Mithun e Corbett (1999), Muro (2009), etc. Por exemplo,
desde os trabalhos de Mithun (1984) e de Baker (1988), há um intenso debate sobre a natureza deste
fenômeno encontrado em diversas línguas naturais. Desde então, diversos autores trouxeram suas
visões e suas explicações formalizadas do que seria este fenômeno.
O foco desta dissertação é trazer uma revisão do estudo deste processo linguístico, com o
detalhamento das principais hipóteses explicativas. Após a apresentação da hipótese lexicalista e da
hipótese sintática, o texto se voltará para uma discussão paralela que afeta diretamente o debate que
envolve o fenômeno da incorporação nominal: trata-se da problemática em torno do conceito de
palavra e suas implicações para a hipótese lexicalista e a hipótese sintática. Após essa discussão em
torno do conceito de palavra, trataremos o conceito de “incorporação semântica” e faremos uma
13
discussão sobre os casos de incorporação nominal que vem acompanhada de outro processo
conhecido como ascensão do possuidor. Após essa apresentação conceitual, com as diversas escolas
e alguns problemas conceituais, o trabalho se voltará para os casos de incorporação nominal de sujeito
e uma possível relação entre o alinhamento morfossintático da língua e a produtividade desses casos.
Desde os trabalhos do início do século XX, é sabido que, mesmo nas línguas em que este
fenômeno é extremamente produtivo, nem todas as construções estruturalmente idênticas às com
incorporação nominal são gramaticais nas línguas em que se encontra este processo. A
agramaticalidade de algumas sentenças com incorporação nominal pode ser explicada se
considerarmos os aspectos semânticos que envolvem o processo de incorporação nominal.
Em algumas línguas, quando envolve a incorporação de uma palavra que designa uma parte
do corpo humano, observa-se que ela não pode se referir a qualquer parte do corpo humano. Além
disso, observa-se que o “verbo complexo”, ao se unir com o nome incorporado, geralmente expressa
uma unidade semântica e o referente do nome incorporado é genérico. Assim, no estudo do processo
de incorporação nominal, há de se levar em consideração não apenas seus aspectos sintáticos e
morfológicos, mas também os semânticos.
O debate teórico sobre a possibilidade de se separar o campo da Morfologia do campo da
Sintaxe traz sérias implicações para as definições sintáticas e para as definições morfológicas da
incorporação nominal. Talvez uma solução seja justamente perscrutar o campo semântico e analisar
o comportamento da incorporação nominal no que diz respeito a algumas variáveis semânticas, para
quem sabe chegarmos a uma definição de incorporação nominal que seja válida em todas as línguas
naturais, independentemente desta discussão sobre o que é uma “palavra”.
Na seção sobre os casos de incorporação nominal de sujeito, fizemos uma pesquisa preliminar
na literatura para verificar se há alguma influência do alinhamento morfossintático sobre a
possibilidade de encontrarmos esses casos específicos de incorporação nominal de sujeito. Mais uma
vez, além dos aspectos morfológicos e dos aspectos sintáticos, tentaremos trazer algumas questões
semânticas que possam se relacionar com o tema em questão.
A partir deste momento, IN designa “incorporação nominal”, sem nenhuma pressuposição
teórica, exceto se expresso o contrário, e NI designa “nome incorporado”, também sem nenhuma
predefinição teórica do que significa ser um nome incorporado, a não ser que esteja expresso o
contrário.
14
Metodologia
Toda a pesquisa foi feita com base na literatura publicada que estuda o processo linguístico
conhecido como incorporação nominal. Como o foco desta pesquisa foi trazer uma revisão
bibliográfica do estudo deste fenômeno, a pesquisa foi sempre feita em cima dos artigos, dissertações
e teses publicadas nas últimas décadas. Os exemplos foram retirados dessas publicações. Quanto aos
exemplos citados nesta dissertação, é importante notar que nem sempre os autores mostram como
seria a versão da sentença dada sem IN. Este detalhe é importante, pois tem implicações para a
discussão em torno da natureza do processo de IN, se morfológica ou sintática. Se a língua não tem a
versão sem IN, esse fato poderia contar a favor da hipótese sintática, pois seria mais uma evidência
de que se trata de um movimento sintático, e não um processo de formação de palavra.
Também quanto aos exemplos trazidos da literatura, é importante notar que nem sempre os
autores trouxeram as glosas. Os exemplos trazidos nesta dissertação estão transcritos extamente como
o foram pelos autores citados. Mesmo quando os autores trazem glosas de seus exemplos, nem sempre
eles trouxeram uma lista das abreviaturas.
No que diz respeito à seção que trata dos casos de incorporação nominal de sujeito e uma
possível relação entre o alinhamento morfossintático da língua e a produtividade desses casos, em
uma fase inicial da pesquisa, foram analisados os casos de IN em línguas descritas na literatura como
ergativo-absolutivas, com especial atenção para os casos de IN de sujeito. O objetivo por trás desta
pesquisa foi verificar se haveria alguma correlação estatística entre o alinhamento morfossintático e
o fato de a língua apresentar IN de sujeito de uma forma especialmente produtiva. Neste trabalho,
não se distinguiu se o sujeito incorporado desempenhava um papel semântico de paciente, de agente,
de experienciador, etc. Todos os casos de IN de sujeito foram analisados como se fizessem parte de
um mesmo processo.
Como os trabalhos que contêm os exemplos de IN não tratavam necessariamente do
alinhamento morfossintático das línguas em questão, as pesquisas sobre o alinhamento
morfossintático das línguas foram feitas em outras fontes bibliográficas. Em alguns casos, observa-
se que não há um consenso entre os linguistas sobre qual alinhamento morfossintático a língua
apresenta. O tema do alinhamento morfossintático é muito controverso e nem sempre sabemos
exatamente em que sentido o autor está usando o termo “alinhamento morfossintático”. Muito da
controversa entre os autores pode estar relacionada ao fato de o alinhamento poder surgir em diversos
âmbitos da língua, como na marcação de caso, na marcação de pessoa no verbo, na ordem em relação
ao verbo, etc.
Neste trabalho, foi entendido como ergatividade o alinhamento morfológico e/ou sintático do
argumento S (sujeito de verbo intransitivo) com o argumento O (objeto de verbos transitivos), em
15
oposição ao argumento A (sujeito de verbo transitivo), como entendido em Dixon (1994:40). Esse
alinhamento pode ocorrer em diversas situações. Como os alinhamentos podem surgir em diversos
âmbitos da língua, escolhemos alguns dos principais encontrados na literatura, assim foram
considerados como padrões que podem distinguir um alinhamento os seguintes casos: 1) marcação
de caso; 2) marcação de pessoa no verbo; 3) ordem em relação ao verbo. Esses padrões são
semelhantes aos padrões considerados em obras como a de Gildea e Queixalós (2010).
Os critérios utilizados neste trabalho podem levar a certas contradições conceituais, como
aponta o trabalho de Siewierska (2003:339-344). Embora essa seja uma situação rara, é o que
acontece na língua Chorti (Maia), segundo o relato da linguista. Nessa língua da família Maia,
segundo a autora, há concordância de pessoa com S, A e P. No aspecto perfectivo, o alinhamento é
ergativo tanto em termos de forma fonológica quanto em relação à posição dos marcadores de pessoa
(as marcas tanto para S quanto para P são fonologicamente idênticas e são sufixadas à raiz verbal,
enquanto que os marcadores para A são fonologicamente distintos e são prefixos). Contudo, no
aspecto imperfectivo, os critérios fonológicos e posicionais para determinar o alinhamento não
convergem em direção a um único alinhamento. As formas fonológicas para S, A e P são todas
distintas entre si (portanto, pelo critério fonológico, a língua seria classificada como tripartite), mas,
enquanto as marcas de S e A são prefixos, as marcas de P são sufixos (originando um sistema
acusativo, segundo os critérios de posição em relação à raiz verbal).
Para as regiões do mundo em que há muitas línguas ergativas ou com ergatividade cindida,
foi mais fácil encontrar informações sobre o alinhamento morfossintático das línguas. Assim,
bibliografias como Derbyshire (1987) e Mithun (2000) ajudaram na identificação dos alinhamentos
morfossintáticos das línguas da Amazônia e do Noroeste dos EUA. Para as línguas amazônicas, foram
utilizados os trabalhos de Gildea e Queixalós (2010) e Campbell (1997). Durante essa pesquisa,
também foram encontradas línguas que eram conhecidas há muito tempo como ergativas, como o
Groenlandês (DIXON, 1994:5), mas que os casos de junção “nome-verbo” não são propriamente
casos de IN, pois os ditos “verbos” que ocorrem com alguns nomes não são verbos independentes na
língua e devem ser tratados como afixos verbais, segundo Gerdts (1998, tópico 4.3).
Dentre as línguas consultadas, as que apresentam alguma ergatividade (o que inclui as línguas
ergativas cindidas) são as seguintes: Cavineña (Tacanan), Chukoto (Chukotko-Kamchatkana),
Hixkaryana (Karib), Katukina-Kanamari (Katukina), Koryak (Chukotko-Kamchatkana), Maia
Yucateco (Maia), Nadëb (Makú), Paumari (Arauana), Samoano (Austonésia), Tapirapé (Tupi-
Guarani), Tonga (Austronésia), Waiwai (Karib), Yanomami dos Xamatauteri (Yanomami).
Para os objetivos deste trabalho, foram consideradas línguas ergativo-absolutivas qualquer
língua que apresentasse alguma ergatividade. Nesse sentido, os dados preliminares não distinguiram
línguas ergativos-absolutivas de línguas activo-stativas, já que por definição uma língua activo-stativa
16
apresentará sempre alguma ergatividade, já que para alguns verbos intransitivos a língua tratará o
argumento (S) como um (P).
Em uma primeira etapa da pesquisa, foram reunidos em um único banco de dados exemplos
de todos os tipos de IN, estes tipos divididos segundo a tipologia proposta por Mithun (1984). Na
segunda etapa da pesquisa, foram observados apenas os casos de IN de sujeito, especialmente os
casos envolvendo línguas ergativo-absolutivas.
Para cada exemplo de IN colhido, foram pesquisadas as seguintes informações: língua, família,
localização, alinhamento morfossintático, tipo de IN segundo tipologia de Mithun (1984), função
semântica do nome incorporado, o nome incorporado, o nome independente, a sentença com IN e a
sentença sem IN. Nem sempre os autores apresentam a sentença sem IN, seja por não ser gramatical
a forma sem incorporação, seja simplesmente por não ter sido apresentada pelo autor.
Não podemos deixar de levar em conta que o próprio conceito de “língua ergativo-absolutiva”
ou “língua nominativo-acusativa” é relativamente problemático, tendo em vista que a língua pode
apresentar ergatividade quanto ao sistema de casos, mas não quanto à ordem dos constituintes. Como
afirmado acima, o trabalho de Siewierska (2003) aponta para algumas destas contradições. Langacker
(2008:373-378) também afirma que estes conceitos são controversos e que estender os conceitos de
ergativo/absolutivo, nominativo/acusativo, que são originalmente conceitos para os sistemas de casos,
e afirmar que uma língua é acusativa ou ergativa não é muito informativo, visto que uma língua como
um todo não exibe uma organização nominativa/acusativa ou ergativa/absolutiva, no máximo pode
haver uma predominância de um ou de outro padrão.
O objetivo dessa primeira pesquisa foi tentar encontrar padrões no funcionamento da IN em
línguas do alinhamento ergativo-absolutivo, em particular padrões relacionados aos casos de IN de
sujeito. Para isso, foi reunida algumas dezenas de dados disponíveis na literatura, sobretudo dados
provenientes de línguas de diferentes famílias e de diferentes localidades, para podermos verificar se
o alinhamento morfossintático pode influenciar de alguma maneira na produtividade da IN de sujeito.
17
1. A Hipótese Lexicalista e a Classificação de Mithun (1984)
1.1. Tipos de IN por Mithun (1984)
Segundo a hipótese conhecida como “hipótese lexicalista”, a IN é apenas um tipo de
composição de palavra, em que um verbo e um nome formam um verbo complexo com sua própria
unidade semântica e tratado como uma única palavra segundo os padrões morfológicos e fonológicos
de palavra de cada língua. Segundo esta hipótese, a oração com IN não é derivada de movimentos
sintáticos aplicados à oração que seria sua contraparte analítica, em que o nome não está incorporado.
A IN seria apenas um tipo de composição de palavra em que, ao invés dos típicos dois ou mais nomes
ou nomes junto a morfemas ou a clíticos, os elementos compostos seriam um nome e um verbo. Ao
contrário desta interpretação, há a explicação proposta por Baker (1988), que interpreta o fenômeno
da IN como um fenômeno estritamente sintático. Para mais detalhes, ver seção “A Hipótese Sintática
de Baker (1988)”.
Entre os principais trabalhos que interpretam o fenômeno da IN como um fenômeno lexical,
podemos citar o de Mithun (1984), o de Di Sciullo e Williams (1987) e o de Rosen (1989). Segundo
Mithun (1984), embora o fenômeno seja aparentemente sintático e esse processo de composição de
palavras seja talvez o mais sintático de todos os processos morfológicos, a IN é um mecanismo
morfológico que produz itens lexicais, e não sentenças (MITHUN, 1984: 847).
Entre os três trabalhos citados acima, o de Mithun (1984) destaca-se por ter proposto uma
classificação tipológica do fenômeno entre diversas línguas do mundo, segundo uma hierarquia
implicacional encontrada pela autora em que a existência de um tipo de IN pressupõe a existência de
outros. Segundo a autora, podemos observar 4 principais tipos de IN entre as línguas naturais. Nesta
seção, traremos a classificação proposta por esta autora.
Já no início de seu artigo, Mithun (1984:847) afirma que a IN é um processo morfológico
muito próximo dos processos sintáticos. Contudo, um exame deste processo em línguas de diversas
regiões e geneticamente divergentes indica que, onde a sintaxe e a morfologia divergem, a IN é um
sólido mecanismo morfológico que produz itens lexicais, e não sentenças.
Após uma análise de casos de IN em mais de 100 línguas de diferentes famílias, a autora
observou quatro funções distintas, porém relacionadas, que a IN pode exercer em uma língua. Além
disso, a autora mostrou que essas funções são implicacionais, ou seja, se uma língua apresenta uma
determinada função (a do Tipo IV, por exemplo), ela necessariamente apresentaria as demais funções
anteriores (as dos Tipos I, II e III).
Esta hierarquia implicacional sugere um caminho ao longo do qual a IN se desenvolve
historicamente. As diferenças em sua produtividade entre as línguas mostram, para a autora, que este
18
desenvolvimento pode ser detido em qualquer ponto. Uma vez que o processo de IN começa a decair
em uma língua, ele não necessariamente está destinado a desaparecer completamente em uma língua.
Em algumas línguas, relíquias de antigos processos de IN se transformaram em um sistema produtivo
de afixação, em que os afixos podem ser antigos nomes incorporados, antigos verbos incorporantes
ou ambos. Ao final desta seção, veremos que o trabalho de Fleck (2006) em línguas da família Pano
aborda exatamente a possibilidade de parte do atual sistema de afixação em Matsés ter sido derivada
de antigos processos de IN que não são mais produtivos atualmente.
No Tipo I, denominado pela autora como lexical compounding (composição lexical), a
composição nome-verbo é geralmente utilizada para nomear atividades habituais e o verbo complexo
derivado perde uma valência. Abaixo temos um exemplo de IN de Tipo I em Tupinambá, retirado de
Mithun (1984: 856). Em (1), o nome pɨsá ‘rede de pesca’ é incorporado ao verbo eytɨk ‘lançar/jogar’,
formando uma única palavra a-pɨsá-eytɨk ‘eu lanço a rede de pesca’. A autora não apresenta a versão
da sentença abaixo sem incorporação.
(1)1 a-pɨsá-eytɨk
‘I-fishnet-throw’
‘I net-throw’
No Tipo II, chamado de the manipulation of case (manipulação de caso), a IN não diminui a
valência verbal, pois um argumento oblíquo ocupa o espaço deixado pelo NI. Geralmente, o nome
possuído é inalienável e geralmente se refere a uma parte do corpo humano (MITHUN, 1984:858).
Nesse tipo de IN, o verbo não diminui de valência, pois o adjunto passa a ocupar a posição de objeto
deixada pelo nome incorporado. Essa ascensão do adjunto à posição de objeto é conhecida na
literatura como “ascensão do possuidor”.
Abaixo, temos um exemplo de IN em Guarani Paraguaio que seria classificado como de Tipo
II na tipologia proposta por Mithun (1984). O exemplo foi retirado da obra de Velázquez-Castillo
(1995:687). Em (2), o nome hova ‘rosto/face’ é incorporado ao verbo hei ‘lavar’, enquanto o
possuidor do rosto, pe-mitã ‘aquela criança’, passa a ser o objeto direto do verbo. A segunda sentença
de (2) é a versão sem IN.
1 Tradução: a-pɨsá-eytɨk
‘Eu-rede.de.pesca-lançar
‘Eu rede-lanço’
19
(2)2 a. a-hova-hei-ta pe-mitã
‘1AC-face-wash-FUT that-child’
‘I’ll wash that child’s face’
lit. ‘I’ll face-wash the child’
b. a-johei-ta pe-mitã rova
1AC-wash-FUT that-child face
‘I’ll wash that child’s face’
No Tipo III, denominado the manipulation of discourse structure (manipulação da estrutura
discursiva), a IN é utilizada para fazer referência a um termo já conhecido, funcionando de modo
análogo ao sistema de pronomes das línguas indo-europeias. Geralmente, as línguas em que ocorre
esse tipo de IN são polissintéticas (MITHUN, 1984:859). Segundo Muro (2009:178), esse tipo de IN
remediaria a carência de um sistema de pronomes desenvolvido em línguas polissintéticas. Apesar de
esse tipo de IN ser altamente produtivo, Mithun (1984:862-863) observa que sua produtividade é
governada tanto por acidentes lexicais – há nomes que são incorporáveis, há outros que jamais o são,
há verbos mais incorporantes que outros – como por questões pragmáticas – por exemplo, a
animacidade geralmente afeta a incorporabilidade 3 dos nomes. Além disso os falantes estão
conscientes de quando se está criando uma nova palavra (MITHUN, 1984:863-864).
Mithun (1984:864) afirma que, em qualquer língua em que se encontre este Tipo III de IN,
algumas combinações foram criadas porque os falantes precisaram dessas combinações, enquanto
outras combinações ainda não foram criadas, mas podem ser a qualquer momento, e outras
combinações nunca serão criadas. Algumas raízes nominais podem ser facilmente incorporadas,
enquanto outras nunca o são. Algumas raízes verbais são altamente incorporantes, enquanto outras
não.
Abaixo temos um exemplo de diálogo em Huahtla Nahuatl em que ocorre o Tipo III de IN,
retirado de Mithun (1984:860-861). Em (3), quando o falante A se refere ao nome nakatl ‘carne’ pela
primeira vez no diálogo, o nome aparece como palavra independente. Quando o falante B retoma o
mesmo nome já citado anteriormente no diálogo, nakatl ‘carne’ aparece incorporado ao verbo kwa
‘comer’. Com este exemplo, observa-se claramente que o Tipo III de IN desempenha um papel
semelhante ao dos pronomes anafóricos em línguas indo-europeias.
2 Tradução: a. a-hova-hei-ta pe-mitã
‘1AC-rosto-lavar- FUT aquela-criança’
‘Eu lavarei o rosto daquela criança’
lit. ‘Eu rosto-lavarei a criança’
b. a-johei-ta pe-mitã rova
1AC-lavar-FUT aquela-criança rosto
‘Eu lavarei o rosto daquela criança’
3 O termo incorporabilidade se refere à condição de um nome poder ser incorporado, mas que não necessariamente aparece
sempre incorporado na língua.
20
(3)4 A: askeman ti-'-kwa nakatl
‘never you-it-eat meat’
‘you never eat meat’
B: na' ipanima ni-naka-kwa
‘I always I-meat-eat’
‘I eat it (meat) all the time’
No Tipo IV, chamado de classificatory noun incorporation (incorporação nominal
classificatória), a IN permite a incorporação de um substantivo genérico, mas o verbo complexo não
reduz sua valência e esse substantivo genérico é “duplicado” na oração por um substantivo mais
específico que não se encontra incorporado. Visto que os substantivos incorporados são genéricos,
frequentemente surge na língua um “sistema classificatório” (MITHUN, 1984:863).
Abaixo temos um exemplo de Tipo IV de IN na língua Gunwinygu. O exemplo foi retirado
de Mihtun (1984:867). Em (4), o nome dulg ‘árvore’ é incorporado ao verbo naŋ ‘ver’, enquanto o
nome mangaralaljmayn ‘castanha de caju’ aparece como nome independente. Observa-se claramente
que o verbo não reduz sua valência e que há uma espécie de duplicação do objeto direto. A duplicação
segue o padrão geral encontrado nestes tipos de exemplo: o nome genérico é incorporado (no exemplo,
dulg ‘árvore’) e o nome específico (no exemplo, mangaralaljmayn ‘castanha de caju’) aparece como
nome independente.
(4)5 bene-dulg-naŋ mangaralaljmayn
‘they.two-tree-saw cashew.nut’
‘They saw a cashew tree’
1.2. Evidências de IN como um processo de lexicalização
Mithun (1984) defende em seu artigo que o processo de IN é essencialmente um processo
lexical, ou seja, um processo de formação de palavra. A IN seria apenas mais um tipo de formação
verbal, em que há uma raiz nominal incorporada ao verbo, formando-se um verbo complexo que teria
status de palavra em diversas línguas, sofrendo inclusive todos os processos fonológicos tipicamente
internos à palavra, segundo os próprios padrões da língua em questão quanto ao que é considerado
4 Tradução: A: askeman ti-'-kwa nakatl
‘nunca você-isto-comer carne’
‘você nunca come carne’
B: na' ipanima ni-naka-kwa
‘Eu sempre eu-carne-comer
‘Eu a (carne) como o tempo todo.’
5 Tradução: bene-dulg-naŋ mangaralaljmayn
‘eles.dois-árvore-viram castanha.de.caju’
‘Eles viram um pé de caju’
21
palavra.
Ao introduzir o Tipo I de IN dentro de sua proposta tipológica, Mithun (1984:848) explica
como se comporta uma composição típica de palavras. No caso das formações de nomes, uma língua
costuma atribuir uma palavra apenas para atividades, entidades ou qualidades que sejam dignas de
receberem um léxico só para si. Dessa maneira, exemplifica a autora, “bus money” (dinheiro de ônibus)
ou “lunch money” (dinheiro de almoço) seriam considerados mais “name-worthy” (digno de ser
nomeado/lexicalizado) do que “sock money” (dinheiro de meia).
Analogamente, na formação de um verbo, a língua lexicaliza apenas determinadas ações e
atividades, naturalmente, as mais proeminentes dentro de uma determinada cultura. Segundo a autora,
a composição de palavras tem um status lexical que suas contrapartes sintáticas não têm. Mithun
(1984:848) exemplifica esse status lexical de algumas composições com algumas sentenças em inglês.
Por exemplo, se perguntam onde está determinada pessoa, pode-se responder em inglês: “He is out
berry-picking” (lit. “Ele está lá fora morango-colhendo”) ou “He is off mountain-climbing” (lit. “Ele
está montanha-subindo”). Contudo, não se pode responder “He is out ladder-climbing” (lit. “Ele está
escada-subindo”), teríamos que usar a contraparte sintática “He is out climbing a ladder” (“Ele está
lá foram subindo uma escada”). A razão é que “ladder-climbing” não é uma atividade
institucionalizada em inglês, como o são “berry-picking” e “mountain-climbing”, de modo que as
duas últimas são lexicalizadas em inglês, enquanto a primeira não tem um status lexical em inglês.
Se entendemos a IN como de fato um processo de formação de palavras, resta fácil entender
por que há uma assimetria na escolha dos NIs. Como toda composição de palavra, a IN só ocorreria
na formação de alguns verbos com alguns nomes, já que nem todas as combinações teóricas possíveis
de N-V produziriam verbos complexos que designassem uma atividade institucionalizada ou
reconhecida como proeminente na língua. Nesse sentido, a hipótese lexicalista é mais explicativa
quanto à assimetria lexical encontrada nos processos de IN em diversas línguas ao redor do mundo.
Mithun (1984:847-849) chama atenção para o fato de que toda língua natural que apresenta
essa estrutura de IN também preserva sua paráfrase sintática sem IN. A autora argumenta que seria
ineficiente que as línguas preservassem expressões equivalentes de maneira tão sistemática. Para ela
o fato de construções morfológicas produtivas desse tipo nunca existirem em uma língua sem a
existência de sentenças sintaticamente análogas indica que a morfologização deve ser funcional, ou
seja, deve ter um propósito/função na língua em questão. Segundo Mithun (1984:848), uma
comparação do processo em diversas líguas revela que os falantes sempre incorporam por um
propósito, embora este propósito não seja sempre o mesmo.
Os verbos complexos produzidos pelo processo de IN apresentam uma série de características.
Segundo Mithun (1984:856), embora haja uma diferença no grau de coesão entre as raízes N e V em
diferentes línguas (como apontam os dados da autora das línguas Mokilese, Mam, Lahu, Nisgha,
22
Gurindji, Comanche), em todos os casos, a raiz verbal V se junta à raiz nominal N para formar um
verbo complexo N-V que denota um conceito unitário, de modo que o verbo complexo N-V seria
inclusive tratado como um predicado intransitivo pelas línguas. O nome incorporado (NI) perde sua
saliência tanto semântica quanto sintática. O NI não se refere a nenhuma entidade específica. Ele
funciona apenas como um especificador do verbo, que restringe ou especifica o escopo do verbo sem
incorporação nominal.
A autora também afirma que o nome incorporado não é acompanhado por marcadores de
definitude, número ou demonstrativos. Embora o nome possa funcionar semanticamente como um
paciente, locativo ou instrumento, ele não tem um papel sintático independente na sentença como um
todo e, portanto, não é marcado por caso. Como consequência dessa falta de definitude, essas
construções não são usadas em quaisquer contextos. Os contextos mais naturais para se usar as
sentenças em que o N está incorporado ao V seriam aqueles em que o paciente da ação verbal não se
refere a um paciente específico, individualizado. O paciente da ação verbal deve ser genérico, e o
verbo complexo N-V geralmente designa uma ação habitual.
Segundo Mithun (1984:856), de uma forma geral, essas construções com IN podem designar
ou ser: 1) afirmações genéricas; 2) descrições de atividades em processo nas quais o paciente não está
sendo afetado de forma completa; 3) atividades habituais nas quais o paciente específico pode mudar;
4) atividades projetadas nas quais o paciente específico ainda não é identificável; 5) atividades
coletivas, onde um agente individual não afeta de forma completa o paciente; ou 6) atividades
direcionadas para uma porção não específica de uma massa.
A argumentação de Mithun (1984) de que a IN é um processo essencialmente lexical é
convincente para os Tipos I e II de IN, dentro de sua terminologia. Contudo, o Tipo III de IN mostra-
se, aparentemente, como um contra-exemplo. Potencialmente, essa funcionalidade da IN é muito mais
produtiva que as demais e poderia ser interpretada como essencialmente sintática por causa de sua
aparente liberdade de uso e produtividade. Contudo, a autora rejeita essa hipótese. Em sua visão, essa
alta produtividade não significa total liberdade de uso, pelo menos não como no sentido sintático.
Ainda assim, diz ela, esse processo poderia ser visto como lexical, já que os falantes normalmente
têm consciência de que estão criando uma nova palavra ao usar a sentença com o NI. Além disso, a
produtividade do processo seria governada tanto por acidente lexical quanto por considerações
pragmáticas (MITHUN, 1984:862-863).
Para Mithun (1984:863), mesmo o Tipo III de IN é um processo essencialmente lexical. Ela
argumenta que há uma clara assimetria lexical entre os NIs quanto à possibilidade de se incorporarem
ao verbo, algo que não seria comum em um processo puramente sintático. Segundo Mithun, certos
nomes são mais prováveis de ser incorporados que outros e nomes com um escopo estreito não tendem
a ser incorporados. Além disso, a animacidade também afetaria a incorporabilidade dos nomes: nomes
23
animados tendem a não ser incorporados e, quando o são, tipicamente aparecem nas composições do
Tipo I de IN e são genéricos como em “ser uma boa pessoa”. Nomes que refletem pacientes
individuais de verbos como em “estar doente” ou “morrer” são raramente incorporados.
A autora também chama atenção para o fato de certos tipos de verbos serem mais
incorporantes que outros. Verbos como “assassinar” raramente incorporaria seu paciente porque a
vítima provavelmente é importante e individualizada. Além da animacidade, a agentividade também
é um fator importante, de forma que o verbo “correr” é improvável de incorporar porque seu único
argumento é um agente. Além da animacidade, agentividade e individualidade dos pacientes dos
verbos, um segundo fator importante é o escopo de verbo. Verbos de semântica mais geral, em que
seu sentido é muitas vezes determinado pelo seu argumento, são mais prováveis de incorporar seu
argumento do que verbos de escopo mais estreito.
O grau em que uma ação afeta um paciente também é um fator na incorporabilidade. Por
exemplo, verbos em que provavelmente o evento afetará significantemente seus pacientes, tais como
“fazer” ou “comer”, são mais incorporantes que verbos com menos efeito em seus pacientes, tais
como “olhar para” ou “ouvir”.
Esses padrões de assimetria de nomes mais incorporados que outros e de verbos mais
incorporantes que outros são indícios de que o mecanismo de incorporação nominal é um tipo
específico de formação de palavra, um processo lexical, e não sintático.
1.3. Tipo IV de IN: um processo sintático ou morfológico?
O Tipo IV de IN também apresenta uma característica que aparentemente contradiz a natureza
lexical e endossa a natureza sintática desse processo. Como vimos no início dessa seção, no Tipo IV
de IN, uma raiz N semanticamente genérica se incorpora ao verbo, enquanto um NP (sintagma
nominal) semanticamente específico identifica o verdadeiro paciente da ação. Em algumas situações,
o NI é um verdadeiro hiperônimo do NP independente e frequentemente esses NIs funcionam como
classificadores.
Contudo, nem sempre o “nome independente” é mesmo um sintagma nominal. Muitas vezes,
o que resta não incorporado aparenta ser, de fato, o adjunto do núcleo de um sintagma nominal, de
modo que aparentemente estaríamos diante de um caso explícito em que o núcleo do sintagma
nominal se incorporou ao verbo por meio de um movimento sintático e que o que temos como “nome
independente” seria apenas os adjuntos desse sintagma nominal, como podemos observar no exemplo
(5) abaixo. Esses exemplos de IN parecem ser claramente de natureza sintática. Contudo, essa
natureza aparentemente sintática do Tipo IV de IN é rejeitada pela autora.
Segundo Mithun (1984:870), no Tipo IV de IN, um determinante, número ou verbo adjetival
24
pode estar sozinho e o núcleo estaria incorporado ao verbo. Abaixo temos um exemplo do Tipo IV
de IN. Em (5), vemos que há um processo que aparentemente é sintático: o núcleo de um sintagma
nominal, akya'tawi'tsher ‘vestido’, aparece incorporado ao verbo, enquanto o adjunto deste núcleo,
kanekwarunyu ‘pontilhado/de bolinhas’, aparece como elemento independente.
(5)6 Kanekwarunyu wa'-k-akya'tawi'tsher-ui:ni.
it.dotted.DIST PAST-I-dress-make
'I dress-made a polka-dotted one.' ('I made a polka-dotted dress.')
Segundo a autora, tais construções sugerem que a incorporação nominal é um mecanismo
sintático, e não lexical. Ela afirma que poderia ser argumentado que um sintagma nominal equivalente
a “polka-dotted dress” (vestido de bolinhas) deve ter sido gerado inicialmente e que o núcleo se
moveu para o verbo por meio de uma regra sintática. Contudo, a autora descarta esta hipótese,
afirmando que línguas que exibem estruturas como as do exemplo acima também exibem estruturas
como em (6):
(6)7 Kanekwarunyu wa'katkdhtho.
it.dotted.DIST PAST.I.see
'I saw a polka-dotted (one).'
Como vemos neste último exemplo, kanekwarunyu ‘pontilhado/de bolinhas’ funciona como
um sintagma independente sem a presença de IN. O último exemplo seria apropriado sempre que o
objeto está claro pelo contexo, linguístico ou pragmático. O nome não precisa ter sido explicitamente
mencionado em um discurso precedente, segundo a autora.
Apesar da alta produtividade do processo de IN atestada em algumas línguas, o mecanismo
ainda seria lexical para Mithun. Em Mohawk, a alta produtividade deste processo traz uma aparência
sintática para o processo, mas os falantes teriam consciência do status lexical desses verbos
complexos, segundo o relato da autora. Mithun (1984:872) afirma que, embora o número de
combinações N-V seja aparentemente ilimitado, os falantes têm consciência da natureza lexical das
combinações. Segundo a autora, eles não só sabem quando essas construções seriam possíveis, mas
também quais dessas combinações realmente existem, ou seja, quais dessas combinações seriam de
fato lexicalizadas. Processos puramente sintáticos não apresentam estas características, o que reforça
6 Tradução: Kanekwarunyu wa'-k-akya'tawi'tsher-ui:ni.
isto.de.bolinhas.DIST PAST-eu-vestido-fazer
'Eu vestido-fiz um de bolinhas.' ('Eu fiz um vestido de bolinhas')
7 Tradução: Kanekwarunyu wa'katkdhtho.
isto.de.bolinhas.DIST PAST.I.ver
'Eu vi um de bolinhas.'
25
a hipótese lexicalista. Mithun (1984:872) relata que os falantes da língua Mohawk se lembram de
quem usa uma palavra não usada por outros, mesmo quando se trata de combinações que são feitas a
partir de raízes altamente incorporáveis (N) ou incorporantes (V). Embora o léxico de um falante de
Mohawk possa ser muito grande por causa da alta produtividade do Tipo IV de IN, ele ainda assim é
bem definido e limitado.
1.4. IN ao longo do tempo
Outro ponto relevante para a tese de Mithun (1984) é a questão diacrônica. Para a autora, a
hierarquia implicacional encontrada por ela entre as funções que a IN pode desempenhar mostra como
a IN pode ter se desenvolvido historicamente nas línguas naturais. Segundo a autora, uma comparação
de processos de IN em línguas aparentadas mostra que o processo não dura para sempre em uma
língua. Muitas famílias contêm línguas que apresentam a IN como processo produtivo, mas também
contêm línguas em que não há nenhum processo de IN. Esse fato é uma evidência de que esse
processo morfológico pode, a priori, surgir ou desaparecer (MITHUN, 1984:872).
Embora em nenhuma língua se tenha documentado o surgimento espontâneo desse processo,
em algumas línguas há processos que potencialmente poderiam vir a ser de fato uma IN. A autora
cita o trabalho de Hopper & Thompson (1980), em que os autores afirmam haver uma forte pressão
tipológica entre as línguas ao redor do mundo para que os Vs fusionem com objetos diretos
indefinidos. A autora traz algumas sentenças do Húngaro retiradas do trabalho de Hooper &
Thompson (1980), que por sua vez retiraram de Bese et al. (1970).
Entre os exemplos abaixo, retirados de Mithun (1984:872), o exemplo (7) mostra que, em
Húngaro, os objetos diretos que são referenciais e definidos seguem o verbo e são indexados no verbo
por meio de um marcador de definite transitivity “transitividade definida”. Em (8), observamos que,
quando o objeto é referencial, mas é indefinido, o marcador verbal -sa não aparece mais como sufixo
do verbo olvas ‘ler’, mas o objeto direto újságot ‘jornal’ continua sendo posto após o verbo, como
ocorre quando o objeto é definido. Em (9), observamos que, quando o objeto gramatical não é nem
definido nem referencial, o objeto újságot ‘jornal’ precede o verbo olvas ‘ler’, que por sua vez não
apresenta o marcador -sa. O último dos três exemplos apresenta características típicas de IN, como a
falta de definitude e referencialidade do objeto direto e a coesão entre esse objeto e o verbo.
26
(7)8 Peter olvas-sa az újságot.
Peter reads-OBJ the newspaper
'Peter is reading the newspaper.'
(8)9 Peter olvas egy újságot
Peter reads a newspaper.
'Peter is reading a [specific] newspaper.'
(9)10 Peter újságot olvas.
Peter newspaper reads
'Peter is reading a newspaper.'
Mithun (1984:872-873) faz referência também ao Turco, em que os objetos diretos geralmente
recebem um sufixo marcador do caso acusativo, com exceção dos objetos diretos indefinidos, que
não recebem nenhuma marca. Em (11), quando o objeto direto pipo ‘cachimbo’ é utilizado como um
objeto indefinido, ele não recebe nenhuma marca de acusativo, enquanto em (10), em que pipo se
refere a um elemento específico, o nome recebe o sufixo -u, marca de acusativo, além do sufixo -sun,
marca de possessivo, que indica a definitude do objeto direto.
(10)11 Ahmet pipo-sun-u ič -iyor.
Ahmet pipe-his-ACC drink-AOR
'Ahmet is smoking his pipe.'
(11)12 Ahmet (bir) pipo ič-iyor.
Ahmet (a/one) pipe drink-AOR
'Ahmet is smoking a pipe; Ahmet pipe-smokes.'
Outra evidência que indica que o exemplo (11) é de fato algo muito próximo de IN é que, em
Turco, exemplos como esses não permitem que algum elemento se interponha entre o nome
supostamente incorporado e o verbo. Assim, como mostram os exemplos abaixo, retirados de Mithun
8 Tradução: Peter olvas-as az újságot.
Peter lê-OBJ o jornal
'Peter está lendo o jornal.'
9 Tradução: Peter olvas egy újságot
Peter lê o jornal.
'Peter está lendo um jornal [específico].'
10 Tradução: Peter újságot olvas.
Peter jornal lê.
Peter está lendo um jornal.'
11 Tradução: Ahmet pipo-sun-u ič -iyor.
Ahmet cachimbo-seu- ACC beber-AOR
'Ahmet está fumando seu cachimbo.'
12 Tradução: Ahmet (bir) pipo ič-iyor.
Ahmet (um) cachimbo beber -AOR
'Ahmet está fumando um cachimbo; Ahmet cachimbo-fuma'
27
(1984:873), o adjunto adverbial hergün ‘todo dia’, cuja posição natural seria logo antes do verbo e
após o objeto, como em (12), será realizado antes do objeto direto em (13), quando este é indefinido.
Além disso, quando o objeto direto pipo ‘cachinbo’ é indefinido, como em (13), ele não recebe
nenhuma marca de acusativo, enquanto em (12), em que pipo é definido, o nome recebe o sufixo -u,
marca de acusativo, bem como o sufixo -sun, marca de possessivo. A autora conclui que o Turco
segue a tendência geral de os verbos se fundirem com seus objetos diretos indefinidos e que isso
poderia ser um prenúncio de um mecanismo de IN, mais especificamente o Tipo I de IN.
(12)13 Ahmet pipo-sun-u hergün ič-iyor.
Ahmet pipe-his-ACC every.day drink-AOR
'Ahmet smokes his pipe every day.'
(13)14 Ahmet hergün pipo ič-iyor.
Ahmet every.day pipe drink-AOR
'Ahmet pipe-smokes every day.'
A autora afirma que esses exemplos de fusão entre o verbo e um objeto direto indefinido,
como os encontrados em Húngaro e em Turco, dão uma pista preciosa de como o processo de IN
pode surgir em uma língua. Para Mithun, o grau de coesão entre o V e o NI é primariamente uma
característica morfológica geral da língua em questão, de modo que, em línguas analíticas, como o
Lahu, o constituinte das composições usualmente retêm sua identidade como palavras independentes.
Em línguas mais sintéticas, como Nisgha, os constituintes são geralmente fundidos em uma única
palavra (MITHUN, 1984:873-874).
O mais interessante dos dados das línguas geneticamente aparentadas é a hierarquia
implicacional encontrada pela pesquisadora. Para Mithun (1984:891), essa hierarquia implicacional
aponta para uma trilha específica de desenvolvimento a ser trilhada pela IN, quando esta surge em
uma língua. Na opinião da linguista, o ponto de partida é o Tipo I de IN, na qual uma raiz nominal e
uma raiz verbal se combinam para formar um verbo complexo N-V intransitivo que denota uma
atividade unitária e digna de ser lexicalizada.
Quando a língua apresenta o Tipo I de IN, ela pode começar a apresentar o Tipo II, pois o
sistema pode ser estendido para permitir que um argumento oblíquo significante assuma a posição
deixada pelo NI. Nesse segundo estágio, a IN afeta as relações de caso dentro da oração, mas o verbo
mantém sua valência, já que um argumento interno é incorporado ao verbo e outro argumento oblíquo,
13 Tradução: Ahmet pipo-sun-u hergün ič-iyor.
Ahmet cachimbo-seu-ACC todo.dia beber-AOR
'Ahmet fuma seu cachimbo todo dia.'
14 Tradução: Ahmet hergün pipo ič-iyor.
Ahmet todo.dia cachimbo beber-AOR
'Ahmet cachimbo-fuma todo dia.'
28
geralmente proeminente, assume o lugar como novo argumento interno.
A autora prossegue em sua explicação quanto ao caminho trilhado pela IN nas línguas naturais
e afirma que, em línguas polissintéticas, o sistema pode evoluir e se estender para o nível do discurso,
em que Ns que se referem a uma informação já sabida ou pouco significante podem ser incorporados
à raiz verbal para estreitar o escopo do verbo sem a necessidade de um sintagma nominal adicional
(a língua estaria aqui já no terceiro estágio de desenvolvimento).
Por fim, afirma a autora, um sistema classificatório pode surgir na língua, de modo que Ns
genéricos são sistematicamente incorporados para estreitar o escopo semântico dos Vs incorporantes
que não reduz sua valência, enquanto sintagmas mais específicos identificam o verdadeiro referente.
É interessante notar que o nome incorporado só pode exercer alguns papeis semânticos, como
o de paciente, locativo, instrumento. Embora na IN prototípica o NI é o paciente de verbos transitivos
ou intransitivos, há registro de línguas que incorporam o locativo ou o instrumento, ou seja, um
adjunto adverbial. Mithun (1984:875) cita algumas dessas línguas junto com suas referências: Nahuatl
(ANDREWS, 1975); Takelma (SAPIR, 1922); Sora (RAMAMURTI, 1931). Abaixo temos exemplos
com incorporação de instrumento e de locativo.
Os dois exemplos abaixo são, respectivamente, das línguas Takelma e Sora e foram retirados
de Mithun (1984:875). Em (14), da língua Takelma, observa-se que tanto o paciente gwen ‘pescoço’
quanto o instrumento waya ‘faca’ são incorporados ao verbo sgo ̄́ut ‘cortar’. Em (15), da língua Sora,
observa-se que o locativo 'ɟeŋ ‘perna’ (no contexto, “até a sua perna”) está incorporado ao verbo.
(14)15 gwen-waya-sgo ̄́ut-hi.
neck-knife-cut-he/them
'He cut their necks off with his knife.'
(15)16 ɟi-lo:-'ɟeŋ-t-am.
Stick-mud-leg-will-you
'Mud will stick to your leg.'
Segundo Mithun (1984:875-876), essas incorporações de elementos que funcionam como
adjuntos adverbiais aparentemente não são nem mais nem menos prováveis de ocorrerem em função
do nível em que a língua se encontra dentro de sua tipologia. As línguas também diferem quanto à
similaridade das formas entre as raízes do NI e sua contraparte independente. Assim, em Tupinambá,
o N poro ‘carne humana’ é incorporado como -por-, e kawi ‘cauim’ é incorporado como -ka-. Em
15 Tradução: gwen-waya-sgo ̄́ut-hi.
pescoço-faca-cortar-ele/eles
'Ele corta fora o pescoço deles com sua faca.'
16 Tradução: ɟi-lo:-'ɟeŋ-t-am.
grudar-lama-perna-vai-você
'A lama vai grudar em sua perna.'
29
algumas línguas, a discrepância entre o nome incorporado e o nome independente é muito maior,
como o caso de Mohawk.
Segundo Mithun (1984:876), em Mohawk, em alguns casos de IN, os falantes precisam
aprender uma raiz que será usada apenas incorporadas a um V e outra raiz semanticamente
equivalente que será usada como palavra independente. Assim, -nahskw- ‘animal doméstico’ só
aparece incorporado a um V, enquanto o equivalente semântico -tshenv aparece apenas como um N
independente. Analogamente, em algumas línguas, há raízes verbais V que são usadas apenas com
um N incorporado, enquanto há outra raiz verbal semanticamente equivalente que é usada apenas
como palavra independente e que não necessariamente é cognata à raiz V incorporante.
Em algumas línguas, afirma Mithun (1984:887), há “afixos” que podem corresponder a Vs
incorporantes em outras línguas. Segundo a pesquisadora, as línguas Chukotko-Kamchatkan, que
apresentam o Tipo III de IN, também têm pequenos conjuntos de afixos que, quando adicionados a
Ns, funcionam exatamente como Vs incorporantes.
Mithun (1984:887) afirma que Bogoras (1922) nunca justificou a distinção feita por ele entre
“sufixos derivacionais” e raízes de Vs incorporantes. O mais provável, diz Mithun, é que esses sufixos
derivacionais encontrados em Koryak e Chukchi nada mais sejam do que antigas raízes de Vs que,
no estado atual da língua, nunca ocorrem sem um NI.
Mithun (1984:887-889) também faz referência ao trabalho de Swadesh (1948), em que o autor
afirma que há um conjunto de 400 sufixos em Nootka, alguns dos quais cognatos com raízes e sufixos
de outras línguas aparentadas ou próximas geograficamente. Segundo a autora, Swadesh sugere que
alguns desses sufixos-raízes em Nootka podem ter sido gerados de palavras pospostas que se
transformaram em sufixos.
Essa relação discrônica entre um sistema atual de afixos e antigos Ns incorporados e Vs
incorporantes é observada por outros autores em línguas de outras famílias e de diferentes regiões
geográficas. Fleck (2006:59) fez uma análise da língua Matsés (Pano) com o objetivo de abordar a
questão do status de um conjunto de 28 formas monossilábicas que se anexam a raízes verbais,
adjetivais e nominais e que representam frequentemente partes do corpo humano. Segundo o autor,
conjuntos similares são encontrados em outras línguas da família Pano, e há uma discussão entre os
especialistas se o correto seria considerar essas formas como casos de afixação lexical ou como casos
de incorporação nominal (IN). O autor defende a tese da afixação lexical.
Em um artigo mais recente, Biondi & Fleck (2012) analisam essas formas monossilábicas na
língua Kashibo-Kakataibo (Pano) e defendem a tese de que esses prefixos não são alomorfes de
nomes que designam parte do corpo humano, mas sim morfemas sincronicamente independentes
desses nomes.
Biondi & Fleck (2012:405) afirmam que pelo menos 65% dos prefixos nessa língua não
30
devem ser analisados como alomorfes sincrônicos dos nomes correspondentes, mas sim como um
conjunto fechado de prefixos que são sincronicamente independentes de suas raízes correspondentes.
Biondi & Fleck (2012:386) rejeitam a hipótese de que se trata de incorporação nominal, embora
reconheçam que outros trabalhos trazem esta abordagem. Eles afirmam que se esses afixos fossem
processos de IN, haveria uma relação sincrônica entre os prefixos e os nomes independentes, relação
que segundo eles não existe.
Segundo Biondi & Fleck (2012:399-400), há duas análises possíveis desses prefixos: a
sincrônica e a diacrônica. Na análise sincrônica, esses prefixos seriam alomorfes de raízes que são
nomes independentes. Segundo os autores, alguns especialistas em línguas Pano sugerem que estes
prefixos seriam derivados, por regra sincrônica, de nomes completos que seriam reduzidos a seus
primeiros segmentos quando anexados à frente de um nome, adjetivo ou verbo. Os prefixos que não
correspondem exatamente aos primeiros segmentos do nome que designa uma parte do corpo humano
seriam irregularidades. Na análise diacrônica, esses prefixos representam um conjunto fechado de
prefixos independentes. As semelhanças com as raízes correspondentes que designam partes do corpo
humano seriam apenas uma relação passada. A relação exata entre os prefixos e as raízes
correpondentes permanece desconhecida, no sentido de que é difícil chegar a uma conclusão final
sobre qual seria a forma primitiva. Embora seja tentador afirmar que os prefixos são derivados
diacronicamente dos nomes, e não o contrário, os autores sugerem que pelo menos alguns dos prefixos
parecem ser mais antigos que as raízes correspondentes (BIONDI & FLECK, 2012:399-400).
Como vimos, Mithun (1984:885-889) cita diversos trabalhos, entre os quais o de Bogoras
(1922) e o de Jacobsen (1980), para mostrar que é comum que raízes dentro de composições
permaneçam no léxico da língua, ainda que seus cognatos independentes tenham sido substituídos.
As línguas Nadëb (Maku) e Tonga (Austronésia) também apresentam um fenômeno que não é
exatamente IN, mas que está relacionado a este fenômeno morfossintático sob uma perspectiva
diacrônica. O que estas duas línguas apresentam são casos conhecidos na literatura como noun
stripping. Gerdts (1998) afirma que, quando ocorre um noun stripping, os dois elementos (nome e
verbo) permanecem como palavras separadas de acordo com critérios fonológicos, como o
deslocamento tônico. De qualquer forma, há uma unidade entre o nome e o verbo. Em Kusaiean
(Austronésia), afirma Gerdts, os advérbios podem aparecer após um verbo, mas não entre um verbo
e um stripped noun, por exemplo. Ou seja, se por um lado não podemos considerar essa construção
N-V como uma única palavra dentro dos padrões fonológicos do que seja palavra em cada língua em
questão, por outro lado há uma coesão, uma unidade sintática entre o N e o V, que proíbe, por exemplo,
a interposição de nenhum outro elemento oracional.
De forma intuitiva, poderíamos afirmar que o noun stripping seja uma espécie de precursor
da IN. Poderíamos falar de um estágio inicial a partir do qual a língua pode, ou não, desenvolver
31
casos de IN morfológica, como acontece, por exemplo, em línguas como Munduruku (Munduruku),
estudada em Gomes (2008). Em seu trabalho clássico sobre IN, Sapir (1911) afirma que a IN deve
ser vista sempre do ponto de vista sincrônico. O autor chama atenção para o perigo de se fazer uma
análise descritiva sincrônica enviesada por considerações históricas. De fato, deve-se ter em mente
que, do ponto de vista diacrônico, é comum que as línguas naturais sofram processos de
gramaticalização, conceito introduzido pelo linguista francês Meillet (1912).
Sincronicamente, há diferenças entre o que poderíamos definir como noun stripping, IN
morfológica e afixação lexical, muito embora possamos intuir uma relação histórica entre esses
processos. Contudo, essa intuição histórica reforça a tese de que a IN seja essencialmente um processo
sintático. Como vimos desde o início dessa seção, essa tese é rejeitada por Mithun (1984) por diversas
evidências que mostrariam o status de palavra do verbo complexo N-V. A linguista admite que a
produtividade da IN possa ser tão grande a ponto de o léxico da língua ser enorme. Contudo, Mithun
rejeita a ideia de essa alta produtividade indicar que se trata de um processo tão livre e tão produtivo
quanto um processo verdadeiramente sintático. A autora cita as evidências fonológicas, já que a
lexicalização resulta em idiossincrasias fonológicas e semânticas não encontradas em construções
genuinamente sintáticas.
Mithun (1984:889) também cita a consciência por partes dos falantes de que essas construções
são, de fato, novas palavras do léxico, enquanto novas sentenças com construções sintáticas não
lexicalizadas não são percebidas. Segundo a autora, em Mohawk, os falantes nativos relatam o prazer
em visitar alguém de outra comunidade e ouvir novas INs pela primeira vez. Embora os nativos não
tenham nenhum problema em entender o significado da nova palavra, eles reconhecem que essas
palavras não fazem parte do seu amplo léxico. Além disso, quando eles estão criando novas
combinados, eles estão conscientes de estar criando novas palavras e muita discussão frequentemente
envolve esses eventos.
1.5. Conclusões
Mithun (1984:877) conclui seu artigo afirmando que a IN se comporta como outros processos
morfológicos, não importa quão produtivos eles sejam na língua. Como outros morfemas, nomes
incorporáveis e V incorporantes se submetem a todas as regras fonológicas sincrônicas da língua. Na
visão desta autora, a IN não é de maneira alguma um equivalente às estruturas sintáticas básicas
comumente encontradas em línguas indo-europeias. Para ela, a IN é essencialmente um processo
morfológico, um processo de formação de palavra, não um processo sintático. A IN é sempre
funcional e pode ser usada para alcançar, inclusive, efeitos estilísticos. Segundo Mithun (1984:891),
os falantes que usam bem o processo de IN podem ser especialmente adimirados, enqanto falantes
32
marginais podem não ser capazes de usar isso de forma alguma. IN pode ser um recurso linguístico
poderoso, embora também frágil. Para Mithun, os falantes das línguas em que há IN, por mais
produtivo que este processo seja na língua, têm plena consciência do status lexical desses verbos
complexos e reconhecem não só quando se usa uma nova palavra, mas também a habilidade dos
poucos que sabem construir esses verbos com perfeição estilística.
Embora haja evidências sólidas de que a IN seja um processo morfológico, ou seja, um
processo de formação de palavra, como defendido por diversos autores na literatura [(MITHUN,
1984), (DI SCIULLO & WILLIAMS, 1987), (ROSEN, 1989)], este processo também pode ser
entendido de outras formas. Há outras questões que envolvem este fenômeno e que devem ser levadas
em conta. Apesar das evidências que fortalecem a hipótese lexicalista, como as apontadas por Mithun
(1984), observam-se também evidências de que estamos diante de um processo sintático, como
veremos na seção específica para a hipótese sintática.
Há também estudos que apontam para os aspectos semânticos como elementos essenciais para
entender o processo de IN. Em uma seção específica abaixo, veremos que geralmente o Tipo II de IN
ocorre simultaneamente a outro processo conhecido na literatura como “ascensão do possuidor” (AP)
(VELÁZQUEZ-CASTILLO, 1995:685-702; MURO, 2009:87). O mais interessante a ser observado
é que aparentemente há regras semânticas explícitas que proibem a IN de termos que designam
determinadas partes do corpo humano. Velázquez-Castillo (1995) mostra que, em Guarani Paraguaio,
a IN e a AP não ocorrem com qualquer parte do corpo humano: há determinadas partes do corpo
humano que são incorporáveis e há outras que nunca o são, mesmo quando se satisfazem outros pré-
requisitos da língua em questão para que haja IN.
Quanto ao Tipo IV de IN, segundo Muro (2009:103), o processo de duplicação, em que há
um nome genérico incorporado à raiz verbal e um nome específico como palavra independente e
complemento do verbo, não é completamente livre: há construções em que a presença do NI genérico
é obrigatória; há outros casos em que ela é proibida. Naturalmente, seria interessante fazer uma
reanálise dos dados das línguas com novas pesquisas de campo, em que se possam fazer testes
adequados para identificar a presença ou a ausência de fatores semânticos restritivos que definam a
elegibilidade dessas construções, assim como veremos mais adiante que já foram apontados fatores
semânticos que restringem a possibilidade de se fazer IN ou não, como nos casos de IN + AP, em que
há regras semânticas que predeterminam se um nome é incorporável ou não.
Em ambos os tipos de IN, segundo a tipologia proposta por Mithun (1984), observa-se que há
um forte fator semântico que prediz em algum sentido o comportamento do fenômeno. Seria
necessária uma elicitação dos dados com mais profundidade em diversas línguas do mundo, para
verificar se em determinados casos há regras semânticas que não só proíbam a forma incorporada,
mas também há regras que obrigam o uso da forma incorporada. Naturalmente, se encontrarmos
33
regras que não só restringem, mas também preveem o resultado, restará mais claro que a semântica é
de fato um fator relevante para explicar o fenômeno e sua produtividade em uma língua.
34
2. As Hipóteses Sintáticas
2.1. A hipótese sintática de Baker (1988)
O principal expoente da hipótese sintática é Baker (1988). Segundo este autor, a IN pode ser
explicada como sendo um subcaso de uma transformação mais geral conhecida na literatura gerativa
como Move-Alpha. Sua explicação insere-se no contexto do modelo teórico conhecido como
Regência e Ligação (Government and Binding). Antes de adentrarmos especificamente nas
evidências mostradas por Baker, faremos uma breve contextualização dos propósitos do seu trabalho.
Logo no início de sua tese de doutorado, o autor deixa claro o objetivo de seu trabalho: unificar
em uma única teoria linguística formal duas classes de alternâncias de como as línguas naturais
expressam proposições: a primeira classe se refere aos modos alternativos de codificar expressões
referenciais em funções gramaticais, e a segunda classe se refere aos modos de construir predicados
complexos por meio de unidades elementares.
As alternâncias de como as línguas codificam expressões referenciais em funções gramaticais
poderiam ser explicadas pela existência de regras de mudança na função gramatical (“grammatical
function changing rules”), tais como as regras de construção de passiva, de causativo, de aplicativo,
etc. Contudo, para Baker (1988:1), essas regras não estão na cognição humana e são efeitos colaterais
de outro processo linguístico, puramente sintático.
O autor tenta demonstrar que a mudança na função gramatical nada mais é do que um efeito
colateral de um movimento sintático específico, o movimento de uma palavra ao invés do movimento
de um sintagma nominal. Em termos do modelo teórico Regência e Ligação, Baker tenta mostrar que
a mudança na função gramatical é uma consequência do movimento de um X0, que se incorpora em
um Y0 da sentença.
Dentro desse quadro teórico, conhecem-se bem as propriedades de um movimento de um XP
e de um Wh. Segundo esse quadro teórico, esses movimentos sintáticos não são imprevisíveis. Ao
contrário, eles respeitam certos princípios universais. Assim, quando se trata de mostrar que certo
processo linguístico é um movimento sintático, dentro deste quadro teórico, deve-se mostrar que esse
movimento respeita esses princípios universais, que serão explorados abaixo. Neste sentido, Baker se
propõe a mostrar que os movimentos possíveis de um X0 também são previsíveis e restritos aos
mesmos princípios universais que restringem os movimentos de um XP e de Wh. Em suma, o autor
tenta mostrar que o movimento de um X0 é só mais um tipo de movimento conhecido na literatura
como Move-Alpha.
Com base em dados provenientes da extensa literatura descritiva acerca do fenômeno da IN,
Baker (1988) tenta dar uma explicação sintática para esses processos. Além disso, o autor tenta
35
coadunar esse processo de incorporação nominal (e de outras incorporações) com os processos de
mudança na função gramatical conhecidos na literatura descritiva.
O autor nega a existência de regras de mudança na função gramatical na cognição humana.
Baker mostra, em sua tese, que essas regras são apenas efeitos colaterais da incorporação de um X0
em um Y0 por meio de um movimento sintático limitado por princípios universais bem estabelecidos.
Em outras palavras, os processos de mudança na função gramatical têm uma explicação sintática
dentro do modelo proposto por Baker. Assim, para o autor, aquelas duas classes de alternâncias em
como as línguas naturais expressam proposições, que foram citadas no início dessa seção, são, na
verdade, de um só tipo.
2.2. Incorporação e os processos de mudança na função gramatical
Em um primeiro momento, Baker chama a atenção para o fato de que, em muitas línguas, há
estruturas que apresentam uma distribuição temática idêntica. Sentenças como “João ajudou Pedro”
e “Pedro foi ajudado por João” são sentenças em que as expressões referenciais recebem os mesmos
papeis temáticos, embora as relações gramaticais sejam expressas de forma distinta (Baker, 1988:7).
A passiva é apenas um entre outros processos que provocam o que o Baker chama de fenômeno da
mudança na função gramatical. Baker aponta cinco processos conhecidos na literatura descritiva:
passiva, antipassiva, aplicativo, causativo e ascensão do possuidor (Baker, 1988:9-13). Desses cinco
processos, três deles, o processo de passiva, o de antipassiva e o de ascensão do possuidor, são
considerados pelo autor como sendo subtipos de IN. O aplicativo e o causativo são incorporações de
outra natureza.
Do ponto de vista descritivo, há padrões interessantes que envolvem todos esses cinco
processos de mudança na função gramatical. Por exemplo, em todos eles, há uma mudança na
morfologia verbal. Além disso, muitas línguas naturais apresentam apenas alguns desses processos
de mudança na função gramatical. Outra observação interessante feita pelo autor, esta na direção de
mostrar que esses processos não são regras da cognição humana, é o fato de que línguas artificiais
não apresentam processos semelhantes a esses processos que são encontrados em muitas línguas
naturais e que geralmente implicam a existência de paráfrases temáticas. Além disso, segundo o autor,
o trabalho de Hale (1982) mostra que, em Warlpiri, parece não haver nenhum desses processos. Outro
fato relevante é que o número de possibilidades dessas estruturas é restrito (apenas cinco processos
conhecidos e identificados translinguisticamente). O autor apresenta uma explicação sintática formal
para todos esses cinco padrões comumente descritos na literatura (BAKER, 1988:8).
Logo após essa argumentação inicial de que as mudanças nas funções gramaticais não fazem
parte necessariamente da cognição humana, Baker (1988:8-9) apresenta o objetivo principal de sua
36
tese: mostrar evidências de que a mudança na função grammatical não existe em um sentido
fundamental, ela é apenas um efeito colateral de incorporar uma palavra em outra. Neste caminho, o
autor procura explicar quatro questões fundamentais relacionadas a tais processos.
Em sua tese, o autor pretende relacionar esses processos de mudança na função gramatical
encontrados em várias línguas do mundo com o fenômeno da incorporação de uma maneira geral.
Para o autor, esses processos de mudança na função gramatical é o simples resultado de um processo
de incorporação de uma palavra em outra. Para demonstrar isso, o autor mostra dados de várias
línguas que são evidências de que esses processos de mudança na função gramatical (passiva,
antipassiva, etc.) estão relacionados a movimentos sintáticos de núcleo para núcleo. Baker tenta
mostrar que, por exemplo, sentenças causativas em que o verbo marca o causativo morfologicamente
tem a mesma estrutura profunda que suas paráfrases temáticas superficiais em que não há o morfema
causativo no verbo. Ele tenta demonstrar que esses morfemas são gerados na estrutura profunda
(“base-generated”) como um item lexical independente.
Para demonstrar que esses processos são o resultado de um movimento sintático, o autor
mostra que o movimento sintático de um X0 respeita os mesmos princípios universais que restringem
o movimento de um XP e de Wh. Assim, para o autor, a IN é um processo estritamente sintático, e
não um processo morfológico, como proposto por Mithun (1984), cuja visão é a de que a IN é um
tipo especial de formação de palavra.
Abaixo segue um dos exemplos citados pelo autor como evidências de que os morfemas de
estruturas causativas, etc. são gerados na estrutura profunda como itens lexicais independentes. O
exemplo abaixo, da língua Chichewa (Bantu), foi retirado de Baker (1988: 21).
(16)17 a. Mtsikana a-na-chit-its-a kuti mtsuko u-gw-e
Girl do-cause that waterpot fall
‘The girl made waterpot fall’
b. Mtsikana a-na-gw-ets-a mtsuko
Girl fall-cause waterpot
‘The girl made waterpot fall’
Para Baker (1988:21-22), é importante observar que essas sentenças não são apenas paráfrases
temáticas, elas contêm as mesmas raízes lexicais. A alternânica encontrada no morfema causativo -
its-/-ets- ‘causar’ entre as vogais “i” e “e” ocorre por regras de harmonia vocálica da língua. A
17 Tradução: a. Mtsikana a-na-chit-its-a kuti mtsuko u-gw-e
Garota fazer-causar este pote.de.água cair
‘A garota fez o pote de água cair’
b. Mtsikana a-na-gw-ets-a mtsuko
Garota cair-causar pote.de.água
‘A garota fez o pote de água cair’
37
principal diferença entre as duas sentenças acima é que -gw- ‘cair’ e -its- ‘causar’ na primeira sentença
são verbos morfologicamente distintos, enquanto na segunda sentença esses verbos formam uma
única palavra que é realizada na posição do verbo -its ‘causar’. Segundo o autor, é natural
relacionarmos essas duas sentenças atribuindo-lhes estruturas sintáticas subjacentes paralelas em que
o verbo -gw- ‘cair’ se move para a posição do verbo -its- ‘causar’, como podemos observar em (17).
(17)
Para o autor, movimentos como o descrito no exemplo acima não só explicam os processos
de mudança na função gramatical, mas também mantêm semelhanças estruturais com o fenômeno de
IN descrito acima. Na linguística descritiva, esses processos são vistos como fenômenos totalmente
independentes e não inter-relacionados. Para Baker, há uma explicação formal que unifica todos estes
processos linguísticos: a IN e os processos de mudança na função gramatical. Todos esses fenômenos
linguísticos podem ser explicados por meio de movimentos sintáticos no modelo proposto pelo autor.
Na incorporação, há um movimento sintático de um X0 que se une a um Y0. Do ponto de vista
estrutural, a IN e os processos de mudança na função gramatical são processos idênticos, pois ambos
os fenômenos são explicados estruturalmente por meio de um modelo linguístico que permite o
movimento de um X0, além dos tradicionais movimentos de XP e de Wh. Para demonstrar tudo isso,
Baker (1988) mostra que a IN (também descrita como um movimento de um X0 para dentro de um
Y0) respeita todos os princípios universais que restringem outros movimentos sintáticos já conhecidos
e bem aceitos pelo modelo Regência e Ligação.
O autor utiliza os primeiros capítulos de sua tese para mostrar, essencialmente, que o
movimento de um X0 para dentro de um Y0 é um movimento válido do ponto de vista do modelo da
Regência e Ligação. Além disso, o autor mostra que as restrições universais a movimentos sintáticos
de qualquer natureza (X0, XP, Wh, …) explicam dois padrões interessantes apresentados na
linguística descritiva: 1) as limitações encontradas na IN (por exemplo, não há nenhuma língua que
permita a IN de um N que exerça a função de agente da oração); 2) o número limitado de processos
38
de mudança na função gramatical (são apenas cinco processos conhecidos na literatura). As
limitações encontradas translinguisticamente em sentenças com IN são consequências das limitações
estruturais impostas pelos princípios universais que restringem o movimento sintático de todos os
elementos “movimentáveis” do ponto de vista técnico do modelo da Regência e Ligação. O número
limitado de processos de mudança na função gramatical é explicado pelas mesmas restrições.
2.3. O Princípio do Espelho
Um dos padrões encontrados entre as línguas no que diz respeito aos processos de mudança
na função gramatical é o fato de que a forma verbal da paráfrase temática que não segue os padrões
canônicos da língua está sempre associada à forma verbal da sentença canônica e pode ser derivada
desta última forma verbal por meio de uma afixação produtiva. Em outras palavras, em todos os
processos de mudança na função gramatical, há uma morfologia associada a esses processos e esta
morfologia é verbal. Baker se pergunta qual a explicação para a morfologia estar associada a esses
processos de mudança na função gramatical em todas as línguas naturais.
Segundo Baker (1988:13), uma explicação funcional de por que a morfologia está sempre
associada à mudança na função gramatical poderia ser formulada da seguinte maneira: como os
processos de mudança na função gramatical distribuem os papeis temáticos de uma forma não-
canônica na sentença, precisa haver um sinal explícito de que houve tal mudança, daí a necessidade
de haver uma morfologia associada a esses processos de mudança na função gramatical. Contudo,
pergunta-se o autor, por que a morfologia associada a esses processos é sempre uma morfologia
verbal? Por que as línguas não permitem que esse sinal seja colocado, por exemplo, no sintagma
nominal que se torna sujeito? Esta última estratégia seria tão funcional quanto a estratégia de
morfologia verbal. A explicação funcional não responde a essas questões, na visão do autor.
Dados da língua Chichewa (Bantu) dão evidências de que esses processos morfológicos estão
intimamente ligados aos processos sintáticos associados aos processos de mudança na função
gramatical. Em um artigo anterior à tese, Baker (1985) mostra que, quando uma língua permite que
ocorra mais de um dos processos citados em uma mesma sentença, as mudanças morfológicas
associadas a esses processos ocorrem na mesma ordem em que ocorrem as mudanças sintáticas
associadas a esses processos. Baker traduziu esse fato em uma generalização conhecida como
“Princípio do Espelho”. Segundo esse princípio, derivações morfológicas devem refletir diretamente
as derivações sintáticas (e vice-versa) (Baker, 1988: 13).
No exemplo abaixo, da língua Chichewa (Bantu), retirado de Baker (1988:13-15), observam-
se duas mudanças das funções gramaticais: o aplicativo e a passiva. A primeira sentença de (18) é a
forma sem aplicativo e sem passiva. Na segunda sentença de (18), temos um aplicativo, processo em
39
que um argumento oblíquo (neste exemplo, mpiringidzo ‘pé de cabra’) torna-se um objeto direto,
enquanto o antigo objeto direto (neste exemplo, chitseko ‘porta’) torna-se um segundo objeto ou um
argumento oblíquo. O inglês não tem aplicativo, de modo que a tradução destas duas sentenças é a
mesma. A morfologia verbal associada ao aplicativo em Chichewa é o sufixo -ir, como observamos
na segunda sentença do exemplo abaixo. Na terceira sentença de (18), temos uma passiva, processo
em que um objeto direto (neste exemplo, chitseko ‘porta’) torna-se sujeito, enquanto o antigo sujeito
(neste exemplo, nkhosa ‘ovelha’) aparece como argumento oblíquo ou nem aparece. A marca para
argumentos oblíquos em Chichewa é a preposição ndi ‘por/com’. A morfologia verbal associada à
passiva em Chichewa é o sufixo -idw.
(18)18 a. Nkhosa zi-na-tsekul-a chitseko ndi mpiringidzo
Sheep SP-PAST-open-ASP door with crowbar
‘The sheep opened the door with a crowbar’
b. Nkhosa zi-na-tsekul-ir-a mpiringidzo chitseko
Sheep SP-PAST-open-APPL-ASP crowbar door
‘The sheep opened the door with a crowbar’
c. Chitseko chi-na-tsekul-idw-a ndi mpiringidzo ndi nkhosa
Door SP-PAST-open-PASS-ASP with crowbar with sheep
‘The door was opened with a crowbar by the sheep’
O Princípio do Espelho afirma que, se utilizarmos tanto o aplicativo quanto a passiva, a
morfologia associada ao aplicativo necessariamente será usada no verbo antes da morfologia
associada à passiva. Em uma língua aglutinativa com claros prefixos e sufixos, isso significa que o
afixo verbal usado para o aplicativo estará mais próximo da raiz verbal que a o afixo usado para a
passiva.
Em seguida, o autor mostra como seriam as duas potenciais sentenças em que se usam tanto
o aplicativo quanto a passiva. A passiva vem da oração já com aplicativo, pois o sujeito da oração
não é o objeto direto da forma canônica, mas sim o instrumento, indicando que se usou primeiramente
o aplicativo (de modo que o argumento oblíquo se tornou objeto direto) para em seguida se usar a
passiva (de modo que aquele argumento oblíquo que se tornou objeto direto com o aplicativo veio a
se tornar o sujeito da oração com a passiva). Também se observa que o morfema verbal -ir, associado
18 Tradução: a. Nkhosa zi-na-tsekul-a chitseko ndi mpiringidzo
Ovelha SP-PAST-abrir-ASP porta com pé.de.cabra
‘A ovelha abriu a porta com um pé de cabra’
b. Nkhosa zi-na-tsekul-ir-a mpiringidzo chitseko
Ovelha SP-PAST-abrir-APPL-ASP pé.de.cabra porta
‘A ovelha abriu a porta com um pé de cabra’
c. Chitseko chi-na-tsekul-idw-a ndi mpiringidzo ndi nkhosa
Porta SP-PAST-abrir-PASS-ASP com pé.de.cabra com ovelha
‘A porta foi aberta com um pé de cabra pela ovelha’
40
ao aplicativo, deve vir necessariamente antes do morfema -idw, associado à passiva. Assim, a segunda
sentença de (19) é agramatical. Ou seja, os morfemas verbais associados a esses processos são usados
na mesma ordem em que ocorrem as mudanças sintáticas associadas a esses processos.
(19)19 a. Mpiringidzo u-na-tsekul-ir-idw-a chitseko ndi nkhosa
Crowbar SP-PAST-open-APPL-PASS-ASP door by sheep
‘The crowbar was used by the sheep to open the door’
b. *Mpiringidzo u-na-tsekul-idw-ir-a chitseko ndi nkhosa
Crowbar SP-PAST-open-PASS-APPL-ASP door by sheep
‘The crowbar was used by the sheep to open the door’
Para o autor, o fato de a morfologia e a sintaxe estarem intimamente associadas nos processos
de mudança na função gramatical mostra que a morfologia e a sintaxe desses processos são dois
aspectos de um único processo. Portanto, uma teoria explicativa dos fenômenos de mudança na
função gramatical deve unificar os aspectos sintáticos e os aspectos morfológicos associados a esses
processos, a fim de explicar o padrão descrito no Princípio do Espelho.
2.4. Composições de processos de mudança na função gramatical
Como afirmado na subseção anterior, há línguas em que uma mesma sentença pode apresentar
mais de um processo de mudança na função gramatical. Foram dados de sentenças dessa natureza
que levaram Baker a formular o Princípio do Espelho. Baker fez observações e generalizações
importantes baseadas em estruturas dessa maneira. Além da generalização formulada no Princípio do
Espelho, o autor encontrou outro padrão translinguístico muito interessante.
Baker percebeu que, em nenhuma língua em que é permitida a composição de mais de um
processo de mudança gramatical, são consideradas gramaticais as sentenças que espelhavam a
aplicação da “função passiva” e, em seguida, a aplicação da “função aplicativa”, embora seja possível
a aplicação da “função aplicativa” e, em seguida, a aplicação da “função passiva”. Ou seja, em todas
as línguas que permitiam a composição de mais uma função, sentenças que mostram o aplicativo de
passivas são consideradas agramaticais, embora as sentenças que mostram a passiva de aplicativos
sejam consideradas gramaticais. Observe o exemplo abaixo, da língua Chichewa, retirado de Baker
(1988:16). Na primeira sentença de (20), temos um aplicativo seguido de passiva. A ordem dos
19 Tradução: a. Mpiringidzo u-na-tsekul-ir-idw-a chitseko ndi nkhosa
Pé.de.cabra SP-PAST-abrir-APPL-PASS-ASP porta por ovelha
‘O pé de cabra foi usado pela ovelha para abrir a porta’
b. *Mpiringidzo u-na-tsekul-idw-ir-a chitseko ndi nkhosa
Pé.de.cabra SP-PAST-abrir-PASS-APPL-ASP porta por ovelha
‘O pé de cabra foi usado pela ovelha para abrir a porta’
41
morfemas deixa claro que primeiro se fez um aplicativo e depois uma passiva. O morfema verbal -er,
marca de aplicativo, vem contíguo à raiz verbal na primeira sentença, seguido do morfema -edw,
marca de passiva. Quando os morfemas estão dispostos em outra ordem, que evidencia o uso da
passiva primeiro e depois do aplicativo, como na segunda sentença de (20), a sentença se torna
agramatical em Chichewa.
(20)20 a. Mtsikana a-na-perek-er-edw-a mpiringidzo ndi mbidzi
Girl SP-PAST-hand-APPL-PASS-ASP crowbar by zebras
‘The girl was handed the crowbar by the zebras.’
b. *Mtsikana a-na-perek-edw-er-a mpiringidzo ndi mbidzi
Girl SP-PAST-hand-PASS-APPL-ASP crowbar by zebras
‘The girl was handed the crowbar by the zebras.’
Baker observa que a agramaticalidade de aplicativos de passivas não é verdade apenas para a
língua Chichewa, mas também para todas as línguas que permitem a composição dessas duas funções.
O autor sugere que deva haver algo na natureza desses processos que impeça a composição dessas
funções na ordem passiva e depois aplicativo.
2.5. A estrutura profunda
Após colocar os objetivos principais de sua tese, Baker (1988) faz uma breve recapitulação
de conceitos importantes para o modelo teórico da Regência e Ligação. O autor apresenta um breve
resumo da teoria X-barra, da teoria da predicação, da teoria da regência, da teoria do caso, da teoria
da ligação, etc. Dentro desse quadro de recapitulação do que havia sido feito até então, Baker
apresenta uma hipótese acerca da estrutura profunda. Essa hipótese será a base para a explicação
sintática do fenômeno conhecido na literatura como IN. Além disso, a hipótese tenta ser abrangente,
de modo que ela consiga explicar outros fatos linguísticos conhecidos, como os expressos na Hipótese
Inacusativa de Perlmutter (1978)e Burzio (1986) e os expressos no trabalho de Chomsky (1981) em
relação à caracterização da estrutura profunda como o nível que representa as funções gramaticais
tematicamente relevantes.
A hipótese elaborada por Baker (1988: 46) é a que as relações temáticas idênticas entre itens
são representadas por relações estruturais idênticas entre esses itens no nível da estrutura profunda.
20 Tradução: a. Mtsikana a-na-perek-er-edw-a mpiringidzo ndi mbidzi
Garota SP-PAST-dar-APPL-PASS-ASP pé.de.cabra por zebras
‘À garota foi dado o pé de cabra pelas zebras.’
b. *Mtsikana a-na-perek-edw-er-a mpiringidzo ndi mbidzi
Garota SP-PAST-dar-PASS-APPL-ASP pé.de.cabra por zebras
‘À garota foi dado o pé de cabra pelas zebras.’
42
A hipótese é nomeada pelo autor como The Uniformity of Theta Assignment Hypothesis (UTAH). Se
essa hipótese for verdadeira, a Hipótese Inacusativa também será verdadeira. Além disso, essa
hipótese inclui a ideia proposta por Chomsky (1981) de que a estrutura profunda é o nível em que os
papeis temáticos são atribuídos. Essa hipótese proposta por Baker não é útil apenas para unificar essas
ideias que já estavam sendo desenvolvidas dentro do quadro teórico da Regência e Ligação. A UTAH
tem consequências também para os processos de mudança na função gramatical.
Em particular, essa hipótese afirma que as seguintes paráfrases temáticas, uma das quais
envolve uma estrutura causativa, têm as mesmas relações estruturais no nível da estrutura profunda.
As sentenças do exemplo (21) são da língua Chichewa (Bantu) e foram retiradas de Baker (1988: 21).
Neste nível de representação, a sentença com estrutura causativa é representada com o morfema
causativo sendo uma raiz verbal independente de uma oração encaixada. No nível da estrutura
profunda, ambas as sentenças abaixo têm a mesma representação sintática.
Como vimos no início desta seção, para o autor, os morfemas de estruturas causativas são
gerados na estrutura profunda como itens lexicais independentes. A alternânica encontrada no
morfema causativo -its-/-ets- ‘causar’ entre as vogais “i” e “e” nas sentenças do exemplo abaixo
ocorre por regras de harmonia vocálica da língua Chichewa. A principal diferença entre as duas
sentenças acima é que -gw- ‘cair’ e -its- ‘causar’ na primeira sentença são verbos morfologicamente
distintos, enquanto na segunda sentença esses verbos formam uma única palavra que é realizada na
posição do verbo -its ‘causar’. Segundo o autor, é natural relacionarmos essas duas sentenças
atribuindo-lhes estruturas sintáticas subjacentes paralelas em que o verbo -gw- ‘cair’ se move para a
posição do verbo -its- ‘causar’, como podemos observar em (21) e (22).
(21)21 a. Mtsikana a-na-chit-its-a kuti mtsuko u-na-gw-e
Girl do-cause that waterpot fall
‘The girl made waterpot fall’
b. Mtsikana a-na-gw-ets-a mtsuko
Girl fall-cause waterpot
‘The girl made waterpot fall’
21 Tradução: a. Mtsikana a-na-chit-its-a kuti mtsuko u-na-gw-e
Garota fazer-causar este pote.de.água cair
‘A garota fez o pote de água cair’
b. Mtsikana a-na-gw-ets-a mtsuko
Garota cair-causar pote.de.água
‘A garota fez o pote de água cair’
43
(22)
2.6. A estrutura superficial
Segundo Baker (1988:49-51), enquanto o UTAH é um princípio da gramática universal que
caracteriza a estrutura profunda, o Princípio da Projeção caracteriza a estrutura superficial. Esse
princípio foi desenvolvido em Chomsky (1981). Entre outras implicações, segundo esse princípio da
gramática universal, processos transformacionais nem criam nem destroem a estrutura categorial que
é relevante para as propriedades lexicais dos itens, inclusive as relações temáticas que estes
determinam.
No que se refere à proposta de Baker de que os processos de mudança na função gramatical
são resultados de um tipo específico de movimento, o Princípio da Projeção afirmará que movimentos
de X0s devem preservar estrutura por meio de vestígios, exatamente da mesma maneira que
movimentos de XPs (BAKER, 1988:49-51).
Vejamos o exemplo abaixo, da língua Mohawk, e a representação superficial dessas sentenças
com IN após o movimento sintático. Os dados foram retirados de Baker (1988:46-50). Em (23),
observamos duas sentenças que são paráfrases temáticas uma da outra. A segunda sentença apresenta
IN: o nome nuhs ‘casa’ é incorporado ao verbo rakv ‘ser branco’.
(23)22 a. ka-rakv ne sawatis hrao-nuhs-a?
3N-be.white John 3M-house-SUF
‘John’s house is white’
b. hrao-nuhs-rakv ne sawatis
3M-house-be.white John
‘John’s house is white’
22 Tradução: a. ka-rakv ne sawatis hrao-nuhs-a?
3N-ser.branco João 3M-casa-SUF
‘A casa de João é branca’
b. hrao-nuhs-rakv ne sawatis
3M-casa-ser.branco João
‘A casa de João é branca’
44
O nome nuhs ‘casa’ tem o mesmo papel temático nas duas sentenças. Portanto, a configuração
dessas duas sentenças naestrutura profunda deve ser a mesma. Em (24), vemos como seria a
representação dessas duas sentenças na estrutura profunda e como seria a representação superficial
da sentença com incorporação nominal após o movimento sintático, com o vestígios explicitado. As
representações foram retiradas de Baker (1988:50):
(24)
De maneira geral, sempre que uma palavra mostra sinais sintáticos de atribuir ou de receber
um papel temático do mesmo modo que constituintes morfologicamente independentes o fazem, a
UTAH sugere que esta parte da palavra aparece em uma posição estrutural independente na estrutura
profunda, como podemos observar na primeira representação explicitada no último exemplo.
Ao invés de uma análise em que o causativo, o aplicativo e a incorporação nominal são
gerados na estrutura profunda, a UTAH sugere que tais processos são apenas movimentos sintáticos
de X0s que devem preservar estrutura por meio de vestígios, exatamente da mesma maneira que
movimentos de XPs.
2.7. Movimento de um núcleo
Para mostrar que a incorporação é um subcaso da transformação mais geral conhecida na
literatura gerativa como Move-Alpha, Baker (1988:51-53) mostra que, quando ocorre um movimento
de um X0, a relação entre o traço deixado por X0 e seu antecedente que o c-comanda respeita as três
propriedades gerais apontadas por Chomsky (1981) em relação aos movimentos de XP e de Wh:
1) O vestígio é propriamente regido (isto é, ele é sujeito ao Princípio da Categoria Vazia);
2) O antecedente do vestígio não está em uma posição-theta.
3) A relação antecedente-vestígio satisfaz a condição de subjacência.
45
O autor mostra que todos os cinco processos de mudança na função gramatical descritos em
diversas línguas do mundo podem ser entendidos como processos de incorporação (definido pelo
linguista como o movimento de um X0 que se incorpora em um Y0) e que, do ponto de vista estrutural,
a incorporação é um tipo de Move-Alpha. Tomadas essas duas conclusões em conjunto, Baker (1988)
mostra que os processos de mudança na função gramatical são estruturalmente idênticos aos
processos de construção de predicados complexos por meio de unidades elementares. Ou seja, para o
autor, esses processos de mudança na função gramatical são processos puramente sintáticos. A
morfologia associada a todos esses processos pode ser explicada como um efeito colateral dos
movimentos sintáticos associados a esses processos, movimentos sintáticos estes que obedecem e são
restringidos pelos princípios universais de outros Move-Alpha.
2.8. A incorporação nominal
A IN é vista por Baker (1988) como associada a três dos cinco processos de mudança na
função gramatical: a passiva, a antipassiva e a ascensão do possuidor. O capítulo da tese intitulado
“Noun Incorporation” é usado para mostrar que esses três processos de mudança na função gramatical
são, na verdade, subtipos de IN. Já no início deste capítulo, o autor afirma que a produtividade e a
transparência referencial da IN sugerem que esta é um processo sintático, e não um processo lexical
de formação de palavra (BAKER, 1988:80).
Como afirmado no início desta seção, há certas limitações nas construções com IN. A
literatura descritiva aponta para o fato de que certos tipos de IN não são atestados em nenhuma língua
natural. Por exemplo, em nenhuma língua, foi descrita uma IN de um sujeito agente. Os nomes
incorporados são, geralmente, argumentos internos do verbo, como explicado por Cabrera (2000:517-
524). Os argumentos externos que são incorporados não seriam argumentos externos verdadeiros, do
ponto de vista da teoria gerativa, se aceitarmos como verdade a Hipótese Inacusativa. Em sentenças
com IN de “sujeito”, os verbos são do tipo inacusativo (terminologia do modelo gerativo), de modo
que esses sujeitos seriam objetos do ponto de vista estrutural, ou seja, nasceriam como objetos na
estrutura profunda.
Portanto, os dados de diversas línguas apontam que a IN obedece a principal propriedade dos
movimentos de XP e de Wh, a de que o vestígio é propriamente regido. De fato, um X0 só pode se
mover para um Y0 que propriamente o governa. Segundo Baker (1988:53), os exemplos de IN citados
na literatura obedece esta condição: sempre um verbo, um nome ou uma preposição se move para um
verbo que governa o verbo/ preposição/nome incorporado.
Há uma controversa em torno da possibilidade de um argumento externo poder ser
incorporado ao verbo ou não. Para autores como Ozturk (2004), os exemplos citados na literatura
46
como IN de agentes em línguas como o Turco, o Hindi e o Húngaro são, na verdade, exemplos de
pseudo-incorporação nominal. Ozturk (2004) estende para argumentos externos a análise feita por
Massam (2001) para argumentos internos. Segundo Ozturk (2004), em línguas que apresentam
pseudo-incorporação nominal, o nome pseudo-incorporado não está sujeito a nenhuma restrição em
termos de papeis temáticos. Tanto argumentos internos quanto argumentos externos podem ser
pseudo-incorporados, pois a pseudo-incorporação não está sujeita à restrição de que X0 só pode se
mover para um Y0 que propriamente o governa.
No capítulo intitulado Noun Incorporation, Baker (1988:76-146) busca explicar todas as
limitações descritas na literatura no que se refere ao fenômeno da IN. Em particular, o modelo
proposto pelo autor pretende explicar essa assimetria entre sujeito e objeto como elementos passíveis
de sofrer incorporação nominal nas línguas em que esse processo é verificado. O modelo formal
proposto por Baker neste capítulo explica essa assimetria como uma consequência dos princípios que
restringem o movimento sintático de qualquer natureza, em particular, o movimento de um X0. De
fato, os princípios universais propostos por Chomsky (1981) sugerem que a IN de um sujeito
estrutural no núcleo do VP seria impossível, tendo em vista que o vestígio deixado pelo X0 sujeito c-
comandaria o antecedente, o que viola um dos princípios relacionados a movimentos do tipo Move-
Alpha. Essa assimetria é imediatamente entendida se assumirmos que a IN é derivada sintaticamente,
com um movimento do tipo Move-Alpha (BAKER, 1988:82).
Segundo o autor, sua análise de IN é semelhante à feita por Belletti e Rizzi (1981) (BAKER,
1988:84-92) em relação ao clítico ne do italiano. Esses dois autores afirmam que o clítico é um item
nominal que é núcleo de um sintagma nominal que contém o quantificador na estrutura profunda. O
ne se move sintaticamente para o verbo, deixando um vestígio. As limitações encontradas nessa
transformação são as mesmas encontradas por Baker em relação à IN. Assim como a IN, a cliticização
do ne também apresenta a mesma assimetria entre o sujeito e o objeto da sentença. No modelo
proposto por Belletti e Rizzi (1981), essas propriedades são consequências dos princípios universais
que restringem o movimento sintático.
Outros fatos relevantes acerca de propriedades da IN são explicados e previstos pelo modelo
proposto por Baker (1988). Por exemplo, o fato de que nomes nunca podem ser incorporados de fora
de um sintagma preposicional. Se a IN é vista como um Move-Alpha, essa propriedade atestada
translinguisticamente pode ser explicada facilmente, já que a projeção máxima PP funcionaria como
uma barreira para o movimento do N (BAKER, 1988:86).
Ao estudar o processo de IN, o autor também traz propriedades estruturais importantes para o
desenvolvimento da teoria gerativa. Por exemplo, em relação à teoria do caso, Baker mostra que um
sintagma nominal cujo núcleo é incorporado não necessita de caso estrutural (BAKER, 1988:105-
108). O fato de esses NPs não precisarem de caso estrutural explica os exemplos de sentenças em que
47
ocorre toda uma reestruturação dos argumentos da sentença, em uma estrutura conhecida na literatura
como ascensão do possuidor. Quando o núcleo de um objeto de um verbo que atribui caso acusativo
é incorporado, o potencial do verbo em atribuir caso acusativo não é exaurido, de modo que o verbo
atribuirá o caso estrutural acusativo para outro NP da sentença (BAKER, 1988:110).
Com base nas evidências de que esses sintagmas nominais que permitem que seu núcleo se
incorpore a outro núcleo não necessitam de caso estrutural, o que seria uma aparente violação do
Filtro de Caso, o autor repensa o porquê de NPs necessitarem de caso. Para o autor, essa propriedade
da IN não é uma exceção periférica na teoria do caso. Neste sentido, Baker (1988:112) busca uma
perspectiva em que esse fato seja previsível e explicável. O autor argumenta que o Filtro de Caso é
só um caso especial de um requerimento mais geral de “visibilidade”.
2.9. Poder explicativo do modelo proposto por Baker (1988)
O modelo formal proposto por Baker é satisfatório em seu intento de explicar as diversas
propriedades compartilhadas pelos processos conhecidos na literatura como IN, passiva, antipassiva,
ascensão do possuidor, aplicativo e causativo. O modelo proposto pelo autor é ao mesmo tempo
abrangente, simples e explicativo. Abrangente porque unifica vários fenômenos conhecidos pela
linguística descritiva em um único processo linguístico, nomeado por Baker como Incorporação (esta
entendida do ponto de vista estrutural). Simples porque esse processo geral de Incorporação nada
mais é do que um tipo específico de movimento, como visto extensivamente nos parágrafos anteriores.
Explicativo porque dá conta das propriedades compartilhadas por todos esses processos apresentados
como processos que são vistos tradicionalmente como relativamente independentes na linguística
descritiva.
Em relação à IN propriamente dita, há algumas questões a serem explicadas, contudo. Uma
questão que poderia ser levantada e que poderia abalar o poder explicativo do modelo de Baker é o
fato de que a produtividade da IN defendida pelo autor no capítulo “Noun Incorporation” não se
verifica no grau em que se deveria verificar. Em línguas em que há processos produtivos de IN, nunca
essa produtividade é irrestrita, mesmo quando se leva em consideração os princípios universais que
restringem um Move-Alpha. Em outras palavras, sentenças com IN que, a priori, respeitariam todos
os princípios de um movimento do tipo Move-Alpha são, apesar disso, agramaticais, embora
sentenças estruturalmente idênticas sejam gramaticais nas mesmas línguas.
Para Velázquez-Castillo (1995:676), excluir a semântica da análise da IN pode resultar em
perdas de generalizações. Para ela, devemos observar as diferenças semânticas entre estruturas com
IN e sem IN, para podermos explicar por que termos que designam determinadas partes do corpo
podem aparecer incorporados ao verbo, mas termos que designam outras partes do corpo nunca
48
aparecem incorporadas. Os detalhes da argumentação da autora, bem como os exemplos relacionados,
podem ser encontrados no capítulo 4 dessa dissertação.
Segundo a tipologia proposta por Mithun (1984), no Tipo II de IN, o processo de IN não
diminui a valência verbal, pois um argumento oblíquo ocupa o espaço deixado pelo nome incorporado.
Em algumas línguas, esse tipo específico de IN geralmente ocorre junto ao processo de “ascensão do
possuidor”. Segundo a autora, geralmente, o nome possuído é inalienável e designa principalmente
alguma parte do corpo humano (Mithun, 1984:858). Contudo, é sabido que, pelo menos em algumas
línguas, só se permite a IN de termos que designam determinadas partes do corpo humano, e não
todas, mesmo que os demais pré-requisitos, de natureza sintática e morfológica, estejam satisfeitos.
Essa assimetria lexical, contendo forte viés semântico, precisa ser investigada mais a fundo.
Velázquez-Castillo (1995:687-702) observa que, em Guarani Paraguaio, as sentenças que
apresentam IN e ascensão do possuidor não ocorrem com qualquer parte do corpo humano. De fato,
há determinadas partes do corpo humano que são incorporáveis e há outras que não. Nesse artigo, a
pesquisadora mostra inclusive um padrão encontrado na língua: há uma tendência de os NIs nessas
estruturas serem termos que coincidem com os termos de nível básico das categorias partonômicas
para o corpo humano propostas por Andersen (1978).
Essa assimetria lexical encontrada por Velázquez-Castillo (1995) em relação aos nomes de
determinadas partes do corpo humano poderem ser incorporados e outros não o serem de jeito nenhum
é um problema para o modelo formal de Baker (1988), no sentido de que esse modelo não explica
nem prevê essa assimetria, embora tenha explicado outra assimetria importante (a do objeto paciente
em relação ao sujeito agente como elemento incorporável). Esta última assimetria pôde ser explicada
facilmente em termos estruturais e é uma simples consequência das restrições universais ao
movimento sintático, dentro do modelo da Regência e Ligação. Contudo, a assimetria lexical
encontrada por Velázquez-Castillo (1995) dificilmente poderia ser explicada em termos puramente
sintáticos. Para explicar essa assimetria lexical, provavelmente teríamos de colocar a semântica como
variável importante na explicação da gramaticalidade e da agramaticalidade de sentenças que
envolvem a incorporação nominal de nomes que designam partes do corpo humano.
2.10. A hipótese de pseudo-incorporação de Massam (2001)
Segundo Baker (2009), a análise de pseudo-incorporação de Massam (2001) propõe que o que
tem sido chamado de IN na língua Niuean é simplesmente o resultado de formar um sintagma verbal
por meio de um Merge sintático comum. Massam (2001) defende que o que ocorre na língua Niuean
não é um movimento de núcleo como proposto por Baker (1988; 2009).
Como podemos observar no exemplo abaixo, uma combinação nome+modificador pode ser
49
incorporada em Niuean, e não apenas o núcleo. Para autora, isso seria um exemplo de Merge, e não
de movimento de núcleo. Em (25), observamos a incorporação do nome kapiniu ‘prato’ e o
modificador kiva ‘sujo’ ao verbo holoholo ‘lavar’.
(25)23 Ne holoholo kapiniu kiva fakaeneene a Sione.
PAST wash dish dirty carefully ABS Sione
‘Sione washed dirty dishes carefully.’
Baker (2009) defende que esse processo seria de outra natureza, similar mas não igual aos
casos de movimento de núcleo. Por exemplo, em Mapudungun, é agramatical os casos em que o nome
incorporado recebe um modificador, ao contrário dos casos de pseudo-incorporação em Niuean. Em
(26), na segunda sentença, observamos que pulku ‘vinho’ pode vir incorporado ao verbo ngilla
‘comprar’. Quando o modificador küme ‘bom’ aparece junto ao nome incorporado polku ‘vinho’, a
sentença é agramatical em Mapudungun.
(26)24 a. Pedro ngilla-fi-y küme pulku. (FM)
Pedro buy-IND-3SS good wine
‘Pedro bought good wine.’
b. Pedro ngilla-(*küme)-pulku-pe-y.
Pedro buy-good-wine-PAST-IND.3SS
‘Pedro bought (*good) wine.’
Para Baker (2009), a análise feita por Massam (2001) parece ser válida para Niuean, mas não
para Mapudungun ou Mohawk. O autor afirma que parece haver diferenças no comportamento da IN
nas línguas. Por exemplo, modificadores podem incorporar junto com os nomes em Niuean, mas
nunca em Mapudungun. O autor termina o artigo afirmando que as construções com IN nas línguas
parecem ser diferentes sintaticamente o suficiente para apoiar análises distintas. Para Mapundungun
e Mohawk, Baker (2009) defende que a melhor análise sintática ainda é a tese do movimento de
núcleo.
23 Tradução: Ne holoholo kapiniu kiva fakaeneene a Sione.
PAST lavar prato sujo cuidadosamente ABS Sione
‘Sione lavou pratos sujos cuidadosamente.’
24 Tradução: a. Pedro ngilla-fi-y küme pulku. (FM)
Pedro comprar-IND-3SS bom vinho
‘Pedro comprou vinho bom.’
b. Pedro ngilla-(*küme)-pulku-pe-y.
Pedro comprar-bom-vinho-PAST-IND.3SS
‘Pedro comprou (*bom) vinho.’
50
3. O conceito de “palavra” e suas implicações para o conceito de “incorporação nominal”
Haspelmath (2011) defende que não há um bom critério para diferenciar palavra de morfema
que seja válido para todas as línguas naturais, de modo que a distinção entre sintaxe e morfologia só
poderia se dar dentro de regras estabelecidas por cada língua em específico, e não por uma questão
universal da linguagem humana. O autor examina 10 critérios distintos comumente utilizados na
literatura linguística do que seria palavra: potential pauses, free occurrence, mobility,
uninterruptibility, non-selectivity, non-coordinatability, anaphoric islandhood, nonextractability,
morphophonological idiosyncrasies, deviations from biuniqueness. Para cada um deles, Haspelmath
(2011) mostra que o critério não é nem necessário nem é suficiente por si só para se definir palavra.
O autor defende que “palavra” até pode ser definido como um conceito de uma língua específica, mas
isso não é suficiente para se concluir que “sintaxe” e “morfologia” são mecanismos independentes
universalmente.
Por exemplo, segundo o critério de pausas potenciais (potencial pauses), o autor mostra que
este critério não é nem necessário nem suficiente para a indicação de um limite claro do que seja
palavra. Clíticos, argumenta o autor, são geralmente considerados palavras, mas nenhuma pausa é
possível entre um clítico e seu hospedeiro. Além disso, em línguas em que os linguistas
tradicionalmente identificam palavras particularmente longas, parece haver uma tendência de
permitir pausas no meio de palavras.
Nesta seção, não serão apresentados todos os argumentos do autor para concluir que nenhum
dos 10 critérios citados acima são válidos para todas as línguas; apenas a conclusão do artigo e a ideia
de indivisibilidade da sintaxe e morfologia são importantes para o desenvolvimento desta seção. Para
mais detalhes sobre esse tema, vide Haspelmath (2011).
Para Haspelmath, em cada língua, pode-se encontrar um critério que defina suficientemente
bem o que seja uma palavra e o que seja morfema. Contudo, no fundo, os critérios são apenas
simplificações heurísticas para ajudar a identificar o que seria uma palavra em uma determinada
língua. Quando analisamos todas as línguas naturais, não conseguimos encontrar um critério que seja
válido simultaneamente em todas as línguas e que seja suficiente para englobar todas as
complexidades e nuances que cada língua apresenta.
Haspelmath (2011:28) relembra que, na sessão de encerramento do 6º Congresso
Internacional de Linguistas, em Paris, em 1948, o linguista Joseph Vendryes, então presidente do
congresso, afirmou que a linguística estava em crise, tendo em vista que não havia um consenso nem
do que seria uma “palavra”. Após analisar os 10 critérios citados acima, bem como algumas
combinações deles, Haspelmath conclui que ele não pode oferecer uma conclusão mais otimista do
que Joseph em 1948 sobre um consenso em torno do que seria uma “palavra”.
51
Contudo, para Haspelmath, essa falta de uma definição que seja válida universalmente não
expressa uma crise para a linguística, pois devemos levar em consideração que ainda somos muito
influenciados pela tradição ortográfica e pelos nossos conhecimentos em algumas poucas línguas
naturais que são extremamente estudadas e bem conhecidas. Segundo Haspelmath (2011:28), a busca
por uma definição do conceito de “palavra” parece ser guiada pela pressuposição não dita de que algo
como a palavra deve existir em línguas, assim como existe na ortografia. Contudo, uma abordagem
científica da estrutura linguística não deve tomar nenhum conceito tradicional como automaticamente
válido. Além disso, nós devemos descrever cada língua em seus próprios termos, e não assumir
aprioristicamente que um conceito que foi útil para uma língua deva ser também aplicável para outra
língua.
Ao analisar a morfologia de diversas línguas, Comrie (1989:46) propõe abandonarmos uma
tipologia morfológica em termos de um único parâmetro. Para Comrie, podemos observar
basicamente dois parâmetros que operam nos diversos tipos de línguas do ponto de vista da
morfologia: um dos parâmetros seria o número de morfemas; o outro parâmetro seria a segmentação
dos morfemas, ou seja, a quantidade de informações que um morfema carrega. No que diz respeito
ao número de morfemas, os dois extremos seriam as línguas isolantes25 e as línguas polissintéticas26.
No que diz respeito à quantidade de informações que carrega um único morfema segmentável, os dois
extremos seriam as línguas aglutinantes27 (em que a segmentação entre os morfemas é óbvia) e as
línguas fusionantes 28 (“flexionais”) (em que não há segmentação). O autor chama o primeiro
parâmetro de “índice de síntese” (index of synthesis) e o segundo parâmetro de “índice de fusão”
(index of fusion).
Para analisarmos o índice de síntese de uma língua, precisamos saber se o que estamos
analisando é uma palavra ou se é um morfema. Comrie (1989:48), assim como Haspelmath (2011:28),
também admite que a ortografia pode atrapalhar nossa análise e, portanto, nossa classificação
tipológica entre as línguas. Para Comrie, na análise de exemplos banais como the man ‘o homem’ em
Inglês ou je le vois ‘eu o vejo’ em Francês, a ortografia nos ilude e nos faz concluir que essas línguas
25 As línguas isolantes não têm flexão, de modo que morfemas e palavras se confundem ou a distinção não faz sentido.
As informações gramaticais são expressas por palavras independentes. Uma língua prototípica é o Vietnamita, da família
Austro-Asiáticas.
26 As línguas polissintéticas usam muitos afixos e frequentemente incorporam o que outras línguas expressariam por meio
de nomes, advérbios e verbos. Uma palavra pode carregar muitos morfemas. As línguas Yupik, da família Esquimó-
Aleúte, são línguas polissintéticas.
27 As línguas aglutinantes unem afixos, em que cada um deles tipicamente só representa uma informação gramatical. Ou
seja, os morfemas não são fundidos com outros, de modo que um morfema carregue mais de uma informação. O Turco,
da família Altaica, é um exemplo de língua aglutinante.
28 As línguas fusionantes, também conhecidas como línguas flexionais, usam morfemas que são representados por afixos
em que cada um deles carrega mais de uma informação gramatical, de modo que é difícil identificar as diferentes partes
dos afixos. O Português é um exemplo de língua fusionante.
52
têm um nível de síntese menor do que fato elas têm no atual estado da língua. Se tomarmos a definição
de plavra como forma livre mínima, para o autor, não há razão para assumirmos que the, je ou le são
formas livres e, portanto, palavras distintas. Embora sejam “palavras” distintas na tradição ortógráfica,
os falantes nativos não as pronunciam em separado. Se a expressão je le vois é contada como uma
palavra ou como três pode fazer uma diferença significante para o índice de síntese do Francês.
Outro problema, ainda mais sutil, relacionado à análise do índice de síntese das línguas surge
quando vamos contar com exatidão o número de morfemas em línguas em que há morfemas vazios
fonologicamente ou morfemas portmanteau. Comrie (1989:48) cita a formação do singular/plural em
línguas como o Inglês e o Russo e a conjugação verbal de línguas como o Espanhol e o Turco, para
mostrar a dificuldade em chegarmos a uma conclusão quanto ao nível de síntese de uma língua. Por
exemplo, em Inglês, o plural cats ‘gatos’ é claramente dois morfemas, mas é menos claro o número
de morfemas no singular cat: apenas um morfema ou dois morfemas, um lexical cat mais um morfema
gramatical nulo? Em termos de comparação entre as línguas, uma decisão pode ser importante para
as estatísticas envolvidas, visto que se cat consiste de apenas um morfema, então o Inglês será
reduzido no grau de síntese relativo ao Russo, onde o singular košk-a tem um sufixo assim como o
plural košk-i. Ao analisarmos um verbo em Espanhol como cantas ‘cantas’, deveríamos analisá-lo
como dois morfemas (raiz cant- ou canta- e sufixo -s ou -as) ou deveríamos fatorar todas as categorias
que estão fusionadas no final do verbo (segunda pessoa, singular, presente, modo indicativo, primeira
conjução), resultando em seis morfemas junto com o morfema lexical? Embora uma decisão
consistente possa ser feita, ao menos arbitrariamente, a decisão feita irá alterar radicalmente a
comparação entre uma língua como o Espanhol, em que ocorre comumente morfemas do tipo
portmanteau, e uma língua aglutinante como o Turco, em que há pouca ou nenhuma controvérsia
envolvendo o número de morfemas em uma palavra, exceto talvez pela contagem do morfema nulo
Como vimos no início desta seção, Haspelmath (2011:28) defende que devemos descrever
cada língua em seus próprios termos, sem assumirmos aprioristicamente que um conceito que é válido
em uma língua em específico possa/deva ser aplicável para outra língua. Para este autor, não há uma
boa base para dividirmos o domínio da morfossintaxe em “morfologia” e “sintaxe”, de modo que os
linguistas que trabalham com generalizações que fazem uma referência necessária para uma noção
universal do que seja palavra devem estar atentos a suas generalizações, pois elas podem estar
baseadas em uma suposição inverificável ou errônea.
O autor conclui que não há nenhuma definição de “palavra” na literatura linguística atual que
seja aplicável a todas as línguas naturais. Contudo, para o autor, isso não é um problema para a
linguística descritiva, já que noções ad hoc poderiam ser usadas de forma consistente para cada língua
em específico e frequentemente seria possível definir o que seja “palavra na língua X”, de tal maneira
que a ortografia seja prevista pela definição. O problema é quando queremos comparar as línguas e
53
agrupá-las em grupos tipológicos, como Comrie estava fazendo ao propor os parâmetros de síntese e
de fusão para comparar as línguas segundo sua morfologia. Ou seja, o problema de não termos uma
definição universal do que seja palavra, conclui Haspelmath (1989:29), aparece quando queremos
comparar, por exemplo, as línguas em termos de analiticidade versus sinteticidade. Para uma questão
como esta, precisamos de conceitos comparativos e aceitos universalmente, caso contrário a
comparação não seria muito lógica.
A conclusão a que chega o pesquisador é que, como não sabemos o que são palavras do ponto
de vista universal, não temos base suficiente para separar o domínio da morfologia do domínio da
sintaxe. Segundo Haspelmath (2011:29), o estudo da estrutura linguística que lida com combinações
de sinais pode ser chamada de morfosintaxe e para propósitos teóricos esta é melhor vista como um
domínio unitário, e não dois domínios independentes.
O que essa discussão diz respeito à IN? Em primeiro lugar, se não temos uma definição de
“palavra” válida para todas as línguas, também a definição de IN estará comprometida, já que esta
última utiliza o conceito de palavra em sua definição. Além disso, se não podemos separar o domínio
da morfologia e da sintaxe, não há como dizer que a IN é um processo morfológico ou sintático.
Se definirmos IN como um tipo de composição de palavra, como propõe Mithun (1984),
entraremos consequentemente na discussão de se há uma boa definição do que seja composição de
palavra e na discussão de como diferenciar uma composição de um sintagma sintático. Segundo
Rochelle Lieber & Pavol Štekauer (2009:14), quase não há critérios confiáveis para distinguir
composições de sintagmas.
Uma possibilidade de nos livrarmos desse problema conceitual seria chegarmos a uma
definição tipológica de IN que não se apoiasse exclusivamente neste conceito. Essa é a sugestão dada
por Haspelmath em um artigo de 06/05/201229, em seu blog profissional. Segundo o autor, nos
últimos anos, o conceito de “incorporação nominal” tem sido ampliado por diversos linguistas que
têm ressaltado amplamente as características semânticas da IN.
O autor propõe que, quando um termo adquire muitos sentidos, como é o caso do termo
“incorporação”, o melhor a se fazer é simplesmente abandonar o tal termo polissêmico e usar outros
termos para definir o processo linguístico em análise. No caso da IN, o autor faz um esboço de como
seria uma generalização que englobasse, entre outros fenômenos, o que chamamos de IN, mas que
não utilizasse o termo “incorporação”. Para ele, se um nome é usado como um argumento, mas é
indefinido, não se refere a um referente específico, tem um escopo estreito, é neutro de número
(number-neutral), então as línguas naturais tendem a expressar este nome sem artigo, tendem a não
permitir modificadores e tendem a dar-lhe pouca liberdade posicional com relação ao verbo. Nesta
29 Disponível em: http://dlc.hypotheses.org/135
54
última definição, não se utilizou o conceito de palavra. Além disso, o conceito é bem geral e engloba
não só o que é descrito na literatura como incorporação nominal como outros fenômenos como a
proibição de artigos e modificadores com substantivos em determinados contextos.
O autor afirma que esta última definição, de caráter mais semântico, poderia ser vista como
uma generalização do que seria IN formal. Em sua visão, esta última definição é equivalente à
afirmação de que “nomes incorporados formalmente tendem a ser incorporados também
semanticamente”, mas sem o uso do termo “incorporação nominal”. O autor conclui seu artigo
afirmando que esta última definição tem muito mais chances de ser testada do que a correspondente
afirmação que se utiliza do indefinível termo “incorporação”.
55
4. Incorporação semântica e incorporação nominal de partes do corpo
4.1. Incorporação semântica
Como vimos na seção anterior, a discussão acerca da natureza da IN vai além da discussão
entre se se trata de um fenômeno sintático ou de um fenômeno morfológico. Essa discussão pode ser
entendida como uma discussão lateral de uma discussão mais abrangente: se há a possibilidade de
separar o campo da morfologia do campo da sintaxe. Como veremos na seção abaixo, essa discussão
remonta a uma discussão ainda mais basilar: é possível ter uma definição universal do que seria
palavra? Sem uma definição translinguística de palavra, sempre teremos de admitir que, embora
possamos definir o que seria uma morfologia e uma sintaxe em termos de uma língua em específico,
não podemos definir a morfologia e a sintaxe como elementos separados e independentes dentro da
cognição humana.
Embora essa discussão conceitual em torno da IN seja produtiva e até possa contribuir para o
desenvolvimento da teoria linguística em geral, há um senão potencialmente problemático: se não
podemos definir o que é uma palavra translinguisticamente e se não podemos separar a sintaxe da
morfologia, então a IN não pode ser bem definida em termos universais e translinguísticos, pelo
menos não no sentido em que vem sendo utilizado na literatura. Se utilizarmos as definições clássicas
de IN, sempre definimos a IN em termos do que é palavra para cada língua em questão e, portanto, o
processo de IN teria de ser entendido sempre em termos de cada língua em questão, e não em termos
translinguísticos.
Qual a contribuição de um estudo tipológico da IN, se não podemos defini-la em termos
universais? Talvez a contribuição venha exatamente em deixarmos de lado as definições que usem a
sintaxe e/ou a morfologia como centrais para descrever este processo. Ao analisar os dados sob uma
perspectiva semântica, por exemplo, talvez possamos entender esse fenômeno como consequência de
outros fenômenos semânticos mais abrangentes, que talvez se expressem de outra forma em outras
línguas, daí por exemplo o fato de nem todas as línguas naturais apresentarem o processo de IN. Há
a possibilidade de definirmos a IN em termos semânticos? A teoria semântica poderia explicar e
prever todos os comportamentos apontados pelas obras já consagradas na literatura descritiva?
Embora defenda a hipótese lexicalista, Mithun (1984:847) admite já no início de seu artigo
que esse processo de composição de palavra seria especial e que seria o processo mais sintático entre
todos os processos morfológicos. Alguns casos de Tipo IV de IN são especialmente desafiadores para
a hipótese lexicalista: como vimos na seção sobre a hipótese lexicalista, em alguns casos, a parte não
incorporada parece ser o adjunto do núcleo de um sintagma nominal, o que reforça a tese de estarmos
diante de um caso explícito em que o núcleo do sintagma nominal se incorporou ao verbo por meio
56
de um movimento sintático e que o que temos como “nome independente” seria apenas os adjuntos
desse sintagma nominal.
Analogamente, Baker (1988) é convincente em sua tese de que a morfologia verbal associada
a processos como a passiva, a antipassiva e a ascensão do possuidor são apenas consequências dos
movimentos sintáticos associados a esses processos e de que todos esses três fenômenos podem ser
entendidos como subtipos de IN, esta definida como um movimento de um núcleo de um sintagma
nominal que se incorpora ao núcleo de um sintagma verbal que o governa. Contudo, o modelo
proposto por Baker (1988) não consegue predizer a assimetria lexical de termos de partes do corpo
humano em processos como a ascensão do possuidor, o que daria indícios de que a IN pode ser mesmo
um tipo de composição de palavras e, assim como outros tipos de formação de palavras, apresentaria
uma assimetria lexical.
A discussão de se a IN é lexical ou se é sintática parece atravessar o século sem um fim
definitivo. Em seu trabalho sobre o Hindi, Mohanan (1995) estuda diversos aspectos morfológicos,
sintáticos, fonológicos e semânticos de certas construções N-V, para defender que essas construções
são IN em Hindi. Já no início do artigo, Mohanan (1995:75-76) afirma que há evidências de que se
trata de um processo lexical em Hindi, mas também há uma série de evidências que apontam para um
fenômeno sintático.
Em Farkas e Swart (2003), encontramos um modelo proposto que tenta explicar tanto a
natureza morfológica como a natureza sintática como consequências da natureza semântica da IN. Os
dois autores tentam propor uma explicação semântica para a IN. Para Farkas & Swart (2003:5), o
fenômeno da IN é relevante para pelo menos quatro problemas clássicos da teoria semântica:
argument structure (estrutura do argumento), bare plurals (plurais nus), scope (escopo) e number
interpretation (interpretação de número). O tema seria relevante também para uma questão central da
semântica dinâmica, a transparência do discurso.
Já no início do trabalho, Farkas e Swart (2003:18) afirmam que a distinção entre a morfologia
e a sintaxe não é o que importa em seu modelo explicativo, o que importa é a “transparência do
discurso”. Para esses autores, a questão central é se o nome incorporado é discourse transparent ou
discourse opaque. Segundo Farkas & Swart (2003:17), os nominais que podem servir como
antecedentes de pronomes no discurso são chamados de discourse transparent, enquanto aqueles que
não podem são chamados de discourse opaque. Assim, a questão relevante para os autores é se os
nomes incorporados podem ou não servir como antecedentes de pronomes no discurso. Os autores
defendem que a resposta definitiva de se o nome incorporado é discourse transparent ou discourse
opaque depende de alguns fatores, tais como a língua em que se está considerando, o número
morfológico do nome incorporado, e o tipo de anáfora considerada.
Farkas & Swart (2003:21) se utilizam do arcabouço teórico da Teoria da Representação do
57
Discurso (Discourse Representation Theory), modelo teórico que tenta conectar a semântica do nível
da sentença com a semântica do nível do discurso. A Teoria da Representação do Discurso foi
elaborada por Kamp & Reyle (1993). Segundo Van Eijck (2005:1), neste modelo semântico formal,
cada nova sentença é interpretada em termos da contribuição que ela dá para um pedaço existente do
discurso interpretado. As condições para que as sentenças sejam interpretadas são dadas como
instruções para atualizar a representação do discurso.
A ideia básica por trás desse modelo teórico é que um discurso em uma língua natural (ou seja,
uma sequência de sentenças emitidas pelo mesmo falante) é interpretado dentro do contexto de uma
estrutura de representação. Assim, o resultado do processamento de um pedaço de discurso no
contexto de representação R é uma nova estrutura de representação R', esta última podendo ser vista
como uma espécie de versão atualizada de R. Portanto, dentro desse modelo de semântica formal, a
interpretação semântica é tratada como um processo dinâmico que funciona sempre em dois níveis:
no nível da sentença e no nível do discurso. Segundo Van Eijck (2005:3), o processamento de um
pedaço do discurso é incremental. Cada nova sentença a ser processada é relacionada ao contexto da
estrutura que resulta de processar sentenças anteriores.
Farkas & Swart (2003:3) afirmam que o termo semantic incorporation (incorporação
semântica) foi introduzido por Van Geenhoven (1998), cujo trabalho destaca as similaridades
semânticas entre “nominais incorporados” na língua West Greenlandic e os “indefinidos” fracos e de
escopo estreito em Inglês e em Alemão. Independentemente das características morfossintáticas de
cada língua em questão, Van Geenhoven atribui o mesmo selo tanto para os indefinidos do Inglês e
do Alemão quanto para os nominais incorporados do West Greenlandic, em virtude das semelhanças
semânticas entre esses processos. Para Farkas e Swart, o fenômeno da IN chamou a atenção de
semanticistas não por causa da conexão entre IN e a transparência do discurso, mas por causa de sua
relevância para os estudos de escopo e para os estudos de semântica de sintagmas nominais. Segundo
Farks & Farkas (2003:3), uma propriedade estável transliguisticamente dos nominais incorporados é
sua incapacidade de tomar um escopo maior.
A semântica parece desempenhar um papel relevante na questão que envolve a incorporação
de partes do corpo humano. O trabalho da Velázquez-Castillo (1995) chama atenção para o fato de
que em Guarani Paraguaio certas partes do corpo humano nunca são incorporadas, mesmo quando
empregadas em exemplos estruturalmente iguais a outros exemplos com partes do corpo humano que
são comumente incorporadas. Por que essa assimetria? Por que o nome “unha” nunca é incorporado,
enquanto o nome “mão” pode ser? Pode ser que o nome “unha” não tenha as mesmas propriedades
semânticas que “mão”. Como observou Farks & Farkas (2003:3), uma propriedade dos nominais
incorporados encontrada em diversas línguas é a incapacidade de esses nominais tomar um escopo
maior. Um modelo puramente sintático dificilmente consegueria explicar por que alguns nomes nunca
58
são incorporados, mesmo quando estruturalmente são empregados de maneira análoga a outros nomes
que são comumente incorporados.
4.2. Partes do corpo humano e ascensão do possuidor
Como vimos nas seções iniciais deste texto, em algumas línguas, o Tipo II de IN geralmente
ocorre junto a outro processo conhecido na literatura como “ascensão do possuidor” (AP)
(VELÁZQUEZ-CASTILLO, 1995:685-702; MURO, 2009:87). Contudo, há línguas que só permitem
a IN de termos que designam determinadas partes do corpo humano. Um exemplo citado na literatura
é o do Guarani Paraguaio. Velázquez-Castillo (1995:687-702) observa que, nesta língua, a IN e a AP
não ocorrem com qualquer parte do corpo humano: há determinadas partes do corpo humano que são
incorporáveis e há outras que nunca o são, mesmo quando se satisfazem outros pré-requisitos da
língua para que haja IN.
Nesse artigo, a pesquisadora mostra que há uma tendência de os NIs nessas estruturas serem
termos que coincidem com os termos de nível básico das categorias partonômicas para o corpo
humano propostas por Andersen (1978), segundo o qual há uma tendência universal nas línguas
naturais para designar determinadas partes do corpo humano com formas básicas, que não são
morfologicamente derivadas de outras palavras. Essas partes do corpo mais proeminentes seriam do
nível básico das categorias partonômicas.
O conceito de categorias partonômicas se refere ao fato de que as partes do corpo humano
podem ser categorizadas como uma relação de “parte de”. Por exemplo, o dedo da mão é considerado
em português como uma parte da mão, mas não do braço. Não imaginamos o dedo como uma parte
do braço, mas sim da mão. As relações partonômicas podem ser diferentes de língua para língua, mas
Andersen (1978) observou que há um padrão universal em designar determinadas partes do corpo
que seriam mais proeminentes e que seriam também as primeiras partes do corpo a ser adquiridas na
aquisição da linguagem pelas crianças.
Abaixo, temos um exemplo de IN + AP em Guarani Paraguaio. O exemplo foi retirado da
obra de Velázquez-Castillo (1995:687). No exemplo (27), o nome hova ‘rosto/face’ é incorporado ao
verbo hei ‘lavar’, enquanto o possuidor do rosto, pe-mitã ‘aquela criança’, passa a ser o objeto direto
do verbo. A segunda sentença do exemplo abaixo é a versão sem o processo de IN.
59
(27)30 a. a-hova-hei-ta pe-mitã
‘1AC-face-wash-FUT that-child’
‘I’ll wash that child’s face’
lit. ‘I’ll face-wash the child’
b. a-johei-ta pe-mitã rova
1AC-wash-FUT that-child face
‘I’ll wash that child’s face’
Há exemplos de IN + AP que envolvem partes de plantas em vez de partes do corpo humano.
Por exemplo, em Munduruku, encontramos o exemplo abaixo, retirado de Gomes (2008:36). Em (28),
o núcleo do sintagma nominal, tup- ‘folha’, foi incorporado ao verbo 'at ‘cair’, enquanto o adjunto
do sintagma, ako ‘bananeira’, ascende à posição de sujeito, que era a posição ocupada pelo núcleo.
(28) ako o'=tup-'at
bananeira 3S=R2.folha-cair.PRF
‘A folha da baneira caiu’
O processo de AP não envolve necessariamente IN em outras línguas, a ocorrência de nenhum
desses dois processos é condição necessária para a acorrência do outro. Por exemplo, em Português,
quando se diz “Maria beijou João na bochecha”, ocorre uma ascenção do possuidor, já que o possuidor
da bochecha ascendeu à posição de objeto direto do verbo, enquanto o núcleo do sintagma “a
bochecha de João” passou a desempenhar o papel de argumento oblíquo na sentença.
Segundo Velázquez-Castillo (1995:686), embora as abordagens teóricas do processo de AP
tenham focado em seus aspectos estruturais, outros estudos sugerem que considerações semânticas
devam ser levadas em conta, visto que a AP é invariavelmente acompanhada de restrições semânticas.
Segundo a autora, os estudos de Croft (1985) e Tuggy (1980) propõem abordagens semânticas para
a AP. De acordo com Croft (1985:46-47, apud Velázquez-Castillo: 1995:686-687), o principal fato
que permite a AP é que algo é diretamente afetado por uma ação pelo fato de ser o possuidor da
entidade que a ação afeta.
Velázquez-Castillo (1995:686-687) também cita Wierzbicka (1988), que também tem uma
abordagem semântica segundo a qual a AP é um mecanismo de escolha para expressar uma
conceitualização de partes do corpo como integralmente conectadas a seus possuidores e que esta
construção gramatical só é permitida com um número limitado de nomes, entre os quais os termos de
30 Tradução: a. a-hova-hei-ta pe-mitã
‘1AC-rosto-lavar- FUT aquela-criança’
‘Eu lavarei o rosto daquela criança’
lit. ‘Eu rosto-lavarei a criança’
b. a-johei-ta pe-mitã rova
1AC-lavar-FUT aquela-criança rosto
‘Eu lavarei o rosto daquela criança’
60
parte do corpo são os mais proeminentes.
Para Velázquez-Castillo (1995), há evidências de que em Guarani Paraguaio é o possuidor, e
não a parte do corpo incorporada ao verbo, o verdadeiro objeto do verbo. A primeira evidência é que,
quando o possuidor é um nome lexical, como em (29), o possuidor ocupa a posição do objeto direto.
(29)31 a. a-hova-hei-ta pe-mitã
‘1AC-face-wash-FUT that-child’
‘I’ll wash that child’s face’
lit. ‘I’ll face-wash the child’
b. a-johei-ta pe-mitã rova
1AC-wash-FUT that-child face
‘I’ll wash that child’s face’
A segunda evidência para o possuidor ser o verdadeiro objeto é que, quando o sujeito é um
pronome de primeira pessoa e o objeto é um pronome de segunda pessoa, um prefixo portmanteau
ro-, que indexa sujeito de primeira pessoa e objeto de segunda pessoa, é prefixado ao complexo verbal,
como podemos observar em (30).
(30)32 a. (che) ro-hova-hei
I 1S/2O-face-wash
‘I washed your face’
lit. ‘I face-wash you’
b. (che) a-johei nde-rova
I 1AC-wash 2IN-face
‘I washed your face’
A terceira evidência é que a passiva torna o possuidor, e não a parte do corpo, o sujeito da
sentença passiva, como indicado pelo marcador de concordância a-, marcador de sujeito de primeira
pessoa, como podemos observar em (31).
31 Tradução: a. a-hova-hei-ta pe-mitã
‘1AC-rosto-lavar- FUT aquela-criança’
‘Eu lavarei o rosto daquela criança’
lit. ‘Eu rosto-lavarei a criança’
b. a-johei-ta pe-mitã rova
1AC-lavar-FUT aquela-criança rosto
‘Eu lavarei o rosto daquela criança’
32 Tradução: a. (che) ro-hova-hei
Eu 1S/2O-rosto-lavar
‘Eu lavo seu rosto’
lit. ‘Eu rosto-lavo você’
b. (che) a-johei nde-rova
Eu 1AC-lavar 2IN-rosto
‘Eu lavei seu rosto’
61
(31)33 (che) a-je-hova-pete ange pyhare jeroky-ha-pe
I 1AC-PASS-face-slap last night dance-NOM-in
‘I was slapped in the face last night at the dance’
A quarta evidência é que se o possuidor é o mesmo que o sujeito, um prefixo reflexivo é
colocado no complexo verbal, como podemos observar em (32) com o prefixo verbal -j, marcador de
reflexivo na língua.
(32)34 a. a-j-ova-hei
1AC-RFL-face-wash
‘I wash my face’
lit. ‘I face-wash myself’
b. a-johei che-rova
1AC-wash 1IN-face
‘I wash my face’
Velázquez-Castillo (1995:689) afirma que, além desses testes citados nos parágrafos
anteriores, o possuidor satisfaz a caracterização semântica de objeto. Para a autora, as propriedades
semânticas de um objeto prototípico são as seguintes: 1) alto grau de individualização; 2) completa
afetação pela ação designada; 3) alto grau de saliência. Estas propriedades semânticas colocam os
objetos em um espectro contínuo em que, quanto mais forte essas propriedades estiverem presentes,
mais prototípico é o objeto. Geralmente, conclui a autora, partes do corpo ranqueam muito baixo em
cada um desses parâmetros semânticos, em comparação ao possuidor da parte do corpo humano. As
partes do corpo carecem de individualização, já que elas são conceitualmente relacionadas ao seu
possuidor, as partes não são totalmente distintas de seu possuidor. Além disso, por essa falta de
individualização, as partes do corpo também ranqueam baixo no parâmetro de afetação pela ação,
pois caso uma ação seja direcionada para uma parte do corpo, a ação afetará a parte, mas igualmente
afetará o todo, ou seja, o possuidor, pois há uma relação clara de contiguidade entre os dois. Ademais,
visto que os possuidores das partes (especialmente, se humanos) ranqueam mais alto em termos de
empatia, os possuidores tendem a naturalmente ser mais importantes para os falantes que suas partes.
33 Tradução: (che) a-je-hova-pete ange pyhare jeroky-ha-pe
Eu 1AC-PAS-rosto-bater última noite dança-NOM-em
‘Eu fui esbofeteado na face noite passada na dança’
34 Tradução a. a-j-ova-hei
1AC-RFL-rosto-lavar
‘Eu lavo meu rosto’
lit. ‘Eu rosto-lavo eu mesmo’
b. a-johei che-rova
1AC-lavar 1IN-rosto
‘Eu lavo meu rosto’
62
A autora conclui que, por esses motivos, uma ação direcionada para uma parte do corpo tende a ser
retratada como afetando a pessoa, e não a parte.
Se assumirmos a definição semântica de objeto como um elemento que tem alto grau de
individualização, completa afetação pela ação designada e alto grau de saliência, concluímos que não
há nenhum desencontro entre a “superfície” e “relações abstratas”, já que o possuidor se comporta
como um objeto nas sentenças com IN porque o possuidor é de fato o objeto, a entidade relevante e
individualizada que é afetada pela ação.
Termos que designam partes do corpo e que são usados como NIs tendem a exibir pouco
comportamento nominal, no sentido de que eles não aceitam modificadores nem flexão. Segundo
Velázquez-Castillo (1995:694-695), Hopper e Thompson (1984) e Fox (1981) mostram que a classe
de termos de parte do corpo mostra baixa categorialidade. Este comportamento torna esses termos
candidatos fracos para a função de objeto. Velázquez-Castillo propõe que os NIs de uma forma geral
poderiam ser considerados satélites do verbo, em que satélite é definido como um elemento interno
do complexo verbal que forma uma unidade semântica e formal com a raiz verbal.
Em Guarani Paraguaio, a unidade formal entre o NI, que é um satélite, e o verbo pode ser
observada no exemplo abaixo. Em (33), observa-se que o circunfixo de negação nd- ... -i não é
colocado antes e depois da raiz verbal pete ‘bater’, mas sim antes e depois de todo o complexo verbal,
que inclui também o nome po ‘mão’ (quando incorporado, torna-se -o-.
(33)35 (che) nd-ai-o-pete-i la-mitã
I NEG-1AC-hand-slap-NEG the-child
‘I didn’t slap the child on the hand’
4.3. Incorporação nominal como um processo de desfocalização de zonas ativas
Velázquez-Castillo (1995:695) também traz o conceito de “zona ativa”, conceito este
desenvolvido por Langacker (1984) para descrever a assimetria de proeminência entre as partes e o
todo de uma entidade. As zonas ativas são as entidades diretamente envolvidas em um processo ou
uma relação. Por exemplo, em “Pedro piscou para Maria”, a zona ativa não é “Pedro”, mas sim os
“olhos de Pedro”. Na sentença “Pedro piscou para Maria”, temos uma zona ativa desfocalizada, já
que o sujeito gramatical é Pedro, e não os seus olhos, verdadeira zona ativa da ação.
Segundo a autora, Langacker argumenta que expressões em que as zonas ativas são
desfocalizadas são a norma nas línguas, e não a exceção. Esse processo de desfocalização das zonas
35 Tradução: (che) nd-ai-o-pete-i la-mitã
Eu NEG-1AC-mão-bater-NEG a-criança
‘Eu não bati na criança na mão’
63
ativas permite um certo grau de liberdade linguística para dar proeminência para outra entidade que
não seja exatamente a zona ativa, mas que mantenha uma relação com ela (por exemplo, de
contiguidade) e que seja mais proeminente que a zona ativa.
Para a autora, os exemplos (29)-(33) de Guarani Paraguaio são exemplos de desfocalização
de zonas ativas. A falta de proeminência de nomes incorporados que designam partes do corpo é
capturada pela caracterização deles como zonas ativas desfocalizadas. Esta caracterização é adequada
para a abordagem que não os considera nem objetos nem sujeitos, mas sim satélites verbais.
4.4. Quais termos de partes do corpo podem ser incorporados?
Velázquez-Castillo (1995:697-699) chama a atenção para o fato de que nem todos os
possuidores são codificados como argumentos da oração. Vejamos os dois exemplos abaixo. A
primeira sentença de cada um dos exemplos é agramatical. Visto que as construções agramaticais
abaixo são estruturalmente idênticas às construções gramaticais que envolvem partes do corpo
humano citadas nos exemplos (29)-(33), qualquer explicação estritamente formal da discrepância na
gramaticalidade é excluída.
Segundo a autora, vaka ‘vaca’ é um nome que pode aparecer incorporado ao verbo, como em
sentenças como a-vaka-ami ‘eu vaca-ordenho’, quando o nome não é possuído. Além disso, os verbos
ñami ‘ordenhar’ e nupã ‘bater’ aparecem frequentemente em estruturas com IN, como em a-vaka-
ami-ta ‘eu vou vaca-ordenhar’ e em a-ña-kã-nupã ‘eu bato em minha cabeça’. Portanto, a
agramaticalidade das primeiras sentenças de (34) e (35) não ocorre porque os verbos em questão não
são capazes de incorporar seus objetos, ocorre porque os possuidores nas sentenças não podem ser
codificados como objetos, ao contrário dos exemplos que envolvem partes do corpo, como
abservamos acima.
(34)36 a. *(che) ro-rymba-vaka-ami
I 1S/2O-domestic-cow-milk
‘I cow-milk you
b. (che) a-ñami ne-rymba-vaka
I 1AC-milk 2IN-domestic-cow
‘I milk your cow’
36 Tradução: a. *(che) ro-rymba-vaka-ami
Eu 1S/2O-doméstico-vaca-ordenhar
‘Eu vaca-ordenho você’
b. (che) a-ñami ne-rymba-vaka
I 1AC-ordenhar 2IN-doméstico-vaca
‘Eu ordenho sua vaca’
64
(35)37 a. *(che) ro-memby-nupã
I 1S/2O-offspring-beat
‘I son-beat you’
b. (che) ai-nupã ne-memby
I 1AC-beat 2IN-offspring
‘I beat your son’
A autora prossegue sua argumentação e afirma que, visto que o único tipo de possuidor que
pode ser considerado um objeto em construções com IN + AP é o possuidor de partes do corpo, é
razoável inferir que o que permite esta construção é a inalienabilidade da relação de posse em questão.
Contudo, o segundo dos dois exemplos acima também designa uma relação de posse inalienável
(parentesco), mas o possuidor não pode ser codificado como objeto. Para a autora, não é apenas o
fato de que a relação de posse é inalienável o que permite as construções de IN + AP, mas também a
relação de identificação muito próxima entre o possuidor e o possuído, o que permite considerarmos
o possuidor o verdadeiro paciente de uma ação que é direcionada a uma parte de seu corpo.
Outra questão relevante é que nem todas as partes do corpo são encontradas em estruturas
com IN. Segundo Velázquez-Castillo (1995:700-702), apenas as partes do corpo com alguma
relevância cultural aparecem em construções com IN. Assim, em Guarani Paraguaio, akã ‘cabeça’,
rova ‘rosto/face’, resa ‘olhos’, juru ‘boca’, po ‘mão’ e py’a ‘peito/estômago’ aparecem comumente
em construções com IN. Segundo a autora, na cultura popular paraguaia, o rosto é associado à honra,
a cabeça é associada ao auto-controle, as mãos são associadas à habilidade, peito/estômago é o lugar
dos sentimentos, emoções. Raramente ou nunca encontradas em construções com IN são os termos
que designam partes do corpo humano que não são culturalmente relevantes, tais como rope-pi
‘pálpebra’, ropea ‘cílios’, kuã ‘dedo da mão’, py-sã ‘dedo do pé’ e py-ape ‘unhas’.
Velázquez-Castillo (1995:700-701) conclui que a propriedade de contiguidade não é
suficiente para codificarmos o possuidor como o objeto da sentença, já que certas partes do corpo
raramente ou nunca são incorporadas. Para a autora, parece que apenas poucas partes do corpo são
percebidas como tão integralmente associadas aos seus possuidores a ponto de ser virtualmente
indentificadas como se fossem eles.
A autora percebeu um padrão nessa assimetria encontrada entre as partes do corpo humano:
as partes do corpo humano que aparecem em construções com IN coincidem com os termos de nível
básico das categorias partonômicas para o corpo humano propostas por Andersen (1978). O estudo
37 Tradução: a. *(che) ro-memby-nupã
Eu 1S/2O-filhos-bater
‘Eu filho-bato em você’
b. (che) ai-nupã ne-memby
Eu 1AC-bater 2IN-filhos
‘Eu bato em seu filho’
65
de Andersen (1978) chama atenção para o fato de que há uma tendência universal nas línguas naturais
para designar determinadas partes do corpo humano com formas básicas, que não são
morfologicamente derivadas de outras palavras. A proeminência dessas partes do corpo em
detrimento das demais seria atribuída à perceptibilidade de formas particulares (redondo mais
proeminente que longo e fino), dimensões espaciais (partes superiores mais proeminentes que as
inferiores) e orientação espacial (a parte frontal mais proeminente que a parte de trás). Andersen
(1978) também encontrou evidências para estas generalizações em estudos de aquisição de linguagem
que focam na ordem da aquisição de termos de partes do corpo humano: a ordem vai dos termos mais
perceptíveis (redondo e frontal superior, como cabeça, rosto, olhos, boca, ouvidos) para os termos um
pouco menos proeminentes e em seguida para os menos proeminentes.
Segundo Velázquez-Castillo, nem todos os termos de partes do corpo que aparecem em
construções com IN em Guarani Paraguaio são termos categorizados como de nível básico por
Andersen (1978). As exceções são revi ‘ânus’ e py’a ‘peito/estômago’. A autora conclui que não
apenas o nível de perceptibilidade desempenha um papel relevante na “escolha” das partes do corpo
que podem ser percebidas como integralmente conectadas ao possuidor, mas também o seu status
cultural de proeminência.
O que permite que determinadas partes do corpo sejam virtualmente identificadas com seus
possuidores e que esses possuidores sejam codificados como objetos das sentenças? Para Velázquez-
Castillo (1995:701-702), é a co-ocorrência de três propriedades semânticas: 1) contiguidade física
entre o possuidor e o possuído; 2) natureza viva do possuidor (o possuidor é um ser vivo); e 3)
proeminência cognitiva (perceptibilidade) e cultural das partes do corpo selecionadas.
Seria interessante averiguar se o que foi observado por Velázquez-Castillo (1995) é uma
característica particular do Guarani ou se é uma tendência apresentada por outras línguas. Ao colocar
a semântica como elemento cognitivo importante para explicar a IN, podemos chegar a
generalizações ainda maiores. Os exemplos descritos na literatura como IN podem ser vistos como
subtipos de um fenômeno mais abrangente.
66
5. O alinhamento morfossintático e a incorporação nominal de sujeito
É sabido que a incorporação de sujeito a um verbo é um fenômeno menos frequente que a
incorporação de objeto (GIVÓN, 1995:190). Em um estudo dos exemplos de IN do artigo de Mithun
(1984), observa-se que nos casos de IN de sujeito o NI é sempre sujeito de verbo intransitivo (S).
Nesta seção, o conceito de sujeito é tomado de Comrie (1989). Segundo Comrie (1989: 106-107), o
sujeito prototípico representa a intersecção de agente e tópico, ou seja, os exemplos de sujeitos
prototípicos são, translinguisticamente, agentes que também são tópicos. Esse conceito é definido em
termos de protótipos, e não em termos de critérios que são necessários e suficientes. Nesse sentido,
podemos concluir que a noção de sujeito deve ser tomada como um contínuo, de modo que há sujeitos
mais ptototípicos que outros.
Qualquer definição que privilegie as propriedades semânticas do sujeito traz, potencialmente,
essa noção de continuidade. Na seção em que discutimos a incorporação nominal de partes do corpo
humano em Guarani Paraguaio e a tese de Velázquez-Castillo (1995) de que essas partes são os
verdadeiros objetos da sentença, e não o possuidor, também trouxemos uma definição semântica de
objeto, em que um objeto prototípico tem alto grau de individualização, completa afetação pela ação
designada e alto grau de saliência. Estas propriedades semânticas também colocaram os objetos em
um espectro contínuo em que, quanto mais forte essas propriedades estiverem presentes, mais
prototípico é o objeto.
Segundo Dixon (1994:40), os sujeitos de verbos instransitivos ora se comportam como um
sujeito de verbo transitivo (A), ora se comportam como um objeto de verbo transitivo (P). Segundo
este autor, por causa dessa particularidade de S, há uma pressão para que as línguas deem o mesmo
tratamento morfossintático dado para S também para A ou para P, surgindo os alinhamentos
nominativo-acusativo e ergativo-absolutivo, respectivamente. Há também o alinhamento activo-
stativo, em que S é tratado ora como A, ora como P, e o alinhamento tripartite, extremamente raro
entre as línguas, em que S, A e P são tratados distintamente pela língua, do ponto de vista da
morfossintaxe.
Geralmente, quando há IN de sujeito, o S incorporado tem função de paciente, mas há línguas
que permitem a IN de sujeito em que S não é semanticamente um paciente, mas também não é um
agente (ao menos não um agente consciente): seria o caso de Koyukon Atabascano, em que há IN em
situações em que o NI é um S que designa uma força natural (AXELROD, 1990:187-190). Para uma
discussão sobre os conceitos de agente consciente, experimentador, paciente, força natural,
instrumento, etc., vide Comrie (1989:58-60). Segue um exemplo retirado de Axelrod (1990:188):
67
(36)38 John holyo
John ho-le-Ø-yo
John up.the.bank-M/A-CL-SG.go
‘John went up the bank’
(37)39 hotolyo
ho-to-le-Ø-yo
up.bank-water-M/A-CL-SG.go
‘the water rose over the bank’
(38) * too holyo
Segundo o autor, o informante teria dito que o exemplo (38), agramatical na língua,
significaria algo como “a água está caminhando até o barranco do rio”, indicando que a água teria
feito a ação de forma consciente ou volitiva. Segundo Axelrod (1990:188), o status da incorporação
denota uma falta de intencionalidade de parte do sujeito, por isso o sujeito too/to- ‘água’ deve ser
obrigatoriamente incorporado ao verbo yo ‘ir/caminhar’ como podemos observar na gramaticalidade
de (37), em contraposição à agramaticalidade de (38). A tradução do verbo yo ‘ir/caminhar’ neste
caso seria mais adequada como ‘subir’, já que que ‘ir/caminhar’ denotaria uma intenção/controle do
sujeito agente, algo que não faz sentido no contexto de o sujeito ser too/to- ‘água’. Em (36), quando
o sujeito é um ser humano, o status de sujeito agente com controle faz com que a incorporação não
seja aceita como gramatical na língua e a sentença gramatical seja John holyo ‘John foi/caminhou até
a beira do rio’.
O tema da IN de sujeito traz implicações para alguns modelos linguísticos. Dentro do modelo
gerativista, a IN de sujeito problemática é a dos sujeitos agentes, pois estes casos violariam a restrição
de movimento de núcleo (Head Movement Constraint – HMC) proposta por Travis (1984:131),
segundo a qual um X0 só pode se mover para um Y0 que o governa. Neste sentido, exemplos como o
abaixo não seriam problemáticos, tendo em vista que estes sujeitos poderiam ser considerados como
objetos do ponto de vista formal, eles seriam originados na posição de objeto. O exemplo seguinte é
da língua Náuatle (Uto-Azteca) e foi retirado de Haugen (2004:216). Observa-se claramente em (39)
que o sujeito toonal ‘sol’ se incorpora ao verbo kisa ‘emergir’, formando uma única palavra toonal-
kisa ‘o sol emerge/nasce’.
38 Tradução: John holyo
João ho-le-Ø-yo
João até.a.beira.do.rio-M/A-CL-SG.ir
‘João foi até a beira do rio’
39 Tradução: hotolyo
ho-to-le-Ø-yo
acima.da.beira.do.rio-água-M/A-CL-SG.ir
‘a água subiu acima da beira do rio’
68
(39)40 toonal-kisa
sun-emerge
‘the sun comes out’
Na língua Hopi, também da família Uto-Azteca, temos alguns exemplos em que os sujeitos
têm um grau maior de agentividade. Os exemplos abaixo foram retirados de Haugen (2004:217). Na
primeira sentença de (40), temos a incorporação do sujeito hon ‘urso’ ao verbo wari ‘correr’. Na
segunda sentença, temos a incorporação do sujeito poli ‘borboleta’ ao verbo wayma ‘caminhar’.
Todos as quatro sentenças do exemplo abaixo envolvem verbos de movimento.
(40)41 a. Hon-wari bear-run(SG)
'The bear ran.'
b. Poli-wayma butterfly-walk(SG)
'The butterfly walked along.'
c. Uy-hongva
plant-stand.up(PL)
'The corn plants stood up.'
d. Posiw-yes-va
magpie-sit(PL)-INGR
'The magpies alighted.
Haugen (2004:215-219) afirma que os verbos de movimento poderiam concebivelmente ser
vistos como verbos inacusativos, de modo que seus sujeitos gramaticais seriam originados como
objetos na estrutura profunda. Contudo, a sentença abaixo, do Náuatle Clássico, seria ainda mais
intrigante (HAUGEN, 2004:218). Em (41), temos algo como “o senhor franziu as sobrancelhas de
raiva”. Neste caso, é mais difícil aceitar que este sujeito não seria um argumento externo.
40 Tradução: toonal-kisa
sol-emergir
‘o sol nasce’
41 Tradução: a. Hon-wari
urso-correr(SG)
'O urso correu.'
b. Poli-wayma
borboleta-caminhar (SG)
'A borboleta caminhou.'
c. Uy-hongva
planta-levantar.se (PL)
'Os pés de milho se levantaram.'
d. Posiw-yes-va
pássaro.pega.rabuda-sentar.se(PL)-INGR
'O pega-rabudas pousaram'.
69
(41) Mo-tēuc-zōmah (In tēuctli ōmozōmah.)
'The lord frowned in anger.'
No entanto, temos que ressaltar que no texto de onde foi retirado o último exemplo a expressão
estava sendo usada como um nome, e não como uma sentença de fato. Haugen (2004:219) tenta dar
uma explicação para estes casos e lança a hipótese de que estes exemplos de IN de sujeito agente não
seriam uma IN sintática, seria um processo puramente lexical. Segundo o autor, a solução para este
problema é que tais exemplos de incorporação de sujeito agente não podem ser derivados por meio
de um movimento de um núcleo, como sugere a teoria de Baker (1988). No entanto, diz o autor, há
uma outra maneira de gerar uma construção incorporada N-V, que envolve simplesmente uma
composição. Ele hipotetiza que estes exemplos acima são resultados de simples fusões de uma raiz
nominal com uma raiz verbal. Estas composições conduzem a uma interpretação idiomática em que
o nome incorporado é entendido como sujeito do seu verbo. A idiomatização destas expressões pode
levar a uma leitura agentiva em alguns casos e passivas em outros. Para o autor, essas construções
não seriam incorporações nominais sintáticas, em que o nome incorporado é derivado de uma posição
de um objeto subjacente, deixando um vestígio.
Esta explicação de Haugen (2004:219) parece ser uma solução ad hoc e tem a desvantagem
de separar algo que intuitivamente parece ser um em dois processos distintos. Esta separação e
confusão quanto à natureza desse processo linguístico, se sintática ou se lexical, retorna para o ponto
levantado por Haspelmath (2011) e discutido na seção desta dissertação “O conceito de ‘palavra’ e
suas implicações para o conceito de ‘incorporação nominal’”.
Como as línguas ergativo-absolutivas dispensam o mesmo tratamento morfossintático tanto
para o sujeito de um verbo intransitivo quanto para o objeto de um verbo transitivo e como há uma
pressão tipológica entre as línguas para que haja mais casos de IN de objeto do que casos de IN de
sujeito, seria de se esperar intuitivamente que a ergatividade, ao alinhar morfossintaticamente S com
P, aumentasse a produtividade de casos de IN de sujeito nessas línguas em comparação com as línguas
que não apresentassem nenhuma ergatividade. Ou seja, a intuição nos leva a crer que, caso a língua
apresente IN e caso esta língua seja predominantemente ergativo-absolutiva, provavelmente ela
apresentará uma quantidade razoável de sujeitos de verbos intransitivos incorporados ao verbo, talvez
em uma frequência maior que em línguas predominantemente nominativo-acusativas.
Segue um exemplo de IN de sujeito em Cavineña (Tacanan), língua ergativo-absolutiva. O
exemplo foi retirado de Guillaume (2008). Em (42), temos a incorporação do sujeito akwa ‘peito’
com o verbo tsuru ‘enocontrar-se’, com a morfologia verbal sendo colocada como afixos do complexo
N-V. O nome incorporado parece ser um tópico e ter alguma agentividade.
70
(42)42 Ne-ka-akwa-tsuru-ti
HORT.DL-REF-chest-meet-REF
Let's sit facing each other (lit. let's meet each other's chests)
Os dados colhidos dos principais textos da literatura que trazem exemplos de IN apontam para
a direção de que, quando há uma IN de sujeito, este nunca recebe o papel temático de agente com
controle. Apesar de não ser necessariamente um paciente, aparentemente o NI nunca é um agente
volitivo ou com controle.
Como vimos na seção “Metodologia”, dentre as línguas consultadas, as que apresentam
alguma ergatividade (o que inclui as línguas ergativas cindidas) são as seguintes: Cavineña (Tacanan),
Chukoto (Chukotko-Kamchatkana), Hixkaryana (Karib), Katukina-Kanamari (Katukina), Koryak
(Chukotko-Kamchatkana), Maia Yucateco (Maia), Nadëb (Makú), Paumari (Arauana), Samoano
(Austonésia), Tapirapé (Tupi-Guarani), Tonga (Austronésia), Waiwai (Karib), Yanomami dos
Xamatauteri (Yanomami).
Aparentemente, o alinhamento morfossintático não determina se encontraremos casos de IN
de sujeito. Por exemplo, em Hopi (Uto-Azteca), língua essencialmente nominativo-acusativa, temos
dois exemplos formalmente idênticos ao do Cavineña citado acima. Os exemplos abaixo foram
retirados de Haugen (2004:217). Como visto acima, em (43), temos a incorporação do sujeito hon
‘urso’ ao verbo wari ‘correr’. Em (44), temos a incorporação do sujeito poli ‘borboleta’ ao verbo
wayma ‘caminhar’. Os nomes incorporados são tópicos e agentes da ação verbal.
(43)43 Hon-wari bear-run(SG)
'The bear ran.'
(44)44 Poli-wayma butterfly-walk(SG)
'The butterfly walked along.'
Os exemplos do Hopi, língua nominativo-acusativa, e do Cavineña, língua ergativo-absolutiva,
42 Tradução: Ne-ka-akwa-tsuru-ti
HORT.DL-REF-peito-encontrar.se-REF
Vamos sentar em frente um do outro (lit. vamos encontrar o peito um do outro)
43 Tradução: Hon-wari
urso-correr(SG)
'O urso correu.'
44 Tradução: Poli-wayma
borboleta-caminhar (SG)
'A borboleta caminhou.'
71
não são exceções entre as línguas que apresentam casos de IN de sujeito. Os dados obtidos mostram
que o alinhamento morfossintático não determina a priori se a língua pode ou não apresentar IN de
sujeito. Temos exemplos de IN de sujeito tanto em línguas ergativo-absolutivas quanto em
nominativo-absolutivas.
Restaria ainda analisar se o alinhamento morfossintático causa alguma assimetria nos casos
de IN de sujeito. Neste sentido, foi feita uma análise dos dados de IN de sujeito para verificar se, dado
que uma língua apresenta IN de sujeito, haveria uma maior probabilidade desta língua apresentar
também alguma ergatividade.
Em relação a esta possível assimetria, os dados não são conclusivos. Tendo em vista que a
maior parte das línguas analisadas apresenta alguma ergatividade, é de se esperar que a maior parte
dos exemplos de IN seja de línguas que apresentam alguma ergatividade, simplesmente porque a
amostra é relativamente maior. Considerando-se o maior peso de línguas ergativo-absolutivas no
conjunto de dados obtidos, a primeira conclusão é a de que a ergatividade não é um fator relevante
para aumentar a produtividade de IN de sujeito.
Outro problema importante que pode enviesar as conclusões obtidas é que não há como saber
se as línguas que foram pesquisadas com base nas fontes bibliográficas de fato não apresentam IN de
sujeito. Pode ocorrer de simplesmente os autores não terem citados exemplos desse tipo. Ao excluir
esses hipotéticos dados, podemos chegar a conclusões estatísticas inválidas. Portanto, uma análise
tipológica neste sentido só poderia ser feita com base em exaustivos dados de IN de sujeito em línguas
de diferentes regiões e famílias. Como os dados obtidos não foram colhidos para este propósito, não
há como chegar a uma conclusão final, embora os primeiros dados apontam para nenhum tipo de
assimetria que estávamos esperando.
Os dados colhidos da literatura apontam para a tese de que o alinhamento morfossintático da
língua não é determinante na escolha do elemento incorporado. Apesar das limitações naturais desta
pesquisa, à primeira vista, a probabilidade de encontrarmos exemplos de IN de sujeito em línguas que
apresentam alguma ergatividade aparenta ser a mesma que a de encontrarmos esse tipo de IN em
línguas de outros alinhamentos morfossintáticos.
Mais importante que o alinhamento morfossintático são as restrições já descritas na literatura
para os casos de IN de sujeito: a produtividade da IN de sujeito parece ser limitada apenas pelas
restrições semânticas gerais já citadas neste trabalho, entre as quais a de nunca o sujeito ser
semanticamente um agente, embora este não precise ser necessariamente um paciente, podendo ser
um experienciador, por exemplo. As questões semânticas em torno da questão de por que
determinadas partes do corpo humano nunca possam ser incorporadas precisam ser melhor analisadas.
Após um estudo inicial de IN em línguas ergativo-absolutivas, foi atestada a importância de
incluir mais exemplos de IN de línguas de outros alinhamentos para que o trabalho tivesse subsídios
72
para chegar a conclusões mais contundentes sobre a possibilidade ou não de o alinhamento
morfossintático de uma língua ter influência na produtividade da IN de sujeito. Os dados indicam
para a mesma direção que os dados das línguas que apresentam alguma ergatividade: o alinhamento
morfossintático não influi em nada nem quanto à possibilidade de encontrarmos casos de IN de sujeito
na língua nem quanto à produtividade desses casos. Contudo, como afirmado, é necessário admitir as
limitações deste trabalho, que só se utiliza dos dados apresentados pelos autores nos artigos, e não de
todos os dados contidos nos corpora completos utilizados por esses autores. Só este último fato
inviabiliza uma conclusão estatística mais contundente. Só um trabalho com exaustivos dados de
diversas línguas poderia apontar para a existência ou não de alguma assimetria no número de casos
de IN de sujeito e para alguma possível correlação entre um aumento nestes casos e o fato de a língua
apresentar ergatividade.
73
6. Conclusões
O processo de IN envolve muitas questões semânticas, sintáticas e morfológicas. Este tema é
interessante por diversos motivos e ainda precisa ser estudado com mais profundidade e com mais
dados novos. Talvez este seja um dos processos descritos na literatura linguística que mais
contundentemente aponta em direção da tese de que não é possível separar a sintaxe da morfologia.
Só o fato de que tanto a hipótese puramente lexicalista como a hipótese puramente sintática não
conseguem explicar todas as nuances deste processo linguístico, além do fato de que alguns autores
como Haugen (2004) tentam separar em dois tipos de IN com o objetivo de estancar as contradições
de cada uma das hipóteses, já mostra por si só como é frágil a separação entre sintaxe e morfologia.
A IN vai na contramão de uma tendência especializadora que encontramos em todas as ciências. Suas
características parecem resistir à tentação de transformar a morfossintaxe em gênero de duas espécies.
Com os estudos mais acurados sobre a IN, também a semântica ganha mais subsídios. As
questões que envolvem o conceito de indefinitude e das categorias partonômicas do corpo humano (e
por analogia das partes das plantas e dos animais) podem ser melhor entendidas se conseguirmos
enquadrar a IN como um subtipo de um processo semântico mais geral.
Como a IN não acontece em todas as línguas naturais, pelo menos não da mesma maneira,
qualquer explicação linguística terá que necessariamente colocar a IN como um subtipo de um
processo maior, mais geral. Nesta direção, o trabalho de Mithun (1984) defende a tese de que a IN
nada mais é do que mais um subtipo de formação de palavras, ao passo que o trabalho de Baker (1988)
defende a tese de que a IN nada mais é do que mais um subtipo de movimento. Na mesma direção, o
trabalho de Van Geenhoven (1998) tenta apontar a IN como um subtipo do processo semântico de
indefinitude. O trabalho de Farkas & Swart (2003) amplia a discussão semântica de indifinitude e
também traz as questões discursivas.
Como afirmado na introdução, o objetivo principal deste trabalho foi trazer para a literatura
em português todos esses aspectos em um texto introdutório e bibliográfico que possa incentivar
outros trabalhos mais específicos. Além desta contribuição bibliográfica, esta pesquisa também se
pautou na tentativa de verificar uma possível correlação estatística entre ergatividade e uma maior
frequência nos casos de IN de sujeito. Embora não seja possível afirmar categoricamente, os dados
preliminares (e insuficientes) apontam para a tese de que o alinhamento morfossintático da língua
não determina se a língua pode apresentar estes casos especiais de IN nem se estes casos são
especialmente frequentes. De toda forma, só um trabalho com um banco de dados maior e talvez com
uma pesquisa focada apenas neste tema poderá chegar a um resultado satisfatório do ponto de vista
estatístico.
74
Referências Bibliográficas
ANDERSEN, E. Lexical universals of body-part terminology. In: GREENBERG, J. (Ed.) Universals
of Human Language: volume 3 - word structure. p.335-368. Standford: Standford University, 1978.
AXELROD, M. Noun incorporation in Koyukon Athapaskan. International Journal of American
Linguistics v.56.2, p.179 - 195. Chicago: University of Chicago Press, 1990. Disponível em:
http://www.jstor.org/stable/1265128
BAKER, Mark. The Mirror Principle and morphosyntactic explanation. Linguistic Inquiry v.16.3,
p. 373-415, 1985.
______. Incorporation: A theory of grammatical function changing. Ph.D. dissertation.
University of Chicago, 1988.
______. Is head movement still needed for noun incorporation: the case of Mapudungun?. Lingua v.
119, p. 148-165, 2009.
BELLETTI, A.; RIZZI, L. The Syntax of 'ne': Some Theoretical Implications. The Linguistic Review
v.1, p.117-154, 1981
BIONDI, R. Z.; FLECK, D. W. Body-Part Prefixation in Kashibo-Kakataibo: Synchronic or
Diachronic Derivation? International Journal of American Linguistics. nº 78, p. 385–409, 2012.
BOMHARD, A.; KERNS, J. C. The Nostratic Macrofamily: A Study Linguistic Ralationship.
Berlim: Walter de Gruyter, 1994.
BURZIO, L. Italian Syntax: A Government-Binding Approach. Dordrecht: Reidel, 1986.
CABRERA, J. Curso universitario de lingüística general. Tomo I. Madrid: Editorial Sintesis, 2000.
CAMPBELL, L. American Indian Languages. The Historical Linguistics of Native America.
New York/Oxford: Oxford University Press, 1997.
CAMPBELL, L. Typological characteristics of South American indigenous languages. The
Indigenous Languages of South America: a comprehensive guide. (ed.) CAMPBELL, Lyle.;
GRODONA, V. Berlim: Walter de Gruyter, 2012.
CASH, P. Nez Perce verb morphology. Tucson: University of Arizona Press, 2004.
CHOMSKY, N. Regras e representações. Rio de Janeiro: Zahar,1981.
COMRIE, B. Language universals and linguistic typology. 2ª ed. Chicago: University of Chicago
Press, 1989.
DERBYSHIRE, D. Morphosyntactic areal characteristics of Amazonian languages. International
Journal of American Linguistics nº 53, p.311-326, 1987.
DERBYSHIRE, D.; PULLUM, G. (ed.). Handbook of Amazonian Languages. vol.3&4. Berlim:
Walter de Gruyter, 1998.
75
DIXON R. Ergativity. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
EIJCK, J. V. Discourse Representation Theory. 2005. Disponível em:
http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.80.6914&rep=rep1&type=pdf. Data de
acesso: 18/12/2016.
FARKAS, D.; DE SWART, H. The semantics of incorporation: from argument structure to
discourse transparency. Stanford, CA: CSLI Publications, 2003.
FLECK, D. W. Body-part prefixes in Matses: Derivation or noun incorporation? International
Journal of American Linguistics, nº 72, p. 59-96, 2006.
FRANCHETTO, B. Ergativity and Nominativity in Kuikúro and Other Carib Languages. Amazonian
linguistics: Studies in lowland South American languages. PAYNE, Doris L. (ed.). Austin:
University of Texas Press, 1990.
GERDTS, D. B. Incorporation. In: SPENCER, A.; ZWICKY, Arnold M. (ed.). The Handbook of
Morphology. Oxford: Blackwell, 1998.
GILDEA, S.; QUEIXALÓS, F. Ergativity in Amazonia. Amsterdam: John Benjamins Publishing
Company, 2010.
GIVÓN, T. Functionalism and grammar. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing
Company, 1995.
GOMES, D. M. Estudo morfológico e sintático da língua Mundurukú (Tupi). Ph.D. dissertation.
Universidade de Brasília, 2006.
______. Incorporação nominal em Mundurukú (Tupí). Amerindia nº. 31. Paris, 2008
GUILLAUME, A. Grammar of Cavineña. Série Mouton Grammar Library, vol. 44. 1ª ed.
Berlim/Nova Iorque: Mouton de Gruyter, 2008.
HASPELMATH, M. The indeterminacy of word segmentation and the nature of morphology and
syntax. Folia Liguistica v.45.1, p. 31-80. Berlin: Walter Mouton de Gruyter, 2011.
______. Do we know what “noun incorporation” is?. 2012. Disponível em:
http://dlc.hypotheses.org/135. Data de último acesso: 20/02/2017.
HAUGEN, J. D. Issues in Comparative Uto-Aztecan Morphosyntax. PhD dissertation, University
of Arizona, 2004.
HUMBOLDT, W. Über die Verschiedenheit des menschlichen Sprachbaus und seinen Einfluss
auf die geistige Entwicklung des Menschengeschlechts. Berlin: Druckerei der Königlichen
Akademie der Wissenschaften, 1836
KAMP, H.; REYLE, U. From Discourse to Logic. Dordrecht: Kluwer, 1993.
KROEBER, A. Noun incorporation in American languages. In: XVI Internationaler
Amerikanisten-Kongress. p, 569-576. Hartleben: Vienna & Leipzig, 1909.
LANGACKER, R. W. Cognitive Grammar: A Basic Introduction. New York: Oxford University
76
Press, 2008.
LEHMAN, W. P. (ed.). Syntactic Typology Studies in the Phenomenology of Language.
Amsterdam: John Benjamins Publishing Company,1981.
LIEBER, R.; ŠTEKAUER, P. (eds.). The Oxford handbook of compounding. New York: Oxford
University Press, 2009.
MASSAM, D. Pseudo Noun Incorporation in Niuean. Natural Language and Linguistic Theory v.
19, p. 153-197. Netherlands: Springer, 2001.
MEILLET, A. L’évolution des formes grammaticales. Scientia (Rivista di Scienza) v. 26, P. 130-
148. Paris: Librairie: Ancienne Honoré Champion, 1912.
MITHUN, M. The evolution of noun incorporation. Language v.60.4, p. 847 - 894. Washington:
Linguistic Society of America, 1984.
______. On the nature of noun incorporation. Language v.62.1, p. 32 - 37 Washington: Linguistic
Society of America,1986. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/415599
______. Ergativity and language contact on the Oregon Coast: Alsea, Siuslaw and Coos. In:
SIMPSON, Andrew K. (ed.). Proceedings of the Twenty-Sixth Meeting of the Berkeley Linguistics
Society, special issue on the Syntax and Semantics of the Indigenous Languages of the Americas,
p.77-95. Berkeley: Berkeley Linguistics Society, 2000.
______; CORBETT, G. The effect of noun incorporation on argument structure. Boundaries of
Morphology and Syntax. p.49 - 73. Amsterdan: John Benjamins Publishing Company, 1999.
MOHANAN, T. Wordhood and Lexicality: Noun Incorporation in Hindi. Natural Language and
Linguistic Theory v.13.1, p. 75-134. Springer, 1995.
MURO, A. Noun incorporation: a new theoretical perspective. Ph.D Dissertation. Dipartimento
di Discipline Linguistiche, Comunicative e dello Spettacolo. Università degli Studi di Padova, 2009.
OZTURK, B. Pseudo Incorporation Of Agents. In: The 28th Penn Linguistics Colloquium.
Pennsylvania, 2004. Disponível
em: http://www.ling.upenn.edu/Events/PLC/plc28/abstracts/38.pdf.
Data de acesso: 18/12/2016.
PERLMUTTER, D. Impersonal passives and the Unaccusative Hypothesis. Proc. of the 4th
Annual Meeting of the Berkeley Linguistics Society. UC Berkeley. p. 157-189, 1978.
PRAÇA, W. N. Morfossintaxe da língua tapirapé (Família Tupi-Guaraní).Phd dissertation.
Universidade de Brasília. Brasília, 2007.
QUEIXALÓS, F. Incorporation nominale en sikuani et en katukina-kanamari. Ameríndia, v.31, p.
61-86, 2008.
RAMIREZ, H. Ergatividade em Yanomami. Ergatividade na Amazônia II, Atas do segundo
encontro do projeto Manifestações da ergatividade na Amazônia. QUEIXALÓS, F. (ed.). Brasília:
Universidade de Brasília, 2003.
77
ROSE, F. L'incorporation nominale en émérillon: une approche lexicale et discursive. Amerindia
v.31, p.87 - 112. Paris, 2008.
ROSEN, S. T. Two Types of Noun Incorporation: A Lexical Analysis. Language. nº 65, p. 294-317,
1989.
SAEED, J. Somali. Amsterdam: Jonh Benjamins, 1999.
SAPIR, E. The problem of noun incorporation in American languages. American Anthropologist v.
13, p.250 - 282. Nova Jersey: Wiley, 1911.
SCIULLO, A.M. D.; WILLAMS, E. On the Definition of Word. Cambridge, Mass.: MIT Press,
1987.
SIEWIERSKA, A. Person agreement and the determination of alignment. Transactions of the
Philological Society. vol. 101:2. p. 339-370. 2003
TIMS, J. W. Grammar and Dictionary of the Blackfoot Language in the Dominion of Canada.
London: Society for Promoting Christian Knowledge, 1889.
TRABANT, J. Apéliotes, oder der Sinn der Sprache. München: Wilhelm Fink. 1986.
TRAVIS, L. Parameters and effects of word order variation. Tese de doutorado. Massachusetts
Institute of Technology. 1984.
VAN GEENHOVEN, V. Semantic Incorporation and Indefinite Descriptions. CSLI, 1998.
VELÁZQUEZ-CASTILLO, M. Noun incorporation in Guarani: a functional analysis. Linguistics
v.33, p.673 - 709. Berlim: Walter de Gruyter, 1995.