assunto encerrado - italo calvino

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  • ITALO CALVINO

    ASSUNTO ENCERRADODiscursos sobre literatura e sociedade

    Traduo:ROBERTA BARNI

  • Obras do autor publicadas pela Companhia das Letras

    Os amores difceisO baro nas rvoresO caminho de San GiovanniO castelo dos destinos cruzadosO cavaleiro inexistenteAs cidades invisveisAs cosmicmicasO dia de um escrutinadorEremita em ParisFbulas italianasUm general na bibliotecaMarcovaldo ou As estaes na cidadeOs nossos antepassadosPalomarPerde quem fica zangado primeiroPor que ler os clssicosSe um viajante numa noite de invernoSeis propostas para o prximo milnio Lies americanasSob o sol-jaguarTodas as cosmicmicasA trilha dos ninhos de aranhaO visconde partido ao meio

    Contos fantsticos do sculo XIX (org.)

  • SUMRIO

    ApresentaoO miolo do leoNatureza e histria no romanceO mar da objetividadeTrs correntes do romance italiano de hojePavese: ser e fazerDilogo de dois escritores em criseA belle poque inesperadaOs beatniks e o sistemaO desafio ao labirintoUma serenidade amargaA anttese operriaNo vou mais botar a boca no tromboneItaliano, uma lngua entre as outras lnguasA antilnguaVittorini: planejamento e literaturaFilosofia e literaturaDefinies de territrios: o cmicoPara quem se escreve? (A prateleira hipottica)Ciberntica e fantasmas (Notas sobre a narrativa como processo combinatrio)A relao com a LuaDuas entrevistas sobre cincia e literaturaPor uma literatura que pea mais (Vittorini e 68)A literatura como projeo do desejo (Para a Anatomia da crtica, de Northrop Frye)A mquina espasmdicaO mundo s avessasDefinies de territrios: o ertico (O sexo e o riso)Definies de territrios: o fantsticoO romance como espetculoPara Fourier 1. A sociedade amorosaPara Fourier 2. O ordenador dos desejosPara Fourier 3. Despedida. A utopia pulviscularO extremismoO olhar do arquelogoOs noivos: o romance das relaes de foraUm projeto de pblicoOs deuses da cidadeUsos polticos certos e errados da literaturaA pena em primeira pessoa (Para os desenhos de Saul Steinberg)

  • O charuto de GrouchoOs palavresNotas sobre a linguagem polticaOs nveis da realidade em literatura

  • APRESENTAO

    Neste volume reuni escritos que contm declaraes de potica, planejamentos de rotas aseguir, balanos crticos, organizaes de conjunto do passado e presente e futuro, assim comoos fui elaborando e guardando nos ltimos 25 anos. O pendor recorrente a formular programasgerais, o qual esses escritos testemunham, sempre teve o contrapeso da tendncia a esquecerlogo, a no voltar mais ao assunto. Portanto, podemos nos perguntar por que motivo euformulava os tais planos operacionais: no para mim, j que em meu trabalho pessoal deescritor quase nunca punha em prtica o que tinha pregado; no para os outros, j que nuncative vocao para mestre, promotor ou agregador. Diria que meu objetivo talvez fosseestabelecer algumas linhas gerais que servissem de pressuposto a meu trabalho e ao dosoutros; postular uma cultura como contexto em que situar as obras ainda a escrever.

    A ambio juvenil de que parti foi a do projeto de construo de uma nova literatura quepor sua vez servisse para a construo de uma nova sociedade. As correes e transformaesque aquelas expectativas sofreram vo aparecer da sucesso dos textos aqui reunidos.Certamente o mundo que hoje est diante de meus olhos no poderia ser mais oposto imagemque aquelas boas intenes construtivas projetavam para o futuro. A sociedade manifesta-secomo colapso, como desmoronamento, como gangrena (ou, em seus aspectos menoscatastrficos, como vida do dia a dia); e a literatura sobrevive dispersa nas fissuras e nasdesconjunes, como conscincia de que nenhuma runa ser to definitiva a ponto de excluiroutras.

    O personagem que toma a palavra neste livro (e que, em parte, se identifica com aquele euprprio representado em outras sries de escritos e de atos, em parte dele se descola) entraem cena nos anos 50, procurando apossar-se de uma caracterizao pessoal no papel quenaquela poca dominava o cenrio: intelectual engajado. Acompanhando seus movimentosno palco, observaremos como nele, visivelmente, embora sem viradas bruscas, a identificaocom o papel comea a falhar aos poucos, com a dissoluo da pretenso de interpretar e guiarum processo histrico. Nem por isso desanima sua aplicao em procurar compreender eindicar e compor, mas aos poucos vai tomando mais relevncia um aspecto que, observando-se bem, estava ali desde o incio: o senso do complicado e do mltiplo e do relativo e dofacetado que determina uma postura de sistemtica perplexidade.

    colocando-se como experincia finalizada que a sequncia destas pginas comea a tomarforma, a tornar-se uma histria que tem seu sentido no desenho de conjunto. Sendo assim,posso agora reunir estes ensaios em volume, ou seja, posso aceitar rel-los e lev-los a serrelidos. Para fix-los em seu lugar no tempo e no espao. Para dar-lhes aquele afastamentonecessrio para que possam ser observados na justa luz e perspectiva. Para reencontrar ali oandamento das transformaes subjetivas e objetivas, e das continuidades. Para compreendero ponto em que estou. Para pr um ponto-final. Para encerrar o assunto.

    Maro de 1980

  • O MIOLO DO LEO

    Conferncia lida em Florena no dia 17 de fevereirode 1955, para a seo florentina do Pen Club, aconvite de Anna Banti; foi repetida a seguir emdiversas cidades italianas. Publicada na revistaParagone, n 66, junho de 1955.

    1 . Fala-se com certa frequncia de um problema do personagem em nossa literatura dehoje: personagem positivo ou negativo, novo ou velho. uma discusso que, se para algunspode parecer ociosa, sempre ser cara, ao contrrio, aos que no separam seus interessesliterrios de toda a complexa rede de relaes que liga entre si os diversos interesseshumanos. Porque, entre as possibilidades que se abrem para a literatura agir na histria, esta a mais sua, talvez a nica a no ser ilusria: compreender para que tipo de homem ela,histria, com seu labor mltiplo, contraditrio, est preparando o campo de batalha, e ditar-lhe a sensibilidade, o impulso moral, o peso da palavra, a maneira como ele, homem, deverolhar sua volta no mundo; aquelas coisas, enfim, que somente a poesia e no, porexemplo, a filosofia ou a poltica pode ensinar.

    Claro que esse tipo de homem que uma obra ou toda uma poca literria pressupe,subentende, ou melhor, prope, inventa, pode at no ser um daqueles personagens ntegrosque so prerrogativa do romance ou do teatro, mas vivos tambm, ou talvez sobretudo; aquelapresena moral, aquele protagonista no menos identificado que figura nas poesias lricas ounas prosas dos moralistas, aquele verdadeiro protagonista que tambm em tantos romancistas,comeando por Manzoni ou pelo Verga maior, no se identifica com nenhum dos personagens.

    Portanto, antes de nos perguntarmos se haveria personagens caractersticos da literaturaitaliana de hoje e quais seriam eles , temos de comear a nos perguntar se haveria, e qualseria, um protagonista verdadeiro, um tipo de homem que ela, mesmo que implicitamente,pressuponha ou proponha.

    2. A dificuldade para dar uma resposta a essa pergunta a mesma que deparamos toda vezque colocamos, para a literatura italiana de hoje, uma questo geral, um julgamento sobre suasituao, uma previso quanto linha de seu desenvolvimento. Esse perodo literrio a quemuitos apem a marca imprecisa do neorrealismo e que, seja l como for, caracteriza-se poruma retomada de interesses num sentido realista e por um predomnio em termos dequantidade e ressonncia da narrativa sobre os outros meios de expresso, parece recusar-se a deixar-se simbolizar e resumir numa fisionomia moral tpica, num carter humanoespecfico.

    E no verdade que a tendncia a expressar-se em caracterizaes precisas de homens emulheres tenha sido sobretudo do Oitocentos romntico, com a aura do heri ou os altos ebaixos do filho do sculo, na Itlia, aps os ltimos rebentos da estirpe romntica, como o

  • homem dannunziano ou o homem crepuscular, a histria literria recusa-se a deixar-se lernesse sentido. Porque justamente a literatura do passado recentssimo, a hermtica, comopoucas antes to desprovida de pessoas, uma literatura de paisagens, de objetos, de estados denimo sombrios, uma literatura da ausncia, como foi dito, at mesmo ela propunha umaimagem de homem bem caracterizada (ainda que caracterizada negativamente, para nosremetermos a um verso famoso) e ligada (embora negativamente) aos tempos. O homemhermtico, o homem que no se deixa subjugar por outras razes a no ser pelas de seusmnimos sobressaltos previsveis at a medula, que descobre sua verdade sempre margemdo que entulha o cenrio, esse homem sovina de sentimentos e sensaes, mas sem outraconcretude alm deles, esse homem sem pontos por onde possa ser pego, protegido por umacarapaa spera e siliciosa ou escorregadia como uma enguia, esse homem que pareciaconstrudo propositadamente para atravessar tempos infaustos e realidades nocompartilhadas com um mnimo de contaminao e a um s tempo com um mnimo de risco,foi precisamente um caso tpico de proposta da literatura para resolver os problemas dasrelaes do homem com o seu tempo, numa oposio histria que o juzo de hoje nos revelaser mais complexa do que parecia, ambivalente.

    3. Temos de dizer que o homem hermtico o ltimo personagem verdadeiro que aliteratura italiana soube expressar? Claro que no penaremos para descobrir sua presena nocentro das experincias dos mestres da nova narrativa, precisamente nas obras por meio dasquais se deu uma sada do clima hermtico rumo s novas poticas realistas.

    O abstrato furor do Silvestro de Conversa na Siclia [Conversazione in Sicilia] o dohomem que sente a tragdia da histria mas s pode se mover margem dela, participar delaapenas liricamente; e decerto no mais integrado na realidade histrica o Ene Dois de Oshomens e os outros, por mais que maneje bombas e frequente reunies.

    E Pavese, que em polmica anti-hermtica escreve poemas com operrios e barqueiros ebebedores, nunca nos deixa esquecer que o protagonista no o operrio ou o barqueiro ou obebedor, mas o homem que os est observando de vis, da mesa oposta da taberna, e quegostaria de ser como eles mas no sabe. o confinado Stefano, o professor Corrado deAntes que o galo cante [Prima che il gallo canti], o homem que sabe que tem de ficar margem lendo a histria que os outros vivem, com os olhos meta-histricos do poetaintelectual.

    E assim, naquele que definiremos como o filo florentino ou toscano de nossa novanarrativa, nem tanto a minuciosa anotao realstica que conta de fato, mas o amparo dememria ou nostalgia por meio do qual ela filtrada, a sutil amargura da precariedade de umaposse ou de uma relao: sempre o homem hermtico, um tantinho mais cordial, cominquietudes mais discretas que aquelas de Vittorini e Pavese, a dominar a cena.

    Ainda no falamos do escritor que antes de todos eles comeou a escrever romances e quemais que qualquer outro apostou explicitamente numa representao tpica dos homens de seutempo: isto , Moravia. Mas, mesmo nele, como no aproximar a no participao moral deseus protagonistas, sua careta de habitual e tedioso desgosto, aceito como um dado que nopode ser facilmente eliminado, como no aproxim-la do tema que prprio de toda a suagerao literria: o tema justamente da no adeso, da relao negativa com o mundo?

  • A narrativa italiana contempornea nasceu, portanto, sob o signo de uma integraomalograda: de um lado, o protagonista lrico-intelectual-autobiogrfico; do outro, a realidadesocial popular ou burguesa, metropolitana ou agrcolo-ancestral. As tentativas deBildungsroman poltico, as histrias dos noviciados conspirativos ou partigiani1 de umprotagonista lrico-intelectual em contato com o proletariado, que se aglomeraram nosprimeiros anos aps a Libertao, pareceram o caminho mais natural para testemunhar aResistncia, mas no conseguiram representar com acentos de verdade nem o tormento interiordos protagonistas nem aquele pico e coletivo do povo.

    4. Houve tambm quem, embora literato da cabea aos ps, no sentiu nenhum complexo deinferioridade diante da histria, mas, antes, teve certeza de que foi ele a nutri-la e enriquec-lacom toda a sua fantasia e cultura. o caso de Carlo Levi, para quem o dissdio entre o eu-intelectual e a descoberta da realidade italiana, entre mundo literrio e mundo real, enfrentado com a euforia de quem considera sua interpretao e transfigurao simblica achave segura da realidade. E assim, mesmo no drama da derrota da iluso dos intelectuais depoder governar a realidade italiana, que Carlo Levi representou descrevendo em O relgio2 aqueda do governo Parri, ele acaba fechando seu balano no ativo, porque a verdade est dolado da fantasia, embora desmentida pela poltica real. Est claro, porm, que os termos dodissdio no mudaram, embora aqui, em lugar do costumeiro eu-intelectual entristecido edesajeitado, haja um intelectual feliz de assim o ser, e que se move totalmente vontade nomundo popular e naquele da poltica militante.

    No por acaso o jovem que foi mais caro a Carlo Levi, aquele que mais soube aprenderdele, isto , Rocco Scotellaro, tinha essa agilidade, extraordinria entre os escritores e ospoetas italianos, de realizar-se concretamente e no decorativamente na vida poltica; foiprefeito, ainda que por poucos anos, de seu vilarejo, no tinha problemas de comunicao como povo, de rompimento de um isolamento, porque no meio de sua gente estava perfeitamente vontade; alis, realizava-se falando com seus concidados e fazendo-os falar. Mas, tambmpara ele, o tema verdadeiro tanto de sua poesia como de sua narrativa a derrota no territriopoltico prtico e a revanche no plano da transfigurao lrica. De resto, o belo romance quedeixou inacabado, Luva puttanella, precisamente a histria de sua demisso como prefeito,e seu retiro no vinhedo do pai e a reconsiderao de sua vida, de tal forma que Carlo Levibem pode afirmar que ele tem o mesmo esquema e significado de O relgio.

    5. Se na Frana a narrativa ainda enfrenta de peito aberto as discusses entre osintelectuais, sua relao com a direo dos movimentos histricos, e se consegue impor ateno geral a problemtica de seus mandarins, a Itlia, que nunca conheceu aIntelligenzen-roman, o romance que narra de escritores e artistas e de suas discusses eideias, la Mann ou la Huxley, ainda assim tem uma literatura que, consciente ouinconscientemente, muito se ressente da condio precria do intelectual na sociedade de hoje.Diramos que, na Itlia, o fato de ser um intelectual sentido como um desastre, como umacondio negativa sem resgate, que nem sequer inspira alegorias poderosas como as de Kafkaou Joyce, mas ainda um tormento surdo e limitado. Pensemos na Rssia de Dostoivski e deTchekhov; ali, porm, o intelectual era explicitamente representado como tal, com toda a

  • bagagem de suas ideias. Talvez o Lukcs que tanto se preocupa com a fisionomia intelectualdo personagem no sentir interesse por uma literatura to pouco caracterizada nesse sentido;ainda assim, ela constituiria decerto um campo muito rico para indagaes como as dele.

    6. Ns, com o receio que temos podemos dizer congnito de cair em esquematizaessociolgicas, no nos aventuraremos por esse territrio. A no ser para observar en passantque as poucas excees a essa recusa de representar nem digo a cultura, mas at apenas ainteligncia, os poucos exemplos de determinao intelectual ou moral ou de ao, ns osencontramos nos personagens femininos de alguns de nossos escritores, e os encontramos commuita frequncia, ora realizados poeticamente, ora apenas no plano das intenes, nos livrosdas escritoras.

    O certo que o mais belo personagem de um escritor que no acreditava nos personagens,Pavese, aquela Cllia de Entre mulheres ss (em O belo vero), que vai abrir uma loja demoda em Turim, aquela mulher trabalhadora, autossuficiente, amarga, experiente, aindacuriosa dos vcios e do valor da sociedade que a cerca e piedosa com eles, mas couraadapor dentro como quem se fez sozinha, a dona que sabe reconhecer um homem de valor emBeccuccio, o pintor, e o leva consigo para jantar e para a cama uma nica noite, e s, porquesabe que uma relao to simples e honesta o mximo que se pode ter sem acabar estragandotudo; essa Cllia que pode parecer fria e egosta mas que, no obstante, tanto se importa com asorte de Rosetta, a juventude e a pureza decorao num mundo que tudo contamina e devasta.Pavese, que, devido quela sua triste violncia autodestrutiva, costumava dar de si prprioimagens limitadoras e falseadas (at aquelas cruis do dirio), decerto nunca soube expressar-se num personagem autobiogrfico to completo (Cllia cest moi!), to positivo e topavesiano como nessa figura de mulher. Em nenhum personagem, exceto em Cllia, Pavesesoube nos falar daquele que era o elemento fundamental de sua vida, sua verdadeira tbua desalvao: o trabalho, seu amor extraordinrio, teimoso, devorador pelo trabalho (a outra facedo dirio), sua desdenhosa altivez de trabalhador experiente e incansvel, seu realizar a simesmo na criao individual como na participao de um processo produtivo.

    Mas esse personagem positivo, que surgiu quase sua revelia, num conto que no podemosdizer que amamos, debaixo daquela aparncia feminina no descrita que penamos paraimaginar, tal a intensidade com que por baixo dela transparece o porte seco, spero e lenhosodo autor, se em si tem algo de novo, por outro lado s reafirma os termos de nosso discurso.Para criar um personagem inteiro, e no apenas permeado de lirismo, foi preciso imagin-lonuma figura de mulher eis uma nova comprovao de que a figura tradicional do intelectualest derrotada, e que o encontro do poeta com a realidade proposto pela gerao crescida noclima do hermetismo revelou seu carter de voluntarismo, no se resolveu numa integrao,mas numa derrota.

    7. Quase para confirmar esse duro veredicto, eis que nos narradores da gerao mais jovemo personagem do eu-lrico-intelectual no existe mais, parece ter sido drasticamente abolido.O mundo real, o mundo dos outros, chega ao primeiro plano, mas quase nunca um mundointerpretado, estudado de maneira a definir os motivos diretores, as linhas de movimento, no um mundo refletido por uma experincia racional; , antes, um mundo que precede a

  • conscincia, bruto, aceito em sua totalidade, sem inventrio, ora com a exaltao de umviolento enlevo afetivo, ora com a passividade de quem nada mais pode fazer a no serregistrar objetivamente. No que o eu no esteja nos jovens narradores, mas um eu que tratade no formular pensamentos, de no mostrar outros interesses alm dos elementares, poucomais que fisiolgicos, de no participar do que acontece diante de seus olhos com algo que separea a um juzo moral: o ponto de vista do narrador quer distanciar-se o mais possvel deum ponto de vista intelectualista.

    Nesse clima, Vittorini convoca em suas orelhas a cruzada pelo triunfo do vitalismovirgem e irrefletido, da espontaneidade no contaminada por defesas culturais, do testemunhoainda quente de vida: potica que tem uma histria prpria bem definida na literatura dosltimos cinquenta anos, e que parece mesmo feita de propsito para expressar a aniquilaodo poeta, do homem, diante da primazia das coisas. Mas essa rendio vitalidade e incultura no somente um postulado crtico de Vittorini: alguma coisa que est no ar, ummal do sculo atual que se dissemina nos escritos dos jovens, publicados ou inditos. E, seobservamos os novos protagonistas movendo-se entre carnificinas, estupros e histrias atrozesde misria, e, se a eles prprios acontecer, s vezes, de quebrar crnios ou rasgar regaos oupedir esmola sempre com uma obtusidade uniforme e tranquila de jovens brutos, no nosimpressionamos: sabemos que isso nada mais que o extremo disfarce do protagonista lrico-intelectual, a quem no resta nenhuma outra carta em que apostar a no ser na anulao de simesmo.

    8. preciso, porm, observar que nem toda essa narrativa que aposta na representaoobjetiva do mundo popular e na linguagem alimentada por contribuies dialetais deve serinscrita na potica da ignorncia feliz. Pois outra potica atua com os mesmos instrumentos, e a da esperteza refinada, que aposta na utilizao pura do material lingustico plebeu, nopastiche estilstico e de jargo, no revigoramento por meio de um vocabulrio denso ecarregado dos meios de expresso extenuados. Talvez essas duas poticas no sejam toopostas como parecem: ambas pressupem uma sensibilidade cultivada, um gosto, antes umagrado, pelo primitivo, seja no escritor com sua esperteza refinada seja no leitor com a ignorncia feliz. Corre nos tnues textos exemplares da primeira ou da segunda umaespcie de jogo de piscadelas recprocas, de enganos tramados pelo escritor refinado scostas do leitor ingnuo, apresentando-lhe uma obra que parece rudimentar mas no , ou peloleitor refinado s costas do escritor rudimentar, apreciando nele alguma coisa que ele nosabia estar expressando. Perpetra-se, portanto, nessas ambguas operaes criativas e crticasa anttese entre os dois termos: conscincia intelectual e mundo popular, e aqui mais do quenunca a conscincia intelectual se curva ao mundo popular como a qualquer coisa contrapostae estranha, precisamente ao aceit-lo como um espetculo sugestivo, ao contentar-se com suastintas speras e vivazes e ao buscar ali finezas ocultas.

    9. A retomada da moda da poesia dialetal e o experimento de uma narrativa tambm emdialeto podem, igualmente, ser colocados sob o signo de uma ou de outra das posturas degosto que vimos: porm, brotam acreditamos no como movimentos necessrios, mascomo sinais de involuo e cansao. A lngua literria deve, isto sim, manter-se o tempo todo

  • atenta aos vulgares falados, e alimentar-se deles e renovar-se com eles, mas no deve seanular neles, nem imit-los por brincadeira. O escritor deve poder dizer mais coisas das queos homens de seu tempo dizem normalmente: deve elaborar para si uma lngua a maiscomplexa e funcional possvel para a prpria poca: no fotografar com deleite os dialetos,que so, sim, repletos de sabor e vigor e sabedoria, mas tambm de ofensas toleradas, delimitaes impostas, de hbitos de que no sabemos nos livrar.

    10. Mas a retomada dialetal deve tambm ser revista no quadro mais complexo da retomadado regionalismo. O verismo regional, que teve um sentido histrico claro nos anos que seseguiram unificao da Itlia, como tomada de conscincia das realidades to diferentes eno comunicantes da nova nao, teve novo impulso, tambm esse bem motivado, quando depois de o fascismo ter por tantos anos considerado a Itlia como impossvel de serobservada ou conhecida se sentiu a necessidade de uma descoberta detalhada e profundade nosso pas. O instrumento que teria sido mais idneo para satisfazer essa nova exigncia,isto , uma literatura de tipo ensastico e problemtico, em que o escritor tornasse a ser, comomuitos de nossos antigos, algum que refletisse sobre histria e poltica, foi preterido aindaque depois do afortunadssimo caso exemplar do Cristo parou em Eboli em favor de umvoltar-se quase exclusivo das energias rumo ao romance e ao conto. Mesmo essa primazia danarrativa, porm, essa criao fantstica e de fundao to complexa como o romance realista,s pode nascer de um solo bem arado pelas ideias. E, antes de tantos romances de tramaregional e social, seriam teis livros de interpretao e raciocnio sobre pases e costumes einstituies e problemas. Hoje, ao contrrio, delega-se ao romance e ao conto a tarefa derepresentar o verdadeiro aspecto desta ou daquela localidade geogrfica. E umasolicitao errada, porque o romance vive na dimenso da histria, no da geografia. Overdadeiro tema de um romance dever ser uma definio de nosso tempo, no de Npoles oude Florena; dever ser uma imagem que nos explique nossa insero no mundo. Os lugares,dignos de todo o amor e de toda a preciso, so necessrios ao escritor como formasconcretas daquilo que na histria se move ou no qual a histria flui, mas no podemos coloc-los como contedo do romance esses lugares e os hbitos locais, e o verdadeiro aspectodesta ou daquela cidade ou populao. no fazer histria que o escritor deve apostar, aindaque partindo da realidade do lugar que mais ama e conhece: e a histria, ensinaram-nos,sempre histria contempornea, interveno ativa na histria futura.

    Vo dizer que no h realmente ningum que aposte numa descrio geogrfico-sociolgica:os escritores mais ligados aos lugares buscam na expresso de um sentimento, de um ritmo devida, aquele que o acento secreto e autctone. Mas precisamente nesse excesso de comoo,nessa necessidade de excitao nostlgica est a primeira e verdadeira recusa da histria: no a comoo, no o enlevo afetivo o estado mais apropriado para entender o mundo de hoje:nesse ponto, tambm estamos no vitalismo romntico, na vaga mstica coral. s buscas de umdeus desconhecido no confuso ritmo das cidades novas e antigas, preferimos a busca dealguma semente sovina de verdade no ritmo bem mais escandido e linear de uma existncia, deuma aventura, de um amor, diante de um pano de fundo que fique atrs dos personagens, no selhes sobreponha, e que, justamente por esse estar atrs, estar margem, ser de poucos sinais,adquira verdade e evidncia.

  • 11. As poticas que examinamos ultimamente e que tendem a uma objetividade semintervenes de ordem racional, sem pretenso de julgar, demonstrar, significar, so apoiadaspor alguns como afirmaes de um desejo de honestidade superior, de um nolite judicare,como defesa dos perigos de um engajamento que predetermina a postura do escritor diante dosfatos, como polmica contra o voluntarismo, e particularmente contra o voluntarismo poltico.

    Acreditamos que o engajamento poltico, tomar partido, comprometer-se, seja, muito maisque um dever, uma necessidade natural do escritor de hoje e, antes ainda que do escritor, dohomem moderno. A nossa no uma poca que possa ser compreendida au dessus de lamle; ao contrrio, tanto maior ser sua compreenso quanto mais a vivermos, quanto mais frente nos situarmos na linha de fogo. Mas certo que no nos reconhecemos no voluntarismoexpressionista que intumesce as veias e a linguagem num impulso de lirismo irracional, quasede mstica comunho com as foras coletivas. Nem nos reconhecemos em maior medida nosexperimentos de uma literatura que, com modstia excessivamente ostentada, identifique suafuno histrica como exemplificativa e pedaggica.

    Quem sabe como complexa, delicada, difcil e rica a atividade poltica, e por isso a ama eprocura pratic-la, quem conhece os tesouros do engenho, da fineza, da pacincia e damoralidade necessrios para o sucesso de uma luta do trabalho sempre ficar insatisfeito eaborrecido com o escritor que imita, de fora, as atuaes do lder poltico e sindical, ou com ocrtico que com maior facilidade ainda lhe pede que faa isto: que passe da anlisecrtica denncia, indicao dos remdios, abordagem de luta, crtica dasdeficincias, soluo positiva, e assim por diante. Essa tendncia por parte da literatura eda arte mimese pura e simples das organizaes de partido e das Cmeras do Trabalhorevela no apenas infantilismo poltico, mas um resduo de presuno intelectual, na qualainda encontramos o velho dualismo: o escritor, quase como se enciumado do lder poltico,da relao prtica que este tem com a realidade, procura repetir o que o lder poltico faz e oprocedimento prprio de seu pensamento, e repeti-lo no na realidade, mas no papel,propondo-se problemas exemplares de luta sindical e de organizao e resolvendo-os damaneira que lhe parece a mais correta e eficiente. Ilude-se ele ao pretender dar lies, realizaruma obra que equivalha de algum modo quela que o poltico realiza de fato. Essa iluso deescritores, e sobretudo de crticos, tem suas razes na tradio de pensamento da velha social-democracia, em sua identificao da pregao com a prtica, da educao com a revoluo, eesse tambm um caminho pelo qual se perpetra a derrota do intelectual diante da realidade.Os fatos reais sempre so maiores, mais verdadeiros e instrutivos que os narrados; e osmilitantes representados nos livros continuam muito inferiores em evidncia humana e emnovidade histrica, se comparados queles que, aos poucos e a muito custo, formam-se narealidade.

    12. Ns tambm estamos entre os que acreditam numa literatura que seja presena ativa nahistria, numa literatura como educao, de grau e qualidade insubstituveis. E justamentenaquele tipo de homem ou de mulher que pensamos, naqueles protagonistas ativos da histria,nas novas classes dirigentes que se formam na ao, em contato com a prtica das coisas. Aliteratura tem de voltar-se para aqueles homens, tem de ensinar-lhes enquanto deles aprende,servir-lhes, e pode servir apenas numa coisa: ajudando-os a ser cada vez mais inteligentes,sensveis, moralmente fortes. As coisas que a literatura pode buscar e ensinar so poucas, mas

  • insubstituveis: a maneira de olhar o prximo e a si prprios, de relacionar fatos pessoais efatos gerais, de atribuir valor a pequenas coisas ou a grandes, de considerar os prprioslimites e vcios e os dos outros, de encontrar as propores da vida e o lugar do amor nela, esua fora e seu ritmo, e o lugar da morte, o modo de pensar ou de no pensar nela; a literaturapode ensinar a dureza, a piedade, a tristeza, a ironia, o humor e muitas outras coisas assimnecessrias e difceis. O resto, que se v aprender em algum outro lugar, da cincia, dahistria, da vida, como ns todos temos de ir aprender continuamente.

    13. Dissemos que uma relao afetiva com a realidade no nos interessa; no nos interessaa comoo, a nostalgia, o idlio, abrigos piedosos, solues enganosas para a dificuldade dohoje: melhor a boca amarga e um pouco torta de quem no quer de modo algum esconder-se darealidade negativa do mundo. Melhor, sim, desde que o olhar tenha humildade e perspicciasuficientes para ser continuamente capaz de apreender a vibrao daquilo que de sbito se nosrevela justo, belo, verdadeiro, num encontro humano, num fato de civilidade, na maneira comouma hora transcorre. Essa boca amarga e um tanto torta que a literatura da negao, a literaturada crise, do pessimismo programtico, do existencialismo desenhou no rosto do homem diantede um mundo de dissoluo e de massacre, no temos nimo ns que, ainda assim, noacreditamos na negatividade total do mundo de substitu-la por expresso mais hilria oumais melada ou radiosa. Essa conscincia de viver no ponto mais baixo e trgico de umaparbola humana, de viver entre Buchenwald e a bomba H, o ponto de partida de toda anossa fantasia, de todo o nosso pensamento. Mas no podemos suportar a arrogncia, ocinismo frio, o olhar de quem sabe tudo e no se queima, de quem no respeita ou admira ofazer, o ousar, o durar dos homens e das mulheres. No queremos atenuar em nada aconscincia aguda do negativo, justamente porque ela nos permite perceber como,continuamente debaixo dele, move-se e se atormenta alguma coisa, alguma coisa que nopodemos sentir como negativo, porque o sentimos como nosso, como o que sempre efinalmente nos determina.

    14. Num artigo de Gramsci encontramos, mencionada por Romain Rolland, uma mxima desabor estoico e jansenista, adotada como palavra de ordem revolucionria: pessimismo dainteligncia, otimismo da vontade. A literatura que gostaramos de ver surgir deveriaexpressar, na aguda inteligncia do negativo que nos cerca, a vontade lmpida e ativa quemove os cavaleiros nos antigos cantares ou os exploradores nas memrias de viagemsetecentistas.

    Inteligncia, vontade: de antemo propor esses termos significa acreditar no indivduo,recusar sua dissoluo. E ningum mais do que aquele que aprendeu a colocar os problemashistricos como problemas coletivos, de massa, de classe, e milita entre os que seguem essesprincpios, pode hoje aprender o valor da personalidade individual o quanto h nela dedecisivo, quanto em todo momento o indivduo rbitro de si e dos outros , pode conhecer-lhe a liberdade, a responsabilidade, a desorientao. Os romances que gostaramos deescrever ou ler so romances de ao, mas no por um resduo de culto vitalista ou energtico:o que nos interessa acima de qualquer outra coisa so as provaes que o homem atravessa eo modo como as supera. O molde das fbulas mais remotas: a criana abandonada no bosque

  • ou o cavalheiro que deve superar encontros com feras e feitios, esse molde continua sendo oesquema insubstituvel de todas as histrias humanas, continua sendo o desenho dos grandesromances exemplares, em que uma personalidade moral se realiza movendo-se numa naturezaou numa sociedade impiedosas. Os clssicos de que hoje mais gostamos esto no arco que vaide Defoe a Stendhal, um arco que abarca toda a lucidez racionalista setecentista. Gostaramosns tambm de inventar figuras de homens e mulheres cheios de inteligncia, de coragem e deapetite, mas nunca entusiasmados, nunca satisfeitos, nunca espertos ou soberbos.

    15. Pensamos numa revanche da inteligncia humana e racional contra dois de seus maioresinimigos: a esperteza intelectualista, sovina e alusiva, e o entusiasmo lrico irracionalista,pantesta e falsamente generoso. na poesia em versos pensamos que deveria se daressa operao. Mas ela no se dar enquanto ao concentrado rigor hermtico, que agora paraalguns recolhida a bandeira da civilizao das letras e erguida a da civilizao dasmquinas se disfara na perfeio abstrata e desumanizada da engrenagem industrial, dotubo cromado, se opuser somente a indiscriminada facilidade do entusiasmo coral dosepgonos whitmanianos. J vemos, no entanto, alguns sinais de uma poesia diferente, comoseria til hoje, feita de composies mais longas e complexas e construdas, sustentadas poruma trama de ideias, com aparecimentos de personagens e pocas e lugares. Gostariamos quea poesia fosse mais importante e robusta, que restabelecesse suas propores diante danarrativa, justamente para que a narrativa tambm possa ser mais importante e robusta.

    16. Retornar a uma considerao mais calma do lugar das ideias e da razo na obra criativasignificar o fim de uma situao devido qual o eu do escritor sentido como uma espciede maldio, de condenao. E isso s acontecer, talvez, no dia em que o intelectual seaceitar como tal, se sentir integrado sociedade, como parte funcional dela, sem mais ter deevadir-se de si ou dela, de disfarar-se ou castigar-se.

    Nossa gerao se esse termo tem algum sentido a que se reconhece no exame e noprograma de Giaime Pintor: nossa fora no poder ser sede de transcendncia, drama interiorna presena de um drama exterior to imponente; nossa fora s pode ser a experincia dessedrama, e aquela extrema frieza de juzo, aquela vontade tranquila de defender a prprianatureza de que Pintor, justamente, nos deu exemplo to lmpido, mesmo quando mais setransferiu para o plano da luta e da ao poltica.

    A rebelio contra a prpria natureza, caracterstica do intelectual que no consegueintegrar-se, a marca de condenao de tantos que ainda assim acreditam ser, gostariam deser, homens novos, renovadores da histria: falange frgil de heautontimorumenus, demoralistas, de emborcadores sistemticos de suas inclinaes de gosto, que querem fazer umainapetente presuno esnobe passar por rigor ideolgico, uma baixa presunohiperprovinciana por culto das tradies nacionais. Mas a renovao da histria deriva dehomens que no tm contas a acertar com a prpria natureza e educao, que se sabem partede um todo, sabem que mesmo os limites e os defeitos, se aceitos como tais, podem serlistados na coluna dos ativos, numa economia de valores mais complexa e movimentada.

  • 17. Um certo senso atvico de poupana, intensificado pela conscincia de que vivemosnuma poca de desperdcio desatinado, demanda que no amputemos nem sequer a menorparte de ns mesmos, e que procuremos nos valer o mais possvel daquilo que est para trs.

    O exemplo de Pintor, uma das tmperas humanas mais estranhas e opostas ao decadentismo, evaso, ambiguidade moral, e que ainda assim provinha de uma educao literria que eraa de todo decadentismo europeu, d testemunho de como os livros podem ser bons ou ruins,dependendo de como os lemos. Em toda poesia verdadeira existe um miolo de leo, umalimento para uma moral religiosa, para um domnio da histria. O rigor da linguagem, arecusa de toda complacncia romntica, o sentido da realidade previsvel e difcil, a noadeso s aparncias mais vistosas, a avara presena do belo e do bem esse o miolo deleo que Pintor, tradutor de Rilke, leitor de Montale, abocanhou da civilizao literria que oprecedera, essa a lio de um estilo que transferiu para a ao, para a inteligncia histrica.Ns consideramos essa sua operao como exemplar, e por meio dela toda aquelacivilizao das letras se nos apresenta sob luz menos declinante, em destaque mais firme equase orgulhoso. Assim gostaramos de encontrar por meio de toda aquela montanha deliteratura do negativo que nos sobranceira, daquela literatura de processos, de estrangeiros,de nuseas, de terras desoladas e mortos na tarde a coluna vertebral que sustenta a nstambm: uma lio de fora, e no de resignao condenao. Mas isso sem procurar adoarnada, ou adaptar ao prprio jogo quem no quer participar: porque aquilo que necessitamosdessa literatura precisamente aquele pouco de azedo que ela ainda contm, aquelesgrozinhos de areia que deixa entre nossos dentes.

    18. Alheios s tentaes do irracional e do obscuro, interessa-nos o caminho dos homensque partiram para a luta contra os monstros, ora enfrentando-os impassveis no territrioinimigo, ora disfarando-se de monstros eles prprios, ora desafiando-os, ora sucumbindo.Por isso continuamos a frequentar Thomas Mann, Picasso, Pavese, continuamos a marcar ospontos de suas vitrias e de suas derrotas: no seu decadentismo de que, de vez emquando, algum zelosamente nos adverte que nos interessa, mas o que neles ncleo dehumanidade racional, de uma clareza clssica que toca o fogo e no queima. Interessa-nos seuprocurar trabalhar com base em toda a problemtica de seu tempo, seu comparar os termosdas antteses mais dramticas, seu situar-se no ponto nevrlgico de uma cultura e de umapoca. No so a decadncia, a irracionalidade, a crueldade, a corrida para a morte da arte eda literatura que devem nos meter medo; so a decadncia, a irracionalidade, a crueldade, acorrida para a morte que lemos continuamente na vida dos homens e dos povos, dos quais aarte e a literatura podem nos tornar conscientes e talvez imunes, apontando-nos a trincheiramoral onde nos defendermos, a brecha atravs da qual passar ao contra-ataque. Estamos numapoca de alarme. No tomamos o carter terrvel das coisas reais pelo carter terrvel dascoisas escritas, no esquecemos que contra a realidade terrvel que devemos lutar, mesmoao nos favorecer das armas que a poesia terrvel pode nos dar. O medo das coisas escritas uma deformao profissional dos intelectuais que queremos deixar totalmente para eles. sempre com curiosidade e esperana e maravilha que o jovem, o operrio, o campons quetomou gosto pela leitura abre um livro novo. Sempre assim que gostaramos que tambmfossem abertos os nossos.

  • NATUREZA E HISTRIA NO ROMANCE

    Indito. Conferncia com leituras de pginas deromances famosos, proferida pela primeira vez emSanremo, no dia 24 de maro de 1958, e depoisreplicada em diversas cidades italianas. O texto, queem parte reelabora escritos anteriores meus, passou,de uma leitura para outra, por diversos ajustes, e nasltimas redaes antecipa, na concluso, os temas demeu ensaio imediatamente seguinte, O mar daobjetividade. Apresento aqui, no arranjo maisorgnico possvel, os vrios materiais (que,diversamente ordenados e desenvolvidos, tambm meserviram para outra conferncia: A literatura daviolncia) na medida em que representam uma fasede recapitulao do horizonte literrio de minhaformao, fortemente ancorada na tradiooitocentista, e ao mesmo tempo de transio para ohorizonte que ser o dominante nos anos 60.

    1. Precisamente naquela clara noite de 25 de agosto estava o prncipe Andr deitado numtelheiro desmantelado da aldeia de Kniazkovo, no extremo limite do local destinado ao seuregimento. Apoiado sobre o cotovelo, pousava os olhos, atravs das paredes desconjuntadas,numa fila de lamos dos seus trinta anos, cujos ramos inferiores haviam sido cortados e que seperdia na distncia, e nos campos lavrados, no meio dos quais havia molhos de aveiadispersos, e nos arbustos onde se perdia o fumo das fogueiras em que os soldados preparavamo rancho.

    Estou lendo para vocs uma pgina de Guerra e paz, de Tolsti. O prncipe Andr est svsperas da Batalha de Borodino.

    Recebera e transferira as ordens para a batalha do dia seguinte. Nada mais tinha que fazer. No entanto agitavam-no ospensamentos mais simples, mais claros, e por consequncia mais sinistros. Sabia que a batalha que se preparava seria amais terrvel de quantas assistira at ento e a possibilidade de morrer apresentava-se-lhe pela primeira vez na sua vidacom toda a simplicidade e todo o horror, com vivacidade e quase como uma certeza. [ ]

    Fitou a mata de lamos, os seus ramos amarelos imveis, as suas folhas verdes e a sua casca branca que brilhava aosol, J que temos de morrer, bom, ento que me matem amanh que eu desaparea Que tudo isto continue aexistir, mas para mim tudo acabe. Via com toda a nitidez a vida sem que ele j l estivesse. E aqueles lamos brancoscom a sua luz e a sua sombra, e aquelas nuvens desgrenhadas e o fumo dos acampamentos, tudo se transformou, desbito, para ele, ganhando um aspecto terrvel e ameaador.

    Alguns captulos adiante, tornamos a ver o prncipe Andr, agora em plena batalha:

  • Cuidado! grita um soldado, espavorido, e silvando. Num rpido voo, uma granada caiu a dois passos do prncipeAndr, prximo do cavalo do comandante do batalho. O cavalo empina-se relinchando, com risco de jogar por terra ocavaleiro, e recua. O terror do animal apodera-se dos homens.

    Deitem-se! grita a voz do ajudante de campo, que se atirara ao cho. O prncipe continuava de p, irresoluto.O obus, fumegando, girava no solo como um pio entre ele e o ajudante de campo no limite da seara de aveia e do prado,junto de uma pernada de artemsia.

    Ser a morte?, pensou, olhando, com um olhar absolutamente novo e como que invejoso, a erva, a pernada deartemsia, o fio de fumo que se desprendia da bola negra em movimento.

    No posso, no quero morrer, gosto da vida, gosto desta erva, desta terra, do ar que respiro Dizia isto de si paraconsigo e ao mesmo tempo pensava nos que estavam a olhar para ele.

    No tem vergonha, senhor oficial? disse para o ajudante de campo. Que No pde concluir. Nessemesmo instante ressoou a exploso, houve um retinir, como de vidros quebrados, uma baforada de fumo e o prncipeAndr, projetado de lado, ergueu um brao ao ar e foi cair de cara contra o cho.

    Tornamos a encontr-lo no bosque, entre os feridos do posto de enfermagem.

    Mas que me importa agora, dizia de si para consigo. Que tenho eu a ver com o que acontecer ali e com o queaconteceu aqui? E por que ser que me custa tanto deixar esta vida? H de fato nela qualquer coisa que eu nocompreendia e que continuo sem compreender.3

    O que h nessas pginas de Tolsti, que tanto nos fascina? H um homem com suaconscincia de si, da finitude de sua vida, h a natureza, como um smbolo de vidaultraindividual que houve e haver depois de ns, h a histria, seu fluir, sua busca por umsentido, seu entretecer-se de nossas vidas individuais, das quais passa a fazer parte o tempotodo.

    Indivduo, natureza, histria: na relao entre esses trs elementos consiste aquilo a quepodemos chamar de pica moderna. O grande romance do sculo XIX d incio a essediscurso, e a narrativa do sculo XX, em suas formas mais convulsas e abruptas, lhe dcontinuidade. Varia a maneira de considerar a conscincia individual, a natureza, a histria;variam as relaes entre os trs termos: mas, com todas as diferenas, as literaturas dos doisltimos sculos apresentam uma perfeita continuidade de discurso.

    2. Na Antiguidade, nas origens da poesia, o epos constituiu a primeira consagrao do feitohumano. Para propiciar o sucesso de suas empresas, os homens celebraram o primeirovencedor das dificuldades, o heri: no deus, mas homem, ainda que aparentado com osdeuses homem na medida em que seu destino se cumpre na Terra, um percurso terrestreeriado de obstculos. A pica antiga narrava o primeiro ato do homem para sair do caos doindistinto, a luta contra uma natureza virgem, ainda povoada de monstros, uma natureza amigaou inimiga, conforme nela se manifeste a ajuda dos deuses favorveis ou a hostilidade dosdeuses adversos. Tambm o choque contra os outros homens, as batalhas, a histria, nopassam de manifestaes terrestres de dissdios divinos: mas os duelos dos heris, seusitinerrios aventurosos, a matria, em suma, da narrativa, toda humana, desdobra-se segundoas leis da Terra.

    A pica moderna j no conhece deuses: o homem est sozinho e tem diante de si a naturezae a histria. E, se a esta altura seria fcil dizer que natureza e histria so os deuses do mundomoderno, encarnaes renovadas das antigas divindades, podemos logo rebater dizendo quetal divinizao se encontra mais facilmente nas pginas dos filsofos do que naquelas dos

  • escritores. A mesma coisa seja dita no que tange divinizao do primeiro termo: aconscincia, a razo humana. Os grandes romances parecem nascer pontual epropositadamente para corrigir as idolatrias intentadas pela filosofia, para olh-las com oolhar crtico e relativo do homem que j no se considera o centro do universo. O romance dosculo XIX no podia decerto nascer sem ter atrs de si o trabalho dos escritores e dosfilsofos do sculo XVIII, que haviam fundado uma nova noo do nimo humano, criando podemos dizer a dimenso do indivduo, que haviam fundado uma nova viso da natureza euma nova conscincia da histria. Mas tambm verdade que a gerao ps-napolenica, quecom Stendhal e Puchkin inaugura o novo romance, j dissolve o carter providencial danatureza de Rousseau e o da histria do nascente historicismo, para dar destaque, diante de umcenrio natural e histrico que apenas teatro de ocasies para o indivduo, a heris nadaexemplares na complexidade de suas paixes, na forte carga vital de seu egotismo: emPuchkin, fundamentado na sinceridade e no ser quem se ; em Stendhal, no sutil clculosecreto, e talvez na hipocrisia cultivada com o rigor de uma virtude.

    3. Algum dir que, precisamente nesses mesmos anos, aqui na Itlia estava sendo escritoum grande romance em que o conhecimento da natureza e o da histria e conhecimentoprofundo, quer da primeira, quer da segunda; mais profundo do que em qualquer escritordaquele tempo so postos em jogo para que se veja, escorrendo debaixo da aparncia, umdesenho transcendente, uma vontade que no desta Terra. Vamos retomar Os noivos e reabriro livro naquele captulo XVII, que um de meus preferidos, a viagem de Renzo em direo aoAdda, noite, para escapar do territrio milans:

    Anda que anda, chegou onde o campo cultivado morria num agreste derramado de samambaias e urzes. Pareceu-lhe, seno um indcio, ao menos um certo sinal de proximidade do rio, e avanou por ali, seguindo um atalho que o atravessava.Dados alguns poucos passos, parou a escutar; porm, ainda em vo. O tdio da viagem parecia aumentar com aselvageria do lugar, com o fato de j no ver nenhuma amoreira, nem uma videira, nem outros sinais de cultivo humano,que antes quase lhe faziam companhia. No obstante, prosseguiu; e, como em sua mente comeavam a surgir certasimagens, certas aparies, ali guardadas pelas histrias que ouvira contar quando criana, assim, para espant-las, oupara acalm-las, recitava, caminhando, oraes para os mortos.

    E depois o belssimo trecho do embrenhar-se no bosque, e o medo de Renzo das formas dasrvores na escurido, tanto que ele para e, quase a ponto de retornar:

    E, estando assim parado, suspenso o cicio das folhagens, tudo calando-se sua volta, comeou a ouvir um rudo, ummurmrio, um murmrio de gua corrente. Agua os ouvidos; tem certeza; exclama: o Adda!. Foi como reencontrarum amigo, um irmo, um salvador.

    Depois, a descida em direo ao rio, a viso da margem do outro lado, um alvor que deveser a cidade de Brgamo Mas vadear o rio Adda noite impossvel: e Renzo pensa emsubir numa rvore, ou em passear para c e para l, para se aquecer; em seguida, lembra-se deque viu uma cabana. Entra ali, vai se jogar na palha:

    Antes, porm, de deitar-se naquele leito que a Providncia lhe preparara, ajoelhou-se ali, a agradecer-lhe por aquelebenefcio, e por toda a assistncia que tinha recebido dela naquele dia terrvel.

    O que nos impede de incluir pginas to belas no nmero das mais indicativas dessa pica

  • moderna que agora estamos tentando definir? Acabamos de dizer h pouco que essa relaodo homem com a natureza e a histria se distingue pelo fato de ser livre, no ideolgica, nocomo a daquele que v no mundo um desenho pr-constitudo, transcendente ou imanente queseja; em suma, deve ser uma relao de questionamento. No o cu de Renzo Tramaglino,portanto, mas aquele do pastor errante da sia; embora Leopardi no possa ser definido comoum autor pico, e nunca tenha escrito um romance. Ou ento o cu de Cristvo Colombo,lembram? (Bela noite, amigo. Bela, na verdade), do Dilogo de Colombo e Gutierrez.

    De uns dias para c a sonda, como sabes, toca o fundo; e a qualidade da matria que vem com ela me parece ser bomindcio. No cair da noite, as nuvens ao redor do sol mostram-se com formas e cores diferentes daquelas dos diasanteriores. O ar, como podes sentir, tornou-se um pouco mais doce e mais tpido que antes. O vento j no corre comofazia antes, to cheio, nem to direto ou constante, mas bastante incerto, e vrio, como se alguma barreira ointerrompesse. Acrescente-se aquele bambu que estava tona pelo mar, e que mostrava ter sido cortado havia pouco; eaquele raminho de rvore com as bagas vermelhas e frescas. Tambm as revoadas, embora tenham me enganado outravez, ainda assim, agora so tantas a passar, e to grandes; e multiplicam-se de tal forma, dia aps dia, que pensopossamos ter a algum fundamento; ainda mais que se veem misturadas algumas aves que, por sua forma, no meparecem marinhas. Em suma, todos esses sinais reunidos, por mais que eu queira ser desconfiado, mantm-me emgrande e boa expectativa.

    E o pio Gutierrez:

    Queira Deus que desta vez ela se mostre verdadeira.

    4. Poder objetar-se que eu sublinho, em todos os escritores de que vou falando, o termonatureza, dando a ele um peso maior do que na realidade teria no conjunto da obra.Responderei que tendo a isso de propsito; minha inteno, de fato, corrigir uma limitaodo juzo crtico muito disseminada hoje em dia, ou seja, a que motiva a definio da narrativado sculo XIX como romance social, que tem por tema a luta ou, de toda maneira, as relaesentre indivduo e sociedade. Os termos em questo seriam, ento, apenas dois: homem esociedade, ou seja, homem e histria. A relao eu-natureza permaneceria, portanto, o grandetema da poesia lrica, na qual o poeta, em comparao com a imutvel vicissitude dasestaes e dos elementos, registra seu prprio desespero, melancolia ou serenidade (um modode ser que s pode ser relativo e histrico, o que significa que, na lrica, o termo histria estimplcito no eu do poeta). Na narrativa, costuma-se pensar que a relao homem-naturezacontinua a ser tema de uma produo menor, a narrativa de aventura, que desenvolve a grandeepopeia setecentista do Robinson Cruso; ou ento comparece como veste simblica de umcontedo metafsico, como no Moby Dick, de Melville.

    Uma inclinao instintiva sempre me impeliu na direo dos escritores de ontem e de hojenos quais os termos natureza e histria (ou sociedade, se preferirmos) parecem copresentes.Mas no apenas uma escolha de gosto: acredito que o termo natureza sempre est presenteem todo grande narrador. Tambm em Balzac, embora esteja to mergulhado na descoberta dogrande novo continente que se lhe abria, a cidade, a infinita Paris, as contnuas viradas dasorte de uma sociedade em movimento. Balzac, de fato, aquele que descobre a vitalidadenatural, quase biolgica, da grande cidade. Caminhos equvocos, sales luminosos, srdidosentresols, prises, casas de aluguel, so descritos com o vigor admirado que no rarotranscende em retrica com que Bernardin de Saint-Pierre ou Chateaubriand saudavam as

  • florestas das Amricas. A Paris de Balzac a verdadeira cidade-selva; em nenhum de seusepgonos tardios que abusaram dessa ordem de similitudes h aquele sentido de sumosterrestres, de linfa vegetal, de cavernas ou profundidades submarinas que emana dositinerrios de Vautrin ou de Rubempr: verdadeiros homens da natureza esses seuspersonagens, homens e mulheres dotados de um vigor atltico nas virtudes e nos vcios, paraquem toda ao e toda exploso de sentimentos parece resolver-se numa prova de sade ou derobustez. Em Balzac, a fora humana parece ainda recusar-se a admitir que a luta com asociedade oferece dificuldades bem diferentes daquelas da luta com a natureza; ainda assim,j est no ar a conscincia de que as epopeias de vitria podem ser mentirosas, de que preciso preparar o homem para que ele tome cincia de que no menos homem quando suasbatalhas so sem esperanas, de que a dignidade humana se realiza na maneira como eleenfrenta a vida, ainda que seja derrotado.

    5. No sculo XVIII, Voltaire, partindo de um pessimismo objetivo total, de uma noo denatureza e de histria no iluminadas pelo raio de uma qualquer providncia, j havia lanadoas bases de um otimismo subjetivo, confiante na sorte da batalha travada pela razo humana.Depois dele, o pessimismo das coisas corri cada vez mais as margens desse otimismo darazo, torna a posio do homem cada vez mais precria.

    A derrota, a vaidade da histria, a impossibilidade de abranger a vida num esquemaracional, sero o tema fundamental que se insinua na grande narrativa da metade do sculoXIX em diante, at nossa poca, na qual a absurda atrocidade do mundo se tornar um dado departida comum a quase toda a literatura.

    fcil interpretar essa parbola do primeiro transbordamento de energias humanas dosgrandes escritores das geraes romnticas ao sentido de inconsistncia de tudo o que vaitomando cada vez mais o campo remetendo-se histria de uma classe burguesa que vaiperdendo o impulso inicial de sua revoluo econmica e poltica e j no sabe expressaroutros profetas a no ser os da prpria crise. Mas isso nos limitaria a uma leitura rasa e semsurpresas. A cor da concepo do mundo quase sempre aquela que os tempos do aoescritor, mas no passa de um pano de fundo, um cenrio: o que conta o que se pede aohomem, dado esse ponto de partida, a que foras se apela. Alis, Stendhal, Puchkin e Balzac,com toda a sua energia, no eram decerto otimistas; e da mesma maneira gostaramos de dizerque at dos escritores mais negativos e desolados podemos tirar uma lio de firmeza ecoragem.

    fato que, quando, com Flaubert, a literatura realista toca seu ponto mximo de fidelidadeaos dados da experincia, o sentido resultante da o da inconsistncia de tudo. Depois de teracumulado pormenores minuciosos e construdo um quadro de perfeita verdade, Flaubert bateos ns dos dedos sobre esse quadro, mostrando que por baixo h o vazio, que tudo o queacontece no significa nada. O aspecto terrvel daquele grande romance que Lducationsentimentale consiste nisso: ao longo de centenas e centenas de pginas, vemos escorrer avida privada dos personagens ou a vida pblica da Frana, at percebermos tudo sedesmanchar entre os dedos como cinza. Mesmo em Tolsti, o maior realista que jamaisexistiu, at mesmo em Guerra e paz, no livro mais plenamente realista j escrito, o que realmente que nos d aquele flego de imensido, seno a passagem do chalreio de um salo

  • principesco s vozes quebradas de um acampamento de soldados, como se as palavras nosalcanassem atravs do espao, vindas de outro planeta, como um zunir de abelhas numacolmeia vazia?

    A est: j no so as aes e as paixes humanas a fora motora da narrativa, mas o fluirimpalpvel da vida os cicios e os sussurros que se erguem no cu lmpido entre as casasdos pescadores de Aci Trezza, em Os Malavoglia [I Malavoglia], ou o desdobramento doslongos perodos de Proust, perseguindo a corrida das sensaes, dos desejos, dos afsperdidos, procurando deter imagens de rostos e lugares e dias que tremulam e se alongam emudam de dimenso, como no tremular de uma luz de vela. Nesse fluir que a um s temponatureza e histria, a individualidade humana mergulha, perde os contornos que a separam domar do outro.

    6. Esse outro, para os escritores russos da segunda metade do sculo XIX, ainda no ummagma indiferenciado. Ele tem um nome e um rosto: o prximo, com sua imagem de dorpaciente da tradio crist. Em A morte de Ivan Ilich, o admirvel conto de Tolsti, umburocrata russo chega a seus instantes extremos e, diante do medo do fim, percebe quo vazia,intil e sem sentido foi sua vida. E, para vencer esse terror, basta a presena e a sabedoriarude do campons que cuida dos servios humildes do quarto do doente: Ivan Ilich aprende ase reconhecer no prximo, a perder-se nele, e no momento em que se perde est salvo, o medodo nada vencido. Em Guerra e paz, Pierre Bezuchov, o intelectual que procuroucompreender e viver o drama da histria de sua poca, pode dizer que encontrou a verdade sdurante a marcha extenuante dos prisioneiros que as armadas de Napoleo em retiradaarrastam consigo: a humilde verdade do soldado raso Platon Karataev aquela de que Pierreconsegue se apropriar. Para Tolsti, o povo encarna uma verdade que una com a natureza; asociedade ou as classes que se afastam dessa verdade acabam murchando, e isso apenas para Tolsti o movimento da histria, de outro modo aparncia enganosa.

    Se Tolsti d um grande passo de humildade, de renncia individual em direo ao outro,ao prximo, Dostoivski aventura-se nessa direo como em mar aberto, a ponto de perder devista a terra. O de Dostoivski no um cristianismo natural e humanitrio como o de Tolsti,no tem de servir os homens mas uma divindade terrvel e incognoscvel. No h mais nemnatureza, nem histria, mas uma cosmogonia da dor, em que a negatividade da realidadehistrica assumida como uma condenao absoluta ou como uma absoluta salvao. S sepisoteado o homem pode ser homem. S se salva se tocar o fundo.

    Mais contido, mais discreto, ao lado desses dois titnicos evangelistas, um terceiro:Tchekhov. Ele no pronuncia axiomas ou sentenas: limita-se a suspirar, ou melhor, a registraros suspiros dos homens com uma escrita leve, em que a ironia no destri a adeso. Os contosde Tchekhov, embora amadurecidos numa poca de crise do pensamento racional ehumanitrio, no querem nos convencer de que tudo intil, de que o mal invencvel, de quea matria vaidade e a dor, iluso: o mdico Tchekhov registra essas tentaes dopensamento moderno e ao mesmo tempo as condena. Quanto mais ele castiga os pequenoshomens de seus contos, quanto mais descobre seu egosmo e falsidade e grosserias sob amscara de sua dignidade aparente, tanto mais nos revela alguma coisa que resiste degradao, que superior baixeza geral, uma qualidade impalpvel que temos de voltar a

  • chamar dignidade humana, uma dignidade completamente oposta quela, formal e hipcrita, dohbito burgus.

    Por isso, por mais que a grande inspirao bblica de um Dostoivski e de um Tolsti nodeixe de inspirar-nos emoo e admirao, preferimos extrair nossa lio de fora doagnosticismo do pequeno Tchekhov, como uma lente lmpida que no nos esconde nada danegatividade do mundo mas no nos convence a nos sentirmos vencidos por ele.

    7. Mais um escritor da virada dos dois sculos, tambm ele eslavo, mas inimigo dos russos,e que se assimilou mais prtica das civilizaes ocidentais, Joseph Conrad, o polons que setornou ingls, representa os mesmos conflitos espirituais num contexto totalmente diverso: docio e da falta de perspectivas dos proprietrios rurais russos, passamos ao mundo de umamarinha mercantil em expanso.

    A experincia marinharesca de Conrad d a seus romances, j to densos de contedo ideale to preciosos pela fluidez de sua prosa, aquele gosto da competncia, da preciso de quemfala de coisas que conhece bem, e que no uma das ltimas razes de seu fascnio. Anatureza em Conrad algo que ele conhece muito bem: o mar, em todas as estaes e em todasas latitudes, e particularmente o clima trrido e exausto das costas tropicais. E essa naturezarepresenta o irracional puro, contra o qual tm de se pr prova a moral e a razo do homem:seja o tufo (no conto homnimo) em meio ao qual o fleumtico capito Mac Whirr no perdea calma, ou a interminvel bonana em meio qual (no breve romance Linha de sombra) seencontra um jovem capito em seu primeiro comando, ao largo do oceano ndico, numaatmosfera de feitio, enquanto o calor tropical e a febre esgotam as foras e a resistncianervosa da tripulao.

    Para Conrad, o homem est suspenso entre duas imagens do caos: aquela da natureza, ou docosmo, um universo escuro e sem sentido; e a do fundo obscuro do homem, de seuinconsciente, de seu sentido do pecado. Conrad no se detm para indagar uma ou outra; seusheris so aqueles que, apesar de uma e outra, conseguem levar o navio e p-lo a salvo. Estar altura da situao, no convs assim como na pgina, a moral ideal de Conrad. Oprotagonista de Linha de sombra consegue: no para diante do medo de no ser digno;enfrenta a prova de sua maturidade e a vence. Lord Jim, o protagonista de outro romance,sucumbe uma vez prpria insegurana, e sempre sucumbir. Alinha-se na longa fileiradaqueles personagens conradianos que se deixam vencer completamente pela natureza e pelasobscuras foras interiores: so os outcasts dos Mares do Sul, os brancos encalhados nospequenos portos indgenas das ilhas. Um deles, Kurtz, comerciante de marfim entre os negrosdo Congo, chega a uma espcie de iluminao total de um universo irracional e negativo, emorre gritando O horror! O horror! (e o conto se intitula Corao das trevas).

    A natureza, dissemos. E a histria? Em Conrad, tem-se a sensao de estar num mundopuramente atemporal e simblico. Toda a sua narrativa, ao contrrio, origina-se de um sentidoagudo da histria. Seu tema histrico fundamental a transformao da marinharia mercantil eda navegao a vela naquela a vapor. O mundo heroico do capito Conrad a civilizao dosveleiros dos pequenos armadores, um mundo de clareza racional, de disciplina no trabalho, decoragem e senso de dever; a seus olhos, a marinharia dos paquetes das grandes companhias movida apenas pelo desejo de lucro, assim como os portos so habitados por uma gente do

  • mar improvisada, vulgar e sem escrpulos. Mesmo no mundo dos trficos coloniais,substituiu-se por uma escria de agentes comerciais desonestos e de burocratas corruptos acivilizao da velha burguesia mercantil britnica, ou talvez o romantismo dos primeirosmercadores-aventureiros. Mas, nesse clima de cupio dissolvi que frequentemente paira naspginas conradianas, nunca falha a confiana nas foras do homem, em sua ordem moral, emsua coragem. Conservador incansvel e, alis, reacionrio irredutvel em poltica, Conradainda assim um dos escritores em que mais deveremos reconhecer uma humanidade que sevangloria da prpria nobreza nica no trabalho.

    8. Para encontrar uma sada da viso pessimista que ameaa a conscincia da sociedade(aproxima-se a poca das grandes guerras mundiais), a narrativa comea a apresentar comfrequncia cada vez maior protagonistas meninos. Essa narrativa sobre a infncia prosseguiulargamente at os nossos dias e considerada por alguns um decadentismo condescendente,uma recusa a considerar as responsabilidades do homem adulto, especialmente quando graas nova psicologia o narrar de crianas e meninos passou a significar a possibilidadede voltar-se para a parte mais inicial e frgil do mundo interior do homem contemporneo.Mas o personagem do garoto havia entrado na literatura do sculo XIX pela necessidade decontinuar propondo ao homem uma postura de descoberta e de prova, uma possibilidade detransformar toda experincia em vitria, como s possvel para as crianas.

    No nos esqueamos de que o impulso do Risorgimento italiano teve na literatura um nicoeco realmente potico: e so os dias aventurosos de Carlino de Nievo [Le confessioni di unitaliano] entre taludes e fossos em torno do decrpito castelo de Fratta. E essa infncia deCarlino e da Pisana a dar luz e movimento a todo o livro das Confisses de um italiano. Bastarecordar a pgina da primeira descoberta do mar por parte de Carlino, no Bastio de tila.

    Alis, j Stendhal, na terceira dcada do sculo, fizera seu Fabrizio del Dongo viver aBatalha de Waterloo, aos dezessete anos, ainda sem saber dar um tiro e pedindo a umavivandeira que o ensinasse a se comportar. Esse miraculoso precursor da alma moderna jtinha compreendido que a postura do adulto diante da glria militar capaz de suportar ainsdia da retrica, que a comoo da pica antiga s pode ser reencontrada temperada poruma ironia que ainda assim no a destri atravs dos olhos que descobrem o mundo pelaprimeira vez.

    L pelo final do sculo, porm, o recuo pessimista que Stendhal intura se torna conscinciacomum da literatura mundial. Alguns escritores comeam a inventar histrias de garotosfingindo escrev-las para garotos, mas, na realidade, desejosos de expressar alguma coisa quegostariam de dizer aos homens.

    Mark Twain, desmiolada alma de poeta sob a carapaa de um jornalista do interioramericano, que narra a histria de Huckleberry Finn e de Tom Sawyer, navegando peloimenso Mississippi entre balsas carregadas de madeira e plantaes repletas de escravos: oromance que estreia a linguagem falada que, mais tarde, ser a de toda a narrativa norte-americana, e o poema mais verdadeiro dos Estados Unidos.

    Ou ento Robert Louis Stevenson, que, de suas cinco almas (disseram ser ao mesmotempo um literato, um puritano, um cockney, um pirata, um garoto), escolheu a ltima paraabrig-las todas e nos deu suas histrias de piratas ocenicos ou de rebeldes escoceses, suas

  • vitrias da intrepidez e da engenhosidade, seus enfrentamentos maniquestas de virtude ecrueldade, sempre com aquela surpreendente leveza e limpidez que quase uma imageminvertida do mundo, como ela ia se configurando na conscincia dos homens de seu tempo.Sua recusa do mundo como ele no evaso, mas profisso de uma f em que valor moral evalor potico so uma coisa s.

    J em Kipling, no entanto, a pica infantil carrega-se dos males do sculo que sobrevm,no obstante sermos tentados de boa vontade a esquecer isso diante de seus Mowgli, de seusKim, a no considerar que sua agilidade movida pela carga energtica das novas mitologiasvitalistas, pela tica do novo credo imperialista.

    Em nosso sculo XX, o mito pico da infncia recua para o intricado jardim dainterioridade que a nova sensibilidade psicolgica descerrou. Proust e Alain Fournier socontemporneos do jovem Trless de Musil. O vert paradis des amours enfantins abre ocaminho para todos os infernos.

    O mundo tem um rosto feroz, e a infncia aparece como uma crua iniciao aos olhosmaravilhados e intrpidos do garoto Nick, o protagonista autobiogrfico dos primeiros contosde Hemingway. O pai de Nick, mdico, tendo de assistir uma parturiente no Campo indiano,opera-a com um canivete de pesca, enquanto o marido, silenciosamente, no aguentando aviso do sofrimento, degola-se. Nick viu tudo: seu aprendizado um treino para suportar abrutalidade do mundo.

    9. Tambm para Hemingway o que conta o confronto com a natureza, a coragem, o saberestar altura da situao, como para Conrad, mas agora, debaixo de tudo isso, h o vazio. Oheri de Hemingway quer identificar-se com as aes que executa, ser ele mesmo na soma deseus gestos, na adeso a uma tcnica manual ou, de todo modo, prtica; procura no ter outroproblema, outro compromisso a no ser fazer direito aquilo que est fazendo: pescar, caar,explodir uma ponte ou fazer amor. Mas em volta, sempre, tem alguma coisa de que querescapar, um senso da futilidade de tudo, de desespero, de derrota, de morte. Concentra-se naprecisa observncia de seu cdigo, daquelas regras desportivas que, em virtude do empenhoque ele necessita colocar nelas, mais parecem regras morais, esteja ele lutando contra umtubaro ou resistindo a uma investida de falangistas no alto de uma montanha espanhola.

    Um dos mais tpicos entre os 49 contos de Hemingway, O grande rio de dois coraes(The big two-hearted river), nada mais que um relatrio minucioso de tudo o que faz umhomem que vai pescar sozinho: sobe a montante do rio, procura o lugar certo para armar abarraca, prepara sua comida, entra no rio, prepara a isca, pesca trutas pequenas, joga-as devolta na gua, pesca uma maior, e assim por diante. Nada mais que um desnudo elenco degestos, rpidas e lmpidas imagens da paisagem e alguma referncia genrica, pouco convicta,a um estado de esprito, como: Estava realmente feliz. E um conto muito triste, com umsenso de opresso, de angstia indistinta, que aflige por todo lado, quanto mais a natureza estserena e a ateno, empenhada nos gestos da pesca.

    A postura dos heris hemingwayanos no muda, seja o cenrio o sanguinolento da PrimeiraGuerra Mundial ou o da Guerra Civil espanhola. A realidade de violncia, de guerra, deexploso de barbrie de nosso sculo est na mente de seus heris mesmo quando eles vopescar pacificamente. Hemingway nunca partidrio da violncia, mas aceita esse cenrio de

  • massacre como o cenrio natural do homem contemporneo. O ritual simblico que representapara ele essa postura em relao ao mundo aquele barbrico, todo exatido tcnica, dacorrida de touros.

    A sua, contudo, nada mais que uma das respostas contemporneas onda de sangue que seergueu sobre nosso sculo XX. As perguntas que Tolsti e Dostoivski haviam se colocado,quanto ao mal de um mundo que parecia espera de uma palingnese, tornaram-se bem maisangustiantes em nossa poca, desde que o caminho da civilizao desembocou numa sequnciade massacres que no faz meno de ter fim, e cada ideia, cada princpio, tende a transformar-se numa mitologia irracional.

    Dois escritores ingleses dos anos 20, cuja homonmia hoje assume um som simblico, quasede dois trompetes de arcanjos dispostos simetricamente soleira de nossa poca, encarnam osdois grandes temas de que a literatura do mundo inteiro se apropriar: D. H. Lawrence, o mitodo sexo e da sade vital e instintiva contra a civilizao da tcnica e do intelectualismo; T. E.Lawrence, o coronel da Arbia, a tica de quem combate guerras que no so suas como seperseguisse uma regra interior prpria, maneira de um banco de testes estoico e viril.

    Aps o coronel Lawrence, outro arquelogo transforma-se em narrador pico, AndrMalraux, que combate e narra as revolues da China e da Espanha, vistas com o olhar de umesteta individualista, de um cultor de uma grandeza absoluta e a-histrica nas aes e naspessoas, assim como nas obras de arte de seu Museu imaginrio.

    Dir-se-ia que em nosso sculo a imagem da violncia mistura histria e natureza. Docaldeiro da mais vasta revoluo, Bbel retoma a histria dos cossacos de Gogol e Tolsti elhes acrescenta a conscincia moderna da violncia como uma fora inelutvel que encerra omal e o bem.

    Mas o discurso dos grandes russos, particularmente o de Dostoivski, ser retomado nosEstados Unidos, no dilacerado Sul de William Faulkner, onde os crimes mais atrozesadquirem a cor da fatalidade, e cada qual, vtima ou assassino, culpado alm da prpriainocncia, e inocente alm das prprias culpas.

    A narrativa alegrica, o teatro e a pintura s fazem completar o quadro tracejado pelosescritores de romances. O homem de Kafka condenado por uma autoridade incognoscvel. Abondade dos homens de Brecht obrigada, para sobreviver, a se fantasiar de maldade e deviolncia. Com a grande tela de Guernica, Picasso fixa a imagem da humanidadetraumatizada, depois do primeiro bombardeio alemo de uma cidade espanhola.

    Uma realidade de massacre domina o mundo. o mundo ofendido, para quem ainda sabesofrer por isso, e Vittorini encontra na noite siciliana o amolador que procura lminas defacas, armas para afiar, dentes para serem aguados e se rebelar contra o massacre. omundo absurdo para quem chegou a sentir-se estranho lgica do todo, para o Etranger deCamus; para ele, a violncia j deixou de ter significado e o assassinato um gesto igual aqualquer outro da existncia.

    10. tolo preconceito e hipocrisia culpar a literatura, se o quadro que ela representa doandamento das coisas do mundo no est em conformidade com nossos desejos. Das coisas domundo, a literatura que vale nos d a conscincia: faz explodir sob nossos olhos a carga moraldos fatos, para que reajamos. Se nos escritores que agora mencionei encontramos por vezes o

  • cinismo e a monstruosidade, s para despertar nossas reaes morais entorpecidas pelohbito de aceitar o mundo como ele . O humanismo de nosso tempo aceita o desafio do terrorque lhe lanado pela poca dos bombardeios atmicos, dos campos de concentrao, dascmaras de tortura que ainda neste momento, em outros lugares do mundo, ecoam os gritos dosque so submetidos ao suplcio; o humanismo de nosso tempo esfora-se para no fechar osolhos diante das piores imagens, e para manter-se em p, apertando os dentes. Mas eis que,com o tempo, at essa postura de frio estoicismo pode tornar-se hbito, indiferena, no maisum cinismo fingido em razo de uma piedade real, mas cinismo de fato, de fundo, pobrezamoral.

    Eis que, nestes ltimos meses, uma voz diferente se fez ouvir: o romance de BorisPasternak, Doutor Jivago, e ns, na Itlia quase por acaso , fomos os primeiros a poderl-lo, de modo que h alguns meses, em nossas discusses, pode-se dizer que noconseguimos falar de outra coisa: uma voz diferente que ecoa vozes mais antigas e, noentanto, s poderia ser escrita agora, nestes nossos anos atormentados; e chega da Rssia,como nos tempos em que os romances de Tolsti e Dostoivski comeavam a espantar aEuropa, chega de uma Rssia muito diferente de sua imagem oficial, e nos fala com a simplesnaturalidade que foi o dom inimitvel dos escritores russos de sempre. Tambm Pasternak nosfaz assistir a uma sequncia de violncias, mas, se nos escritores de que eu falava h pouco aviolncia aceita como fato pelo qual se deve passar para super-lo poeticamente, paracompreend-lo e dele se purificar, Pasternak recusa-a constante e explicitamente.

    Entre o Pasternak poeta lrico e o narrador de Doutor Jivago h uma estreita unidade doncleo mtico fundamental: o movimento da natureza que contm e informa todos os outroseventos, ato ou sentimento humano, um mpeto pico ao descrever o fim das enxurradas e oderretimento das neves. O romance o desenvolvimento lgico desse mpeto: o poeta procuraenglobar num nico discurso natureza e histria humana, privada e pblica, para umadefinio total da vida o perfume das tlias e o rudo da multido revolucionria enquanto otrem de Jivago, em 1917, vai em direo a Moscou. Com relao Histria, Pasternak dcontinuidade polmica de Tolsti: no so os poucos grandes homens a faz-la, mastampouco os muitos pequenos homens; a histria move-se como o reino vegetal, como obosque que se transforma na primavera. Da derivam dois aspectos fundamentais daconcepo de Pasternak: o primeiro o sentido da sacralidade da histria, vista como umtornar-se solene, transcendente ao homem, exaltante mesmo em sua tragicidade; o segundo uma desconfiana implcita do fazer dos homens, na autoconstruo de seu destino, namodificao consciente da natureza e da sociedade; a experincia de Jivago chega contemplao, perseguio exclusiva de uma perfeio interior.

    11. A angstia da violncia de Pasternak remete-nos a um dos mais belos livros de CesarePavese, Antes que o galo cante. Tambm em Pavese, que escrevia logo aps a ltima guerra,a mesma piedade pasmada pelo sangue derramado, o sangue dos amigos e dos inimigos. Mas,assim como a piedade de Pasternak a ltima encarnao de uma tradio russa de relaomstica com o prximo, a piedade de Pavese a ltima encarnao de uma tradio dohumanismo histrico que inspirou boa parte da civilizao ocidental.

    Tambm o sentido da natureza diferente: nos contos de Pavese sempre h uma paisagem,

  • um dorso de colinas, uma cor do campo que se liga na memria s primeiras descobertas dainfncia e representa o momento perfeito, fora do tempo e da histria: o mito. Junto com ele,porm, surge outro elemento: o vestgio de um fato completo e irrevogvel, um ato deviolncia, de sangue, uma lembrana que no pode ser apagada.

    O protagonista do conto Antes que o galo cante um intelectual, como o doutor Jivago, quequer escapar s responsabilidades da histria. Vive na colina porque a sua colina desempre, e acredita que a guerra no lhe diz respeito. Mas a guerra povoa aquela natureza coma presena dos outros, da histria os refugiados que sobem a colina noite, enquanto osavies bombardeiam Turim. Depois, a guerra civil compromete a todos, inclusive a ele, queno gostaria de ser parte daquilo. A natureza, que era para ele fuga da histria, agora histria e sangue, onde quer que ele pouse o olhar: sua fuga uma iluso. Ele descobre quetambm sua vida de antes era histria, com suas responsabilidades, suas culpas.

    Agora que o campo est desolado, torno a perambular por ele; subo e deso a colina e torno a pensar na longa iluso daqual partiu esta narrao de minha vida. Para onde esta iluso vai me levar, o que penso com certa frequncia nessesdias: em que mais pensar? Aqui, cada passo, quase qualquer hora do dia e certamente qualquer recordao maisinesperada me coloca diante daquilo que fui aquilo que sou e que tinha esquecido. Se os encontros e os acasos desteano me deixam obcecado, acontece s vezes de eu me perguntar: O que h de comum entre mim e este homem queescapou s bombas, escapou aos alemes, escapou aos remorsos e dor?. No que no sinta um aperto, se penso emquem desapareceu, se penso nos pesadelos que correm pelas ruas feito cadelas chego at a dizer a mim mesmo queisso ainda no suficiente, que para acabar de vez o horror deveria nos morder, fincar seus dentes em ns, ossobreviventes, com mais fria ainda mas acontece que o eu, aquele eu que me v revirar com cautela os rostos e asinquietaes destes ltimos tempos, sente-se outro, sente-se distanciado, como se tudo o que fez, disse e sofreu tivesseapenas acontecido diante dele coisas dos outros, histria passada. Isso, em suma, me ilude: torno a encontrar aqui emcasa uma velha realidade, uma vida alm de meus anos, de Elvira, de Cate, alm de Dino e da escola, daquilo que eu quise esperei como homem, e me pergunto se alguma vez serei capaz de sair disso. Percebo agora que neste ano inteiro, emesmo antes, mesmo nos tempos das magras loucuras, [ ] quando ainda ramos jovens e a guerra, uma nuvemdistante, percebo que vivi um nico e longo isolamento, umas frias fteis, como um garoto que, brincando de esconder-se, entra numa moita e ali se sente bem, olha para o cu de sob as folhas, e se esquece de vez de sair dali.

    Agora o personagem de Pavese nos diz que a guerra (que a histria) o tomou. H diasnesta roa desnuda que, ao caminhar, tenho um sobressalto: um tronco seco, um emaranhadode grama, um dorso de rocha, parecem-me corpos deitados. O livro encerra-se com apergunta que se ergue dos trgicos encontros no campo, da conscincia de uma fraternidadehumana reafirmada. So amigos ou inimigos? A essa altura, j no importa. Cada homem quemorreu pela ptria se parece com quem fica, e lhe pede satisfaes. A participao ativa nahistria surge da necessidade de dar um sentido ao caminho sangrento dos homens. Depois determos derramado seu sangue, necessrio aplac-lo. nesse aplacar, nesse dar umasatisfao que est o verdadeiro engajamento histrico e civil. No possvel ficar de fora dahistria; no podemos nos recusar a fazer tudo o que est a nosso alcance para deixar umamarca razovel e humana no mundo, quanto mais ele se configurar diante de ns comoinsensato e feroz.

    12. Nos aspectos mais novos da literatura e da arte dos ltimos anos, assistimos a umarendio do homem natureza. Estamos na poca da pintura informal, que quer representar ofluxo da vida biolgica que percorre todos ns, a continuidade entre o fluir da linfa, dossumos terrestres, do sangue nas veias e do murmrio e rudo humano. Na poesia, a natureza j

  • no sentida como alteridade, como aconteceu at podemos dizer Montale; com DylanThomas, o tecido das analogias destri toda diferena entre o homem e o amontoado damatria viva.

    Acredito que podemos estabelecer uma diferena com relao aos movimentos devanguarda entre as duas guerras: naquela poca nos surrealistas, em Joyce, nos primeirospintores abstratos, como Kandinski era o fluxo da subjetividade que parecia querer anegartudo, contestar a cidadania do homem num mundo objetivo para faz-lo navegar no fluxoininterrupto de seu monlogo interior ou de seu automatismo inconsciente. Hoje, ao contrrio,vemos irromper por todo lado uma espcie de inundao da objetividade. J Sartre tinhasuscitado a imagem desse pesadelo, desse mergulho no mar do ser, quando o protagonista daNusea, olhando-se no espelho, perde a conscincia da prpria individualidade. Mas, emSartre, isso no passava de um ponto de partida negativo para postular a conscincia de si, aescolha, a liberdade.

    Observemos agora esta nova escola de narradores que surgiu h poucos anos na Frana, ade Alain Robbe-Grillet, cujo romance La jalousie agora foi traduzido tambm em italiano, ede Michel Butor, de quem muito se falou neste ano, porque seu romance La modificationganhou o Prix Renaudot: um processo de conscincia narrado exclusivamente por meio dosobjetos, das sensaes externas, das coisas mais insignificantes que caem no campo de visodo protagonista, e na sucesso desses dados objetivos consiste o processo mental dopersonagem, a narrao. a anulao da conscincia ou um caminho para sua reafirmao?

    Podemos inserir neste quadro da objetividade sobrepujante tambm o livro italiano de quemais se falou nos ltimos meses: Aquela confuso louca da Via Merulana [Querpasticciaccio brutto de via Merulana], de C. E. Gadda. Protagonista do romance a cidadede Roma, vista como um imenso e pegajoso caldeiro de povos, de linguagens e dialetos, decivilizaes, de sujeira e sublimidade. A linguagem incrustada de todos os ingredientes dessecaldeiro heterogneo ferve em primeiro plano: no o fluxo subjetivo de Joyce, mas umfluxo de objetividade pelo qual o indivduo racionalizante e discriminador se sente engolidocomo uma mosca nas ptalas de uma planta carnvora. Desse afundamento do autor e do leitornesse caldo fervente da matria narrada nasce uma sensao de assombro. Tal assombro,todavia, o ponto de partida de um julgamento; graas a ele, o leitor pode dar um passoadiante, readquirir o distanciamento histrico, declarar-se distinto e diferente da matria emebulio. Tambm por esse caminho poderemos ento reencontrar uma relao entre aconscincia de si e os dados da histria e da natureza?

    Uma rendio da individualidade e da vontade humana diante do mar da objetividade, domagma indiferenciado do ser s no pode deixar de corresponder a uma renncia do homem aconduzir o curso da histria, a uma aceitao passiva do mundo como ele . Por isso,queremos nos remeter a uma linha da obstinao apesar de tudo o que liga as mais rduasposturas em relao ao mundo que fomos delineando, como na aula mais desprovida deiluses e ainda mais carregada de uma fora positiva, que podemos hoje tirar dos livros e davida.

  • O MAR DA OBJETIVIDADE

    Il Menab di Letteratura, dirigido por Elio Vittorinie Italo Calvino, n 2, Turim: Einaudi, 1960. (Escritoem outubro de 1959.)

    Os romances da cole du regard narrados por meio dos objetos; a descida doplurilinguismo italiano babel das linguagens faladas; o registro escrito dos testemunhos devida das pessoas simples; a msica serial que se prope a explicitar as leis internas domaterial sonoro; a pintura biomrfica que nos anega no fluir da linfa, dos sumos terrestres,do sangue nas veias e do murmrio e rudo humano: um significado comum liga esses e muitosoutros aspectos da cultura literria e artstica de hoje. No me parece que j tenhamos nosdado conta da virada ocorrida, nos ltimos sete ou oito anos, na literatura, na arte, nasatividades cognoscitivas mais diversificadas e na nossa prpria postura com relao aomundo. De uma cultura fundamentada na relao e no contraste entre dois termos de umlado, a conscincia, a vontade, o julgamento individual; de outro, o mundo objetivo ,estamos passando ou passamos para uma cultura em que aquele primeiro termo submergiu nomar da objetividade, no fluxo ininterrupto daquilo que existe.

    Digamos desde j que uma transformao desse tipo no estava em nossos planos, emnossas profecias, em nossas aspiraes; mas no mais questo de aceit-la ou recus-la; jestamos dentro dela; a geografia de nosso continente cultural mudou profundamente ante essaenxurrada imprevista e que, ainda assim, tomou forma lenta e bem visivelmente diante denossos olhos. No gostaramos, porm, que o reconhecimento disso equivalesse para ns auma rendio, a nos deixarmos afogar tambm no magma, como aqueles que creemcompreend-lo e cont-lo ao se identificar com ele. Os termos do discurso tico-potico quesempre foi importante para ns, aquela tenso entre indivduo, histria e natureza queutilizvamos como fio condutor para escolher e ordenar nossa rvore genealgica literria,continuamos a consider-los vlidos mesmo diante do cenrio desse cataclismo silencioso.

    J parecem remotos os termos fundamentais do debate cultural daqueles anos em que nossotrabalho comeou: digamos, aproximadamente, os anos da Guerra espanhola, da SegundaGuerra Mundial e de seu ps-guerra. Naquela poca, discutia-se se o poeta devia encerrar-sena prpria interioridade, defendendo-a das contingncias histricas, ou ento participar eentregar-se luta. Eram, os dois, modos totalmente voluntrios, individuais, aristocrticos deconceber a relao com o mundo, a tal ponto que agora no nos parecem sequer to diferentesentre si, caracterizados como eram, um e outro, por um reconhecimento, pelo sofrer da feridada realidade exterior e passar a ter com ela uma relao de resistncia passiva ou ativa, opor-lhe uma dura carapaa. A relao com a histria no variava entre as duas tendncias,tampouco variava a relao com a natureza, sempre vista como alteridade, como um termonecessrio de confronto: para uns, era a nica contraparte possvel do dilogo com o eu, oinesgotvel repertrio das metforas interiores; para outros, era, antes de mais nada, odiferente da histria, com uma nfase ora negativa (contempl-la, to imune ao sofrimento

  • humano, era uma evaso) ora positiva (no exemplo de sua harmonia e plenitude, a histria,remida da monstruosidade presente, teria de se moldar).

    A perda do eu, o mergulho no mar da objetividade indiferenciada, precisamente naquelapoca, h vinte anos, foi primeiramente experimentada por Sartre, em A nusea, mas era umadescida aos infernos. O protagonista via esvair-se aos poucos a distino entre si e o mundoexterior, seu rosto no espelho tornando-se coisa, e uma nica viscosidade envolvendo o eu eos objetos. Essa representao j completa do processo, no entanto, Sartre a realizapermanecendo do lado de c, do ponto de vista da conscincia, da escolha, da liberdade.Hoje, ns demos a volta: o ponto de vista o do magma.

    Talvez seja na poesia de Dylan Thomas que uma das passagens fundamentais se cumpre: anatureza j no sentida como alteridade, o tecido das analogias destri a distino entre ohomem e o amontoado da matria viva. O passo adiante aquele da pintura informal, queafunda na continuidade da vida biolgica que nos percorre a todos.

    indubitvel que, entre o primeiro abstratismo e o informel, entre o Ulisses de Joyce e oMolloy de Beckett, deu-se uma inverso dos termos. Na obsesso por pureza e ordem deMondrian, no nervosismo inventivo de Kandinski, havia uma corrente subjetiva que procuravaexpressar-se em seu estado puro, evitando o atrito com o mundo objetivo. A pintura dePollock ou de Wols , ao contrrio, a identificao com o exterior, com a totalidadeexistencial indiferenciada do eu: cosmo, mundo natural e febre mecnica da cidade modernaencerrados no mesmo signo. Assim, o impulso que movia toda a vanguarda dos primeirosquarenta anos do sculo XX inverteu sua direo. Outrora, era o fluxo da subjetividadeprorrompendo expressionismo, Joyce, surrealismo que parecia querer inundar tudo,contestar a cidadania do homem num mundo objetivo para faz-lo navegar no rio ininterruptodo monlogo interior ou do automatismo inconsciente. Agora, acontece o contrrio: aobjetividade a anegar o eu; o vulco de onde se derrama a efuso de lava j no o nimo dopoeta: a cratera fervente da alteridade, na qual o poeta se precipita.

    Assim como nos colocvamos em posio crtica inundao subjetiva, contrapondo-lhe osescritores, os poetas, os pintores, os moralistas do atrito com a dureza do mundo, da mesmaforma agora nos opomos rendio incondicionada objetividade. Mas nossa oposiotambm visa colher o seu porqu e o seu momento de verdade (aquele que existe em todaconcepo do mundo), bem como os caminhos que ela ainda abre a uma retomada dainterveno ativa do homem. Esta, com efeito, a tenso ideal que se desgastou, abrindo osdiques para a enxurrada objetiva: para diz-lo de um modo que poder ser consideradoexcessivamente parcial e absoluto, trata-se da crise do esprito revolucionrio.

    Revolucionrio quem no aceita o dado natural e histrico e quer mud-lo. A rendio objetividade, fenmeno histrico deste ps-guerra, surge num perodo em que falha, nohomem, a confiana para direcionar o curso das coisas, no por ser ele o sobrevivente de umaderrota pungente, mas, antes, p