atividade física, educação e saúde - hugo lovisolo

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ATIVIDADE FÍSICA EDUCAÇÃO A hipótese apresentada é a de que existem tribos da educação física e que elas refletem diferenciações profundas tanto em termos de fundamentos teóricos e práticos, como em relação aos valores orientadores das práticas de intervenção. Apresenta-se basicamente quatro tribos: a da potência, a da conservação, a da estética e a da educação física escolar. Os valores orientadores, os fundamentos teóricos e as práticas de intervenção em cada tribo têm definições e características próprias de difícil, senão impossível, conciliação ou integração entre elas. Assim, a expansão da potência atlética pode não ser saudável, a conservação da saúde não significa aumento da potência atlética nem da beleza corporal. Os fundamentos biopsicofisiológicos também se diferenciam e a fisiologia do esporte poderia ser considerada como uma disciplina separada da fisiologia da saúde. Se as coisas ocorrem do modo como são apresentadas, no futuro, poderemos enfrentar até uma redefinição das estruturas de formação profissional. ATIVIDADE FÍSICA, EDUCAÇÃO l Hugo L o v i s o l o ISBN 85-7332-119-9 321197 1 SPRINT

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ATIVIDADE FÍSICA

EDUCAÇÃO

A hipótese apresentada é a de que existem tribos da educação física eque elas refletem diferenciações profundas tanto em termos defundamentos teóricos e práticos, como em relação aos valoresorientadores das práticas de intervenção. Apresenta-se basicamentequatro tribos: a da potência, a da conservação, a da estética e a daeducação física escolar. Os valores orientadores, os fundamentos teóricose as práticas de intervenção em cada tribo têm definições ecaracterísticas próprias de difícil, senão impossível, conciliação ouintegração entre elas. Assim, a expansão da potência atlética pode nãoser saudável, a conservação da saúde não significa aumento da potênciaatlética nem da beleza corporal. Os fundamentos biopsicofisiológicostambém se diferenciam e a fisiologia do esporte poderia serconsiderada como uma disciplina separada da fisiologia da saúde. Se ascoisas ocorrem do modo como são apresentadas, no futuro, poderemosenfrentar até uma redefinição das estruturas de formação profissional.

ATIVIDADE FÍSICA,

EDUCAÇÃO

lH u g o L o v i s o l o

ISBN 85-7332-119-9

3211971

SPRINT

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H u g o L o v i s o l o

2000

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Direitos exclusivos para a língua portuguesaCopyright© 2000 by EDITORA SPRINTLTDA.Rua Adolfo Mota, 69 - TijucoCEP 20540-100 - Rio de Janeiro - RJM: OXX-21-264-80801'OXX-21-567-0295 -Fax: OXX-21-284-9340e-tnail: [email protected] homepage: www.sprint.com.br

Reservados todos os direitos.Proibida a duplicação ou reprodução desta obra, ou de suas partes, sob quaisquerformas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação, fotocópia ou outros)sem o consentimento expresso, por escrito, da Editora.

Capa e Editoração: João Renato Teixeira e Teresa PerrottaRevisão: Cristina da Costa PereiraImpressão e acabamento: Markgraph

CIP-Brasil. Catalogação na fonte.Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

L95aLovisolo, Hugo

Atividade física, educação e Saúde / Hugo Lovisolo.— Rio de Janeiro : Sprint, 2000

inclui bibliografiaISBN 85-7332-119-9

l. Educação física - filosofia. 2. Exercícios físicos -Fisiologia. 3. Higiene I. Título

00-0085.

310100 010200

CDD 613.7CDU 613.7

008409

Depósito legal na Biblioteca Nacional, conformeDecreto n° 1825 de 20 de dezembro de 1967

Apresentação do Autor

• Doutor em Antropologia Social - UFRJ, PPGAS.

• Pós-Doutor em Ciência dos Desportos - Universidade do Poro,FCDEF.

• Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação Física,mestrado e doutorado da Universidade Gama Filho / RJ e do De-partamento de Técnica da Comunicação, UERJ, FCS.

• Autor de numerosos artigos e vários livros, entre eles:"Educação Popular: maioridade e conciliação"

Ed. UFBA-EGBA, 1992."Educação Física: arte da mediação"

Ed. SPRINT, 1995."Estética, Esporte e Educação Física"

Ed. SPRINT, 1997.

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

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índice

Introdução.

A paisagem das tribos da educação física 11

Prolongar a vida: didática e fisiologia 27

A favor da fisiologia e contra a ginástica,o paradoxo de Spencer , ,43

Da fisiologia à religião: argumentos a favor do exercício 67

Desafios metodológicos no ensino da educação física:estética e autoformação 93

Bibliografia. .... 111

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Introdução

Nas últimas décadas o campo profissional da educação física,enquanto campo de intervenção e de estudos, foi assaltado pelascontrovérsias em relação ao seu nome. Se considerarmos que onome é singularmente importante como elemento de identidade,as controvérsias podem ser vistas como algo sério, talvez comoindicador de uma crise profunda em relação aos objetivos da inter-venção e aos objetos das teorias que referenciam as pesquisas elegitimam a intervenção. O surgimento das pós-graduações e aampliação da investigação tornaram-se estímulos para essas, dis-cordâncias e para os desconfortes decorrentes. A dita "educaçãofísica" não seria um nome adequado para expressar o objeto ou osobjetos das investigações nem a diversidade das práticas de inter-venção. Vários outros nomes foram propostos: cinesiologia, ciên-cia da motricidade humana, ciência do movimento, ciências dosesportes e do lazer, entre outros.

A hipótese que apresento, e sobre a qual argumento no primei-ro capítulo, é a de que existem tribos da educação física e que elasrefletem diferenciações profundas tanto em termos de fundamen-tos teóricos e práticos, como em relação aos valores orientadoresdas práticas de intervenção. Distingo basicamente quatro tribos: ada potência, a da conservação, a estética e a da educação física es-colar ou do desenvolvimento de crianças e jovens. Poderia haverdistinguido uma quinta tribo, a do lazer ou recreação. Contudo, a-credito que seja mais importante descrever as diferenciações, astensões emergentes e seus impasses, ainda que de modo imperfei-to, que apresentar uma classificação exaustiva. Argumento no sen-tido de que os valores orientadores, os fundamentos teóricos e aspráticas de intervenção em cada tribo têm definições e característi-cas próprias de difícil, senão impossível, conciliação ou integraçãoentre elas. Assim, a expansão da potência atlética pode não sersaudável, a conservação da saúde não significa aumento da potên-cia atlética nem da beleza corporal. Os fundamentos biopsicofisio-lógicos também se diferenciam e a fisiologia do esporte poderiaser considerada como uma disciplina separada da fisiologia da sa-úde. Se as coisas ocorreram e ocorrem do modo como eu as ré-

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construo, no futuro, poderemos enfrentar até uma redefinição dasestruturas de formação profissional. De fato, os profissionais datribo da conservação poderiam ser formados nos cursos da área bi-omédica; os da educação física escolar nos de pedagogia; os pro-fissionais da potência, na confluência da fisiologia do esporte coma engenharia humana; e os da estética corporal, no campo domina-do pelos esteticistas ou sendo uma especialização dos anteriores.

O convencimento sobre a diferenciação das tribos levou-me areler alguns autores que, pelas razões que são apresentadas no ca-pítulo dedicado a cada um, considero centrais: Coménio, Spencer eCooper.

Pensar Coménio pareceu-me significativo. Por um lado, por-que Coménio faz na sua Didática Magna uma tremenda democra-tização e racionalização do processo de ensino-aprendizagem, ain-da quando as condições de produção não a demandam e, portanto,representa um contra exemplo particularmente importante para asinterpretações mecanicistas sobre as determinações econômicas —lembremos que sua obra foi produzida no século XVI. Do outrolado, porque a partir de uma filiação estóica, introduz o jogo, abrincadeira, a recreação na escola e na formação e prática da 'vidaboa'. Antecipa a temática da fadiga, que será retomada pela fisio-logia do esforço e do trabalho, a partir da segunda metade do sécu-lo XIX. Sem os desenvolvimentos posteriores da psicologia e dafisiologia científica, que está nascendo com Harvey, elabora umreceituário para a saúde do corpo e da mente, que chega com plenavigência até os nossos dias. Diante das elaborações de Coménio,podemos entender que a 'tribo da saúde', nos últimos cem anos;apenas reformula ou tenta fundamentar cientificamente o receituá-rio já presente nas 'filosofias práticas da vida'. Assim, a saúde, es-treitamente ligada à 'vida boa', aparece e deveria ser um temamais filosófico do que fisiológico. Coménio já coloca o problemade que não se trata apenas de viver mais, trata-se de como viveruma vida boa, trata-se do fluir da alegria da vida e da realizaçãopessoal.

Nada mais distante do contexto social e das filiações filosófi-cas de Coménio do que Herbert Spencer, que escreve no momentode expansão do capitalismo industrial, segunda metade do séculoXK, e filia-se à tradição do utilitarismo e do hedonismo. Spencer

é um cientificista que acredita e acompanha o desenvolvimentodas ciências e, em especial, da fisiologia. Contudo, e paradoxal-mente, ele será contra a ginástica e totalmente favorável ao espor-te. Spencer tira do utilitarismo a valorização da ação instrumentalou utilitária sobre a ação estética ou do gosto. Assim, a prática doesporte, os jogos e as brincadeiras são colocados, utilitariamentet aserviço da saúde. Spencer considera um "pecado físico" o agircontra a saúde, contra o bem-estar pessoal. Então, por quê criticara ginástica cujo objetivo de desenvolvimento e saúde é declaradocomo também o é seu fundamento científico e fisiológico? Procurodemonstrar que aqui entra em jogo o hedonismo de Spencer. A gi-nástica não estaria diretamente vinculada ao prazer, ao gosto, co-mo os esportes, os jogos e as brincadeiras que, ademais, por seremnaturais, solicitariam um leque de movimentos bem mais amplos emenos especializados do que a ginástica. Curiosamente, as reco-mendações de Spencer a favor do jogo e do esporte, contra os ex-cessos da formação intelectual e contra os excessos do trabalhoduro e da vida apenas centrada no ganho, parecem ir contra ascondições econômicas t de trabalho de seu tempo. A tensão não-resolvida entre utilidade e prazer faz a potência da obra de Spencer(Lovisolo, 1997). Neste sentido, o hedonismo de Spencer retomaum conteúdo liberador e crítico, que interessou, entre outros, aMarcuse (1997). Spencer, sem dúvida, também está filiado à tradi-ção das filosofias práticas preocupadas em estabelecer os linea-mentos da vida boa.

Considero que Cooper foi o grande predicador das atividadesde resistência, corrida e caminhada, nas últimas décadas. Seu no-me virou marca registrada, fazer cooper é como comprar uma gile-te, em relação à atividade física de resistência. Contudo, e esta é adiferença de Cooper para Coménio e Spencer, o fundamento fisio-lógico em Cooper é bem mais desenvolvido do que o filosófico.Fundamentou sua predica em argumentos fisiológicos e lhes deuum sentido abertamente utilitarista: o valor da saúde vinculou-se,em suas primeiras obras, de modo funcional com a produção ecom a vida social. Contudo, após anos de predica, Cooper desco-bre que o percentual de praticantes das atividades de resistêncianão aumenta. Descrevo sua obra mediante os diversos momentosde desenvolvimento de sua argumentação. Observo que seu 'fra-

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casso' na promoção da atividade o leva, por último, à fundamen-tação religiosa, num sentido bem americano do Deus interior. Nãoé o "pecado físico" de Spencer, mas a conservação da morada de"meu Senhor".

Retomando a tradição hedonista, no último capítulo, trato daquestão que deixei em aberto no final do primeiro: a educação físi-ca escolar. Abandono o papel do cientista social que pretende en-tender os processos, para situar-me no do interventor que apresen-ta sua proposta para a educação física escolar. Não antecipareinesta introdução os principais pontos da proposta, e solicito que oleitor leia, critique e forme seu próprio ponto de vista.

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A paisagem das tribos da educação física1

É lugar comum salientar os problemas de identidade das áreasde formação, produção de conhecimentos e intervenção, que tradi-cionalmente agrupamos sob o nome de educação física. Este nometradicional, centrado originalmente na educação, desenvolvimentoou formação corporal e esportiva, pareceria que perdeu a capaci-dade de integrar atividades guiadas por valores, objetivos e cam-pos de atuação tão diferenciados como: educação escolar, esportecompetitivo, modelagem corporal, saúde, qualidade de vida, re-creação e lazer (Lovisolo, 1995, capítulo 1).

A diferenciação dos valores, objetivos e tipo de ações indicaque, seja lá o que for a educação física ou as ciências dos esportes,sua característica central e positiva é a de intervir mediante pro-gramas de atividades para alcançar valores sociais operacionaliza-dos como objetivos da intervenção. Sua segunda característica,talvez negativa, expressa-se na dificuldade de encontrar fórmulascapazes de estabelecer a unidade, a identidade possível, a coerên-cia teórica, metodológica e prática, minimamente desejável, paraque possamos falar de um campo da educação física ou de ciênciados esportes, quer nos situemos no ponto de vista da formação, dapesquisa ou da própria intervenção (Lovisolo, 1997, capítulo 6).

Ensaiaram-se várias tentativas de superação dos problemas,enunciando novos nomes: cinesiologia, ciências do movimentohumano, ciências dos esportes e das atividades corporais, entreoutros. Algumas das tentativas procuraram a unidade e identidadena construção de um objeto teórico ou de conhecimento, como nocaso da ciência do movimento humano. Assim, sonhou-se com aenunciação de um objeto epistemológico, o movimento, como so-lução dos problemas. Esqueceram essas propostas, contudo, que éo ponto de vista que cria o objeto e que, portanto, os movimentosda física, da fisiologia, da psicologia ou da sociologia não são omesmo movimento. As disciplinas constituídas formam tradiçõese, em princípio, novos problemas procuram ser entendidos com asteorias disponíveis. Esqueceram que a idêntico significante movi-

1 Este trabalho, com algumas variações, reproduz a palestra por mim realizada no Congresso deAIESEP, Rio de Janeiro, 1997.

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mento correspondem significados incomensuráveis, sob o pontode vista das tradições disciplinares. Assim, demandar uma ciênciado movimento humano ou enunciar seu projeto não significa cons-tituí-lo. Em contrapartida, outras tentativas, de forma bem maispragmática, pluralizaram o nome para abranger o campo prático daintervenção, como no caso de ciências dos esportes ou ciênciasdas atividades corporais e da educação física.2 Esta tentativa, en-tretanto, apenas faz coexistir, de forma precária a falta de unidade,de identidade e de coerência e abre a janela para um efeito perver-so: qualquer coisa pode ser denominada ciência, como nos casosde ciência da hidroginástica ou ciência das atividades das acade-mias de ginástica. Não precisamos convocar peritos em epistemo-logia para entendermos que temos pouco ou nada de ciência nessescasos e o que existe, talvez, seja um marketing provinciano,travestido de científico.

Não acredito que os ensaios em qualquer uma das direções te-nham tido êxito e, ainda mais, penso que a situação de falta de in-tegração está-se agudizando nos fundamentos e na prática da in-tervenção, mesmo nas recomendações que são formuladas para seatingirem os diversos objetivos. Estou, portanto, afirmando que ocampo pareceria estar perdendo a coerência do passado, talvezmais imaginada que real, ainda no plano corriqueiro da interven-ção.3 Ao mesmo tempo, os distanciamentos são também sentidostanto nas disciplinas fundadoras, por exemplo nas relações entre afisiologia do esforço e do esporte, a fisiopatologia e a fisiologia danormalidade. Não faz sentido, por exemplo, afirmar que uma pes-soa com alto VÜ2 de máxima e altos problemas articulares é maissaudável que uma pessoa com baixo VO2 e baixos problemas arti-culares. A saúde, seja o que for, é o resultado do funcionamento deum todo, uma idéia talvez profundamente romântica. O esforçoesportivo apenas maximiza um punhado de funções ou partes des-se todo e poderia provocar desgastes sobre outras partes ou dese-

2Ver especialmente sobre o tema Motus Corporis, vol 3, n.2, dezembro de 1996, onde Go Tani,Mauro Betti e eu expusemos algumas convergências e divergências sobre o assunto.3 A coerência, que se estaria perdendo, pode ser produto involuntário de que a educação física,enquanto área disciplinar, avançou em termos de refinamento epistemológico e de reflexão teóri-ca. Assim, hoje, não se aceitam argumentos que circulavam com bastante facilidade num passa-do próximo. Ou seja, a perda pode resultar de um efeito não esperado da melhoria da área .

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quilíbrios entre funções e partes. Hans Gadamer (1996) destinousignificativas reflexões para pensar a saúde como presença e equi-líbrio, utilizando, como base, os discernimentos emergentes da in-teração médico e paciente.

A força dos distanciamentos, das quebras e fraturas tambémestá presente nas linguagens dominantes que usamos para legiti-mar as intervenções: a da necessidade e a do gosto, a prática e aestética. Observe-se que, quando o atleta refere-se a estados aní-micos produzidos pelo esforço físico, usa a linguagem da estéticae, em especial, do êxtase estético.

Perda de integração e coerência, distanciamentos e fraturasserão nossos fios condutores.

Observemos que, quando nos situamos do ponto de vista daintervenção, portanto, do público, e sobretudo do que transmitemos meios de comunicação, o campo das doutrinas, dos valores edas práticas defendidos pelos especialistas em esportes e ativida-des físicas aparece, crescentemente, como um mundo dividido,tenso e paradoxal.

Escolho a imagem do rio para representá-lo e situo as tribosprincipais nesse cenário.

Proponho que vejamos, de um lado do rio, expertos e atletasque esticam as cordas da resistência, da agilidade, da velocidade eda força. Pretendem, no trabalho conjunto, alcançar níveis não i-maginados de exigência normativa, fisiológica e psicológica.4 De-safiam e surpreendem, com freqüência, os parâmetros estabeleci-dos pela fisiologia do normal, como foi observado há mais decinqüenta anos por George Canguilhem (1995).5 Desejam elevar-se além da normalidade, perseguidos pela ansiedade da excelência.Procuram desenvolver a potência e guiam-se pela satisfação de al-cançar suas testemunhas: os recordes olímpicos. Reivindicam oesforço, a auto-exigência, o domínio sobre as dores do corpo e osdesejos de desistir. Desenvolvem-se conhecimentos, teóricos epráticos, no campo da fisiologia do esporte, da biomecânica e node uma psicologia aplicada que pretende, ao mesmo tempo, con-

4Uso normatividade no sentido proposto por Canguilhem, 1995.5Já Canguilhem salientava que a fisiologia do esporte talvez seja uma fisiologia especial, de umanormatividade especial, e que pela via de reconhecer apenas fisiologias especiais poderia serquestionada a idéia de uma fisiologia geral.

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trolar os efeitos negativos do estresse e da agressão mantendo altaa chama da motivação. Como produto, além de se baterem recor-des, consolidam-se conhecimentos teóricos e observações práticasno campo específico da teoria do treinamento, que guia a interven-ção.

Em oposição, emerge um discurso valorativo, que critica estatribo por sacrificar tudo à perfomance, ao desempenho, esquecen-do ou sacrificando outros valores, morais e intelectuais, na procurade mais força, altura e velocidade.

De um lado do rio, então, canta-se à potência e pretendem-seelevar as possibilidades do corpo a seus limites. Sob o ponto devista fisiológico, usam-se indicadores de avaliação específicos ediferentes dos presentes, na fisiologia da normalidade. Difunde-sena população, entre os milhões de espectadores e torcedores, pa-drões estéticos, tanto sobre o "movimento dos corpos no espaço"quanto sobre a "proporcionalidade de suas formas". Convoca-se,para a aventura de fazer possível o impossível lidando com incer-tezas e riscos e, mesmo, com a possibilidade de perder a saúde,quando não a vida, nessa procura. Incita-se a competir, a lutar, asuperar-nos e a superar os outros, a alcançar a glória, o reconheci-mento público e consideráveis retornos financeiros.

O Movimento Olímpico e o esporte empresarial são os cam-pos de aplicação e expressão preferenciais dos membros da tribo.Os estádios e os meios de comunicação são lugares onde os artis-tas do esporte competitivo encontram seu público: milhares de es-pectadores que se emocionam, sofrem e gozam com eles. As em-presas privadas, os clubes e os estados apoiam o esporte e oconcebem como um bom campo, quer dos negócios econômicosquer dos políticos. O cinema e a literatura ocuparam-se e ainda seocupam de contar estórias da tribo da potência, envolvendo diri-gentes, técnicos e desportistas. Esta tribo, deveria, talvez, ser loca-lizada no Instituto ou Faculdade da Potência e o retrato de Nietz-che poderia ocupar a principal parede do hall.

A tribo da potência reconhece que os conhecimentos aplicadossão fundamentais e, portanto, também fundamentais são os peritosque desenvolvem e transferem esses conhecimentos. Assim, emCarruagens de Fogo, um dos tantos filmes que deveriam ser vis-tos pelos alunos de educação física, a figura do treinador profis-

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sional, do experto ou perito, emerge, ferindo os valores orientado-res da aristocracia escolar e esportiva que separa, com uma espadaimaginária e de ineficiente corte, dinheiro e atitude esportiva, di-nheiro efairplay.

Contudo, tornou-se cada dia mais difícil identificar a práticado esporte olímpico ou profissional e mesmo o amador, com saúdeou com qualidade de vida. A equação que vinculava esporte pro-fissional ou competitivo e saúde parece haver-se quebrado. Esta éuma fratura de tremenda importância para a área da educação físi-ca e sobre cujas conseqüências ainda não se refletiu suficientemen-te.

Temos, do outro lado do rio, a tribo que trabalha a favor daconservação da saúde, da qualidade de vida e do bem-estar. Re-comendam o controle do esforço para realizar apenas o necessárioe possível, mandam-nos reconhecer e seguir os sinais das dores docorpo e as indicações dos sentidos, como conselhos sobre os limi-tes que não devem ser ultrapassados. Desaconselham tomar os si-nais como meros indícios que desaparecerão com maiores esfor-ços. Dizem que não devemos realizar esforços desnecessários e,mais ainda, que devemos realizar necessariamente uma atividademoderada na qual encontremos prazer. Mandam-nos mexer, con-tudo, com consciência dos limites e cuidados precisos. Nesta outratribo almejam-se, por certo, outros recordes sociais, como a ampli-ação da esperança de vida dos coletivos humanos, a longevidadedos indivíduos, a redução das taxas de doenças. Pretende-se quetodos cheguemos a velhos ativos e autônomos, saudáveis e dispos-tos a enfrentarmos a vida, ao invés de rabugentos, esse direito queErasmo atribuía à velhice. Velhos que em lugar de estarem con-centrados no comentário do catálogo de suas doenças, de suas per-das ou de sua redução da normatividade, possam, pelo contrário,continuar entregues a usufruírem o prazer de estar vivos; abertosao mundo e aos outros ao invés de autocentrados sobre os própriosmales. Velhos que ainda sintam a presença da vitalidade da saúdee não, o caráter totalitário da doença, que tudo invade.

Nesta outra tribo, consolidam-se conhecimentos teóricos e ob-servações práticas, a partir da fisiologia do normal, da patologia edas psicopatologias. Recomenda-se o controle do sono, dos víciosalimentares e das dependências químicas, como alcoolismo e taba-

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gismo. Mas, sobretudo, os dois grandes inimigos declarados são osedentarismo e o estresse, nos sintomas contrapostos da ansiedadee da depressão. Pretendem os membros da tribo conservar os indi-cadores de normalidade fisiológica, muscular e articular, sem gui-ar-se, no entanto, pelos indicadores elaborados pela fisiologia doesporte. Lutam contra a entropia e falam a linguagem da necessi-dade, da segurança, das companhias de seguros e das políticas pú-blicas e privadas de saúde. Operam, a partir de uma moral tradi-cional, que afirma que longevidade e saúde são valoresinestimáveis e que parecem neste final de século, ocupar o lugarde um significativo meta-relato criador de sentido coletivo. Nãodemandam estádios nem meios de comunicação para suas atua-ções, embora demandem lugares e espaço nos meios de comunica-ção para realizarem campanhas sobre seus objetivos e métodos. Asempresas de seguros, grupos ou associações privadas e os estadossão os principais interessados em apoiá-lo. Para o cinema e a lite-ratura, o tema da conservação da saúde não parece significativo,embora exista interesse sobre os esforços, quando heróicos ou atlé-ticos, para se recuperar uma saúde perdida.

Os membros da tribo da conservação enfrentam, no entanto,um tremendo paradoxo. Eles pretendem que os que se sentem sau-dáveis se preocupem com a saúde, sejam previsores, prudentes,enfim, conservadores. A experiência cotidiana, contudo, pareceindicar que a saúde é um estado silencioso e que começamos a nospreocupar com ela quando se toma barulhenta, quando de algumaforma a temos perdido ou pressentimos que a estamos perdendo.Devem os discursos da tribo, então, apoiar-se na reflexividade ouconsciência responsável para conservar a saúde ou o equilíbrioquando ele ainda existe, em lugar de esperar pela perda para entãocomeçar a recuperá-lo.6 Em vez de se apoiarem na potência, fa-zem-no no medo de perdê-la. Os membros da tribo deveriam estarno Instituto da Conservação e/ou Equilíbrio e há vários candidatospara o retrato do hall de recepção ou para sua sala magna. Eu pro-poria o nome de Thomas Hobbes pois, segundo ele, é o medo quenos leva em direção da razoabilidade. Atividade física para a saú-

6 A visão da saúde como equilíbrio tem um expressivo desenvolvimento filosófico em H. Gada-

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de, contudo, não pode ser confundida com esporte competitivo ouprofissional.

Tudo indica que temos duas grandes tribos, dois projetos edois campos bem diferenciados de registros de competição: recor-des olímpicos, copas e medalhas, contratos e prêmios, por um ladoe, do outro, estatísticas demográficas e indicadores de saúde. A in-tervenção dos primeiros vincula-se à geração de efeitos estéticosna beleza do gesto esportivo, que gera a emoção. Propõe que otrunfo, o êxito, a glória são produtos de uma atitude estóica, quefundamenta o treinamento. A dos segundos, vincula-se à geraçãode uma moralidade necessária no tratamento e na salvação doscorpos, funda-se no medo da doença, da morte e da dependência eem considerar a manutenção e conservação da vida como um valormoral ou necessidade natural. Porém, como se tudo isso não fossesuficiente, clama por uma atividade corporal feita com prazer, comgosto, quase hedonisticamente.

A primeira tribo demanda crescentemente ao experto, ao peri-to, para esticar as cordas da potência. A segunda inclina-se cadavez mais pelas recomendações de atividade moderada e autocon-trolada, apela para a autonomia do praticante e implica, nas pró-prias recomendações, a desaparição do experto ou perito, quandose afirma que é suficiente caminhar alguns minutos, várias vezespor semana, fazer jardinagem, ou as tarefas do lar energicamente,para combater os males do sedentarismo e alguns dos efeitos doestresse.

O problema central no atual momento é se as duas margens dorio podem ser vinculadas, se é possível estabelecer pontes amplas,resistentes e com grande circulação que tornem natural a imagemde uma tribo em vez de duas. O grande problema, então, é se essesregistros estão ou não correlacionados. Em termos mais práticos, oproblema é: o aumento da aptidão física correlaciona-se positiva-mente com o aumento na saúde? Há vozes significativas que afir-mam que não. Dizem-nos que o aumento das práticas esportivasorientadas pelo desenvolvimento da aptidão não parecem incidirna longevidade nem na diminuição das doenças cardiovasculares,quando as taxas são comparadas com as que resultam da atividademoderada e, mais ainda, podem provocar efeitos não desejados,como doenças articulares, entre outros. Assim, os níveis de exi-

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Tgência para o gesto esportivo e para a manutenção da saúde seri-am bem diferentes, tanto no plano dos fundamentos quanto no dosprogramas de intervenção. A tribo da saúde volta na direção dotradicional valor da moderação para sua conservação: atividademoderada iguala-se a conservação. Se as pontes não podem serrestabelecidas, iremos então na direção de pelo menos duas facul-dades, por razões tanto práticas quanto teóricas? Ou talvez de ape-nas uma, pois a tribo da conservação parece necessitar cada vezmenos de faculdades ou institutos e ganha, crescentemente, o po-der dos meios de comunicação.

A tendência da tribo da conservação parece ser crescentemen-te confirmada pelas matérias nos jornais e na televisão cujos con-teúdos podem ser assim resumidos: para manter a saúde e ter qua-lidade de vida .é suficiente caminhar algumas vezes por semana,ser uma pessoa que se movimenta em atividades cotidianas, prati-car jardinagem ou esporte de forma amadorística e com intensida-de moderada. Dizem-nos que não precisamos ser nem imitar osatletas, apenas teríamos que contrapesar os efeitos negativos doconforto moderno, do sedentarismo. Observo que, sem pesquisas,lá por 1550, Ignácio de Loyola dizia coisas semelhantes, quando omundo moderno estava dando sinais quase imperceptíveis de exis-tência e, antes dele, o próprio Coménio desenvolveu sua própriaperspectiva, como será visto adiante.

O importante a ser destacado é que nos estão dizendo que afisiologia do esporte e a fisiologia da normalidade estão em mar-gens opostas do rio e que a primeira não serve de parâmetro para asegunda, embora haja especialistas que continuem a bater na teclada igualação, dominante nos textos, até não faz muito tempo. Pa-rece que a tribo da conservação se torna dia a dia mais moderada eque seus conhecimentos servem para recusar ou relativizar o co-nhecimento especializado. De fato, seus conselhos práticos sãobem semelhantes aos formulados em épocas em que a fisiologiaque hoje usamos não tinha nascido ou quando ainda não se tinhamtirado todas as inferências das teorias de Harvey. Em segundo lu-gar, seus conselhos têm hoje um certo ar de "faça por você mesmoe, se possível, com os amigos, sem muito esforço e mesmo semesforço e, sobretudo, com gosto ou prazer".

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Permitam que eu faça um breve parêntese, olhando para o lo-cal. Acredito que deveríamos reconhecer que o problema do quefazer para manter a saúde passa a ter condições singulares em paí-ses, como o nosso, no qual a subalimentação e a subnutrição sãoconsideradas ainda como significativas e quando a maioria da po-pulação não tem possibilidades de acompanhamento médico regu-lar. Pessoas subnutridas podem alcançar espontaneamente equilí-brios normativos que, talvez, se tornem desequilíbrios, quandoincorporem a atividade física, se esta se processa com níveis deexigência superiores aos culturalmente estabelecidos pelo grupo.Teríamos a necessidade, portanto, de pensar sobre a especificidadedas recomendações que são realizadas em nossas condições locais.Sabemos que, apesar das gritantes diferenças, os objetivos e oscaminhos apresentados do movimento local para a saúde são osmesmos ou bem semelhantes aos propostos nos países desenvolvi-dos. Podemos, por exemplo, desenvolver programas próximo aosdo Canadá, contra os efeitos negativos do sedentarismo. Porém,fazemos isto sem levar em consideração nosso próprio perfil desedentarismo em interação com as diferenças climáticas, os dispo-sitivos alimentares e de atendimento médico, o perfil do trabalhoque, em nosso caso, demanda, para a maioria, um considerável es-forço físico, se comparado com o realizado nos países que avança-ram na substituição do esforço humano pelo mecânico. Em verda-de, se podemos cada dia mais desconhecer a realidade local éporque a palavra de ordem é moderar, fazer o possível, fazer por simesmo e seguindo as indicações do corpo, embora sempre se a-firme a conveniência do controle do especialista.

A tribo da conservação distancia-se, objetivamente, da triboda potência. Mais ainda, parece que a tribo da conservação serra ogalho no qual está sentada, pois faz desaparecer o papel do perito.

No meio do rio podemos distinguir, ainda, uma terceira tribonavegando. Ela ocupa-se de escolas e instituições de ensino. Aquisão almejadas as coisas mais diversas: iniciação ao esporte compe-titivo, desenvolvimento físico e psicomotor, saúde, recreação,formação moral disciplinadora ou crítica, formação do cidadão eaté formação cognitiva, identidades e reconhecimento institucio-nal. Entretanto, esta tribo circula pelo rio, olhando com receios eesperanças para as duas mais fortes, que ocupam as ribanceiras.

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Para o mal ou para o bem, a tribo da potência e a tribo da conser-vação formam parte dos limites de atuação da tribo da educação,quer quando delas se aproxima, quer quando se distancia, por meioda crítica.

Além dessas três tribos, que contam com programas de forma-ção e investigação, com revistas e circuitos científicos, existe ummovimento, por baixo do rio, não estruturado nem tão reconheci-do, porém quantitativamente* poderoso, que tem como objetivofundamental desenvolver e manter a beleza dos corpos: diminuin-do barrigas, torneando pernas, endurecendo e exaltando os dons danatureza. Esta é a tribo da modelagem corporal. No caso do Brasil,as academias constituíram-se no o lugar onde esse movimento es-tético de modelagem do corpo encontra, dominantemente, os mei-os para sua realização na aeróbica, na ginástica localizada e namusculação, entre outras propostas que se multiplicam, antes dosverões. Por vezes, um certo pudor encobre a enunciação dos moti-vos desta tribo que, então, fala a linguagem da tribo da conserva-ção. Não raro, custa-lhe explicitar que a beleza, a estética, a satis-fação de se olhar no espelho e o desejo de obter reconhecimentoreal ou imaginado dos outros são bons motivos e que poderiam serjustificados pela moral social. Afinal, se consideramos positivo e-levar a estética de nossas cidades, de nossos jardins e lares, porque não deveríamos considerar também como positivo construir aestética de nossos corpos?7 Consideramos positiva a atitude docultivo espiritual e, então, por que deveríamos criticar a atitude dacultura corporal, num mundo de relativismos epistemológicos, es-téticos e morais?

É difícil, por exemplo, distinguir na crítica realizada à obesi-dade quanto há de preocupação estética e quanto há de preocupa-ção com a saúde, portanto quanto de gosto e quanto de necessida-de (Lovisolo, 1995, capítulo 4 e 1997, capítulo 1). Contudo, etalvez por terem sido bem criticados, os modeladores do próprio

7 Quando maximizamos um objetivo — formação corporal ou formação intelectual ou acumula-ção de poder ou capital —, eliminando outros igualmente valiosos, estaríamos criando uma 'tira-nia'. Ela emerge do desequilíbrio entre os valores e objetivos de realização pessoal e social. Alinguagem de santo Agostinho sobre as paixões tem a mesma matriz, as paixões, que são natu-rais, tornam-se tirânicas e, mais ainda, quando uma delas é motor obsessivo da conduta. O equi-líbrio resultaria do contrapeso das paixões. Cf. Hirschman (1979).

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corpo têm temores de serem qualificados de ególatras, narcisosou egocêntricos e, então, usam a linguagem da saúde ou da recrea-ção e mesmo valores quase espirituais, como o do equilíbrio,quando são interrogados nas pesquisas de motivação ou de repre-sentação social. As indústrias da moda e da beleza são seus aliadosnaturais. No entanto, uma parcela significativa dos meios de de-senvolvimento que empregam, e dos modelos que pretendem al-mejar, é a gerada no campo da tribo da potência. Assim, a tribo damodelagem corporal pareceria contar com pontes mais ou menosnaturais de vinculação com a tribo da potência e com a possibili-dade de apelar aos argumentos da tribo da conservação quando ne-cessário dissimular a procura estética.

É evidente que a tribo da potência lida muito bem com lingua-gens e sentimentos preponderantemente estéticos, embora de forçauniversalizante. Assim, os esportes ditos^ modernos e ocidentais,baseados em sólidas estruturas organizacionais, deslocam as práti-cas reconhecidas como tradicionais, ocidentais ou não. Parecemcontar com uma encenação que promove, por toda parte, a emo-ção, sua excitação e descarga.8 Torna o corpo do esportista ummodelo a ser seguido. Torna o esportista um artista da velocidade,da graça, da força, do drible, da procura do céu, da enterrada. Al-guém que assina autógrafos, faz publicidade, é convocado para a-tuar no cinema, dá entrevista e se sente uma obra de arte, que elemesmo ajudou a produzir, investindo no seu autodesenvolvimento,embora com assistência de expertos. A linguagem estética permeiao corpo e o ato que realiza a potência; permeia o realizador e ogesto esportivo. Assim, o gesto esportivo é relatado na linguagemda criatividade, da originalidade, do belo e do sublime, do gosto edo prazer. O gesto esportivo pode nos elevar aos cumes da emoçãoexaltada ou nos enviar para a profundidade da depressão. Impulsi-ona a enfrentar o novo, abandonando a segurança do gesto conhe-cido; impulsiona a criar e explorar possibilidades ignoradas, mes-mo no campo das reações fisiológicas, psicológicas epsicofisiológicas. Os membros da tribo parecem não ter medo demorrer, talvez porque não têm medo de viver.

*A sociologia de N. Elias tornou-se um marco clássico para entender esta tribo, sob o ponto devista dos esportistas e dos espectadores.

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Também é evidente que a tribo da conservação parece adotara linguagem oposta: a linguagem da necessidade, da razão prática,da segurança e da inibição dos riscos. Impulsiona na direção dapadronização, da universalização, na repetição do modelo de pesoe de percentual de gordura corporal, de alimentação, de sono e deatividade corporal regulada e conservadora. Parte de uma tradição,que não questiona, que empurra na direção de vivermos mais, desermos produtivos e equilibrados, e de chegarmos a uma velhicecom autonomia, disposição e eficiência para a vida quotidiana. Sa-úde, bem-estar, qualidade de vida são expressões que traduzem asdisposições culturais da linguagem da necessidade.

Se as descrições realizadas são válidas, parece bem difícil quenum mesmo instituto ou faculdade convivam a tribo da potência, atribo da conservação e a tribo da modelagem. As linguagens medi-ante as quais se expressam, os valores que as orientam, os objeti-vos que pretendem alcançar e as recomendações dos expertos paraatingi-los são bem diferentes.

Tenho a impressão pessoal de que, até recentemente, váriaspropostas de intervenção que hoje consideraríamos tradicionais,sobretudo na esfera da ginástica, juntavam valores e objetivos mo-rais, de potência, de conservação e estéticos, num mesmo movi-mento. A linguagem e as recomendações dos métodos clássicosautorizavam essas apostas na junção de objetivos diferenciados.Ainda na época próxima e áurea do método de Cooper, os prati-cantes parecem juntar autodisciplina com autocompetição, a pro-cura da potência com conservação e com a modelagem. EmboraCooper enfatizasse os objetivos de melhoria cardiovascular, a mo-delagem estética e o desenvolvimento da potência podiam ser pen-sados como resultados também realizáveis mediante as caracterís-ticas das práticas aeróbicas preconizadas pelo seu método. Não seentendia que manter a forma fosse apenas redutível ao funciona-mento do aparelho circulatório. Manter a forma podia ser entendi-do como a modelagem das formas corporais, como perda de adi-posidade e de celulite, como definição dos músculos corporais. Oque estou afirmando é que se acreditava que objetivos diferencia-dos podiam ser atingidos mediante as propostas de ginásticas tra-dicionais ou, no método Cooper, mediante uma única proposta deintervenção.

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O problema reconhecido faz bastante tempo é o de que, ape-sar de ser bem significativo o número dos que experimentaram es-ses métodos, não é menor o número daqueles que, mais cedo oumais tarde, os abandonam por razões variadas, que abrangem des-de problemas físicos ou psíquicos até problemas circunstanciais.Constatou-se, suficientemente, que há uma tremenda desproporçãoentre os esforço que demanda o condicionamento e a relativa faci-lidade do 'descondicionamento'. Por isso, a tribo da conservaçãocaminhou na direção de simplificar, popularizar e tentar (azer pra-zerosas as atividades do condicionamento e de sua manutenção,embora em graus de exigências bem menores aos solicitados, porexemplo, na proposta original de Cooper.

Antes de chegarmos ao entendimento atualmente dominantena tribo da conservação, ocorreram questionamentos dos métodosclássicos a partir de três pontos de vista ou lógicas que podem serdistinguidas*.

No primeiro, mediante a criação das atividades alternativas,questionaram-se o esforço e os níveis de exigências solicitados pe-las intervenções tradicionais. Insistiu-se que essas intervenções ti-nham como conseqüência tanto altas taxas de rodízio na prática,quanto efeitos negativos, articulares e posturais, por exemplo, queinduziam a dor e a falta de prazer no exercício, ambos componen-tes do abandono. Em várias propostas alternativas, o equilíbrio en-tre o psicológico e o físico tornou-se dominante e algumas delaspretendem ser consideradas como respostas globais ou holísticas.Contudo, as metodologias alternativas continuavam tendo um cer-to ar de universalidade, tanto em termos de objetivos quanto nodos recursos utilizados para atingi-los e, então, passaram a postularseus próprios métodos de trabalho e, não raro, sua própria base ci-entífica alternativa (Lacerda, 1999).

O segundo questionamento teve como base a pretensão de quehaveria meios específicos para atingir objetivos específicos. Ques-tionou-se a idéia de um método ou atividade única. Tratou-se demontar uma combinação de atividades que maximizassem o atin-gimento dos objetivos de grupos ou de indivíduos. Cada atividadetinha uma universalidade, contudo o praticante podia articular seupróprio pacote, combinando aeróbica, localizada, relaxa-mento eoutras atividades.

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Claramente, estava-se caminhando para um processo crescen-te de individualização da atividade em dois sentidos: de um lado,na relação atividade/objetivo; do outro, na relação ativida-de/especificidade individual. O personal íraining pode ser consi-derado como o produto destilado desses movimentos.

De fato, estas idéias se praticavam e faziam e ainda fazemsentido no caso do treinamento do atleta de alta performance, umtreinamento personalizado na origem. Esse atleta é valioso, justifi-ca estudos intensivos e a formulação de propostas ou programas deintervenção especiais para ele, sobretudo por estar sendo exigido,em termos de esforço e desempenho, fora de padrões ditos nor-mais. Não faz sentido, entretanto, defender uma atitude semelhantepara conservar a saúde da população. Significaria alguma coisaequivalente a fazer uma vacina específica para cada habitante.Contudo, eis que aparece o personal training, que pareceria tornarreal o sem sentido, quando relacionado com a conservação da saú-de. Quando, entretanto, situado no horizonte da modelagem corpo-ral, desaparecem os sem sentidos. A modelagem corporal indivi-dualizada é apresentada como sendo mais eficiente, poderosa,específica.

Há uma base importante, embora vaga, para a realidade dacrescente individualização. A noção de que o produto individuali-zado, pelo e para o consumidor, superaria em qualidade o produtoestandardizado, tornou-se dominante e a maioria de nós aceita essaversão das coisas, embora possa ser suposto, com razão, que apósum período de ativa experimentação, gerador de desvios, as res-postas tendem a estandardizar-se, a padronizar-se darwinianamen-te, diminuindo as diferenças.9

Contudo, os que contam com recursos monetários e falta detempo para atividades institucionais estandardizadas — razão fre-qüentemente enunciada para a escolha do personal training — po-dem entrar na suposta relação individualizada, tanto em termos deinteração pessoal quanto de atividades, que a técnica pareceria ofe-recer. Também para os que se sentem inseguros para entrarem emambientes institucionais ou grupais, o personal training pode sig-nificar um período de adaptação, no qual se desenvolvem maior

'Recomendo a leitura de S. Gould (1990), em especial o artigo "Mantendo a forma".

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segurança e também habilidades corporais, que permitam enfren-tar a atividade institucionalizada.

Temos ainda que conversar sobre nossa questão principal:como situar a educação física escolar em relação a essas duas outrês poderosas tribos? Navegar é preciso e, então, o que deveriamfazer os que estão no meio do rio? Deveriam ou poderiam articularvalores e práticas das tribos da potência, da conservação e da esté-tica corporal com as tradições pedagógicas, que animam a educa-ção física escolar? Ou, ao contrário, teriam que aceitar que os pro-cessos levaram a uma diferenciação, que faz impossíveis aspontes? Se as pontes estão quebradas, deveríamos enviar a tribo daconservação para as faculdades de medicina preventiva ou social,a tribo do esporte e da modelagem para a faculdade dos esportes ea tribo da educação física para as faculdades de pedagogia ou edu-cação? Talvez os distanciamentos que se estão processando levemna direção da especialização em termos de instituições, de currícu-los e de diplomas com específicas habilitações.

Acredito que seja o que for a educação física escolar, a culturaesportiva e a cultura da modelagem corporal não poderão ficar fo-ra de seus objetivos. Os objetivos da conservação pareceriam ficarfora de sua realidade quando, na verdade, trata-se de facilitar o de-senvolvimento de potências corporais, intelectuais, morais e estéti-cas. E quando, sobretudo, trata-se de contribuir ativamente paraque a instituição escolar seja vista e sentida como um lugar onde oemocionante, corporal e intelectual, ainda pode acontecer. Nestesentido, a educação física escolar deveria repensar-se mais, tendocomo horizonte mais o todo da estética da dinâmica escolar do queapenas o horizonte do desenvolvimento individual, pois este contacada dia com maiores espaços especializados para essa finalida-de.10

10 Um maior detalhamento da proposta para a educação física escolar pode ser encontrado emLovisolo, 1997, capítulos 2 e 3.

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Prolongar a vida: didática e físiologia

1. Mens sans In corpore sansHá menos de meio século, educação e saúde estavam integra-

das no mesmo ministério no Brasil. Podemos imaginar que, naque-le tempo, foi natural entender que as políticas de educação e saúdedeviam e podiam ter um comando unificado pois, ambas, faziamparte dos instrumentos disponíveis para cuidar da população eformar o povo ou a raça brasileira, como alguns ainda diziam.Mais tarde, e já como ministérios separados, o esporte ainda ficouligado à educação, indicando sua função formativa. Hoje, a educa-ção física ainda permanece no campo da formação e o esporte foideslocado para a esfera do turismo e, portanto, do lazer.

Um problema significativo para o historiador, e para o analistadas políticas públicas, é o das razões que foram enunciadas para asuniões, separações e ligações entre esses campos de intervenção,explicitando os entendimentos e as decisões políticas, partidárias eadministrativas, que podem ter sido significativas para produzi-lase para realizar a distribuição das políticas públicas entre os orga-nismos executores.

Interessa, no entanto, separar as razões ditas culturais — idéi-as ou representações sobre a educação e a saúde — das razões prá-ticas, por exemplo, crescimento e complexificação das tarefas dasestruturas administrativas ou necessidades políticas partidárias dedistribuição de cargos, embora, no limite, ambos os tipos de razõespossam ser de difícil distinção. Podemos entender, por exemplo,que se o esporte é ligado ao turismo é porque seu significado delazer ganhou predominância sobre suas possíveis contribuições pa-ra a formação dos cidadãos. Poderíamos, por outro lado, entenderque o esporte está muito mais vinculado no presente à saúde e, en-tão, vincula-lo ao ministério que dela se encarrega. Ou, podería-mos entender que distribuição do esporte forma parte do campo dajustiça distributiva, no caso, vinculando-o à expansão dos direitosdo cidadão a esse bem particular, que é o lazer."

1 ' Sobre o lazer como bem particular ver o excelente capítulo de M. Walzer, 1983. Há edição emespanhol publicada pelo FCE, 1993.

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Nada indica, até o presente, que separações e vinculações te-nham tido peso significativo na melhoria das políticas públicas demodo uniforme. A separação entre educação e saúde, por exemplo,pode ter aumentado as dificuldades de coordenação e pode tam-bém significar que a velha complementaridade entre ambas tenhasido quebrada, tornando suas políticas e ações não-convergentes.12

Mais ainda, se as 'tribos' de especialistas, responsáveis por uma eoutra, perderam capacidade de diálogo, de consenso e, sobretudo,de referenciar-se mutuamente como era corriqueiro até a primeirametade do século.

A idéia de que é objetivo central da política pública a forma-ção ou cuidado da população ou do povo, porque este é ou formaparte da riqueza nacional, cresceu ao longo do século XIX e ocu-pou um lugar central na política, em suas últimas décadas. NaAmérica Latina, os ensaístas trabalharam com as imagens de 'po-vo enfermo', 'povo doente', para fundamentar a intervenção corre-tora. Cuidar da população, num sentido básico e tradicional, eracuidar do corpo e do espírito, quer dos indivíduos, quer de unida-des coletivas (população, sociedade etc.) no campo da instrução,da habitação, da higiene e da saúde, da recreação e do lazer.Quando essa representação vigorava, a terapêutica, a higiene, aeducação física, o esporte, a formação intelectual e moral tinhamseu lugar natural nesse ministério de educação e saúde, ou de saú-de e educação, e não havia espaço para confusões significativas.

Como salientei em outra oportunidade, o campo da educaçãofísica e dos esportes foi se dividindo nas últimas décadas em tribosque diferem em termos de valores e objetivos orientadores da ação(fundamentos filosóficos e ideológicos) e nos perfis dos conheci-mentos teóricos e aplicados nos que se fundamentam (fisiologia,treinamento e pedagogia, principalmente).13 As divisões deram lu-gar a um verdadeiro confronto sobre o que deve ser entendido co-

12 Com somente um ministério é bem mais possível que a escola possa contar com o posto médi-co que atende tanto a população escolar quanto a vizinhança. Os problemas de saúde que afetamnegativamente a aprendizagem podem ser mais rapidamente detectados e superados. O postomédico escolar pode valorizar a escola, aumentar o contato da comunidade com ela e ser centroda educação para a saúde na vizinhança. Criam-se economia de recursos e complementaridade.13 Cf. Lovisolo. 1997. Sobre a temática dos valores transformados em objetivos no processo deintervenção, ver Lovisolo, 1995.

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mo educação física, esporte educativo e atividade corporal para asaúde.

Hoje pareceria que há consenso em que devemos situar a triboda educação física escolar no campo das políticas educativas, co-mo um dos eixos de formação da cidadania. É bastante discutido,entretanto, que a tribo da performance ou do esporte competitivo,preocupada com a maximização ou eficácia do gesto esportivo eda formação do atleta de alto desempenho, caiba comodamente noMinistério de Educação. Talvez estivesse melhor situada em al-gum ministério de economia ou produção, mais ainda se levarmosem consideração sua crescente participação no produto bruto in-terno, sua capacidade de gerar empregos e arrecadação para o Es-tado.14 A tribo que se preocupa com a conservação da saúde, porseu lado, pareceria querer ser contemplada pelas políticas do Mi-nistério da Saúde, quer quando a atividade corporal é entendidacomo preventiva dos males e para prolongar a vida, como higiene,quer quando participa como coadjuvante terapêutica em processosde recuperação de perdas e danos, resultados de doenças ou aci-dentes. Por último, não saberíamos onde situar a tribo da modela-gem corporal, preocupada centralmente com a estética corporal.Esta tribo situa-se abertamente fora das políticas públicas e o mer-cado, via academias privadas, satisfaz sua demanda de valores eobjetivos. Temos valores tradicionais, que nos levam a questionara modelagem corporal como formando parte dos processos deformação do povo ou da cidadania. Assim, deixamos livradas àsescolhas individuais as tarefas de estetizar o corpo.15

O que interessa destacar é que houve, tradicionalmente, umaforte relação entre educação do espírito e do corpo: mens sans incorpore sans. Os defensores da educação física escolar e a da con-servação da saúde, desde o século passado, participaram estabele-cendo relações fortes entre educação e saúde. "Mente sã em corposão" foi e ainda é uma espécie de imperativo natural. Herdamoscomo resultado o sentimento de que uma mente poderosa numcorpo que sofre pela doença é uma situação humana lamentável. O

14 O crescimento da participação das rendas dos esportes no PIB é constante e significativo nosúltimos anos. A formação dos clubes-empresas reflete essa importância. Ver, como exemplo, aobra editadas pela FGV sobre o voleibol.15 Sobre algumas das questões que envolvem a estetização, ver Lovisolo, 1997.

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drama inverso, uma mente doente num corpo saudável, não seriamenor. Assim, natural e espontaneamente, os dois campos, saúde eeducação, estiveram e estão estreitamente vinculados.16

É quase impossível pensar uma formação que não seja higiê-nica ou uma intervenção higiênica que não se funde ou considerecomo eixo fundamental à educação. Qualquer educação do espíritocomporta, em algum grau, uma pedagogia do corpo e, reciproca-mente, para formar o corpo é necessário educar o espírito. Se odualismo mente/corpo ou espírito/carne é forte, não menos fortessão as vontades de estabelecer as pontes ou continuidades. Portan-to, formação da mente, formação dos sentimentos morais e estéti-cos e educação física formadora do corpo pareceria que podem edevem caminhar juntas.

Há um motivo básico e testemunhai para isso: se a saúde éuma presença de definição impossível, um se apresentar, um estaraí com boa aparência ou presença, como ensina Gadamer (1996), équase impossível separar, em sua apresentação, corpo e espírito.Os termos se tornam intercambiáveis: a educação é saúde do espí-rito e, a saúde, educação do corpo. Com variações, algumas signi-ficativas, tal equação anima as considerações dos clássicos aosmodernos.

Educação e saúde, desde longa data, foram vistas quer comoferramentas fundamentais para o exercício dos valores individua-listas como liberdade pessoal, autonomia, realização e autenticida-de, quer como caras das propostas que circulam, apresentandofórmulas para a vida boa comunitária ou coletiva. A servidão vo-luntária, a dominação, a dependência, esses males que se contra-põem à maioridade, ao esclarecimento e à autorealização, ora po-dem ser entendidas como resultado da fraqueza do espírito, oracomo produto das necessidades e desejos da carne indisciplinadapela doença, desejo ou carência. A servidão voluntária pode resul-tar tanto da dinâmica da carne quanto do espírito. Nada temos aestranhar, portanto, que suas linguagens se interpenetrem e, por

16 Sobre as relações entre cultura, ou formação, e risco ver Briceno-Leão, R, 1998. Briceno dis-tingue o ponto de vista especialista na definição da doença (disease) do ponto de vista do indiví-duo (illness), que pode estar doente sem se sentir doente. Eu agregaria o ponto de vista de outrossignificativos não-especialistas, o cfrculo das relações que podem destacar ou não nossa aparên-cia ou aspecto saudável: a 'presença'.

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exemplo, a ignorância seja tratada na linguagem da patologia, oanalfabetismo como chaga social e, a doença, como carência deeducação e de conhecimento, então, como ignorância.

A reversibilidade, as circulações e comunicações entre ambosos termos aparecem como inevitáveis e continuam agindo, no pre-sente. Jean F. Malherbe, no seu trabalho sobre a ética médica, es-creve: "a medicina, definitivamente, é a arte de cultivar a autono-mia dos homens através do cuidado dedicado aos corpos".17 Aautonomia é promovida a um valor final, por isso não caberia per-guntar: autonomia para quê? Essa promoção a valor final apenas érealizável quando o espírito, formado na educação, reconhece aautonomia como valor orientador da tradição do esclarecimento. Aautonomia ou emancipação tornou-se valor central das pedagogiasmodernas, as distinções correspondentes situam-se no plano daspropostas sobre os modos para seu desenvolvimento. Entretanto, aafirmação de Malherbe não faria sentido se vivêssemos numa cul-tura que valoriza a tradição costumeira da dependência patriarcal,ao invés da autonomia no processo de construção do social e deautoconstrução pessoal.18 A pedagogia moderna, por sua vez, es-trutura seu agir em torno da autoformação, da aprendizagem en-tendida como autonomia, no aprender a aprender e se contrapõe,com força, à heteroformação.

No plano da escola, a disciplina ou atividade que se ocupa daformação do corpo é a educação física e deve operar na junção dasdobradiças da saúde e da higiene, da formação do corpo e do espí-rito. Deveria ser uma arte que trabalhasse pela autonomia da saú-de-higiene e do gesto desportivo, no mesmo movimento em que,como arte pedagógica, cria as condições para a autoformação; es-ses são alguns de seus legados. Como arte pedagógica deve contri-buir para os processos de autoformação, de autonomia do aprenderdo espírito. Como arte médica, corporal e esportiva, deve cultivara autonomia dos homens nos cuidados e usos do corpo, prolon-gando a vida e aumentando sua qualidade e potência. Todavia, de-ve promover a alegria, que resulta da capacidade do corpo em ex-pressar o espírito que imagina o gesto; e a plenitude, quando o

" Citado por Oliveira, R. de, 1998.18 G. Freyre apontou, em Ordem e Progresso, as características, no Brasil, da saúde patriarcal-mente organizada e comandada pelo costume.

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espírito consegue compreender o movimento do corpo. Em con-junto são valores não negligenciáveis.

O problema da educação física escolar não é o da prática ounão-prática dos esportes, nem da realização ou não de atividadescorporais para a saúde. Seu problema é o como faz isso e nisto nãose distingue do problema que enfrenta o professor de matemáticaou de literatura. A crise que resulta das diferenças sobre o que en-sinar é tão grave quanto a provocada pelas diferenças sobre o co-mo ensinar. As discussões pedagógicas das últimas décadas estãoconcentradas, de fato, sobre a questão do como ensinar.

2. Um exemplo privilegiadoTomarei o pensamento pedagógico de Coménio, que para mim

inaugura a modernidade em educação, para demonstrar uma formaespecífica de vinculação entre saúde, higiene e educação. Acreditoque a Didática Magna, de Coménio19, tem para a educação impor-tância semelhante à obra de Hobbes para a política, à de Galileupara a ciência da matéria, à de Descartes para a filosofia e à deHarvey para a fisiologia. Esses homens foram contemporâneos en-tre si e com seu tempo. Elaboraram pensamentos que abrem para amodernidade e, mais importante ainda, anteciparam idéias e meca-nismos que apenas terão relação funcional com condições econô-micas e políticas bem mais tarde desenvolvidas.

3. Duros temposAntes de adentrar-nos no pensamento pedagógico de Comé-

nio, darei algumas informações biográficas e contextuais. Comé-nio nasceu na Moravia, em 1592, e ficou órfão de pai e mãe em1604, com doze anos. Sua família, piedosa, pertencia à Unitas Fra-trum Bohemorum, que lutou pela autonomia da região. Foi comdoze anos, mortos seus pais, que começou a concorrer à Escolados Irmãos, da pequena cidade da tia paterna, que o acolheu. Em1608, com dezesseis anos, entra para a escola latina e, três anosmais tarde, na Universidade de Herborn, em Nassau. Em 1612, i-niciou a elaboração de um léxico completo, de uma gramática daslocuções elegantes e das figuras da retórica e dos provérbios. Co-

" Utilizo a edição da Fundação Calouste Goulbenkian, 1985, Porto.

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meça a trabalhar no projeto de uma obra enciclopédica dos co-nhecimentos, sua vontade pansófica jamais o abandonará, segundoseus biógrafos. Em 1613, sentindo-se doente, inicia uma viagem apé, para se fortalecer, entre Heidelberg, onde tinha-se matriculado,e Praga.20 Ordena-se sacerdote em 1616, com vinte e quatro anos.Escreve Cartas ao Céu, onde propõe soluções para os problemassociais, baseado em princípios cristãos. As lutas entre católicos eprotestantes agudizavam-se e levaram à Guerra dos Trinta Anos. AGuerra incide na vida de Coménio e da Boêmia. Sua cidade é sa-queada em 1621 e Coménio perde sua biblioteca e manuscritos.Pouco depois, sua esposa e seus dois filhos morrem de uma epi-demia de peste. Coménio peregrina por diferentes lugares. Refu-gia-se na interioridade do diálogo com Cristo. Em 1624, casou denovo. A perseguição dos Irmãos leva Coménio para a Polônia,Berlim, Frankfurt. Foi a partir de 1627 que se dedicou intensiva-mente à reforma pedagógica. Confiava na liberação de seu país epreparou obras que, acreditava, ajudariam em sua reconstrução.Pansofismo, educação e paz mundial foram suas principais preo-cupações ao longo de sua vida. Em 1657, publica as Opera Didac-tia Omnia, a primeira parte, que abre com a Didática Magna, con-tem as obras começadas na Boêmia, a partir de 1627. Faleceu em1670, com setenta e oito anos, uma idade respeitável para os tem-pos que lhe tocou viver. O conjunto de seus dados biográficos, si-tuados em suas circunstâncias, leva a supor uma mente poderosanum corpo não menos potente: mens sans in corpore sans

4.Valores e mecanismos orientadores e antecipadoresO primeiro valor que gostaria de comentar em Coménio é sua

ardente defesa da democratização da escola. Propõe uma arte uni-versal de ensinar a todos, de um e outro sexo, não excetuando nin-guém, em parte alguma. A escola elementar é democrática e uni-versal na proposta de Coménio. Propõe, então, uma idéia bastanterevolucionária para seu tempo de lutas religiosas e políticas pelaconstituição dos reinos, no contexto das ações pela construção doabsolutismo monárquico. Propõe em cada reino cristão a criação

20 Observe-se que, já naqueles, tempos pensava-se que a caminhada, a longa caminhada, tinhauma função terapêutica ou recuperadora.

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de escolas para a juventude. Temos claramente formulado o prin-cípio democrático do ensino universal. Mais ainda, há em Comé-nio o democratismo da língua, escreve sua Didática na língua ver-nácula ou maternal, e propõe o ensino elementar na língua do po-vo, em lugar de ensinar uma língua universal, no caso, o latim.2

Haveria que realizar um profundo malabarismo intelectual pa-ra relacionar ambas democratizações com demandas políticas oueconômicas de seu tempo. O fundamento de Coménio é cristão,todos os homens nascem aptos para adquirirem o conhecimentodas coisas porque são obras de Deus. Mais ainda, suas possibilida-des de conhecimento são inesgotáveis. A democratização do ensi-no deita suas raízes numa interpretação do cristianismo que vai a-lém de uma mera funcionalidade em termos da leitura dos escritossagrados. Entretanto, a democratização do ensino no aprendizadoda língua vernácula antecipa a idéia de formação do povo-nação,da população nacional, que se definirá mais tarde pelo pertenci-mento a uma língua geralmente encorpada num território.

Coménio formula num mesmo parágrafo, de introdução à o-bra, quatro objetivos centrais para o ensino e aprendizado: a eco-nomia de tempo, a redução da fadiga, o agrado nos estudos e a so-lidez dos mesmos. Os dois primeiros objetivos, economia detempo e redução da fadiga, implicam a necessidade de racionalizara escola e antecipam problemas que a indústria apenas se colocarádois séculos após, sendo que a intervenção da fisiologia do traba-lho —incluída na fisiologia do esforço— que toma por objeto de es-tudo a produção da fadiga do trabalhador e a reposição das energi-as gastas no processo produtivo, apenas se tornará intervençãoavançada na segunda metade do século XIX.22

O agrado nos estudos pareceria antecipar uma nova sensibili-dade, em estado emergente ou que Coménio ajuda a construir, queecoa até hoje nas pedagogias modernas e na cultura dita do narci-sismo ou hedonista. Se pensamos que viveu num mundo aindadominado por guerreiros, sacerdotes e camponeses, as idéias deComénio deveriam ser consideradas fora de lugar, e gentilmente as

21 Não confundir a língua vernácula ou maternal com a língua nacional que, no caso da Europa,parece haver tido seu momento pioneiro na Espanha e haver sido concretizada na famosa gramá-tica da língua castelhana feita por Nebrija, por volta de l SOO.22 Ver a obra de Rabinbach, A., 1992.

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poderíamos denominar de antecipatórias. A antecipação do pen-samento e as idéias fora de lugar não se confundem, não são amesma coisa. O estar fora de lugar habitualmente significa umacrítica da importação ou da cópia, crítica a um deslocamento dodiscurso, em termos espaciais e temporais. O estar fora de lugarpoderia chegar a explicar sua baixa realização, porém nada infor-ma sobre sua geração. Nada diz em relação à questão: como po-dem ser geradas idéias fora de lugar sem serem importadas? Co-ménio não importa nem reproduz, ele cria sua própria combinaçãoque é, em vários sentidos, antecipatória.

A didática significa a arte de ensinar e de aprender. Com estaproposição, Coménio abre para o reconhecimento da atividade esubjetividade dos educandos e coloca o problema da interação en-tre o ensino e a aprendizagem. Eu diria que Coménio cederia dian-te da proposição moderna de que a aprendizagem é a finalidade e oensino, o conjunto dos meios. Proposição que caracterizará, comvariações de formulação, o núcleo comum da pedagogia moderna.

As formas de ensino existentes eram para Coménio resultadode métodos práticos, isto é, a posteriori sistematizados e formula-dos. Ele pretende fazer uma coisa bem diferente. Propõe um méto-do universal de ensinar tudo a todos, baseado na certeza; impossí-vel não conseguir bons resultados: rapidamente, sem enfado nemaborrecimento para os alunos, solidamente, não, superficialmente.Ou seja, Coménio rejeita o ensino como coleção de receitas, aindaque se revelem como eficientes na prática. Propõe, em contraparti-da, um conjunto de procedimentos que considera metódicos; pro-põe um sistema. De fato, Coménio gera uma tremenda racionaliza-ção da escola, dos currículos, dos processos de ensino aprendizadoe dos especialistas encarregados do ensino.

O contexto intelectual favorece a emergência de idéias novas.Entretanto, Coménio não parece ser um mero copista dos pares deseu tempo. Galileu já havia enunciado o princípio de inércia, e es-tava realizando suas experiências em ótica, contudo, apenas publi-caria a obra sobre seu sistema, em 1633. Descartes publica suasobras a partir de 1628, Regras para a conduta do espírito, e oDiscurso, em 1637, sendo seus Princípios de filosofia, de 1644 eas Paixões da alma, de 1649. Assim, não há uma influência diretadessas obras, que hoje consideramos seminais do espírito metódico

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e científico, sobre Coménio. São, sem dúvida, contemporâneos epodem partilhar sentimentos e valores do seu tempo. Contudo, pa-rece difícil provar influências diretas. Coménio está afirmando, emseu tempo, que há formas científicas, metódicas ou racionais deintervir. Porém, está afirmando essas idéias quando ainda não hánada na economia que permita afirmar que são produtos de suasdemandas nem, tampouco, no campo da filosofia política. Hobbes,nascido dois anos antes que Coménio, apenas publicará o Levia-than, em 1651. De mesma época foi Willian Harvey (1587-1657),que permaneceu em Pádua, até 1602. Seus descobrimentos nocampo da fisiologia nasceram da escola italiana a cujos autores fazfreqüentes alusões. Harvey aparece, como outros autores, constitu-ído na dobradiça da cultura de conhecimento clássica e da novacultura que se está desenvolvendo na modernidade. Hall (1985)considera que "Harvey era um moderno, e nunca o foi mais quenos aspectos experimentais e mecânicos da investigação do cora-ção, aos olhos dos modernos sua teoria da circulação aparece co-mo totalmente desenvolvida e perfeitamente demonstrada"(1985:244).23

5. Prolongar a vidaEntre os capítulos da Didática que tratam de modo geral da

escola, de suas necessidades e funções e os capítulos que desen-volvem os requisitos, os fundamentos gerais e específicos do ensi-no e da aprendizagem, Coménio situa seu capítulo XV, que intitulade "Fundamentos para prolongar a vida". O título sugere uma an-tecipação, pelo menos no plano das preocupações, em relação aomovimento atual pela saúde e pelo prolongamento da vida.24

Prolongar a vida faz parte, para Coménio, das ações para afas-tar os obstáculos, que a divina providência coloca-nos extrinseca-mente, para aumentar a nossa aplicação (193).25 Contudo, o objeti-vo de prolongar a vida não se coloca como um imperativoreligioso ou de qualquer outra natureza. Em outros termos, prolon-gar a vida não é um objetivo autônomo e valioso em si mesmo.

23 Ver Rupert Hall, 1985.24 Algumas sugestões sobre o movimento para a saúde podem encontrar-se em Lovisolo, 1995.25 Os números entre parênteses correspondem às páginas da Didática Magna (1985), FundaçãoCalouste Gulbenkian, Lisboa.

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Coménio circunstancia a importância de prolongar a vida. Cristoe Alexandre, por exemplo, apesar de suas curtas vidas, fizeram oque deviam fazer, alcançaram a plenitude da obra. Declara, acom-panhando Sêneca, que se soubermos fazer bom uso da vida, ela élonga. Ocorre que gastamos a vida de forma perdulária, diz Comé-nio, e então sentimos que ela é insuficiente. Gastamos no sentidode que realizamos ações ou perseguimos objetivos de pouco ounenhum valor. Ou seja, se não soubermos fazer uso da vida, elaserá sempre insuficiente. Observe-se que nas orientações atuaispara prolongar a vida 'o seu uso', 'o como a usamos', desaparece,e 'o prolongar' é um valor em si mesmo, 'biologicamente' deseja-do e posto como valor cultural. Criou-se uma competição interna-cional, sem dúvida civilizadora, no sentido de Norbert Elias, quenos obriga a laborar, para aumentar a esperança de vida das popu-lações, na verdade, de nossa população.

Coménio acompanha as estimativas de Hipólito Guarino, se-gundo as quais o homem de constituição delicada pode chegar aossessenta e o de constituição fortíssima, aos cento e vinte anos.26

Porém, os homens cometem excessos vários e arruinam suas vidase a dos filhos, que acaso venham a gerar, e apressam a morte(196). Assim, a temática que caracteriza o atual movimento pelasaúde, a dos excessos e riscos (comida, fumo, álcool, traba-lho/estresse etc.), já estava presente em Coménio como, de fato,em autores ainda bem mais antigos.

Na verdade, Coménio parece muito mais preocupado com odestino que damos às nossas vidas ou uso que fazemos delas, doque pela sua duração cronológica. E nisto difere significativamentedos apelos atuais a favor de prolongar a vida, que transitam desdea absolutização dos dados cronológicos (longevidade e esperançade vida), as campanhas contra os riscos, até o valor negativo paraas finanças públicas dos gastos de saúde que se derivariam,supostamente, da falta de cuidados. Importa mais, para Coménio, oque se faz com a própria vida do que sua duração em anos. Coloca,assim, a temática da vida plena ou vida boa, que não podemos nemdeveríamos confundir com nosso conceito freqüentemente redu-

26 Observe-se que o valor proposto por Guarino não é significativamente diferente das estimati-vas realizadas hoje com ampla informação e estudos sistemáticos sobre a longevidade, entendidacomo idade máxima.

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rcionista de bem-estar. Observemos, em contrapartida, que o atualmovimento pela saúde deixa liberado a cada um o que fazer com oprolongamento da vida, o que fazer com sua própria vida, emborase multipliquem os centros que ofertam atividades para os mem-bros da terceira idade que não sabem o que fazer com os anos ga-nhos a mais.

Acredita Coménio que, quando bem usada, trinta, quarenta oucinqüenta anos são suficientes para se ter uma vida plena. "A vidaé longa, se é plena. E atinge a sua plenitude, quando o espíritoconseguiu o seu próprio bem e se tornou senhor de si mesmo"(197). Novamente cita Sêneca: "Assim como um homem pode serperfeito, mesmo que seja de pequena estatura, assim também a vi-da pode ser perfeita, mesmo que seja de breve duração. A duraçãoda vida é uma coisa externa. Queres saber durante quanto tempo,ao máximo, se deveria viver? Até o momento em que se tenha ad-quirido a sabedoria. Aquele que aí chega, atinge, não a meta maislongínqua, mas a mais elevada" (197).

Em vez de os homens se lamentarem pela brevidade da vida,deveriam ser ensinados nas escolas e aos filhos, dois remédios: de-fender o corpo das doenças e da morte e dispor a mente a fazer tu-do com sensatez.27 Assim, a formação é tanto higiênica como espi-ritual. O motivo para fazermos isso é que o corpo é a habitação daalma, que está obrigada a migrar quando o corpo se arruina, e casose arruine pouco a pouco, a alma sente a habitação incômoda. Maso corpo é também o órgão da alma, e sem ele, a alma não pode ou-vir, ver, agir nem pensar (198). Logo, o corpo doente significauma redução da vida plena no exercício das faculdades mentais.No mesmo parágrafo, Coménio abandona a linguagem da alma efala numa linguagem bem mais atual.

"Danificado o cérebro, danifica-se afaculdade imaginativa, e se os membrosdo corpo estão doentes, é afetada tambéma mente. Por isso, o poeta teve razão emdizer: Deve pedir-se uma mente sã numcorpo são" (198).

27 O estressado poderia ser perfeitamente entendido como um insensato, porque não sabe admi-nistrar ou gerenciar os fatores que provocam o estresse. Hoje não usamos essa linguagem porqueo estressado é como uma criança à qual deve ser ensinado a lidar com o estresse.

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Coménio continua dando suas receitas práticas para prolon-gar a vida. O corpo se mantém vigoroso por meio de uma dietamoderada (199). Quanto mais moderada seja a ingestão de alimen-tos, melhor será a digestão. O excesso arruina as forças da vida,provocando a doença dos maus humores pouco ou nada digeridose espalhados pelo corpo. Mas não é apenas um problema de quan-tidade, é também de qualidade. Os alimentos devem ser simples,com preferência para água e legumes. Como a árvore tem necessi-dade de transpirar, assim o corpo humano tem absoluta necessida-de de movimento, de ginástica, de exercícios sérios ou de jogos,(200). Considera importante o repouso. É significativo que Comé-nio considere que durante a jornada de trabalho ou estudo devemser dados intervalos de recuperação.

"É, portanto, prudente interrompertambém os trabalhos diurnos para respi-rar um pouco e entregar-se a conversas,brincadeiras, jogos, música e outras coi-sas semelhantes, onde os sentidos externose internos encontram repouso e prazer"(201).

Seus princípios implicam que a boa organização escolar deve-rá ser procurada numa conveniente repartição do trabalho e do re-pouso, das férias e dos recreios (201). No entanto, poderiam tam-bém ser entendidos como uma boa organização da vida e dotrabalho. Coménio formula um plano de vida ideal. Considera ne-cessárias oito horas para o sono, oito horas para as ocupações ex-ternas (tratar da saúde, para comer, para vestir, para recreaçõeshonestas, para conversar com os amigos etc.) e oito horas para en-frentar as ocupações sérias, com ardor e com alegria. O sétimo diada semana será totalmente dedicado ao descanso (202).

6. Antecipações e realizaçõesComénio expressa, ao longo de sua obra, duas chaves de pen-

samento que serão centrais para a fisiologia do esforço ou do tra-balho, nas décadas finais do século XIX; a importância dessaschaves foi brilhante e demoradamente demonstrada por Rabinba-ch. A primeira é a preocupação com o mal da fadiga no processode estudo e trabalho. A segunda é a idéia de que o excesso de es-

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tudo ou trabalho, sem sono e sem reposição no que se denomina-ria hoje lazer, leva a uma queda na produtividade, torna-se antie-conômico e reduz o vigor e o prazer, na execução das atividadesou tarefas. A fisiologia fundamentará essas duas idéias com con-ceitos físicos e fisiológicos, estudos de laboratório e experiênciascontroladas em empresas, para lutar pela redução da jornada detrabalho, pelos intervalos de reposição e pela reposição no lazer,além da jornada de trabalho. A redução da jornada de trabalho, odescanso do fim de semana e os pequenos intervalos são as marcasda intervenção da fisiologia do trabalho, que usou no plano argu-mentativo, como propõe Rabinbach, a metáfora do motor humanoe um referencial físico potente. Tal metáfora está ausente em Co-ménio, que elabora seus argumentos usando como analogia a vidada árvore, exemplos humanos históricos e a observação direta. As-sim, pontos de observação, bases teóricas e analogias diferenteslevam às mesmas conclusões e recomendações.28

Há, então, uma poderosa antecipação em Coménio da proble-mática da fadiga, da economia de esforços, e das formas de reposi-ção, que encontrará seus fundamentos científicos duzentos e cin-qüenta anos mais tarde. Como foi possível tal antecipação?

Minha hipótese está implícita no resumo realizado da propostade educação de Coménio. De fato, Coménio cria uma escola que éanáloga à fábrica racionalizada que começará a existir duzentosanos mais tarde. Essa fábrica de formação separa os alunos porgrupo de idade, que são instruídos por especialistas e devem a-prender um currículo cuja gradação é planejada. A escola torna-seum espaço intensivo e constante de trabalho, como a fábrica, quenascerá mais tarde. Nessas condições, a fadiga pode fazer sua apa-rição e, então, Coménio elabora um conjunto de argumentos e dereceitas para combatê-la.

Duas conclusões se derivam. A primeira é que a racionaliza-ção da intervenção pedagógica de Coménio antecipa-se à raciona-lização que mais tarde será realizada no campo da produção e essaantecipação também antecipa o tema da fadiga. A segunda é quesem os fundamentos teóricos e empíricos, que a fisiologia do es-

28 Que bases cognitivas tão diferenciadas levem às mesmas recomendações faz pensar que afisiologia moderna desenvolveu argumentos teóricos explicativos para validar observações empí-ricas. Ver outro exemplo semelhante referido a Savarin in Lovisolo, 1997.

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forço sistematizará, avançado já o século XIX, geram-se receitasantecipatórias e idênticas às que serão propostas pela fisiologia dotrabalho.

Agregaria, para finalizar, que as receitas de Coménio para pro-longar a vida em termos de nutrição, reposição e sensatez são ab-solutamente semelhantes às que dominam em nosso presente. Sempossuir as explicações sobre os mecanismos moleculares e fisioló-gicos, Coménio produz receitas ainda postuladas como corretaspara prolongar a vida. Coménio, entretanto, não perde de vista aquestão do porquê e do para quê prolongar a vida.

7. CodaTenho a impressão de que a medicina científica, e a educação

dita científica, para afirmar sua legitimidade, destacou os absurdosdo engenho humano que se contrapõem aos conhecimentos atuaistido como científicos. Entretanto, rara vez, reconhecem que o bomsenso gerou antecipações que muito mais tarde encontraram fun-damento científico. Assim, nem sempre, como alguns parecem a-creditar, o pensamento científico se contrapõe ao bom senso, à o-pinião ou doxa. No plano prático, o bom senso gerou receitasvaliosas não apenas para prolongar a vida, mas também para queainda estejamos vivos no presente. Considero central que os cien-tistas lembremos dessa coda, antes de distribuirmos receitas, porvezes antagônicas, de opiniões antigas e ainda com valor, paramuitos.

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A favor da físiologia e contra a ginástica;o paradoxo de Spencer

Duas tribos, duas utilidadesVivemos no seio de duas pressões principais e poderosas que

orientam a formação de nossos corpos. De um lado, os membrosda tribo da saúde, ou da conservação, apresentam-nos argumentosaparentemente muito bem fundados para que consideremos a ati-vidade física (desde a moderada à intensa) como um investimentona saúde, na longevidade e na manutenção e alargamento da dis-posição física e mental. Afirmam que os esforços que realizamosno presente, na atividade física sistemática e continuada, transfor-mar-se-ão nesses benefícios futuros.29 Assim, o esforço na ativida-de física significará um aumento de eficiência no funcionamento epotencialidades em nosso próprio corpo, que contribuirá para nosgarantir bem-estar presente e futuro e, em definitivo, a efetivaçãode nossa autonomia. Nas últimas décadas, as atividades ditas deresistência ou aeróbicas (corrida, caminhada, natação, ciclismo,entre outras) foram preferidas pelos membros da tribo da saúde,ainda quando são realizadas em intensidade moderada. Ditas ativi-dades seriam as que melhor contribuiriam para o desenvolvimentoda eficiência circulatória e respiratória. Do outro, há uma outra tri-bo, a da modelagem corporal ou da estética, que cria imagens e ar-gumentos favoráveis para a atividade corporal criadora de um cor-po modelado, decorado ou adornado de padrões sociais, volumes eproporções, que se consideram belos, bonitos, atraentes, enfim, so-cialmente valorizados. Neste caso, a atividade física localizada ga-nha o primeiro lugar nas preferências. Ambas as tribos valorizam ocorpo magro e esbelto, com percentual de gordura baixo e mesmoabaixo das taxas consideradas 'normais' sob o ponto de vista esta-

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8 Hí várias formas de definir a "atividade física sistemática". Todas elas, no entanto, levam emconsideração a freqüência semanal, a duração de cada sessão e a intensidade. Resistência, flexi-bilidade e força são as dimensões privilegiadas e que entram em combinação com formas e pesosespecíficos, em cada proposta particular. Há consenso sobre a necessidade de manter a continui-dade na atividade ou exercício físico. Seus benefícios, afirmam os pesquisadores, regridem muitorapidamente quando se interrompe a atividade física. Contudo, há sérias críticas à capacidade doexercício determinar níveis adicionais de proteção, em especial, em relação às doenças cardio-vasculares.

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tístico.30 O estar 'seco', sem gorduras, tornou-se expressão popu-lar e desejo. Há uma parcela que 'malha' o próprio corpo como seestivesse forjando uma armadura de músculos e nervos.

A dinâmica da nutrição, em termos de programação de quan-tidades e do equilíbrio das qualidades, e o exercício físico são asferramentas normalmente distribuídas para se atingirem os objeti-vos de ambas as tribos, embora com diferenças signifíca-tivas, so-bretudo no campo da modelagem, onde os suplementos alimenta-res, vitamínicos e hormonais têm destacado papel. Ambas as tribosreconhecem que é baixo o percentual da população que faz exercí-cio físico de forma sistemática, que é alta a taxa de rodízio entre osque entram e saem da atividade, enfim, que ainda que as propostassejam boas, sua realização, de modo sistemático em freqüência,duração e intensidade, pela maioria da população, é ainda um ob-jetivo distante de ser alcançado. Os desejos de bem-estar, longevi-dade, saúde, aptidão e beleza não parecem ser suficientes para ga-rantirem os esforços que demandaria a prática sistemática, namaioria da população. As pesquisas de campo indicam que a par-cela dos praticantes sistemáticos é ainda reduzida.

Se usarmos um conceito de utilidade amplo, sem restrições,ambas as tribos propõem que façamos esforços para obtermos 'uti-lidades', quer na obtenção de saúde, quer na obtenção de embele-zamento e aceitabilidade própria e social. A maioria sente, no en-tanto, que duras são as ladeiras das montanhas da saúde e doembelezamento, e que a superação do esforço que demanda a as-censão requer uma alta motivação ou um considerável grau de au-tocontrole que, quando insuficiente, leva à desistência mais oumenos rápida. Para os membros dessa maioria, a atividade físicasistemática parece significar esforço, desconforto, dor e, sobretu-do, muita força de vontade para superar esses custos. Emerge, as-sim, a temática da 'vontade' ou 'autonomia' para vencer os custosque a realização das atividades físicas provoca.

Há, sem dúvida, uma parcela de 'eleitos' por ora, a minoria,que parece realizar o exercício físico com prazer, sem esforço nemdesconforto. Parecem ascender as ladeiras da montanha com ale-

30 É difícil encontrar ao nível das propostas argumentos sólidos sobre por que, por exemplo, 15%é uma boa taxa de gordura para os homens. Os valores desejados são dados sem explicaçõessobre os mecanismos que os fariam bons.

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gria e satisfação. No entanto, não temos um entendimento clarode por que muitos sentem um alto custo, uma espécie de dor daqual acabam fugindo, e uma minoria, sentimentos inversos, umquase prazer ou euforia, na realização da atividade física. As ex-plicações fisiológicas e psicológicas ainda não são suficientes paradarmos idéia clara das razões dessas diferenças.

Os membros da tribo da conservação ou da saúde possivel-mente considerariam que a junção no mesmo conceito de 'utilida-de' de suas propostas com as da tribo da modelagem não é muitojusta. Pensariam ou diriam que os objetivos de saúde, longevidadee disposição são superiores, mais sérios, mais nobres, mais justosou úteis que os de embelezamento, decoração ou adorno corporal,que resultam da modelagem. Diriam que há uma espécie de hie-rarquia entre esses objetivos e que, portanto, não podem ser con-fundidos, englobados, no mesmo conceito de utilidade. Ou seja,afirmariam que os valores relativos de uma e outra proposta, deuma e outra 'utilidade', seriam diferentes e, em definitivo, diriamque seus objetivos são 'mais morais' ou que a 'utilidade estética'deveria ser situada num plano inferior. Mais ainda, os críticos maisradicais do embelezamento associariam a procura da modelagemao narcisismo, à egolatria e ao autocentramento. A 'moralidade'dos argumentos dos membros da tribo da saúde incide até entre ospraticantes de atividades físicas modeladoras, os quais, não raro eem princípio, usam também os argumentos da tribo da conserva-ção para justificarem os motivos de suas condutas, como foi regis-trado em várias pesquisas. Fica no ar, no entanto, se o imperativode "viver mais e melhor" não teria também um sólido fundamentoegoísta: como o gene egoísta maximiza sua reprodução, então, oindivíduo egoísta maximizaria sua longevidade e bem-estar? Eunão consigo elaborar argumentos sólidos para demonstrar que aconduta de uma pessoa apenas preocupada pela sua beleza seja in-ferior à de uma pessoa apenas preocupada pela sua saúde, sob oponto de vista moral.

Estamos na corrente de debates morais, de valores sociais pe-los quais deveríamos orientar nossas condutas. Se todas as açõesque realizamos, e os pensamentos que temos, tivessem o mesmovalor, não teríamos necessidade de escolher e, talvez, não teríamosmuitos sobre o que conversar e discutir. De fato, as pessoas vivem

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rconversando consigo mesmas, reflexivamente, e com os outros,dialogicamente, sobre o que gostam mais, sobre o que é mais útil,sobre o que é mais justo ou moral. Juntamo-nos e separamo-nospelas diferenças avaliai i vás que expressamos e sem as quais seriadifícil fazer isso que chamamos viver.

O decorativo e o útilSpencer, que foi um filósofo reconhecido e de ampla influên-

cia desde a segunda metade da década do século passado e até asprimeiras décadas do nosso, esteve profundamente envolvido nes-se tipo de discussões. Inicia sua obra sobre educação realizandouma discussão muito próxima da que foi esboçada acima sobre asduas tribos. Spencer começa distinguindo entre adorno e vestido,entre luxo e conforto, entre o decorativo e o útil. Acredita que naorigem das civilizações concedia-se um grande privilégio ao ador-no corporal e que o vestido deriva dele, e que

"há tanta mais razão para admitir estaorigem, que até entre nós muitas pessoasse importam mais com o luxo do que como conforto, mais com a elegância do quecom a comodidade, mais com afigura quelhe proporcionam seus vestidos que comos serviços que lhe prestam."É curioso observar que a mesma correla-ção existe na esfera intelectual. Para o es-pírito, como para o corpo, o útil cede pas-so ao decorativo...Os homens formam oespírito dos seus filhos como vestem ocorpo, seguindo a moda dominante"(2-3)31

31 Entre parênteses são colocadas as páginas de sua obra, Spencer, 1887. Dois anos antes tinhatido, na cidade do Porto, local de longa influência industrial e comercial inglesa, uma edição que,pelo alto preço, não preenchia a finalidade de subsidiar a formação dos docentes portugueses.Carrilho Vídeira, no prefácio da edição de 1887, salienta o significado da obra e indica o cami-nho do magistério francês, que desde 1878, estuda a obra em edições sucessivas. Mais ainda,menciona que a comissão francesa de 1884, encarregada de catalogar os livros das bibliotecaspedagógicas, tinha declarado que nenhuma obra mais que a de Spencer merecia ser recomendadaà atenção dos professores. A obra tinha sido publicada em inglês, em 1861, juntando os artigospublicados em 1854 no North British Review, segundo capítulo da obra; os dois últimos capítu-los foram publicados em Quaterly Review, em abril de 1858 e 1859, respectivamente, e o pri-

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Spencer apresenta exemplos de diferentes sociedades parareforçar sua hipótese sobre a precedência do decorativo sobre oútil, do estético sobre o prático. A utilidade aparece, na reflexão deSpencer, mais como conseqüência da evolução ou civilização doque como resultado de necessidades básicas ou primárias. A atitu-de de valorização do decorativo, portanto, seria primitiva e a dautilidade, secundária ou produto do processo de evolução ou civi-lização. Sua visão contrapõe-se ao entendimento hoje dominantedo decorativo ou não-útil como produto do desenvolvimento mate-rialista, consumista e hedonista da sociedade capitalista. Spencerusa o conceito de utilidade criticamente para se contrapor ao do-mínio social do decorativo, e embora situe a lógica utilitária numnível superior não pretende, contudo, eliminar a lógica ou lingua-gem decorativa, mas antes, trata-se de dar-lhe seu lugar e, mesmono processo educativo, conservá-la num patamar menor de valori-zação social.

Temos assim duas razões, lógicas ou linguagens para o agir: aestética e a utilitária, sendo que a segunda deveria dominar sobre aprimeira, sem eliminá-la. Spencer refere-se, como exemplo, aomembro da tribo africana que usa o manto de pele de cabra para seluzir em público, mas ao menor sintoma de umidade, o dobra eguarda cuidadosamente, ainda que tirite de frio. Conservar o man-to e sua importância decorativa (hoje talvez diríamos 'simbólica'ou 'cultural') é mais importante que conservar as calorias do orga-nismo. Afirma Spencer que, no seu tempo, as ciências, que teriamum marcado caráter utilitário, ainda se apresentam em segundo lu-gar, detrás das artes, na valorização social. Critica as escolas gre-gas, por ensinarem fundamentalmente música, poesia, retórica euma filosofia, com pequena influência sobre a vida dos homens.Então, o lugar secundário da utilidade já se manifestava entre osgregos, onde o saber aplicado às artes industriais ocupava um lu-gar muito inferior. O presente não seria muito diferente, declara

meiro, em julho de 1859, em Westminster Review. Usaremos a edição citada de 1887 nas cita-ções, apenas modernizando o português. Optou-se por modernizar o português da mesma. Ob-servemos que a idéia da transmissão da moda, entendida como rotinas, preconceitos e gostosparticulares sem base racional, isto é, como arbitrários, é bem próxima da desenvolvida maistarde por Bourdieu. Há uma grande proximidade entre o 'positivismo' de Spencer e o de P.Bourdieu. Como diria Cioran, estamos talvez diante de mudanças nas gírias, não necessariamen-te diante de avanços no campo do conhecimento.

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Spencer, e critica o sistema educacional, inglês por ensinar coisaspouco úteis. Essa crítica chega com força aos nossos dias, o ensinocontinua sendo criticado por ensinar em demasia coisas inúteis,embora seja tremendamente difícil distinguir entre conteúdos cur-riculares úteis e inúteis.32 Assim, na história da humanidade, do-minou uma atitude mais decorativa que útil. Com o desenvolvi-mento da civilização,

"o sentimento do bem-estar tomou oprimeiro lugar no que diz respeito ao ves-tido dos homens. Pelo mesmo motivo a suaeducação, só desde há pouco, foi mais di-rigida no sentido do útil do que no do a-gradável." (3)33

Duas observações merecem ser destacadas. A primeira é a deque a civilização ou progresso produz o sentimento de bem-estar ea procura das utilidades capazes de satisfazê-lo. A vinculação en-tre civilização e bem-estar chega com plena força aos nossos dias,tornando-se tanto objetivo das políticas públicas e privadas quantodo funcionamento do mercado, que passa a ser elogiado ou critica-do em função de suas potência ou impotência para gerar bem-estar. Uma das principais discussões atuais entre liberais ou neoli-berais e seus opositores é sobre a capacidade do mercado em gerare distribuir o bem-estar com equidade mínima. O próprio Estadopassa a ser avaliado pela sua contribuição para o bem-estar demo-crático ou igualitário. Assim, ainda estamos atados à linguagem dobem-estar, formulada faz mais de cem anos. A própria intervençãono campo da atividade corporal e dos cuidados do corpo orientou-se, crescentemente, pela idéia de bem-estar.34

Segunda observação. Uma questão importante para Spencer éa do valor relativo dos diferentes gêneros de conhecimento. Ascoisas, incluídos os conhecimentos, distribuem-se numa escala deínfima à máxima utilidade. Reconhece que não há talvez objeto

32 Ver Lovisolo (1997), capítulo 3.33 Spencer afirma que o sentimento decorativo domina mais entre as mulheres que entre os ho-mens, como resultado de rotinas e preconceitos, ou seja, com uma origem social. Savarin, centoe cinqiienta anos antes, pensava da mesma forma. Ver Lovisolo (1997), capítulo 1.34 O bem-estar é de complicada definição, pois está marcado pelas definições individuais e cultu-rais. No entanto, existe o requisito do "completo", do "total", no sentido de salientar que o bem-estar parcial ou em poucas dimensões não deveria ser considerado como tal, em sentido estrito.

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algum que não tenha algum grau, embora ínfimo, de utilidade.35

Contudo, a questão que coloca é: quais as vantagens derivadas dosesforços que faremos para adquirir os conhecimentos? Coloca, en-tão, a questão da escolha: quais deveriam ser os conhecimentosprivilegiados pelo esforço de aquisição? A questão prática é: quaisconhecimentos são proporcionais ao esforço sob o ponto de vistade sua utilidade relativa? A questão formulada está englobada nu-ma pergunta prática central: "como se deve, pois, viver"? Spencerformula algumas das questões que se desdobram dessa questãocentral:

"Qual é a verdadeira linha de conduta aseguir em todas as situações, em todas ascircunstâncias da vida? Como se deve tra-tar o corpo? Como cumpre dirigir a inte-ligência? Como governar os seus negó-cios? Como é que se deve educar afamília? De que modo cumpre desempe-nhar os seus deve rés de cidadão? Comoconvém utilizar todas as fontes de felici-dade que a natureza deu ao homem? Quala melhor maneira de empregar nossas fa-culdades para nosso maior proveito e dosoutros? Como conseguir afinal viver vidacompleta?" (8).36

Algumas das perguntas de Spencer são bem antigas e fazemparte da tradição da filosofia da vida. Importa reconhecer quegrande parte dos especialistas ou peritos, que na modernidade sedesenvolvem, cria teorias, métodos, programas e propostas pararesponder a aspectos dessas perguntas. Vemos diante de nós comose multiplicam os cursos de formação de especialistas, as propos-tas e os manuais, de como devemos agir na vida, tratar o corpo, o

35 A distinção entre o decorativo e o útil há um momento em que desaparece ou se toma impos-sível. Isso ocorre com muitas categorias ou classificações que usamos na vida cotidiana. Há ummomento em que não sabemos se é dia ou noite. Contudo, ninguém deixa de usar essas distin-ções porque, sob certas condições, se tomam incertas ou não-aplicáveis. Assim, a pele de cabra,mencionada por Spencer, pode ser útil para adquirir prestígio, que por sua vez pode ser útil paraparticipar de sistemas de distribuição ou de circulação social, que podem resultar em utilidades.6 Observe-se que a idéia de "vida completa" poderia ser pensada como sinônima da de "bem-

estar".

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respírito, o sexo, a nós mesmos, aos outros, aos clientes, enfim,temos um amplo leque de ofertas de ajuda e auto-ajuda, que pre-tendemos dizer-nos "como se deve viver". (Na produção dessa li-teratura popular dominam os especialistas, formados nas escolasou na própria atividade, externos à vida acadêmica ou científica e,não raro, suas produções e atividades são tomadas por objeto dasanálises destes acadêmicos).37

Spencer entende que o papel da educação "é o de preparar-nospara a vida completa", e a forma que temos de julgar a educação ésaber o grau no qual preenche essa finalidade. Observe-se, Spen-cer, como quase todos os modernos, entende que a preparação épara a vida que nós e cada um de nós teremos que viver. Não pos-tula um modelo ideal do passado nem a idéia de uma preparaçãopara um mundo transcendental nem ideal. Se a educação deve pre-parar-nos para viver, a primeira tarefa, para Spencer, é classificar,por ordem decrescente de importância, as atividades da vida.Spencer parece acreditar que há uma forma natural de dividir e hi-erarquizar as atividades e a propõe:

"J.- a atividade que tem por objeto di-reto a conservação do indivíduo; 2.-a que,provendo as necessidades de sua existên-cia, contribui indiretamente para sua con-servação; 3.- a atividade que tem por ob-jeto o sustento e educação da família; 4.-a que assegura o sustento da ordem social ,e política; 5.- a atividade de gênero varia-do, empregada em preencher os ócios daexistência pela satisfação dos gostos e dossentimentos" (7-8).

Sem pretender criticar a divisão realizada, nem sua hierarquia,trataremos de analisar algumas das proposições de Spencer sobre aatividade de conservação da vida para nos concentrar,seguidamente, em seus paradoxos.

37 Ver Lovisolo, 1995 e 1997.

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A conservaçãoSob o ponto de vista de nosso presente, registra Spencer, a

crença em que cada indivíduo deve estar preocupado em conser-var-se como indivíduo e agir neste sentido, parece haver ganho al-ta adesão.

"Deve-se portanto admitir que os co-nhecimentos imediatamente necessáriossão os que garantem diretamente a con-servação do indivíduo, pois tal ignorâncialhe seria mais fatal do que qualquer ou-tra" (8).

Spencer considera um erro privilegiar na formação quer o es-pírito quer o corpo, e declara que chegará o momento no qual am-bos se tornarão objeto de igual solicitude. Neste sentido, Spencer éum promotor e defensor da educação física ou educação do corpoe aplica-se no desenvolvimento da crença de ser a "conservação dasaúde um de nossos deveres. Poucas pessoas parecem compreen-der que existe uma cousa no mundo que poderia chamar de a mo-ralidade physica" (250). Conclui sua obra, afirmando: "a verdadeé que todo prejuízo causado voluntariamente à saúde é um pecadofísico" (251). O cuidado do corpo faz parte da "moralidade física"defendida por Spencer e o dano voluntário à saúde torna-se um pe-cado físico. Esta recorrência à idéia de pecado, e sua destacada uti-lização no fechamento da obra, parece funcionar como um tre-mendo reforço: parece que para os humanos não é suficientecompreender racionalmente as utilidades ou vantagens derivadasdos cuidados do corpo, torna-se necessário reforçar essa compre-ensão com a idéia de pecado, quando o dano é voluntário.38 Natradição positivista, a necessidade da moralidade da religião, em-bora de uma religião superior da humanidade, foi defendida porComte. A positividade do conhecimento comteano do social im-plica que a religião deve ser um constituinte necessário da ordemsocial. Spencer parece caminhar pela mesma matriz, o sentimentoreligioso do pecado dever reforçar o conhecimento racional e em-

18 Não raro o discurso dos especialistas em prol da saúde toma características religiosas, culpabi-lizando os pecadores que não seguiriam as normas recomendadas para preservar a saúde.

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píríco das vantagens dos cuidados do corpo.39 Spencer está afir-mando que a razão ou o conhecimento científico, sozinhos, nãoteriam força suficiente para orientar-nos de modo firme e duradou-ro, e a religião e a idéia de pecado aparecem, então, como um re-forço necessário. Se pensarmos a cultura como um sistema de ori-entação dos atores, podemos deduzir, seguindo Spencer, que nãoteríamos cultura eficiente, ou com poder de orientação, sem religi-ão.

O valor concedido aos cuidados do corpo, sua não-secundariedade em relação aos cuidados do espírito, a igualdadena solicitude dos cuidados, situam Spencer como ativo defensor dasaúde e do desenvolvimento do corpo e como precedente impor-tante da história da tribo da conservação ou da saúde.40

A crença no valor da conservação da saúde ganhou altura epeso desde que Spencer escreveu sua obra. Os meios de comuni-cação lhe Üedicam espaço e tempo considerável. As receitas e osconhecimentos para conservar a saúde são diariamente difundidos.A autonomia de cada um no cuidado de sua saúde é enfatizada esão distribuídos os meios para sua realização. Educamos as crian-ças na idéia de que elas têm responsabilidade nos cuidados do cor-po e na manutenção de sua própria saúde. Há, em nossas socieda-des modernas, um sentimento generalizado de que os vícios queatentam contra a saúde são um dano e mesmo um 'pecado' contrasi mesmo e contra o coletivo, e que devem ser eliminados ou, pelomenos, reduzidos. As campanhas contra as drogas, o álcool, o fu-mo, a obesidade e o sedentarismo, considerados como vícios, mul-tiplicam-se. Os epidemiologistas, com seu conceito de "taxa derisco", fundamentam estatisticamente a luta contra os vícios e, não

" Por outras vias, K. Cooper chega ao mesmo resultado em sua última obra. Ver próximo capítu-lo.40 Uma das interpretações mais comuns é a que vincula toda preocupação com a saúde e sua.conservação à conservação das forças produtivas no capitalismo. Há críticos do capitalismo queparecem sentir especial prazer em apresentar qualquer preocupação com a saúde como funcionalpara o capitalismo, embora essa posição seja declinante. Realizam essa preocupação, esquecen-do, primeiro, que a mesma é muitíssimo anterior ao capitalismo e, segundo, que elas se manifes-tam ainda quando há força de trabalho tão excedente em relação às demandas da produção nospaíses capitalistas, que devem ser exportadas quer para as colônias, quer para os países de recen-te formação. É importante destacar a idéia de que no século XIX, sobretudo nas últimas décadas,consolida-se a crença na população como riqueza e, portanto, a necessidade de políticas quecuidem dela.

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raro, colaboram na culpabilização das pessoas pela sua responsa-bilidade ou irresponsabilidade na perda da saúde e do bem-estar,quando estão com excesso de peso, fumam, bebem sem modera-ção, são sedentários ou usam drogas.. O ponto de vista de Spenceraparece como representativo das crenças atuais que, não raro, ma-nifestam-se sob uma forma economicista ou com aparência de cál-culo de custo-benefício. Assim, por exemplo, a atividade física éapresentada como uma contribuição para diminuir os gastos emsaúde sem que, no entanto, sejam comparados ambos os gastosnem se calculem os custos médicos que se derivam da prática dasatividades físicas e esportivas. Ou seja, supõe-se, sem comparar osgastos, que é melhor gastar em atividade corporal do que no aten-dimento de doenças que se acentuariam sem ela. Na verdade, oque se afirma é que é moralmente superior gastar em atividadecorporal que em tratamentos que poderiam ser evitados com ela.41

Observemos, no entanto, que o valor da conservação da saúdede cada indivíduo não pode ser entendido como natural, como re-sultado de leis biológicas, como Spencer pareceria pretender. Setomarmos como representativa da posição da biologia a obra deDawkins (1979 e 1998), sua interpretação e defesa da teoria daevolução, sem a qual os biólogos concordam em salientar que nadafaz sentido, a conservação da saúde individual não se sustenta nanatureza ou na biologia, por duas razões. Em primeiro lugar, Daw-kins defendeu o ponto de vista do "gene egoísta", da reprodução dacarga genética, como motor do processo de vida. Assim, sua leimor diz que o gene tende a se reproduzir. Essa não é a lei, por cer-to, que comanda a conservação da saúde, os microorganismos queatacam a saúde estão programados pela mesma lei. Para o gene sereproduzir deve aumentar o número de sua descendência, gerandocustos que podem ser contrários à conservação do indivíduo, embo-

41 Como os gastos em saúde são majorítaríamente cobertos pelas políticas públicas ou pelosseguros privados, sob o ponto de vista de cada indivíduo que paga imposto e /ou plano de saúde,os custos da atividade física não aliviam seus gastos em saúde. Os que economizam são os esta-dos ou as companhias de seguros. Contudo, é duvidoso se o argumento moral serve ao econômi-co ou, ao contrário, o argumento econômico, numa sociedade dominada pela sua linguagem,serve para carregar águas para o moinho da moralidade. De fato, o aumento da esperança de vidaparece estar provocando mais problemas econômicos, no plano da previdência social, do quesoluções. Ou seja, o aumento da esperança de vida leva à reforma das formas de previdência parareduzir seus saldos negativos e tais reformas são entendidas como atentado aos direitos adquiri-dos.

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rã favoráveis à reprodução de sua carga genética. A atitude demaximização da reprodução do gene egoísta não caracteriza a ori-entação dos atores sociais na vida moderna, motivados por orienta-ções que reduzem o número de filhos e mesmo por opções para nãoos terem, pois escolhem outros caminhos de desenvolvimento doeu ou de auto-realização. De fato, no plano das sociedades huma-nas, uma mentalidade religiosa que considere cada filho como umabênção ou uma visão de sua utilidade está bem mais próxima doponto de vista de Dawkins, sobre o gene egoísta, do que as condu-tas modernas. Em segundo lugar, a estratégia de sobrevivência deuma população não se confunde com a agregação das estratégias deconservação da saúde de seus indivíduos. A sobrevivência da popu-lação pode exigir o sacrifício de categorias de seus indivíduos, e aguerra seria um exemplo evidente.

Se entendemos que a conservação da saúde individual tornou-se um valor, se consideramos que é uma produção cultural, nãopodemos lhe atribuir um caráter natural. Sob este ponto de vista, eapesar de Spencer, a conservação da saúde individual poderia serentendida como um distanciamento da natureza, que resulta, entreoutras razões, do aumento em seu controle e na segurança da vidaindividual. Podemos então reconhecer que a lógica da classifica-ção de Spencer responde a uma razão cultural, que torna o objetivode viver mais, e com saúde, mais importante, que os objetivos desacrificar-se pela reprodução, pela pátria, pela honra, pela ciênciaou por qualquer outra atividade ou população. Se todos temos co-mo valor viver muito e com saúde, a estratégia de perseguir a se-gurança, o convívio pacífico, relações não-conflitivas e pequenosideais, ao invés dos grandes, que podem levar na direção das guer-ras e da auto-exploração, parece ser bem mais adequada.

Podemos considerar que, para Spencer, a superioridade daconservação ou segurança pessoal é quase uma questão de anterio-ridade lógica mais que natural. Assim, os conhecimentos que paraela contribuem devem ocupar o primeiro lugar na ordem de impor-tância dos conhecimentos vinculados às atividades. O ideal da e-ducação seria o de uma preparação completa em todas as ativida-des. Entretanto, como isso é temporalmente impossível, "é precisocontentarmo-nos com manter uma justa proporção entre os dife-

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rentes graus de preparação para cada uma das divisões da ativida-de humana" (11).

A conservação natural e a culturalA educação para a conservação da vida é logicamente a pri-

meira tarefa. A natureza encarrega-se de instruir-nos, à medida quenascemos e vivemos, mediante a experiência direta que temos emnossa interação com o meio. Os adultos devem proteger sem coa-gir, sem inibir a experimentação.

"O nosso principal papel é vigiar paraque a criança tenha a completa liberdadede adquirir esta experiência e de recebereste ensino, para que a natureza não sejacontrariada, assim como o é, por absurdasprofessoras, que impedem de ordinário asmeninas, confiadas a seu cuidado, de seentregarem à espontaneidade de sua ativi-dade física, como elas gostariam de fazer,tornando-as assim relativamente incapa-zes, elas próprias, de se precatarem emcaso de perigo "(12).

A natureza ensina-nos*mediante a experiência a precaver-nosdos perigos físicos, mecânicos. A dor é um mecanismo central deproteção, uma sensação que orienta para fugir daquilo que a pro-voca. Entretanto, é preciso que nosso organismo seja protegidocontra as conseqüências das infrações das leis fisiológicas, que le-vam na direção da doença e da morte.42 Temos que prevenir os en-fraquecimentos e os lentos esgotamentos que os maus hábitos pro-vocam. Sem saúde e sem vigor, quase todo tipo de atividade setorna mais ou menos impossível, afirma Spencer. Este segundo ti-po de preservação cultural, que resulta "do saber o conhecimentoda fisiologia", não é menos importante que o ensino natural daconservação. A educação, então, deve colocar o ensino desse sabernum "grau muito elevado".

42 Leis fisiológicas de caráter natural e universal: "Mas é um fato indiscutível, e que é precisoaceitar, que o homem está submetido às mesmas leis orgânicas dos animais inferiores...a francaadmissão deste fato importa uma recompensa, a saber: que as generalizações originadas dasexperiências e das observações realizadas sobre os animais tornam-se úteis ao homem" (191).

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A natureza avisa-nos para que tomemos em consideração ofrio ou calor excessivo e a falta de alimentação. Na verdade, dizSpencer, se seguíssemos os avisos em relação à fadiga do corpo edo cérebro e descansássemos, se não ficássemos expostos aos efei-tos nocivos das atmosferas confinadas, se não comêssemos semfome, se não se bebesse sem sede, o organismo raramente se en-contraria em dificuldade de funcionar. Porém, como há hábitosnocivos, a saída é a familiarização com os princípios da fisiologi-a.43 A luta contra os hábitos nocivos foi e ainda é central na estra-tégia dos médicos para aproximar as condutas das recomendaçõesda fisiologia que saberia distinguir entre os bons e os maus hábitosna conservação da saúde.

Temos formulada, seguindo a Spencer, uma espécie de per-cepção dual da capacidade de aprender com a natureza para pre-servar-nos. Diante de condições mecânicas pareceria que reagimosadequadamente de modo espontâneo, isto é, sem conhecimento ci-entífico aprendido. Protegemo-nos do frio excessivo, retiramos amão do fogo que queima. Contudo, temos hábitos culturais inade-quados para acompanhar as leis fisiológicas. Spencer não explicaessa contradição, apenas a constata para argumentar sobre a im-portância do saber que ajuda a conservar-nos. Acredito que ficariasurpreso se pudesse saber que hoje, a fisiologia, manda beber comou sem sede um mínimo diário de água. Talvez também ficassesurpreso se soubesse que há pessoas que parecem não sentir fomeou que, pelo menos, não comem ainda que com fome e que talconduta pode ser considerada anormal ou tão prejudicial como ados que sentem fome e comem em excesso segundo o ponto devista médico. A fisiologia avançou no caminho de uma padroniza-ção do ar, da comida, da bebida e do descanso com independênciado que sentimos. Quebrou, portanto, a relação entre sensações erespostas e criou um novo papel, o de reeducador das sensações e

a A natureza é geralmente percebida e pressuposta como boa e justa. Então, os hábitos nocivosou os vícios são postos como produto da sociedade, pois não existiriam na natureza. As reco-mendações da fisiologia ou da medicina são igualadas com os ditames da natureza. O desviosempre seria social. O discurso definitivamente insiste sobre uma "queda da natureza" na socie-dade, uma espécie de pecado que reduplica o da queda do paraíso. Estes jogos fazem parte dosnúcleos argumentativos das propostas de reforma moral no campo da saúde. Assim, a anorexianem o sedentarismo, por exemplo, poderiam ser entendidos como produto dos mecanismos danatureza.

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das respostas associadas como no caso da formação de novos há-bitos alimentares e de atividade física.

O paradoxoApesar da valorização dos cuidados do corpo a partir da fisio-

logia, Spencer é um crítico da ginástica. Estamos, sem dúvida, di-ante de um paradoxo, quando consideramos que os diferentes mé-todos ginásticos declaram apoiar-se ou estar fundamentados nosconhecimentos da fisiologia e da biomecânica. Se Spencer valorizaesses conhecimentos para cuidarmos do corpo, por que, então, écrítico da ginástica? Tentemos reconstruir sua argumentação.

Spencer acredita que temos que seguir os ditames da naturezaque se manifestam nas sensações, porém corrigidas pelos conhe-cimentos que obtemos da observação da natureza, e que sistemati-zamos na biologia e fisiologia. Assim, não é mau comer quando setem fome, beber quando se tem sede (212). Analogicamente,Spencer afirma que

"não é a atividade intelectual, espontâ-nea e agradável, que é prejudicial, mas aque se prolonga apesar das dores de ca-beça e da sobreexcitação cerebral. Não éo exercício corpóreo, agradável ou indife-rente, que é perigoso, mas sim, o exercícioprolongado além da prostração" (212).

O mal resulta de que não seguimos as indicações de nossassensações, nos exemplos do tipo prazerosos, pelas quais a naturezanos ensina e adverte. Mas o mal também pode derivar de seguir-mos hábitos sociais inadequados, sobre os quais a natureza tam-bém nos informa, quando a observamos em sua totalidade.

Spencer afirma, seguindo Emerson, que a primeira condiçãode êxito neste mundo é sermos "um bom animal" e a condição deprosperidade nacional "é que a nação seja constituída de bons a-nimais" (189). A primeira preocupação é a de cuidar de cada um eda população como um todo. Esta aparece claramente como umariqueza, e seu vigor físico como condição primeira da prosperida-de ou riqueza nacional. Há de se educarem as crianças para quepossam suportar tanto a luta intelectual como a física que o cursoda vida e do presente solicita. A Nação deve preocupar-se pelo seu

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capital humano. Trata-se de distribuir hábitos adequados no cui-dado da população que deve começar pelas crianças.

A alimentação será objeto dos primeiros comentários de Spen-cer. As crianças não devem ser submetidas nem a pressõesalimentares nem a restrições. Dar liberdade à criança é favorecer oguia de seu próprio apetite, como nos animais. Ir contra as regrasartificialmente impostas é sua regra. A repressão gera o excesso,diz Spencer, tanto como a alimentação forçada pode gerar a recu-sa. Spencer prognostica que chegaremos a descobrir a funcionali-dade que os açúcares e as gorduras desempenham, uma vez oxige-nados, na geração do calor. A física do calor-energia é ofundamento das reflexões de Spencer e da fisiologia de seu tempo.Adquirir, conservar e economizar o calor-energia é fundamentalpara o crescimento das crianças, para a conservação dos adultos epara resistir às demandas que geram a fadiga. O grau da energiadepende da natureza da alimentação: tipo de alimento, quantidadee variação.

Com a mesma base teórica, Spencer continuará falando dafuncionalidade do vestido. Critica a tendência ascética para torná-la insuficiente e contrária às sensações que indicam seu ponto óti-mo. Com insuficiente proteção das roupas, se perde calor que podeser usado para o crescimento ou como energia vital na produção.Decorre que trabalhadores mal-alimentados e mal-vestidos sejampouco produtivos, pois devem usar a pouca energia para sua con-servação, limitando suas capacidades produtivas. Baseado na ob-servação etnográfica, Spencer salienta que os povos que habitamáreas frias e que estão insuficientemente protegidos, que usam ocalor para se conservarem, têm baixa estatura. Observações do tiporeforçam seus argumentos no sentido de nos guiarmos pela obser-vação da natureza porém, na verdade, está afirmando que o conhe-cimento gerado socialmente pode fazer melhor que a própria natu-reza. De fato, Spencer propõe potencializar, a partir doconhecimento social produzido sobre o natural, nossa própria natu-reza intelectual e física, socialmente na educação.

Estabelecido o princípio de seguirmos nossas sensações (pro-curarmos o agradável e espontâneo e os hábitos que podemos infe-rir de observar a natureza), Spencer critica a idéia de que é neces-sário enrijecer o corpo. Este argumento é importante. De fato,

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chega a nosso presente o entendimento da aptidão física como de-senvolvimento da resistência, sobretudo a aeróbica. Há uma gran-de superposição de sentido entre os termos de enrijecimento e re-sistência. Uma estrutura muscular rígida e com baixo percentualde gordura é ainda sinônimo de corpo resistente.Spencer afirma que a

"idéia ordinária de que é preciso enri-jar o corpo é uma ilusão inconveniente.Muitas crianças estão por tal forma enri-jadas que morrem por causa disto, e asque sobrevivem sofrem com um sistemaseguido a seu respeito, quer em saúde,quer durante seu desenvolvimento" (213).

Afirma que muitas crianças adoecem e mesmo morrem naprocura de enrijecer o corpo. Observemos que os críticos atuais doaumento da aptidão, via atividades de resistência, dizem coisassemelhantes, doenças e mesmo a morte podem derivar-se da pro-cura da aptidão ou do fitness. Spencer diz que o fundamento dateoria do enrijecimento é superficial. Os indivíduos ricos que aoobservarem os filhos pobres dos camponeses brincarem quase nus,e que aparentam estarem saudáveis, decidem que a saúde é fruto,por exemplo, de vestimentas leves. Spencer diz que não são elasque os tornam saudáveis, eles têm saúde apesar de suas roupas. Serealizamos uma analogia com o argumento de Spencer, podería-mos afirmar que os atletas não são saudáveis por serem atletas,gozam da saúde apesar de suas práticas. Em outros termos, os fi-lhos dos camponeses mal alimentados e mal vestidos, sob o pontode vista da conservação da energia calórica, sobrevivem à seleçãonatural porque já eram fortes e rijos. Os atletas submetidos a trei-namentos intensivos, quando sobrevivem com saúde, é porque jáeram saudáveis.

Spencer, no entanto, é favorável ao exercício corporal. Decla-ra-se satisfeito porque "quase todo o mundo presta hoje muita a-tenção à importância do exercício corporal" (220). Sobretudo emrelação aos rapazes, porém de forma insuficiente em relação àsmeninas. Crítica Spencer a falta de espaços e atividades adequadaspara o exercício corporal das meninas. Visualiza como um grandeerro que não se desenvolva a energia das meninas e desenvolve

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ruma predica vibrante pela emancipação corporal das meninas, cu-ja natureza deve ser deixada livre para se manifestar no exercíciocorporal. E neste contexto de reflexões que Spencer é levado a fa-lar da ginástica,

"Aqui, como nos demais casos, pararemediar os males causados por tratamen-to artificial, tem de se recorrer a outrotratamento artificial. Como se havia proi-bido o exercício espontâneo — as mulhe-res — e vendo-se bem salientes os efeitosda falta de exercício, adotou-se um siste-ma de exercício fictício: a ginástica"(224)

O artificial, o não-natural, isto é, a ginástica, apenas tem umlado positivo quando se proíbe às mulheres a prática espontânea daatividade corporal e se aceita a ginástica para elas. Entretanto, émais ou menos evidente que a maioria dos métodos ginásticos rei-vindicaram uma base científica, por vezes a própria fisiologia, umaobservação da natureza e um conhecimento empírico acumulado.Quais, então, são as razões de Spencer para criticar a ginástica,quais seus inconvenientes?

Spencer considera que os movimentos ginásticos regulares sãomenos diversos que as práticas espontâneas das brincadeiras esco-lares, e não garantem uma distribuição igualitária dos exercíciosentre as partes do corpo. Assim, se os exercícios são persistentesacabam provocando desenvolvimento corporal desproporcionado.O argumento de Spencer, ainda que fosse verdadeiro para os mé-todos ginásticos de seu tempo, não é muito forte. De fato, seriapossível e suficiente gerar ajustes para fazer trabalhar as diversaspartes por igual, sem provocar falta de proporção no desenvolvi-mento. A não ser que Spencer acredite que jamais o método cientí-fica e empiricamente gerado seja capaz de superar em resultadosos naturalmente produzidos nos jogos e brincadeiras espontâneas,pela natureza da dinâmica social que, darwinianamente, iria sele-cionando os melhores jogos e esportes, de forma natural.

Há, sem dúvida, uma alta valorização do jogo e da brincadeirana elaboração de Spencer. Há, contudo, alguma coisa a mais quepodemos denominar, por analogia, como crença liberal. Sob o

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ponto de vista liberal, a liberdade e sua espontaneidade são criati-vas. A crença na liberdade tomou sua forma clássica no campo daeconomia. A crença liberal diz que o mercado, de forma espontâ-nea e natural, distribui melhor, mais proporcionalmente os recur-sos, que qualquer forma de planejamento centralizada.44 A posiçãode Spencer está presente em muitas propostas que fazem do jogo,da brincadeira e da recreação, o núcleo da educação física escolar.Tais atividades seriam criativas enquanto as programações da gi-nástica seriam padronizadoras e gerariam efeitos não-desejados.Podemos pensar que, apesar de todo o elogio da ciência, há umadesconfiança básica sobre sua aplicabilidade e, então, o jogo e abrincadeira, como expressão natural, seriam preferíveis. Haveriaem Spencer, exemplo de positivismo, um forte argumento antipo-sitivista, até hoje reiterado?

Spencer esgrime ainda um segundo argumento bem mais po-deroso e que nos interessa mais,

"Depois não é somente que a soma deexercício é desigualmente distribuída, maseste exercício, não sendo acompanhado deprazer, é menos salutar; até quando nãoaborrecem os alunos, a título de lições, es-tes movimentos monótonos tornam-se fati-gantes, por falta de um estimulante do jo-go. É verdade que se servem da emulaçãoà guisa de estimulante; mas não é um es-timulante contínuo como o prazer queproporcionam os jogos variados. Restaainda formular a mais forte objeção. Alémde que a ginástica é inferior ao jogo livrecomo quantidade de exercício muscular,ainda lhe é inferior sob a relação da qua-lidade deste exercício. Esta ausência com-parativa de prazer, que faz com que se a-bandonem muito cedo os exercícios

44 O princípio teve sua expressão paradigmática na obra de Frederic Hayek, os processos catalíti-cos, segundo sua expressão, do livre mercado, sempre seriam superiores a qualquer planejamentocentralizado, por mais recursos de conhecimentos e operacionais que sejam postos em ação. Emoutros termos, o mercado e a vida sempre estão na frente das ações planejadas.

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artificiais, concorre também para que es-tes não produzam mais do que medíocresefeitos sobre o organismo. Encerra umagrande erro a idéia vulgar de que importapouco que esse exercício seja agradávelou não, logo que se obtém a mesma somade exercício corporal. Uma excitação ce-rebral acompanhada de prazer tem sobreo corpo uma influência fortificadora (...)Ninguém ousa contestar que a felicidade éo mais poderoso dos tônicos. Acelerandoos movimentos do pulso, facilita a realiza-ção de todas as funções; e tende destaforma a aumentar a saúde, quando se des-fruta completa, e a restabelecê-la, quandose perdeu. Daí a superioridade intrínsecado jogo sobre a ginástica. O extremo inte-resse que as crianças manifestam pelo jo-go, a extraordinária alegria com que seentregam às suas mais loucas combina-ções, são, por si mesmos, tão importantespara o desenvolvimento do corpo como oexercício que as acompanha. E é defeituo-sa a ginástica logo que não produza estesestímulos intelectuais." (225).

O argumento hedonista explode com força total na argumen-tação spenceriana. A emoção conduz a argumentação. O estimuloprazeroso é fonte de felicidade. A revalorização do jogo significa,em Spencer, uma espécie de crítica à vida moderna, que negaria osprazeres espontâneos.45

A vida moderna produziria homens menos robustos, mais fra-cos que a vida primitiva ou tradicional do campo. Este foi um ar-gumento central e permanentemente repetido por aqueles, comFernando de Azevedo, que defenderam e defendem o exercício fí-

45 Observe-se que sob o ponto de vista hedonista é bem difícil argumentar contra prazeres comoo fumo, a droga e a gastronomia. Haveria que pensá-los como hábitos sociais negativos, comodesvios dos prazeres naturais, entre os quais estaria o jogo. Embora esta operação seja realizável,é bem difícil sua justificativa racional.

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sico. Há alguma coisa de antinatural na vida urbana, moderna ecompetitiva e, também, na parafernália de invenções que diminu-em o exercício ou esforço físico na produção e na vida cotidiana,repetem os que promovem a atividade física. Spencer acredita queainda que saibamos mais das leis da higiene que nossos antecesso-res, que as afrontavam, somos mais fracos que eles. Enuncia váriasrazões das quais interessa destacar "o excesso de aplicação intelec-tual" (228).

"As necessidades da vida moderna e-xercem uma pressão cada vez mais fortesobre o homem de qualquer idade. Em to-das as profissões, em todos os negócios,uma concorrência cada vez mais ardentepõe em exercício as forças e as capacida-des de cada adulto; e para colocar os ra-pazes em condições de sustentarem maistarde esta concorrência, submetem-nos auma disciplina intelectual mais severa doque outrora." (228-229)

Continua escrevendo sobre as dificuldades dos tempos, queobrigam a trabalhar o ano todo, até hora avançada, encurtando asférias e sem tempo para exercícios. Assim, Spencer faz parte dosreformadores que argumentam tanto pela redução da jornada dotrabalho, quanto pelo aumento do tempo de lazer. A vida dos con-temporâneos de Spencer faria com que pais transmitissem a seusfilhos uma constituição enfraquecida, pelo excesso de aplicação.46

Continuará Spencer criticando a distribuição da carga horária es-colar, que deixa pouco espaço para o exercício físico e destina tre-ze ou quatorze horas ao trabalho intelectual. O trabalho intelectualnão deve exceder as intenções da natureza, afirma. A exageradaexcitação das faculdades intelectuais faz um grande mal às crian-ças.47 O equilíbrio se faz necessário e, sobretudo, fazem-se neces-sários conhecimentos que não sejam gordura do cérebro, mas co-nhecimentos convertidos em músculos do espírito. O.êxito neste

46 Parece haver, nestas considerações de Spencer, a suposição da transmissão de característicasadquiridas na vida social.47 Aqui Spencer aparece antecipando os efeitos não desejados da "excitação das faculdades inte-lectuais", ou seja, está abrindo as janelas para o conceito de estresse.

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mundo, declara Spencer, depende mais da energia do que dos co-nhecimentos adquiridos. A força de vontade e a atividade infatigá-vel compensam até as importantes lacunas da educação. A educa-ção, então, deveria objetivar mais o desenvolvimento das potên-cias, intelectuais e físicas, do que estocar conhecimentos.

Os erros se derivam de concepções equivocadas sobre afelicidade,

"De que servem as riquezas, se são a-companhadas de contínuos sofrimentos?De que valem as distinções sociais, se tra-zem consigo a hipocondria? Acaso seránecessário dizer que uma boa digestão,um pulso enérgico, um caráter alegre sãobens exteriores que coisa alguma podecontrabalançar?" (246).

Spencer enfatizará o equilíbrio na formação. Propõe uma es-pécie de fusão entre a educação antiga, que privilegiava o corpo, ea moderna, que privilegia o espírito. Corpo e espírito devem serobjeto de igual solicitude, e devemos reconhecer que a conserva-ção da saúde é um de nossos deveres. Concluirá, enfatizando a i-déia de moralidade e pecado físicos.

Comentários finaisHá uma poderosa valorização, em Spencer, da saúde entendi-

da como vitalidade, como alegria de viver, como energia que fluiadequadamente e sem travas. Há, também, uma valorização da fi-siologia e da higiene. Entretanto, quando chega a vez de formularas regras práticas, Spencer inclina-se por aquelas que distanciamda dor e aproximam o prazer. Por essa razão, valoriza o jogo quegera prazer, felicidade. O hedonismo de Spencer é mais que evi-dente. Guiar-se pelo gosto, pelo prazer aparece como uma normageral.

Talvez a palavra de Spencer tenha influenciado ou contribuídopara a tradição inglesa de privilegiar, no sistema educacional, ojogo esportivo sobre a ginástica. Também pode ter influenciado asvertentes que vêem a educação como estreitamente relacionadacom as demandas da vida, como tendo por horizonte a prática.Uma educação que possibilite a incorporação de instrumentos ú-

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teis para a vida, músculos físicos e intelectuais dispostos para aação.

Há em Spencer uma crítica ao caráter intelectualista e decora-tivo da educação. Pretende que a valorização da atividade corporalaja como contrapeso do intelectualismo que considera dominante.Assim como sua valorização da energia e da vitalidade é um con-trapeso para a valorização da riqueza e dos honores, que levam nadireção da hipocondria e dos sofrimentos.

A saúde torna-se, em Spencer, uma valor fundamental, seudescuido voluntário torna-se pecado. Mais ainda, Spencer pareceantecipar a moralidade física, que caracteriza a ideologia de nossopresente.

O hedonismo e o utilitarismo de Spencer poderiam ser inter-pretados rapidamente como funcionais, para uma sociedade demercado. Uma hipótese dessa natureza tem seu trânsito bastantegarantido em nosso meio intelectual, sobretudo quando domina ofuncionalismo crítico de raiz marxista. Contudo, as coisas não pa-recem ser tão funcionais assim.

Os movimentos repetitivos da ginástica, com dor e sem prazer,pareceriam preparar melhor os indivíduos, estando portanto maisadequados, ao ritmo da produção industrial, que Chaplin imortali-zou em Tempos Modernos, do que o jogo, com suas variações e,sobretudo, com sua vitalidade, imprevistos, estímulos e prazer. Di-ante do jogo e do esporte, a disciplina do tempo de trabalho apare-ce como esforço, como provocadora de fadiga, cansaço, tensão,tédio e estresse. Mais ainda, aparece como aquilo do qual se querfugir. Se há uma relação de analogia, e por esse caminho uma fun-cionalidade, parece que ela existe entre a disciplina da ginástica —rejeitada por Spencer — e a disciplina do trabalho. O jogo e o es-porte pareceriam sugerir um modelo alternativo, dominado peloprazer, pela emoção, pela não-utilidade e pelo imprevisto, enfim,pela abertura para a criatividade que foram, de forma bastante ro-mântica, imortalizados por Huzinga. Se desde crianças acostuma-mo-nos a atividades que dão prazer, que são estimulantes, comosuportaremos, quando adultos, o trabalho rotineiro, repetitivo, não-estimulante nem prazeroso? As propostas de Spencer não parecemser muito funcionais para a imagem do capitalismo que transmitemseus críticos.

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Sua valorização da saúde — entendida como vitalidade, co-mo disposição e energia — sobre a riqueza e os honores tampoucoparece estar adequada à mesma imagem do capitalismo. Sua mora-lidade física pode ser entendida como aliciente para a luta pelosdireitos de saúde (alimentação, sono, descanso, lazer etc.). São ne-cessários tempo e recurso para cuidar-se.

Spencer não é um revolucionário que pretende que os proletá-rios destruam o estado burguês e construam a sociedade socialista.Contudo, consegue elaborar seu próprio distanciamento crítico,como intelectual, em relação à sociedade moderna. No arcabouçode sua crítica, o hedonismo desempenha um papel relevante.48

No campo da "teoria crítica" é interessante a revalorização distanciada do hedonismo realizadapor Marcuse em 1938, tradução brasileira, Para a Crítica do Hedonismo (1997).

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Da físiologia à religião:argumentos a favor do exercício

IntroduçãoNas últimas décadas do século passado, foram desenvolvidos

os argumentos teóricos, especialmente no campo da físiologia dotrabalho e do esforço, a favor da atividade corporal cientificamenteprogramada.49 A diferença significativa, em relação a recomenda-ções ou propostas anteriores, gregas, romanas e medievais, foi oabandono do fundamento na tradição ou na observação não-controlada da vida cotidiana.50 As novas propostas reivindicaram alegitimidade científica de sua construção e seus resultados passa-ram a ser produzidos em experiências controladas e, especialmen-te, em análises estatísticas e epidemiológicas. A observação não-sistemática, base de muitas intervenções tradicionais, perdeu valor.

No século XIX, o século centrado no trabalho, os argumentosde utilidade econômica e social ganharam grande peso e desloca-ram, para o fundo da cena, os argumentos sobre vida boa, que po-diam ser encontrados nas filosofias de vida ou práticas. Os argu-mentos econômicos a favor da atividade corporal continuaram aser relevantes, ainda em nosso século. As circunstâncias de ummundo em rápida industrialização, que caracterizou os países eu-ropeus do século passado, foram favoráveis para esse tipo de ar-gumentos. Embora permanecessem vivos valores e elementos depráticas tradicionais, as propostas ganharam uma nova fundamen-tação em termos dos conhecimentos da física, da fisiològia e daquímica. Digamos, a modo de síntese, que houve uma ruptura comos modos de tratar as mesmas questões como, por exemplo, o pro-blema central da fadiga no trabalho.

O mundo central, os países da Europa especialmente, enfrentaum acelerado e competitivo processo de industrialização, e a for-mação da classe trabalhadora da grande indústria, adequada aosnovos processos e ritmos do trabalho, era um problema a ser supe-

49 Os desenvolvimentos da física, da química e da físiologia possibilitaram a constelação deconhecimentos, que cristalizou na flsiologia do esforço e do trabalho. O estudo dessa constelaçãoe as propostas de reformas do trabalho e da intervenção no campo da saúde foram detalhados porRabinbach, A., (1992).50 Como é o caso das elaborações de Coménio sobre as quais trabalhamos em capítulo anterior.

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rado. A 'fadiga' e as doenças apareciam como o mal a ser comba-tido, que tinha como um de seus efeitos principais a baixa produti-vidade dos trabalhadores. Administrar cientificamente as energiasdos trabalhadores passou a ser uma tarefa central da fisiologia doesforço e do trabalho. Equilibrar gastos e reposições, um dos prin-cipais objetivos da intervenção.

Duas frentes de ação perfilaram-se. Por um lado, o diagnósticosobre a incidência do gasto excessivo de energia no processo detrabalho levou a experiências e lutas pela redução da jornada, aodescanso durante a jornada e ao descanso e lazer além da jornadade trabalho. Havia que provar, e foi provado, que com um regimecientífico de trabalho, que implicava menor gasto e esforço, ostrabalhadores seriam mais produtivos. A produtividade deixou deser apenas função da quantidade física de tempo de trabalho. Adisposição física e mental do trabalhador, sua qualidade corporal emental, tomou-se fator de produtividade. Por outro lado, havia queincidir sobre os estilos de vida dos trabalhadores e, então, nutrição,sono, higiene, lazer e atividade corporal foram contemplados pelaintervenção.

A atividade física, a ginástica, seria visualizada como o cami-nho certo de formação de corpos mais resistentes, fortes e ágeispara agüentarem, sem se deteriorarem, sem fadiga e sem doenças,à demanda de energia no trabalho e na vida cotidiana. Mentes ecorpos, com melhor capacidade para administrarem o gasto ener-gético, no trabalho e no 'turbilhão' da vida moderna.51 Adequadodescanso, lazer e condicionamento físico faziam parte do leque dasreceitas para resistir à força desorganizadora da entropia, que a fí-sica do século XIX tinha consagrado. O motor humano podia edevia ser cuidado e aperfeiçoado. Corpos mais produtivos, maisresistentes às doenças, mais sadios física e mentalmente e commaior longevidade passaram a fazer parte dos desejos e das pro-messas.

No mesmo contexto, vai-se consolidando a idéia revolucioná-ria de que a população é parte importante da riqueza nacional, tan-to ou mais que o capital transformado em instalações e máquinas eque a própria riqueza natural. Os interventores, fundamentados no

51 Sobre o peso das imagens como turbilhão na modernidade, ver Berman, 1986.

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conhecimento científico, ensinam que os governos e os capitalis-tas devem cuidar da força de trabalho tanto ou mais do que se cui-dam das máquinas. Após algumas décadas, a idéia de capital hu-mano tornar-se-ia corriqueira, chegando a ser considerado comoprincipal fator produtivo na atualidade. Já em nosso século, a edu-cação formal e o aprendizado na prática ganham carta de incorpo-ração ao capital humano. Saúde e educação tornam-se pilares daspolíticas sociais de formação e cuidado da população, que, cres-centemente, será pensada como capital.

Vista a população como riqueza nacional e como capital, fez-se necessário ocuparem-se, governo e sociedade, de sua formaçãoe atendimento. A ginástica e o esporte seriam mobilizados para es-sa formação.

A ginástica eugênica e higiênica fez sua entrada è cresceu nospaíses europeus, concretizando-se nos diferentes métodos nacio-nais de ginástica — reconhecidos como sueco, alemão e francês,entre outros. Rabinbach (1992) realizou uma excelente históriacompreensiva desse desenvolvimento, a partir da metáfora do mo-tor humano.52

Vários esportes como natação, remo, ciclismo e atletismo,principalmente os esportes ditos de resistência, foram incluídos,além da calistenia que ocupava um lugar central, no rol das ativi-dades corporais, que tanto podiam permitir a formação corporal emoral, quanto um maior condicionamento físico e uma respostamelhor adequada às demandas de um século centrado no valor dotrabalho e cuja antropologia mais representativa e de maior difusãofoi a marxista, embora partilhada por positivistas e liberais.53 Nela,o trabalhador e sua força de trabalho ocuparam o cenário da pro-dução e o trabalho humano foi considerado centro da própria evo-lução ou progresso.

No Brasil, as fontes indicam que as novidades chegaram comforça. Já na virada para o século XX, os jornalistas e cronistas re-gistraram tanto em vinhetas da vida cotidiana, quanto em obras pi-oneiras sobre o desenvolvimento dos esportes e dos corpos, as ca-racterísticas ativas dos novos tempos, embora restritas para as

52 Acompanha-se ale aqui a sistematização realizada por Rabinbach, op. cit.53 Sobre a singularidade da idéia de uma antropologia fundada no trabalho, ver as reflexões deHannah Arendt, (1972).

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camadas intermediárias e altas da sociedade. A esportivizaçãocrescente da vida cotidiana esteve acompanhada de orientações eações de salubridade pública e de saúde individual. A dita históriada vida privada enfatizará a narrativa desses processos (Prost,1992 e Sevecenko, 1992). Os promotores da atividade física, nocaso do Brasil, salientaram que, ainda avançado o século XIX,dominava uma tradição que tanto desprezava o trabalho manualcomo o exercício físico. Confrontavam-se, portanto, com umamentalidade que devia ser mudada. Assim, a prática da atividadefísica faz parte da narrativa das mudanças das mentalidades e, demodo geral, da história da cultura.

Já em nosso século, foram criadas as instituições que formari-am os especialistas em dirigir e orientar a população na prática gi-nástica e esportiva nos quartéis, nas escolas, nos clubes, nas fábri-cas e nos espaços de recriação. O professor de educação física foiessa nova figura. Nas últimas décadas, as academias e os espaçospara a prática da atividade corporal se multiplicaram. Os dados re-centes indicam que os jovens estão crescendo em estatura média eem massa muscular, como produto de mudanças no campo da saú-de, da alimentação e, talvez, da própria prática de atividades físi-cas. O beneplácito com o qual são recebidos esses dados indica,que, sob outros nomes, o projeto eugênico e higiênico continua vi-vo. Assim, a eugenia continua presente para vários indicadores an-tropométricos e sociais que avaliam o progresso da 'raça' nacionalou humana.

Os especialistas da saúde, sobretudo médicos e educadores fí-sicos, ao longo de nosso século^ foram acumulando argumentosfisiológicos, psicológicos e morais a favor da atividade corporal.Os programas e métodos contra o cansaço, para manter a disposi-ção física e mental, para se proteger das doenças, para prolongar avida, multiplicaram-se. Os meios de comunicação acolheram soli-citamente a propagação dos conhecimentos que vinculavam, deforma reconhecida como científica, atividade corporal e saúde, a-tividade corporal e disposição psicológica. A formação moral e ado eu disciplinado foram perdendo importância explícita, emborasejam permanentemente recuperadas como campo da motivaçãopara a prática da atividade física e, no campo da educação física edo esporte escolar, com novos valores.

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Há várias gerações que foram criadas sob o axioma de umafisiologia do exercício que insistiu e insiste sobre os benefíciosrespiratórios e circulatórios da atividade corporal. Interesses pri-vados e públicos associaram-se na promoção da saúde, por meioda atividade corporal regular. Realizar esforços no processo detreinamento, condicionamento, desenvolvimento da aptidão ouflt-ness tornou-se um valor para a intervenção da educação física e,de modo mais geral, para o movimento da saúde. O exercício físi-co ordena realizar esforços para desenvolver a capacidade de resis-tir às demandas de esforços físicos e psicossociológicos. O com-ponente moral desse movimento foi, em várias oportunidades,destacado. Num sentido elementar e comum, a ação que demandaalgum esforço pode ser entendida por moral. O treinamento oucondicionamento implica esforços — treinar, em grego, diz-se as-ceses. O atleta deve aceitar, estoicamente, os esforços do treina-mento. A atitude estóica também deve estar presente no praticanteda atividade, corporal que objetiva o desenvolvimento e a conser-vação de sua aptidão, a saúde, a longevidade.

O panorama geral, no entanto, é contraditório. Se por um ladoé evidente a multiplicação das infra-estruturas e equipamentos pa-ra as práticas corporais e o crescimento na participação do jovens,por outro lado, as estatísticas parecem indicar que, a nível geraldas populações nacionais, são ainda baixos os percentuais dos quepraticam atividade física de forma regular. Os científicos da ativi-dade corporal afirmam que é a constância na prática de pelo menostrês vezes por semana a que promove a saúde e, portanto, o atletado passado, hoje sedentário, está em condições semelhantes àque-las dos que sempre o foram.

Nas últimas três décadas, a personalidade Kenneth Cooperdestacou-se como inovador, divulgador e promotor popular dasatividades físicas, argumentando a favor das práticas aeróbicascomo contribuição importantíssima para a saúde. A prática aeróbi-ca, segundo Cooper, teria incidência positiva e direta sobre o de-senvolvimento da aptidão cardiorrespiratória. Aumentando a capa-cidade de oxigenação e de circulação, contribuiria poderosamentepara a disposição física e psicológica e para a longevidade de cadapraticante. Sua predica ampla e intensa levou a identificar a corri-da aeróbica com seu nome, assim, as pessoas passaram a fazer co-

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oper e a falar sobre o cooper. Livros, palestras e conferências,audiovisuais, folhetos, entrevistas nos meios de comunicação, en-fim, quase todos os meios disponíveis foram intensamente usadospor Cooper para persuadir o público sobre a verdade e utilidade desuas propostas de atividade corporal. Cooper é, faz mais de trêsdécadas, um missionário da atividade aeróbica e realiza uma ver-dadeira pastoral em prol da atividade física. No Brasil, suas obrasforam traduzidas e tiveram grande divulgação e Cooper esteve nopaís promovendo suas idéias e práticas.54 Sob vários pontos de vis-ta, as propostas de Cooper podem ser consideradas como revolu-cionárias e inovadoras no campo da intervenção, embora no planodos conhecimentos, dos valores e objetivos para a atividade física,Cooper faça parte da tradição que se inaugura com a visão científi-ca da fisiologia do esforço, no século passado.

O mistério da constanteNo seu último livro editado no Brasil, É melhor acreditar,

Cooper salienta seu desencanto porque nos EUA, entre 1985 e1991, o percentual dos praticantes de atividades físicas de resis-tência permaneceu quase constante, apenas passando de 16 para17%. Um terço dos americanos estaria acima do peso ideal, o querepresenta um incremento em relação ao 25%, registrado para operíodo 1960 a 1980. As estatísticas, portanto, são críticas e de-sencantadoras para a intervenção e seus interventores.

Estamos, então, diante de uma quase constante na taxa de par-ticipação que desempenha um papel significativo na revisão daspropostas de intervenção feitas porCooper, sobre sua própria pro-dução. Mas, sob uma perspectiva mais geral, estamos diante deuma espécie de mistério que se agiganta, se levarmos em conside-ração o tremendo esforço realizado nas últimas décadas de: divul-gação dos conhecimentos científicos sobre os benefícios da ativi-dade física para a saúde; divulgação das propostas técnicas deatividade física; grande apoio estatal e privado para viabilizar aprática; participação ativa por parte dos meios de comunicação decampanhas a favor da atividade corporal com publicidade paga e

M Cooper sempre reconheceu, em agradecimentos e dedicatórias, a importância de Cláudio Cou-tinho para a difusão de suas idéias no Brasil.

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também gratuita, e o que obtivemos como resultado, ou seja, umincremento quase nulo na participação da população na atividadefísica de resistência e, além disso, outros indicadores, que salien-tam que a situação não melhorou e, talvez, piorou no campo maisgeral da atividade física dita moderada ou leve.

O balanço geral não parece ser altamente positivo e apenaspoderia ser explicado, apelando para uma espécie de resistênciamuda e pacífica para a atividade física sistemática, embora tenha-mos aumentado notadamente os conhecimentos sobre seus benefí-cios. Resistência que se refletiria na constância dos percentuais depraticantes de atividade corporal de forma regular. Podemos, pelosdados do próprio Cooper, afirmar que faz mais de cem anos quepresenciamos uma pastoral, uma missão, a favor da atividade cor-poral com resultados bem modestos, especialmente nas atividadesde resistência.55

O não-crescimento nas taxas dos praticantes poderia ser lidocomo uma refutação daqueles que acreditam no poder dos meiosde comunicação ou na dita indústria cultural. Assim, para os cien-tistas sociais, o fracasso de tamanha campanha deveria obrigá-losa refletirem sobre o alcance e poder dos meios de comunicação,mais ainda quando se considera que não existiram contra-mensagens significativas nem informação discordante em relaçãoaos benefícios, para a saúde, da atividade corporal. Os cientistassociais estariam diante de um problema ao qual não teríamos dadoimportância, talvez, por estarmos dominados pelo crescimento doesporte espetáculo. A resistência diante da publicidade, da propa-ganda, da informação a favor da prática da atividade física apare-ceria, então, como um limite ou contrafatual significativo para a-queles que acreditam na capacidade de orientação das condutaspelos meios de comunicação. Portanto, se essa capacidade existe,ela é questionável no campo da orientação, para a atividade física.

Podemos, no entanto, pensar que lado a lado das mensagensespecíficas que louvam o esforço e o ascetismo do treinamento, hámensagens não-específicas que difundem, com vigor não menor,os ideais de um hedonismo psicológico, segundo o qual minimizar

55 Visto que Cooper, como todos nós, se baseia em dados amostrais, uma diferença da ordem de1% situa-se dentro da margem de erro com a qual trabalham as pesquisas, assim resulta impró-prio afirmar um aumento real.

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os esforços e maximizar o prazer, no presente, seria a conduta de-sejável. Decorreria desse hedonismo tanto nossa vontade de com-prar utilidades poupadoras de esforços para a realização das ativi-dades quotidianas quanto a recorrência a métodos e fórmulas pou-padoras de esforços no cuidado, conservação e transformação denossos corpos e mentes, de nossos eus.

Estaríamos, então, presos à necessidade de escolher entre asposições ascéticas ou estóicas e as hedonistas? Seriam esses pólosde atração ainda atitudes fortes para nossas escolhas? Teriam so-brevivido, ao nível de uma filosofia popular da existência, há qua-se vinte séculos de rupturas e elaborações filosóficas? Seriam ohedonismo e o estoicismo espécies de filosofia em permanente es-tado prático, limites populares que não podemos transcender?

Surge uma questão importante: se a atividade física 'ascética'é tão positiva em termos físicos e psicológicos, por que as pessoasnão a praticam e também por que os que tiveram uma prática cons-tante durante algum tempo, gozando de seus benefícios, deixam defazê-lo, caindo no 'hedonismo', na redução dos esforços?56

As respostas possíveis são várias. Parece, no entanto, que do-minam as respostas que se inclinam a considerar como fatores afalta de consciência sobre seus benefícios e a falta de condições(tempo, recursos etc.) para sua realização. A primeira razão nãoparece ser digna de crédito. As pesquisas indicam que as pessoasdeclaram que a atividade física tem benefícios diretos sobre obem-estar, a saúde e a longevidade. As pessoas estão informadas.Resta, como dúvida, a questão sobre o grau de seus convencimen-tos ou até que ponto consideram que o esforço da atividade física éum custo que merece ser pago pelos benefícios que gera. A faltade condições, que nunca é absoluta, está estreitamente relacionadacom essa resposta. Os casos das pessoas que compram uma bici-cleta ergométrica e que logo deixam de usar é paradigmático: hácondições, porém não há motivação para realizar o esforço de pe-dalar entre duas ou três horas por semana. O caso dos professoresde educação física que deixam de realizar qualquer tipo de ativi-

*" De modo geral, as recomendações de atividade corporal podem ser vistas como caracterizadaspela redução dos esforços, ao longo das últimas décadas, facilitando cada vez mais a prática porredução de exigências. Podemos, neste contexto, situar a defesa da atividade física moderada,que ganhou grande força, a partir da metade da década de 1990,

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dade física também é significativo. Supomos que, no seu caso,temos alta informação e crença nos benefícios, no entanto, a práti-ca declina.

Importa destacar que as razões situam-se no plano da consci-ência, motivação ou informação e das condições materiais e dascondições de ocupação. Ou seja, estamos diante do recurso a ra-zões culturais e sociais para explicarmos a não-prática. Entretanto,as recomendações para a atividade física de condicionamento outreinamento surgem fundamentalmente dos desenvolvimentos dafisiologia do esforço e de sua incorporação pela medicina. Há umconjunto poderoso de explicações fisiológicas e bioquímicas pararealizarmos atividade corporal, no entanto, não existem explica-ções fisiológicas nem bioquímicas para explicar porque não se rea-liza a atividade ou é abandonada, mesmo após anos de prática. As-sim, os fisiólogos e os médicos empurram para o lado das ciênciasda cultura e da sociedade, da consciência, da motivação e das con-dições, a explicação da 'não-prática'. As propostas tentam incidir,aumentando a motivação, conscientizando sobre seus benefícios ecriando propostas adequadas a qualquer tipo de condições. Ou se-ja, reforçam, na linguagem utilitária, os benefícios futuros dos es-forços do presente em sua adequação às condições.

Empurrando a explicação para o lado das ciências da culturaou da sociedade, os fisiólogos e os médicos simplificam e dão coe-rência sua proposição, deixando, entretanto, de enfrentar os para-doxos de suas afirmações. Se a atividade física é tão boa para oorganismo, por que ele a abandona? Por que a atividade física éabandonada ou suspensa se durante sua realização são geradoshormônios que provocam sensações de prazer, de potência, de ex-citação agradável? Por que é tão difícil, demanda tanto esforço fí-sico, e sobretudo mental, realizar o condicionamento físico, ganharaptidão, fitnessl Por que, em contrapartida, é tão fácil perder ocondicionamento?

Os tipos de questões colocadas, a modo de exemplos, parecemser tão importantes de serem respondidos pela fisiologia quantodar argumentos a favor da atividade corporal. Quando a fisiologiase nega a responder a essas questões, embora melhor formuladas,sob o ponto de vista operacional, está apenas fazendo ciência do50%. Ã fisiologia do esporte deveria colocar-se como uma questão

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central explicar por que pessoas que praticaram atividade físicade modo sistemático a abandonam, sem esforços aparentes. Emoutros termos, quais as razões fisiológicas ou bioquímicas quepossibilitam ou incidem sobre o abandono?57 Sabemos que os hu-manos têm dificuldades em abandonar o fumo, as drogas, o álcool,o sedentarismo, a alimentação em excesso e inadequada. Consta-tamos as dificuldades em abandonar velhos hábitos e, sobretudo,os vícios. Por que, então, parece tão fácil abandonar o hábito ou'vício' da atividade física? Precisamos de apoio para modificar-mos essas condutas que caracterizamos como vícios, sem aspas.Entretanto, por que é tão fácil abandonar o 'vício' da atividadecorporal, que apenas uma pequena minoria de praticantes reconhe-ce como tal, como vício impossível de ser abandonado? Se a fisio-logia não responde a esse tipo de questões, continuará enganando-nos e, sobretudo, enganando-se sobre o poder de suas explicações.

Engana-se, talvez, porque não reconhece que o hedonismo e oestoicismo em estado prático determinam o horizonte de seus es-forços e suas propostas. Quando a intervenção apela para o asce-tismo das drogas, da alimentação e do exercício, está realizandouma escolha estóica. Também está nesse caminho, quando reco-menda os recursos naturais que resultam de aplicar a vontade rei-tora para obtermos o controle das doenças e a disposição física emental. Quando, ao contrário, orienta-se para procurar os compri-midos que regulariam a assimilação e o acúmulo de nutrientes, es-tá a caminho do hedonismo e também está nesse caminho, quandoaposta na manipulação genética ou bioquímica da doença e da dis-posição, da gordura e do colesterol alto. Escolher as soluções he-donistas ou estóicas não está na natureza da fisiologia ou em suasteorias, está na filosofia ou moral que orienta sua intervenção. Po-demos derivar soluções estóicas ou hedonistas das mesmas teorias.

Retomando a tradiçãoAs elaborações e propostas de Cooper se situam dentro da tra-

dição da atividade física inaugurada no século passado. Por um la-do, suas propostas de intervenção pretendem ser científicas, base-

57 Ainda quando os dados das pesquisas indicam que a menor esperança de vida está entre ossedentários que já foram atletas.

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adas na fisiologia do exercício e na pesquisa empírica.58 Por ou-tro, retoma como objetivo do condicionamento físico, do desen-volvimento da aptidão física, o combate à doença e ao cansaço, àfadiga, à falta de disposição, para enfrentar as demandas do traba-lho e da vida cotidiana e promete maior energia, menos doença emaiores possibilidades de vida. Cooper é um baluarte na defesa doascetismo do treinamento e da nutrição, do esforço e da disciplina,do autocontrole e da autotransformação, enfim, do reforço do eumediante a atividade corporal. Cooper escolheu o caminho estóico,no sentido comum que damos a essa palavra.

Cooper, inicialmente médico da força aérea americana, decla-ra que "custa tempo e dinheiro o treino de um homem, seja parapilotar um jato, consertar um motor ou trabalhar num escritório;perdê-lo por doença, será dispendioso e problemática sua substitu-ição" (1972:2). E registra como positiva a declaração de "Possotrabalhar mais sem fatigar-me e durmo agora como uma pedra"(1972:4)59 Retoma, então, argumentos presentes na tradição utilitá-ria ou econômica formulada no século passado. Contudo, Coopernão fica fixado nesses argumentos. Ao longo de suas obras, Coo-per sempre promete que seus programas de exercícios levariam auma situação de maior disponibilidade de energia para o trabalho,o lazer ativo, a vida intelectual e social. Sua estratégia de persua-são é a de acumular argumentos e postular os benefícios econômi-cos e não-econômicos da aptidão física. A atividade física é entãopostulada como redutora de doenças, minimizadora ou quase eli-minadora do cansaço ou fadiga, e também como fator para o au-

58 Nos seus livros de divulgação, Cooper sempre alude às pesquisas realizadas quer nos quadrosdos programas da força aérea americana quer quando já opera no seu centro de Dallas. Contudo,Cooper não fornece os dados para que suas pesquisas possam ser avaliadas sob o ponto de vistametodológico. Talvez essa atitude derive-se do fato de que os dados amostrais não são tão sensa-cionais quanto os 'casos' aos quais recorre crescentemente, ao longo de suas obras.59 Estamos usando as traduções brasileiras detalhadas a seguir: Aerobics (1968), Aptidão físicaem qualquer idade (1972, 5" Edição), Honor editorial; The New aerobics (1970), Capacidadeaeróbica (1972. 2da. Edição), Honor Editorial; The aerobic program for total well-being(1982), O programa aeróbico para o bem-estar total (s/d), Editoral Nórdica Ltda e It's better tobetieve (1995), É melhor acreditar (1998) , Record. Em nenhum momento Cooper discute ar-gumentos de peso contrários à sua posição. Por exemplo, alguns ironistas têm declarado que osestudos indicam que o que se ganha em termos de tempo de vida média ou esperança de vida,pela prática constante da atividade física, é menor que o que se gasta em realizá-la. Da mesmaforma, é bem possível que, a partir de determinado momento, os custos para manter a saúde edisposição das pessoas superem os benefícios que se alcancem. Cooper passa por cima dessaestrutura de contra argumentos, simplesmente ignorando-a.

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mento da longevidade. Cooper fala vigorosamente para estimular-nos a escalar a montanha e classifica os indivíduos em função de oquanto podem subir pela montanha do esforço físico.

As bases do programa aeróbico de Cooper são conhecidas.Seu conceito-chave é o de oxigenação. À maior oxigenação, maiorcapacidade corporal para responder às demandas de gasto energé-tico. O efeito principal do treinamento é elevar a capacidade aeró-bia e cardíaca com a conseqüente maior e melhor distribuição deoxigênio para todo o organismo, que se traduz em maior disponibi-lidade energética.60 Assim, a atividade corporal, nos formatos quepreconiza, tem por finalidade central maximizar as funções respi-ratória e circulatória do organismo. Enfatizemos, Cooper não pre-tende, em suas primeiras obras, quando desenvolve os fundamen-tos e programas do "método Cooper", que alcancemos umacapacidade média ou normal em termos, por exemplo, e testes dedistância em tempos padronizados.61 Pretende que cada praticantemaximize sua capacidade cardiorrespiratória, elevando sua capaci-dade de consumo de oxigênio. Seu ideal, que se reflete nos méto-dos de avaliação na pista ou na esteira rolante, é o atleta da corridade média e longa distância. Seus programas de treinamento esti-mulam para que seja subida a ladeira de sua escala de aptidão oucondicionamento físico. Seus fundamentos e suas propostas sãouniversais, pretendem-se científicos, e deixam pouco ou nenhumlugar para adaptações individuais, e seus programas são elabora-dos para as categorias que se formam a partir da classificação pe-los testes.

Já nas primeiras obras, Cooper insiste sobre a necessidade desermos disciplinados, de mantermos alta a chama da motivação e

60 Lembre-se de que a origem da fisiologia moderna, é a teoria de Willian Harvey sobre a circu-lação formulada no século XVII, e que mantém seu valor até os nossos dias.61 Os dados que circulam no campo da fisiologia do exercício indicam que as amostras de pesso-as não treinadas apresentam uma média de consumo máximo de oxigênio próxima à metade dasque resultam das amostras dos atletas de corrida. É de se salientar, entretanto, que as amostras deatletas de basquetebol e outros esportes não são significativamente diferentes do que das pessoasnão-treinadas. Decorrem dois problemas: a) o da forma em que se estima o consumo máximo deoxigênio, baseado no trabalho da esteira rolante,mais adequada ao desempenho do atleta decorrida de média e longa distância, que levaria a subestimar o consumo máximo de oxigênio ematletas de outras modalidades e em pessoal não-treinado e b) é bem possível que as pessoas quepor constituição têm alta capacidade de consumo de oxigênio se autoselecionem para o trabalhoaeróbico. Assim, o ideal, imposto para todos seria apenas uma das modalidades da diversidadehumana.

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da esperança, de não cairmos no desânimo, de sermos persisten-tes. Exige dos praticantes uma alta, no autocontrole das forças quepuxam na direção da desistência. Sua pregação para reforçar avontade necessária para cumprir com seus programas de desenvol-vimento da aptidão são constantes e ocupam lugar central, ao lon-go de suas obras. Embora haja uma estrutura básica — em termosde fundamentos teóricos, de pesquisa empíricas e de técnicas —,há, em termos dos programas de condicionamento físico, ao longode suas obras, algumas diferenças significativas, que aparecem en-tre, de um lado, Aerobics e New aerobics, escritas no final dos a-nos 1960 e começo dos anos 1970, e, do outro, The aerobics pro-gramfor total well-being, de 1982 e, especialmente e bem maistarde, It's better to believe, publicada em 1995. Centraremos nos-sos comentários sobre as diferenças e seus possíveis significados.

Da aptidão ao equilíbrioAs duas primeiras obras de Cooper estão cerradamente con-

centradas no desenvolvimento da aptidão ou do condicionamentofísico. Assim, em Aerobics, enfatiza o valor do exercício físico, abase de seu sistema, a explicação dos diferentes tipos de exercíciose o motivo de ser o aeróbico superior; os testes, o sistema de de-senvolvimento da aptidão, as bases empíricas do método; os efei-tos do treinamento, as condições clínicas e as regras de nutrição,fumo e álcool. Os temas são retomados em The new aerobics,quase sem variações. Cooper destaca os efeitos benéficos dos e-xercícios aeróbicos, a importância do exame médico, os testes esuas categorias, as propostas ou programas de exercícios por grupode idade e temas conexos. Em ambas as obras, destaca os efeitosterapêuticos da prática aeróbica, sua capacidade de reduzir a pro-babilidade de doenças, sua contribuição para a disposição física emental e o aumento da capacidade para responder às demandas deconsumo energético. Os dois livros, portanto, desenvolvem osmesmos temas, as mesmas idéias e estão baseados na confiança deque as pessoas poderão entender e experimentar os benefícios físi-cos e mentais da atividade aeróbica.

Em sua obra publicada dez anos mais tarde, em 1982, O pro-grama aeróbico para o bem-estar total, o modelo de exposiçãocomeça a mudar. Categorias que nem apareciam ou apareciam de

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forma apagada nas obras anteriores começam a ser destacadas.Assim, na própria capa da obra, lemos: exercícios, dietas, equilí-brio emocional. A noção do equilíbrio passa a estruturar a obra:princípio de equilíbrio, equilíbrio na dieta, equilíbrio físico e men-tal, equilíbrio emocional, equilíbrio geral do corpo são suas noçõesorganizadoras. Na verdade, o equilíbrio não é definido nem de-monstrado, o que Cooper faz é dizer: "onde existe o equilíbrio e-xiste uma sensação de bem-estar", ou seja, se nos sentimos bem éporque estamos equilibrados e se estamos equilibrados, nos senti-remos bem. A circularidade da definição e a falta de indicadoressão bastante óbvias.

Há, portanto, um reconhecimento, talvez mais aparente do quereal, da complexidade humana e o emocional passa a ser seu indi-cador. A proposta de intervenção parece que se psicologiza, quepermite a entrada de novas dimensões não presentes em suas pri-meiras obras. Contudo, a dimensão emotiva é apenas vista sob aótica da tensão ou do estresse, provocados pelas supostas condi-ções da vida moderna. De fato, tensão e estresse apenas aparecemenunciados, não são teorizados nem mesmo tratados com um mí-nimo nível de fundamentação fisiológico, psicofisiológico ou psi-cológico. Temos indicações, então, de que Cooper está tentandoconciliar sua proposta com novos dados que circulam no ambiente:a influência da dimensão emotiva sobre a personalidade, sobre adisposição e as doenças.62 Mas sua mensagem final sobre o assun-to é que o exercício pode incidir positivamente sobre o equilíbrioemotivo.

De um modo geral, a obra explicita um recuo que se expressana defesa da moderação em relação aos exercícios aeróbios. Coo-per declara que em outra época "eu julgava que um bom programade exercícios físicos era capaz de compensar maus hábitos de saú-de e hoje eu me censuro por ter declarado que o exercício pode su-perar muitos, senão todos os efeitos deletérios da dieta alimentar"

62 Nas propostas de atividade corporal derivada das psicologias e nas propostas das ditas ativida-des alternativas ou suaves houve, desde seus começos, uma ênfase considerável no "lado psico-lógico e emotivo" . O equilíbrio com o qual opera a fisiologia do esforço é basicamente energéti-co e tem seus fundamentos na física e na química. Assim, a incorporação do 'emocional', porCooper, pareceria significar uma abertura para o campo de propostas 'menos fisiológicas', dis-tantes de sua tradição, e mesmo alternativas ou opositoras. Veja-se, sobre as práticas alternativas,Lacerda, 199 e 1999.

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(1982:13). Cooper pareceria abandonar a idéia de alavanca do e-xercício físico como ferramenta, senão única, principal. Equilíbrioe moderação passam a ser seus termos-chave. Cooper passa a de-clarar que "se você está correndo mais de 4,8 quilômetros, cincovezes por semana, está correndo por algo mais que a aptidão físi-ca" (1982:13). Introduz como elemento central o "bem-estar espi-ritual". De fato, em comentários de suas obras anteriores, Coopertinha notado, com certo desconsolo e ironia, que os participantesde seus programas de condicionamento na força aérea falavam deforma compulsiva sobre o condicionamento. Digamos que Coopertinha constatado algum tipo de diminuição da sociabilidade e espi-ritualidade na dedicação compulsiva ao treinamento ou, pelo me-nos, que participar ativamente do treinamento estava associadocom o falar compulsiva e positivamente sobre ele. Podemos pensarque o esforço do treinamento exigia o reforço positivo de sua valo-rização simbólica, na conversa constante sobre ele. Havia, então,um centramento físico e simbólico sobre a atividade aeróbica.

Contudo, os anúncios de espiritualidade ou de espiritualizaçãodo bem-estar não levam Cooper a abandonar sua cientificidade.

"O corpo humano é simplesmente maisuma parte do universo que deve estar emperfeito equilíbrio. Somos constituídos detal maneira que necessitamos de umaquantidade exata de exercício, nem mais,nem menos. Necessitamos da quantidadeexata de determinados tipos de alimentos.(...) E onde existe falta de equilíbrio existetambém uma falta de bem-estar pessoal.Da mesma maneira, pelo lado positivo,onde existe equilíbrio existe uma sensaçãode bem-estar. E onde existe equilíbrio per-feito existe o que chamo de bem-estar to-tal." (1985:17)

Cooper na sua guinada para a espiritualidade e para o psicoló-gico não renuncia à cientificidade nem à universalidade. Nova-mente declara que seus resultados são produtos de pesquisas reali-zadas por longo tempo. O objetivo, entretanto, passa a ser o bem-estar total e seus benefícios são os mesmos que eram divulgados

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para o exercício aeróbico que, no novo esquema, torna-se um doscomponentes do bem-estar total.

Há, no entanto, uma variação no modelo. Não se trata agorade maximizar uma das variáveis, o esforço na atividade física, tra-ta-se de realizar o esforço exato para alcançar o equilíbrio de trêsnecessidades fundamentais: o exercício aeróbico, fixado em nãomais de vinte e quatro quilômetros por semana,63 a alimentaçãopositiva e o equilíbrio emocional.

Na necessidade básica do exercício aeróbico, Cooper retomaseus argumentos a favor da atividade de distâncias longas e lentas(long, slow distance, ou "L.S.D"). "Em minha opinião, este princí-pio de equilíbrio por meio da atividade física simplesmente refleteo que o corpo humano foi originalmente destinado a fazer"(1985:21). A atividade aeróbica levaria ao equilíbrio, que seriauma demanda corporal original ou de natureza, em sua adequaçãoao meio. Cooper, então, imagina a vida na tribo primitiva, que exi-giria muita atividade física, longas caminhadas, corridas etc. Coo-per não se fundamenta em estudos antropológicos, não os cita nemfaz referência (1985:21). De fato, ele imagina que assim foi o pas-sado e que, portanto, o organismo desequilibra-se quando subme-tido a uma vida sedentária.64 Em poucas linhas, Cooper liquidacom problemas de tamanha magnitude sem sequer levar em consi-deração, por exemplo, as etnografias que descrevem ciclos de ati-vidade/inatividade na vida dos povos primitivos, nem o fato ele-mentar de que a esperança de vida desses povos é bem baixa,apesar de os mecanismos de seleção natural agirem com significa-tivos efeitos, nem que é bem possível que mesmo o estresse e atensão sejam maiores que entre os modernos.65 Idealiza, portanto,

a Devo reconhecer que não acredito que Cooper demonstre a validade de sua cifra mágica devinte e quatro quilômetros por semana.64 Há um certo romanticismo entre os promotores da atividade corporal que imaginam um passa-do primitivo no qual naturalmente os homens teriam bons hábitos que os modernos perderam oudistorceram. Esta imagem é sobretudo usada para criticar os males da civilização, da vida mo-derna agitada. Os dados que indicam que os primitivos tinham quase a metade de esperança devida dos modernos não afeta a construção romântica.65 É bastante difícil aceitar que um modo de vida no qual seis meses são dedicados à atividadefísica intensa e seis meses à inatividade, dentro dos refúgios, seja saudável por natureza. Muitosgrupos primitivos, por acompanharem condições ecológicas, reproduzem esse padrão cíclico. Atensão na vida primitiva, por outro lado, não parecerem ser pouca, como de fato em quase todo oreino animal. Há poucos autores que salientam a obviedade de ser a vida moderna mais segura e

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a vida primitiva para tornar alguns de seus elementos como mo-delo original das necessidades humanas.

A segunda necessidade é a de "desenvolver hábitos alimenta-res destinados a durar a vida inteira" (1982:22).66 Cooper não pa-rece entender que as recomendações alimentares que nossos co-nhecimentos permitem elaborar são, de fato, transitórias, poisdependem do estado dos conhecimentos. Cooper tem uma visãocongeladora dos conhecimentos científicos e somente por essa vi-são é que pode recomendar hábitos para durar a vida inteira. Porúltimo, Cooper defende a idéia de conseguirmos o equilíbrio emo-cional. As tensões ou estresses da vida moderna levariam à perdado equilíbrio emocional, à falta de paz interior, à ansiedade da qualgostaríamos de nos livrarmos para nos sentirmos descontraídos efelizes. A perda do equilíbrio emocional "resulta numa queda denossos níveis de energia e numa perda de nosso ímpeto de realizare sobressair" (1985:24). De fato, a principal receita de Cooper paraas tensões e o estresse é o exercício e quanto mais aeróbico me-lhor, além dos discutíveis valores culturais que defende de "reali-zar e sobressair".

Na obra que estamos comentando, Cooper incorpora comocentral o equilíbrio emocional. Contudo, os dois vetores principaiscontinuam sendo os hábitos alimentares e o exercício aeróbico. Oque importa destacar é que Cooper adapta a tradição da fisiologiado exercício às demandas de uma sociedade na qual a fadiga e ocansaço passam a ceder o cenário das preocupações para o estres-se, para o lado emocional das pessoas. O exercício aeróbico nãotem apenas a finalidade de aumentar o condicionamento cardio-vascular, agora também deve agir sobre a ansiedade e a depressão.Cooper acumula argumentos nessa direção, embora se restrinja,

mais fácil e, possivelmente, bem menos tensa. Ver os argumentos desenvolvidos por Elias, 1991.

* Observe-se que nas recomendações alimentares, Cooper volta-se de novo para um passado.Após formular seus oito princípios alimentares (1985:47), diz: "Tais princípios parecem refletiralgo deveras fundamental para a saúde humana. Em certo sentido, representam um retorno àsdietas naturais de nossos ancestrais primitivos, capazes de permitirem que nossos corpos funcio-nem em níveis máximos de desempenho". No mesmo ano, em 1985, Marvin Harris publicouGood to eat, procurando encontrar regras que permitam explicitar "relativismo alimentar". Aleitura de sua obra questionaria a idéia de uma dieta natural, colocando em seu lugar, por exem-plo, as relações população/território, entre outras. De novo, tudo indica que Cooper imagina uma"dieta original".

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em grande parte, a contar casos pessoais favoráveis e algumasexperiências de grupo também favoráveis.67 Sua insistência em re-latar casos positivos de cura ou melhoras a partir do exercício ae-róbico, além de ter a função pedagógica de convencer o leitor, pa-rece esconder as dificuldades de usar dados de pesquisa maisconsistentes e mais discriminantes. É discutível, por exemplo, queo exercício aeróbico seja um bom remédio tanto para a depressãocomo para a ansiedade. Cooper não demonstra suspeitar que a me-lhora na autoconfiança e segurança dos membros de um grupo,participantes de um trabalho de condicionamento físico, pode tantoresultar do próprio exercício quanto ser produto das atenções rece-bidas por participarem do programa.68 Assim, não leva em consi-deração a eficácia simbólica que produz participar de um progra-ma, escolher'participar, sentir-se fazendo parte de uma novaexperiência, entre outras considerações possíveis.

Á Família aeróbica: um estudo do equilíbrioAlgumas críticas, não necessariamente personalizadas, devem

ter arranhado a couraça das crenças fisiológicas de Cooper. Intro-duz um capítulo, o do subtítulo acima, para referir-se a que "exis-te, contudo, outra espécie de equilíbrio, que transcende ao indiví-duo e diz respeito ao modo como nos relacionamos uns com osoutros. Esse tipo de equilíbrio concernente à comunidade pode serum fato tão importante para promover o bem-estar total quantoqualquer outra coisa que tenhamos abordado neste livro"(1985:217). Diante das palavras de Cooper, o leitor que acreditaque somos seres sociais com interesse múltiplos pode ficar entusi-asmado. Seu entusiasmo não durará muito, pois Cooper continuadizendo: "em parte porque proporciona um meio ambiente fértil,no qual nossa dedicação individual à aptidão física pode desenvol-

67 Inspirando-nos nos estudos de Becker (1993), podemos afirmar que os casos desfavoráveis nãosão apresentados. Os estudo que não obtêm correlação significativa entre atividade física e qual-quer variável dependente são de pouco interesse jornalístico e também de pouco interesse depublicação, pelas revistas científicas. Assim, os estudos apresentados são os que "dão certo".Diante de um panorama com essas exigências, é bem possível que os estudos e experimentosestejam controlados pela "ansiedade de resultados positivos" em vez de, como manda a boametodologia, pela falsificação de suas hipóteses.68 Conferir seus comentários sobre a experiência de A.H. Ismail e Michael Pollock (1985: 204-205).

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ver-se com maior rapidez" (1985:217). Assim, o lado positivo dafamília aeróbica é que possibilita que nossa aptidão física se de-senvolva mais rapidamente!

Cooper declara-se preocupado pela união da família moderna.Então, monta uma paisagem aterradora e uma solução aeróbica "Adespeito de todo esse caos — esse desequilíbrio radical em nossaestrutura familiar —, eu tenho um sonho a respeito de como pode-riam ser as relações familiares. Existe um novo rótulo que eu gos-taria de ver aplicado às famílias do futuro: família aeróbica"(1985:218). A família aeróbica que imagina está formada pormembros que podem praticar seus esportes ou corridas isolada-mente, dado que é difícil fazê-lo em conjunto. Porém, o que uniriaa família seria o "interesse mútuo pela boa saúde", que se manifes-taria nas conversas sobre o assunto, em especial sobre a atividadefísica e a nutrição, reforçando a vontade de realização dos progra-mas (1985:2*19). Assim, o que tinha comentado ironicamente emrelação ao programa da força aérea, seu centramento compulsivo,torna-se receita para a formação da família aeróbica.

Cooper absorve a diversidade dos relacionamentos e finalida-des da vida familiar no objetivo da boa saúde e sobre os programaspara realizá-lo. É evidente que estamos diante de uma absolutiza-ção do valor da boa saúde e de uma redução unidimensional. Essaoperação apenas pode ser produto do desespero do missionário,diante do fracasso de sua pregação.

Da fisiologia para a religiãoNo livro É melhor acreditar, Cooper avança na direção da

crença ou da fé religiosa, na atividade física. Reconhece que aspessoas dominam os conhecimentos sobre os benefícios da ativi-dade física, porém que há um hiato entre o desejo de estar em for-ma e o ato de estar em forma (1998:16). Não se trata de mero sa-ber, "a resposta começa com a crença — especificamente, as suaconvicções pessoais mais profundas quanto àquilo que é bom, ver-dadeiro e definitivo para sua vida" (1998:16). Cooper distingueentre crenças extrínsecas e intrínsecas. As primeiras permanecemna cabeça sem deslocar-se para o coração. As segundas se caracte-rizam "por qualidades como profundo compromisso espiritual,certeza de haver descoberto o significado último da vida, devoção

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pela oração sincera e busca de uma vida verdadeiramente trans-formada" (1998:17). Observemos que tanto nazistas, como budis-tas, fundamentalistas e espiritistas podem entender que suas cren-ças religiosas têm as qualidades da crença intrínseca. Pode-se ma-tar em nome de crenças intrínsecas, racistas ou não, monoteístasou politeístas. O adjetivo apenas se refere à força da crença, não àsua bondade ou verdade.

Cooper continua advogando em favor do poder das crençasintrínsecas ou religiosas, para o bem-estar físico e emocional. Co-oper passa uma revista em pesquisas que afirmam existirem rela-ções significativas entre religiosidade e saúde ou entre religiosida-de e cura ou entre religiosidade e traços positivos depersonalidade. Descobre os efeitos positivos sobre a saúde dos la-ços sociais e do apoio emocional que, de modo geral, as religiõespromovem. Sem entrarmos a discutir as pesquisas nas quais Coo-per se baseia, podemos aceitar que a vida religiosa, comunitária ede família é boa para a 'saúde' individual e coletiva. Contudo, issoapenas é importante se pensarmos que a saúde, a disposição e alongevidade são o mais importantes ou altamente importantes. Defato, esse é o ponto da crença intrínseca de Cooper e ela pode nãoencontrar lugar definido como positivo, em todas as religiões. As-sim, o argumento pode ser importante para determinadas religiões,não necessariamente para todas. Outra posição religiosa poderiaconsiderar como superior sacrificar-se pelos outros ao invés depreservar a si mesmo. Pode considerar que é melhor dedicar maistempo à leitura dos textos sagrados e à oração do que à atividadecorporal. Pode optar por sacrificar o corpo e a saúde para alcançarverdades espirituais. Como de fato essas outras opções existem, esão bem representativas, podemos admitir que Cooper elabora umareligiosidade funcional ou utilitária, para a atividade física e a saú-de.

Da mesma maneira que a família aeróbica pode ser um cami-nho para a boa forma, a religião é posta como meio da boa formaem Cooper. A motivação religiosa pode ser um caminho para aboa forma, e Cooper alegremente relata o caso de uma pacienteque, por problema de doença, estava abandonando seus trabalhosreligiosos, retomar esses trabalhos foi sua motivação para realizaratividade física. No exemplo, a mulher do relato apenas realiza a-

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tividade física porque se sente mal e não pode realizar seus traba-lhos religiosos. Se um comprimido lhe tivesse devolvido o bem-estar e a capacidade de agir, possivelmente não teria encarado umprograma de exercício físico.

Mas há uma segunda elaboração das relações em Cooper e ne-la a relação entre cuidados consigo, no caso atividade física, e reli-gião torna-se interior ou intrínseca. Ele mesmo coloca-Se comotestemunha. Conta-nos sua vida de criança e adolescente, dedicadaà prática esportiva. "Essa rigorosa rotina de exercícios parecia-meparte essencial do que Deus desejava que eu fizesse com a minhavida naquele momento" (1998:28). Tudo mudou abruptamentequando iniciou seus estudos de medicina em Oklahoma.

"A minha condição física começou adespencar porque eu, como muitos outrosatletas do ginásio e da faculdade, não ti-nha mais acesso ao ambiente de apoio ede motivação da equipe...Eu não tinha ab-solutamente nenhuma motivação interior.Mesmo a minha fé religiosa, que casaratão naturalmente com as minhas ativida-des atléticas na escola, de alguma manei-ra não parecia ser relevante para a minhacondição física de então. Eu nem pensavaque fosse bastante importante rezar sobreo tema...Não me passou pela cabeça quetalvez minha fé exigisse que eu fizesse opossível para manter meu corpo em for-ma." (1998:29).

Cooper conta-nos que para preencher as exigências do cursode medicina passou a dormir pouco, três ou quatro horas, e a co-mer demais, talvez um mecanismo de compensação ou de equilí-brio. Tornou-se uma pessoa cansada, sedentária, com muitos qui-los a mais. Cooper declara que a pessoa ambiciosa e ativa que eraestava desaparecendo. Ou seja, uma mudança nas condições e so-bretudo nos objetivos, o estudo, levou a uma transformação rápidada personalidade de Cooper, que abandonou sem dificuldades aatividade física e se entregou sem culpa ao sedentarismo.

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A culpa física seguida da moral apareceria mais tarde. Umdia foi fazer esqui aquático e praticar um pouco de slalom. O es-forço provocou a dor, as náuseas, a freqüência cardíaca elevada.Cooper ficou aterrado e ouviu o chamado de alerta. Declara entãoque começou a compreender

"que meu corpo era verdadeiramenteum 'templo de Deus', mas um templo queeu deixara cair em lamentável abandono.Era claro que cabia a mim manter essetemplo em forma, se eu tinha esperança deviver uma vida completa e de satisfazer osplanos de Deus para ela" (1998:32).

Cooper relata exatamente o mesmo episódio na sua obra edi-tada em 1982, The aerobics program for total well-being, contu-do, naquele relato, não faz nenhuma referência a interpretações re-ligiosas. Assim, nos treze anos se que passaram entre essa obra e aoutra, Ê melhor acreditar, Cooper decidiu que devia e podia falarna linguagem da religião, não apenas ou somente na linguagemlaica da fisiologia do esporte. Faz isso assumindo o Deus interior,que caracteriza as crenças religiosas dos Estados Unidos. Por quefez isso? Podemos elaborar uma tentativa de resposta. Podemospensar que Cooper caminha na direção dos argumentos religiososdiante do pouco êxito dos argumentos fisiológicos, ou de ordemmédica, diante do desencanto com as baixas realizações da pasto-ral do exercício. A fundamentação da motivação em termos religi-osos parece estar favorecida por três condições: i) o que tem sidodenominado como ressurgimento religioso, sobretudo no campodas religiões associadas à New Age69; ii) dados de pesquisa que a-presentam uma relação positiva entre vida religiosa e saúde70 e ii-i)a interpretação americana de Deus.

A partir dos anos 1970, crescem os trabalhos jornalísticos ecientíficos que relatam estarmos diante de um ressurgimento dareligião, de uma nova efervescência religiosa. Sob a denominaçãode New Age, Nova Era, agruparam-se as novas buscas, propostas eexpressões religiosas. A motivação religiosa passou a ser reconhe-

6" Uma leitura da relação religião e esporte foi feita in Lovisolo, H. e Lacerda, Y (1999).70 Vários desses resultados são apresentados por Cooper em É melhor acreditar. Uma visão maiscrítica, sob o ponto de vista da fisiologia, pode ser vista em Hayflick, L., 1996.

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cida e estudada como fazendo parte da modernidade tardia oupós-modernidade. Neste sentido, surgiu um clima favorável parareintroduzir as éticas religiosas na vida cotidiana e, muito especi-almente, no campo do tratamento dos corpos e dos espíritos, namanutenção da saúde, na consecução do equilíbrio, na resistência emanejo do estresse, enfim, em campos estreitamente vinculadoscom a intervenção de Cooper. Assim, vincular religião com exer-cício adquiriu uma nova legitimidade. Se essa vinculação era pri-vada ou subjetiva, os novos tempos permitiram que fosse postacomo pública e objetiva.

Ambas as características, pública e objetiva, aparecem nos es-tudos e pesquisas que correlacionam vida religiosa e saúde, fé ecura. Em Cooper, entretanto, a relação que importa é a da crençareligiosa como base motivacional ou motivação para superar oscustos dos esforços de subir a ladeira da montanha do condicio-namento. Tínhamos dito que Cooper trata essa relação quer comoexterior, quer como interior.

A relação interior ou intrínseca aparece quando Cooper passaa pensar o corpo como "templo de Deus" e, portanto, seus cuida-dos formam parte dos deveres religiosos. O corpo se torna umtemplo que deve ser cuidado e devemos cuidar de nossas vidas pa-ra satisfazer os planos que Deus tem para elas. Como explicar essarepresentação das relações de Deus com nosso corpo?

Eu acredito que para começar a trabalhar essa relação deverí-amos partir da provocativa obra de Harold Bloom.71 A partir daselaborações fundamentais de Emerson e James, Bloom desenvolveuma análise das peculiaridades da religião nos Estados Unidos. Aessência religiosa do americano seria o convencimento de queDeus o ama, em oposição total com a observação de Spinoza deque aquele que ama verdadeiramente a Deus não deve esperar seramado por Ele. Bloom observa que o Cristo americano é mais umamericano que um Cristo e que a consciência centrada na própriaidentidade e sua exaltação é a fé dos americanos, em oposição àcomunidade, e no sentido de que se sacrifica a sociedade ao indi-víduo, na vida espiritual da nação. A tese central de Bloom é a deque a religião americana se disfarça de cristianismo, porém deixou

71 Bloom, H. ,1992;

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de ser cristã. Conservou um Jesus americano, muito solitário epessoal, e ressuscitado, em vez de um Jesus crucificado, que as-cendeu de novo ao Pai. Afirma que o americano encontra o Deusnele mesmo, porém, após ter encontrado a liberdade para conhecê-lo. A salvação para o americano não pode vir por meio da comuni-dade nem da congregação, é um ato de confrontação de um a um.James teria reconhecido em Emerson muitos dos estigmas queconvencem a Bloom da presença da religião americana: a liberda-de de consciência, confiança na percepção vivencial, um sentidode poder, a presença de Deus dentro de si mesmo, a inocência dacarne e a do sangue de si mesmo redimidas.

O brevíssimo resumo do entendimento de Bloom da religiãoamericana ilumina as posições de Cooper. Permite sugerir pistaspara entendermos como aparece a idéia de um Deus interior e aconsideração do corpo como templo. A difusão do pentecostalismono Brasil e a emergência, no seu momento, dos "Atletas de Cristo"deveriam impulsar-nos na direção de refletir sobre semelhanças ediferenças no campo religioso e sobre as relações entre atividadefísica, esporte e religião.

A modo de conclusãoAs elaborações da fisiologia do esforço e do esporte foram

construídas e formaram uma tradição, a partir do século passado.Suas mudanças não incidiram de modo significativo nas recomen-dações favoráveis ao exercício físico e à nutrição. Contudo, nocampo dos fundamentos para a ação, ela dever recorrer a argumen-tações variadas no tempo: utilidade, equilíbrio, religiosidade apa-recem como sucessões não disjuntivas na obra de Cooper. Ou seja,o fundamento religioso pode englobar o do equilíbrio e o da utili-dade, e isso parece ter acontecido com as elaborações de Cooperna interação de suas propostas aeróbicas e a recepção social àsmesmas. Sua estratégia de esforçar-nos para podermos responderàs demandas de esforço, de treinar-nos e condicionar-nos asceti-camente, para que nossa potência física e mental desabroche tem,sem dúvida, uma marca estóica forte.

Não há, no entanto, um fundamento motivacional de tipo fi-siológico para que realizemos o esforço. De fato, se é a teoria dar-winiana a que fornece o sentido para a biologia, e se a fisiologia

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faz parte dela, a reprodução do gene é a única 'motivação' ou te-leologia possível. Saúde, longevidade, disposição, fadiga são valo-res culturais, não, biológicos. Os valores culturais dependem deseus contextos de geração, reprodução e transformação. As trans-ferências e as reapropriações implicam complicados mecanismos eformam um interessante campo de estudos. Falta-nos avançar nosentido de entendermos melhor os mecanismos de reapropriaçãodas propostas de Cooper e de outras que foram e ainda são geradasno campo da atividade corporal.

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Desafios metodológicos no ensino daeducação física: estética e autoformação

Desenvolverei um ponto de vista contrário àquele que postulaa especificidade metodológica no ensino da educação física. Pro-curarei argumentar que o desafio é o de integrar metodologica-mente seu ensino na proposta educativa da escola, do colégio, doinstituto ou da universidade. Para desenvolver meu ponto de vista,situar-me-ei no plano da escola ou, de modo geral, da formaçãodos cidadãos, da educação básica e comum. No entanto, as minhasapreciações sobre a metodologia de ensino podem, sem muita difi-culdade, serem transpostas para os níveis mais avançados da edu-cação.

Desenvolverei o argumento de que a educação física escolardeve estar a serviço da escola. Irei gradualmente apresentandopassos dessa afirmação, em princípio bizarra. Digamos, para entrarmais diretamente no tema, que sua metodologia deve: a) estar in-tegrada na metodologia geral do ensino escolar e b) um de seusobjetivos centrais é o de fazer da escola um tempo-espaço que me-receu e merece ser vivido.

Considero que a educação do cidadão é um bem comum, por-tanto, deve ser distribuída a todos. Considero, também, que a edu-cação física tem uma tradição que enfatiza como eixo da forma-ção, sobretudo, a distribuição do bem saúde e de um bemparticular, que nomearia como o da possibilidade em desenvolvera potência física ou corporal. O bem saúde implica coisas comodesenvolvimento psicofísico, saúde física e mental, relacionamen-to moral e social, entre outros aspectos. O desenvolvimento da po-tência vincula-se aos ideais de superação e de auto-superação, eseu núcleo teórico é a teoria do treinamento.

A realização dos valores orientadores, que a tradição da edu-cação física solicita, não implica um único princípio metodológi-co, um caminho único. Podemos tanto usar metodologias que enfa-tizam a heteroformação e o esforço quanto metodologias que seregulam a partir de princípios como os de autoformação e o prazerou gosto, na realização das atividades educativas. A opção de Her-bert Spencer, por exemplo, pelo esporte e pelo jogo como princi-

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pai recurso de desenvolvimento da saúde e da potência, e suascríticas às ginásticas, que considerava como artificiais, resulta davalorização hedonista da obtenção do prazer no processo educati-vo. O argumento principal de Paulo Freire, sob o ponto de vistametodológico, é que a autoformação deve ser um princípio reitorda aprendizagem. Assim, a crítica da pedagogia bancária, a críticaentão da heteroformação torna-se o momento negativo de sua o-bra.

Eu defenderei o ponto de vista de que os princípios de gostoou prazer, que denomino de estético, e o princípio de autoforma-ção devem ser os eixos norteadores de nossa tradição educativa,ainda em processo de formação.

Considero que é impossível distribuir democraticamente obem de formação dos cidadãos, se os organismos encarregadosnão funcionam, se se caracterizam, por exemplo, por formas derejeição ao próprio bem, que se expressa em mecanismos como oabandono escolar ou a insuficiente apropriação individual da for-mação comum ofertada. Fortalecer o poder de atração da escola éum objetivo do qual todos devem participar.

A educação é um bem cujos significados e distribuição devemser conversados e decididos por todos. Todos os membros da 'ci-dade' têm o direito de participar da geração dos significados dosbens e dos critérios para sua distribuição e a efetiva participação,no caso dos bens educativos, é de primordial relevância. Basica-mente, porque a educação do cidadão é uma condição para suaparticipação na elaboração de critérios para a distribuição de qual-quer tipo de bem (renda, saúde, reconhecimento, lazer, segurança ebem-estar, entre outros).72

Observo, inicialmente, que a afirmação de que a educação docidadão tem como dimensões componentes a formação intelectual,moral e política, estética e física das novas gerações continua ten-do alto consenso. Um entendimento tão generoso raramente pode-rá encontrar oposições radicais. Contudo, o acordo pode desapare-cer quando tentamos preencher tal afirmação com significadosoperacionais para um lugar, para uma situação ou para circunstân-cias específicas. A afirmação que valoriza a formação não esclare-

A incidência nestas afirmações da obra de Michael Walzer (1983) é evidente.

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ce, no entanto, que é impossível qualquer tipo de educação sem avalorização das instituições que deveriam realizá-la. A valorizaçãodas instituições que distribuem o bem que denominamos educaçãoé uma condição da própria distribuição. Assim, a valorização daescola local pode, em termos práticos, ser muito mais importantepara a formação das crianças e jovens que as definições sobre osobjetivos ou funções da educação.73

Dito de outra forma, se a escola é desvalorizada, é extrema-mente penoso e difícil que realize os objetivos sociais que lhe sãoatribuídos. A escola é o bosque, o meio, o clima, para o desenvol-vimento da formação dos cidadãos. Quando o bosque é arrasado,ou se torna inóspito, os pássaros desaparecem.

De forma muito simples e aproximada, podemos pensar que aescola é valorizada quando os adultos e as crianças consideramque é um espaço que merece (ou mereceu) ser vivido, no qual é(ou foi) bom participar. As altas médias de evasão do ensino deprimeiro e segundo graus, no Brasil como um todo, indicam que avalorização da escola está, entre nós, em questão ou tem um esta-tuto precário.

Eu aprendi com Anísio Teixeira duas coisas. A primeira é quea educação é como a agricultura, os fatores envolvidos na intera-ção são múltiplos e o educador não controla grande parte deles.Hoje talvez diríamos, influenciados pelas elaborações sobre o caose a complexidade, que pequenas variações nas condições iniciaispodem determinar grandes variações interativas no tempo. Maisainda, se consideramos que a escola não é um sistema fechado,que ela interage com o que ocorre na cultura e na sociedade. As-sim, a intervenção educativa no processo escolar aparece muitomais como um artesanato ou arte de mediação do que como umaciência e, mais importante ainda, é o não perder de vista que suasrespostas são locais ou singulares, embora sua problemática e mui-tos de seus instrumentos sejam universais.74 A segunda coisa queaprendi com Anísio é que o Brasil não teria conseguido constituir

13 Irei, ao longo do trabalho, referenciando temas, conceitos e afirmações gerados em meu pró-prio processo de reflexão. Sobre a importância da valorização da escola e sobre sua autonomia,ver Lovisolo, 1993.74 A idéia geral sobre a intervenção como artesanato ou bricolage e sua especificidade no campoda educação física foi desenvolvida em Lovisolo, 1995.

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uma tradição educativa e que sem tradição educativa é quase im-possível operar em educação de modo natural, orgânico.75

Construir os acordos de uma tradição continua sendo uma tarefaprioritária.76

A tradição educativa, quando existe, fornece os trilhos condu-tores da intervenção. A tradição implica continuidade e mudança eforma o horizonte de sentidos para os que interagem no processoeducacional. Os desacordos e confrontos devem ocorrer dentro dostrilhos da tradição. Sem a força da tradição, ficamos na procuraansiosa de novidades, não sabendo o que selecionar e muito menoscomo agir, comunicar e entender. A ausência da tradição provocadesmapeamento. Como reação, a procura do fundamento toma-seansiosa e angustiante, por carecermos das orientações da tradição.Toma-se procura de um inexistente ponto de apoio para mover omundo da educação. A procura dos fundamentos científicos para aeducação aparece, de um lado, como condicionada, de modo geral,pelo valor concedido à intervenção fundada na ciência em épocade valorização da mesma; do outro, como resultado da necessidadede segurança, de fundamento e apoio, sobretudo quando a confian-ça provocada pela tradição desaparece ou é muito débil.77

Há duas atitudes paradoxais e em confronto no Brasil. De umlado, a que insiste sobre a centralidade da educação para enfren-tarmos, coletiva e individualmente, os problemas que considera-mos relevantes. Do outro, uma desvalorização forte das instânciasencarregadas de realizarem os processos educativos, basicamente,na desvalorização da escola. Digo: valorizamos a educação e des-valorizamos a escola; porém, sem valorização da escola não tere-mos boa educação, independentemente de como a definamos.

Não penso que nosso principal problema seja o da falta de e-laboração teórica ou intelectual sobre a educação, a filosofia daeducação e a pedagogia. Temos, de um lado, uma reflexão peda-gógica significativa em termos quantitativos e talvez também sig-

75 Minha interpretação de A. Teixeira pode ser conferida em: Lovisolo, 1990b.76 Ver Lovisolo, 1993 e 1995, capítulo 2.77 No caso americano, por exemplo, tenho a impressão de que a tradição é experiencialista eexperimentalista. Entendo por experiencialismo a valorização da experiência no processo deaprendizado e por experimentalista a dominância, na condução do processo educativo, de técni-cas experimentais ou quase experimentais.

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nificativa em termos de qualidade. O paradigma dessa qualidadeseria a pedagogia elaborada pelo saudoso Paulo Freire, com reper-cussões mundiais nas últimas décadas. Do outro, uma escola queainda se debate com a repetência, com a evasão, com sua própriadesvalorização e com sérias dificuldades para entender, avaliar emodificar sua oferta. A produção pedagógica no Brasil não pareceincidir notoriamente sobre o cotidiano da escola e, assim, nossosindicadores educacionais são piores que os da Colômbia. Enfren-tamos, então, a oposição entre a produção pedagógica significativae o funcionamento escolar precário, ineficiente, de baixa qualida-de. Talvez a contradição seja produto também da falta da tradiçãoou de uma tradição desafortunada, como sugeri em outro momen-to.78

Pretendo continuar argumentando, tendo como eixo a questãoparadoxal: se valorizamos tanto a educação por que desvaloriza-mos a escola? Por que a repetência, a evasão, a má qualidade doensino, a agressão física contra as instalações escolares?

Culturalmente lidamos com três linguagens: a da norma, a dautilidade e a do gosto; e que nossos problemas em estabelecer a-cordos resultam do fato de que enfatizamos ou negligenciamos al-guma dessas linguagens e de que, sobretudo, não estamos cientesde suas implicações. As pessoas acreditam que fazem coisas ouagem porque: a) seguem uma norma (valor, lei, regra, regulamen-tação, hábito ou costume); b) pretendem alcançar algum objetivoou finalidade utilitária, no campo da esfera das necessidades ou dasobrevivência e c) gostam ou derivam algum prazer daquilo quefazem. As ações são orientadas e compreendidas pela linguagemda norma, da utilidade ou do gosto.79 De fato, quando se procuraum fundamento para a ação educativa, enfatizamos unilateralmen-te a importância de alguma dessas linguagens ou modos de enten-dimento. Minha proposta, na direção de construir acordos, destacaa necessidade de a) justificação e reflexão sobre cada linguagem eb) conciliação ou articulação entre elas, no estabelecimento dosvalores e objetivos que orientam a ação educacional. É sobre essas

78 Ver Lovisolo, 1990b, op .cit.79 Uma versão mais elaborada de meus argumentos pode ser conferida. Lovisolo, 1997.

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linguagens, suas contradições e limites, que concentrarei meuscomentários.

Os diagnósticos da modernidade são mais ou menos coinci-dentes em dizer que a linguagem da norma (dominante na socie-dade tradicional) foi perdendo valor, que a linguagem da utilidade(sociedade instrumental ou racionalizada) ganhou espaço social eque, finalmente, a linguagem do gosto (sociedade hedonista, emo-tiva ou sensualista) foi se impondo, sendo hoje a linguagem domi-nante para expressar a construção do eu pessoal e dos vínculos so-ciais baseados na emotividade, na autenticidade e originalidade.Básica e praticamente isto significa que, crescentemente, as pesso-as procuram realizar seus gostos e que a ausência de realização évista e sentida como falta de liberdade, de autonomia, de autenti-cidade e de realização pessoal.80

No universo da escola, os docentes explicitam que as normasescolares são cada vez menos respeitadas e os valores de formaçãoou enriquecimento pessoal declinam, com o resultado de a ordemescolar estar sempre ameaçada. As sanções externas que respal-dam as normas parecem haver perdido grande parte de sua eficá-cia. No seu lugar deveriam emergir e ser consolidadas sanções in-ternas ou subjetivas, formas de autocontrole.81 Tal substituição nãoaparece, sob o ponto de vista docente, realizada de forma signifi-cativa para ter um valor prático, para ser eficiente no cotidiano es-colar. Há ainda outro grande problema: é o da perda do poder danorma de ser eficaz para gerar esforços para o aprender, de deter-minar as vontades ou de mobilizar as energias para o estudo. Ajustificação do esforço e a construção da motivação passaram a serrealizadas nas linguagens da utilidade e do gosto. Ou nos esforça-

80 Considero as elaborações de Charles Taylor, 1994, como significativas para entender que háuma moral da autenticidade . Importante, também, são os dados e reflexões elaborados por J.Dumazedier, 1994, sobre o desenvolvimento do que denomina como "ipseidade".81 Observe-se que a temática de Norbert Elias sobre a crescente importância das formas de auto-controle e o declínio relativo do heterocontrole, no processo civilizador, está estreitamente rela-cionada com o problema que a escola enfrenta. É no seio da família e da vizinhança onde a cri-ança realiza suas primeiras experiências de valorização ou desvalorização da escola quedeveríamos usar como matéria prima para sucessivas reelaborações.

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mos porque obteremos utilidades ou reduzimos os custos do es-forço porque fazemos as coisas com prazer, com gosto.82

As propostas pedagógicas modernas apoiaram-se crescente-mente em argumentos de utilidade e gosto para fundamentar a mo-tivação que permitiria superar os custos do esforço. Se o esforçopara aprender não pode mais estar baseado na norma, se a normanão condiciona para estudar, os motivos de utilidade ou de gostodeveriam ocupar seu lugar, repetem as pedagogias modernas.83

No caso das crianças e dos jovens, a visão utilitária implicaum sujeito racionalmente calculador, que decide que fará esforçoshoje porque se tornarão benefícios no futuro. As crianças são vis-tas como pequenos filósofos 'estóicos', que devem aceitar realizaresforços no presente para estarem melhor no futuro. O baixo rea-lismo desta imagem parece ser por demais evidente, para merecercomentários.

A posição alternativa diz: o gosto ou prazer derivado do ato deestudar deveriam eliminar os custos do esforço de aprender. O ide-al aqui é um modo de aprender econômico, não cansativo nem fa-tigante e com prazer. É o aprender sem esforço, brincando, diver-tindo-se.84 Temos, neste, caso uma percepção 'hedonista' danatureza das crianças e receitas pedagógicas que seguem essa re-presentação.

As pedagogias modernas são variações sobre tais temas e es-tão dominadas pela sucessão do poder social das três linguagens;norma, utilidade e gosto, e por enfatizarem quer a responsabilida-de e o esforço quer o gosto e o prazer.

A educação física escolar enfrenta os mesmos problemas queoutras disciplinas ou áreas de distribuição curricular dos objetivos:

82 Há uma justificação estóica do esforço pela esperança em utilidades, no entanto, há tambémuma justificação hedonista na redução do esforço mediante a ação realizada com prazer, semesforço. Estou usando ambas as categorias no sentido em que são usadas na linguagem comum.83 Ver capítulo sobre Spencer.84 Observo que este ideal, de redução do esforço e de gosto, já estava presente na primeira meta-de do século XVI e, especialmente, na Didática Magna de Coménio. quando declara: "educadanos bons costumes, impregnada de piedade, e, desta maneira, possa ser, nos anos da puberdade,instruída em tudo o que diz respeito à vida presente e à futura , com economia de tempo e defadiga, com agrado e com solidez." .85 A sociologia da educação de E. Durkheim conduz na direção da valorização da socializaçãocomo interiorização de normas no processo educativo. Talvez esse seja o traço marcante com oqual representamos o sistema básico de educação francês em suas profundas relações com aformação da nacionalidade.

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procura seus fundamentos na utilidade ou no gosto ou em ambos,ao mesmo tempo. A norma também perde valor para a educaçãofísica e deve ser substituída, para determinar a prática corporalpermanente, pela interiorização de argumentos de utilidade ou pelosentimento do gosto na realização que elimine o esforço.86

Como decorrência geral do domínio das linguagens da utilida-de e do gosto, as críticas mais ouvidas ao sistema educacional re-ferem-se à falta de utilidade do que se ensina e à falta de prazer ougosto no processo de aprendizagem, sob o ponto de vista dos edu-candos. Tais críticas, ao mesmo tempo em que refletem as descon-fianças sobre o poder das normas na motivação para o aprendiza-do, debilitam perversamente seu poder. As normas escolaresperderam gradualmente seu poder de distribuírem castigos e san-ções e espera-.$e que o autocontrole das próprias crianças tome-secrescentemente central.87 O crescimento do "castigo interior" e o"declínio dos castigos externos" podem ser entendidos como facesdo processo civilizador. O poder da norma depende ascendente-mente das sanções subjetivas.

As sanções subjetivas pressupõem que os alunos valorizam autilidade e/ou gostam do ensino escolar. Nossas taxas de evasãoescolar parecem indicar, em contrapartida, que há uma boa parcelade crianças e jovens para quem esses pressupostos não se aplicam.Há, portanto, uma parcela, de difícil avaliação, que não tem sufici-ente valor internalizado, de interesse ou gosto, para valorizar suapermanência na escola. A pouca dedicação das crianças ao estudotambém indicaria que há insuficiente interiorização da utilidade edo gosto pelo ensino-aprendizado.

De um modo geral, a escola vai deixando de ser um espaçoque merece ser vivido, embora a modernidade colocasse a escola

86 Recentemente, em programa de comentários sobre futebol, diante da pergunta sobre a resistên-cia e vigor de Mauro Galvão, jogador do Vasco de quase quarenta anos, o ex-craque de Flamen-go, Júnior, respondeu que devia ser explicado pelo gosto que Mauro sentia em jogar futebol,diminuindo seu esforço no treinamento e, portanto, na manutenção da forma. Assim, conclufaJúnior, Mauro devia estar na Seleção, pois é um exemplo para os novos e, que pela intensidadede seu 'gostar', ainda tinha muitos jogos pela frente.87Na obra de Norbert Elias encontram-se importantes desenvolvimentos sobre as relações entre oprocesso civilizador e a diminuição da violência física de controle, em diversas instâncias dosocial e sua monopolização pelo Estado, na linha de elaboração weberiana. No processo civiliza-dor, o auto-controle ganha crescente importância como recurso orientador das condutas e organi-zador da ordem social.

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como uma instituição central na formação das crianças. Entretan-to, o próprio desenvolvimento da modernidade abriu alternativaspara o questionamento dessa centralidade, no cotidiano da vida dascrianças. A perda da centralidade é um dos rostos da desvaloriza-ção.

Sabemos, e este talvez seja um fator de peso na perda do valorda escola, que ela deixou de ser a instituição única , sobretudo noscentros urbanos. Hoje, o dia-a-dia de uma criança ou jovem declasse média pode incluir, além da escola, o instituto de línguas, aacademia de ginástica, o clube, o grupo de música, de teatro, o ins-tituto de computação e outros centros de ensino, e de artes, alémdesse tradicional e significativo lugar de socialização, de aventurase desventuras, de emoção e excitação, que sempre foi e é a rua.88

Há, portanto, conhecimentos importantes, experiências significati-vas e redes valorizadas de sociabilidade, que estão fora da escola,para nossas crianças e jovens. Há, também, instituições que com-petem entre si pelas crianças e pelos jovens.89 A educação físicaescolar sofre a competição de clubes, academias e 'escolinhas',que podem funcionar até dentro do espaço escolar.

Os professores de educação física transmitem o sentimento deque a escolinha de futebol ou voleibol que funciona na escola éuma tremenda competidora da disciplina 'educação física' da gra-de curricular. As 'escolinhas' competiriam, afirmando que seuproduto é melhor ou mais adequado do que o homólogo da velhaescola ou da aula tradicional de educação física. As famílias estãodizendo a suas crianças que todas as atividades são importantes,entre elas, a própria escola. Estão também dizendo que há coisasimportantes que devem ser aprendidas e feitas, fora da escola. Noentanto, ao mesmo tempo, estão fazendo declinar a centralidade da

88"Crianças de rua", como qualificativo, é somente aplicável às crianças sem escola, pois, comoas pesquisas indicam, elas têm famílias. Assim, no fundo, o nome refere-se ao subconjunto decrianças que 'recusa' a escola, troca o 'tempo da escola' pelo 'tempo da rua'. Recusa, então, omodo moderno de educar as crianças, que conferiu centralidade à escola. Observo, que as expli-cações sobre as crianças de rua conferem, erradamente segundo meu ponto de vista, muito maiorimportância aos fatores familiares de 'expulsão' do que aos fatores de 'atração' da rua.m Dumazedier (1994, cap. 3), a partir de pesquisas empíricas, defende a hipótese de que a vidaalternativa à escola é altamente atraente e formativa para as crianças e jovens, embora não rejei-tem a escola como lugar de aprendizados específicos de conhecimentos.

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escola, portanto, seu valor.90 O declínio pode ser visto como umefeito não-esperado, que resulta de uma visão ampla, rica e pluralda educação. Não estou, portanto, sendo um saudosista de umtempo que passou, no qual a escola foi central por ser única, nemafirmando que todo tempo passado foi melhor. Estou, sim, apon-tando problemas e paradoxos de nosso presente. Sem condiçõespara ser absoluta, a escola deverá caminhar na direção de ser umespaço ou esfera significativamente importante, embora nem úniconem central. Deverá, portanto, colocar a questão de sua comple-mentaridade com as alternativas de formação existentes extra-escola.

Porém, será que é simples fundamentar a motivação na utili-dade e no gosto? Vejamos alguns de seus contratempos e impas-ses.

Temos grandes dificuldades, no entanto, em despertar de mo-do universal o gosto ou prazer pelas atividades socialmente úteiscomo estudar ou cuidar do corpo.91 Uma parcela considerável decrianças sente prazer quando realiza 'esforços' para jogar futebolou outro esporte, podendo passar horas nessa atividade. Conside-ramos, contudo, que seria muito bom se também sentissem omesmo prazer redutor do esforço, estudando português, inglês,matemáticas ou ciências. Parece que apenas uma pequeníssimaminoria sente prazer com o estudo das disciplinas do currículo es-colar. Uma parcela maior sente prazer nas atividades esportivas,em estar com os amigos ou em ficar diante da televisão.

Acreditamos, portanto, que o ideal, que o desejável seria fazerapenas aquilo de que gostamos, que resulta em sensações e senti-mentos de prazer. Isto significa que nossa sociedade está penetradapor atitudes e valores hedonísticos, eu prefiro dizer por uma inter-pretação estetizante do ser e do dever ser do fazer humano. Acre-ditamos que é bom, justo e moral fazer aquilo que é do nosso gos-to. Sentimos que em nossos gostos está a singularidade, aindividualidade, a diferença e, na procura ativa do gosto, nossa au-

90 Observe-se que no passado a centralidade era pouco ou nada igualitária. A escola era centralapenas para uma parcela reduzida do total de crianças e jovens.

Confundir qualquer atividade corporal com os cuidados de corpo é um erro que deve ser cui-dadosamente evitado.

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tonomia. A liberdade do gosto torna-se base para a construção dapersonalidade autêntica.

Se utilidade e gosto são valores dominantes em nossa socieda-de, a escola, para ser eficiente no processo de ensino-aprendizagem, deveria a eles adequar-se. Muitas propostas peda-gógicas modernas batem nessas teclas. Deveríamos, portanto, con-vencer-nos e convencer as crianças e jovens de que aquilo que seaprende ou se faz na escola é útil, gostoso, ou ambas as coisas.

O discurso dos alunos aparece como já formado pelos doisvalores, nas suas avaliações das atividades escolares. De praxe, osalunos questionam e recusam o que se ensina na escola, a partir desua inutilidade. A pergunta "professor para que serve isso?" é, defato, uma bomba quase sempre destrutiva da confiança do profes-sor e alunos, no que se ensina. O utilitarismo é assim uma podero-sa serra que corta um dos galhos no qual se apoia o ensino daescola. Por outro lado, o não gostar do que se faz na escola,considerar chatas92 as suas atividades, toma-se uma poderosa críti-ca e desvalorização da atividade escolar, a partir do peso da lin-guagem estética. 93

Os discursos sociais sobre a educação justificam, dominante-mente, os estudos pela utilidade futura, no mercado de trabalho.Assim, desde cedo, as crianças são acostumadas a pensar a escolae suas atividades como meio para finalidades práticas, vinculadasa necessidades objetivas. Conseqüentemente, temos que esperarque avaliem as atividades escolares pela sua utilidade.

O feitiço volta-se contra o feiticeiro. As crianças observam emvolta e vêem que muitos dos triunfadores têm currículo escolar de-ficiente. Eles estão na televisão, no esporte e nas artes, também napadaria do bairro, na oficina, nos pontos de jogo de bicho, na dis-puta política. Em oposição, o engenheiro que é taxista, e especial-mente o professor, que chora pelo seu salário, são provas da utili-

42 "Chato", de modo geral, é contraposto àquilo que excita, que gera "adrenalina", que emociona.Lembremos as importantes contribuições de Norbert Elias e Eric Dunning, 1992."Há indícios, contudo, de pesquisas que salientam que as crianças gostam de muitas coisas naescola, tais como colegas, professores e algumas atividades. Cf. Lovisolo, 1995, capítulo 2. Umdos sentidos da afirmação das crianças pode expressar o seguinte: dizemos que não gostamos daescola quando os esforços que temos que realizar não são contrabalançados por nossos interessesde utilidades e sobretudo de gostos. Utilidade e gosto são os referenciais avaliativos, que ascrianças dispõem para organizarem e julgarem seu mundo.

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dade sob suspeita da escola. Os professores, que tanto estudaram,estão em pior situação que muitos que são quase analfabetos, ob-servam os alunos. Esta imagem é em demasia reforçada pelasqueixas e auto-representações dos próprios professores. O discursoutilitário, economicista e sindicalizado dos docentes, que reafirmaa cada passo a desvalorização e a exploração das quais são víti-mas, e desvaloriza o sentido 'sagrado' do ato de ensinar, impulsio-na a comparação e, perversamente, desvaloriza o estudo e a escola.Assim, a utilidade da escola pode ser bem questionada a partir dasobservações 'objetivas', embora limitadas, e talvez falsas, quandogeneralizadas, das crianças e dos jovens.

Os professores também estão socializados nos valores utilita-ristas e estéticos. Em momentos de sinceridade, uma parcela dosprofessores consegue explicitar que considera as coisas que ensinainúteis, chatas ou com ambas as características ao mesmo tempo.Os professores, na verdade, temos sérias dificuldades para funda-mentarmos a utilidade do que ensinamos e não menos dificuldadesem tornarmos gostoso o ato, de duas mãos, de ensinar e aprender.94

Entretanto, apesar das dificuldades, acreditamos, paradoxalmente,que devemos ensinar coisas úteis e que as atividades escolares de-vem ser gostosas. Ambas as dimensões significam um ideal de di-fícil realização democrática. Contudo, até o momento em que asrepresentações que orientam nossas práticas se modifiquem, o ide-al de conciliação de utilidade com gosto é um desafio para o coti-diano de cada docente e para o conjunto de cada escola. Conciliarutilidade e gosto significa valorizar a escola.

Talvez o axioma do pragmatismo americano de que o objetivoé o de aprender a aprender seja o único que ainda resiste com al-guma força. Temos que desenvolver essa temática com os alunos.Assim como o desenvolvimento de habilidades físicas permite in-corporar mais facilmente novas habilidades físicas, o treinamentointelectual na aprendizagem facilita as aprendizagens futuras e di-minui seus custos. Temos que deixar de pensar a aprendizagem

"Temos poucas informações válidas sobre os sentimentos de gosto no ato de ensinar nas suasrelações com os sentimentos de gosto no ato de aprender. O fato de se falar em 'sentimentos'pareceria distanciar os pesquisadores da temática e das relações. Contudo, quando recorremos ànossa própria memória, há grande chance de associarmos o bom professor com a figura daqueleque gostava de ensinar, que transmitia sua paixão ou sentimento por aquilo que ensinava.

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principalmente como acumulação de estoques e enfatizar a a-prendizagem como desenvolvimento das facilidades do apren-der.95.

Apenas podemos aprender a aprender mediante processos deautoformação. Que significa isto? A idéia é simples, porém de di-fícil realização, pois implica, da parte do docente não apenas odomínio do conhecimento específico, implica que ele é capaz decriar situações e experiências que facilitem o descobrimento, porparte dos alunos, dos conhecimentos. O docente deve controlar suaansiedade de transmitir os conhecimentos. Assim como no labora-tório de física podemos realizar experiências para que de formareflexiva e dialógica formulemos os princípios que regem os fe-nômenos estudados, da mesma forma podemos, na aula de basque-tebol, experimentar, refletir e dialogar sobre as diversas formas deconduzir a bola, para chegarmos a formular os seus princípios. Emvez de ditarmos as fórmulas para pular barreiras, podemos expe-rimentar com barreiras e gestos, até chegarmos a definir os princí-pios fundamentais do como pular barreiras. Na aula de tênis po-demos criar experiências que nos levem a entender a mecânica dosaque, a formular seus princípios orientadores.

Nos exemplos que estou apresentando, o corpo é tanto atorquanto instrumento e a mente e a linguagem devem participar tãoativamente como o próprio corpo. Estamos aprendendo a aprender,estamos nos autoformando, adquirindo um conjunto de hábitos quevinculam experiência e reflexão, diálogo interno e diálogo social esolidário, para encontrar a solução do problema. Quando o profes-sor da escolinha 'devolve a bola', por exemplo, quando diante deum resultado ruim o apresenta como problema sobre o qual o gru-po deve refletir e dialogar, está abrindo as portas para os processosde autoformação. Evidente que o grupo pode formular respostaserradas. Contudo, a experimentação dessas respostas inadequadaspode levar na direção do reconhecimento dos erros e à formulaçãode novas alternativas.

95O movimento da educação popular insistiu sobremaneira na adequação e utilidade dos conhe-cimentos para o contexto local. Na prática, sua atividade principal foi o ensino da lecto-escritura,a partir de termos locais. Ou seja, acompanhou o clássico princípio de bom senso de ir do próxi-mo ao distante, no processo de ensino-aprendizagem. Cf. Lovisolo, 1990.

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Poderia-se contrargumentar dizendo: é muito mais econômi-co transmitir os fundamentos do futebol que elaborá-los a partir deprocessos de autoformação. Ocorre que mediante os processo deautoformação treinamos nossas capacidades ativas de gerar respos-tas, aprendemos a aprender e talvez desenvolvamos a confiança eo gosto para enfrentarmos novos conhecimentos, para aprender-mos novas respostas.

A própria normatividade pode ser reforçada, demonstrandosua 'utilidade' e como ela é também necessária para realizarmosos gostos. O esporte é um exemplo clássico, o contrato lúdico, oconjunto de regras de cada esporte é necessário ao prazer do jogo.Podemos realizar processos de autoformação sobre as próprias re-gras dos jogos. A discussão argumentativa pode levar na direçãode processos democráticos de 'imposição' de normas. Os educado-res devem revisar, experimental e argumentativamente, as normas,em interação com as crianças, levando em consideração suas con-seqüências positivas e negativas. A reflexão sobre as normas é, oudeveria ser, uma dimensão significativa da educação contemporâ-nea. Nós, professores, deveríamos e poderíamos aumentar e siste-matizar os argumentos de utilidade sobre os conteúdos que ensi-namos. Uma tal obrigação pode influenciar os conteúdosensinados, provocando reformas curriculares. Temos que enfrentara utilidade dos conteúdos do ensino com argumentos. Se não háargumentos que persuadam, é melhor abandonar o conteúdo. De-veríamos aumentar gradativamente o horizonte de compreensão dautilidade dos conteúdos das crianças e dos jovens. Isto apenas serápossível se aumentarmos nosso próprio horizonte de compreensãoda utilidade em relação ao passado, ao presente e ao futuro.

Contudo, a utilidade não será suficiente como força motivado-ra, num mundo crescentemente dominado pelo gosto. As criançasadoram brincar, contudo não brincam porque brincar é importantepara o desenvolvimento psicomotor, da inteligência, da sociabili-dade ou da afetividade. Habitualmente elas ignoram esses fatos.Brincam porque gostam. Assim, teremos que ensinar a gostar dageometria euclidiana, da química, das matemáticas ou da literatu-ra. Significa então que temos que ensinar a degustar os conteúdosescolares e gostar deles. Significa que temos que ensinar a brincarcom idéias, induções, deduções, lógicas, entre outros instrumentos

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de pensamento. Temos, para isso, que abandonar a imagem deque as crianças e os jovens possuem gostos definidos, claros e dis-tintos. Na verdade, eles possuem gostos estreitos e mal definidos.Uma das primeiras tarefas da mãe, em quase todas as culturas,como é amplamente constatável, é ampliar o leque do gosto ali-mentar das crianças. Ampliamos também seu leque de gostos pe-los jogos, pelas artes, pelas atividades sociais. Devemos ampliar oleque de seus gostos pelos conhecimentos e, sobretudo, pelo pen-sar, raciocinar, imaginar, dialogar e criticar. Isto somente será pos-sível se aumentarmos nas crianças a capacidade de se admirarem,se surpreenderem e se encantarem com conhecimentos. Os docen-tes têm que comunicar e metacomunicar o próprio encantamento,admiração e surpresa. Sem essa comunicação de nossos encanta-mentos, não avivaremos o encantamento deles. Temos que fazerisso individualmente em cada disciplina escolar e juntando esfor-ços com os outros colegas. O docente de matemáticas deve apelarpara seu colega de história, tomar o surgimento da geometria eu-clidiana um mistério a ser desvelado. Apontar e transmitir a sur-presa, o encantamento, a admiração pela aventura do conhecer edo fazer. O professor tem que ajudar a construir o gosto, a emoçãoe a excitação do aprender. Tem que deixar de pensar e agir comose as crianças não tivessem ou pudessem desenvolver a capacidadede admirar-se, de surpreender-se, de gostar. Tem que admitir que odesenvolvimento do gosto é também sua tarefa. Para isso, ele pre-cisa, antes de mais nada, admirar, sentir-se encantado, surpreen-der-se. Precisa desenvolver seu próprio gosto.

O gosto é o contrapeso do utilitarismo. Devemos contrabalan-çar o horizonte estreito, porém importante e funcional do utilita-rismo, com o desenvolvimento do gosto de aprender, de admirar-se por coisas que nossos predecessores fizeram e pelas coisas quenossos contemporâneos estão realizando. Admirar-se não significaabandonar o papel da crítica, do reconhecimento dos limites dequalquer conhecimento, da relatividade histórica do conhecimentohumano.

Valorizar a escola significa viver ou estar fora dela como per-da. A valorização da escola, por meio do gostar, é o clima para queas normas tenham poder e os interesses sobre utilidades e gostos semultipliquem.

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Para a escola funcionar como um lugar de atração deverá ar-ticular normas vigentes com utilidades e com os gostos dos alunos,ao mesmo tempo em que desenvolveria a capacidade de refletirsobre: os acordos existentes e o estabelecimento de outros acordosnormativos; a capacidade de avaliar e relativizar a utilidade e a ca-pacidade de desenvolver os gostos. Não há, por certo, nenhumafórmula científica ou técnica para alcançarmos uma combinaçãoadequada. Cada escola deve elaborar a sua própria, levando emconsideração, por certo, as combinações que parecem estar dandocerto. A combinação feliz valoriza a escola.96

Para contribuir na combinação feliz de normas, utilidades egostos, na área da educação física, dever-se-ia questionar a preten-são de que os objetivos da intervenção dos educadores físicos naescola são autônomos, independentes ou próprios de algum campode saber, denominado educação física, psicomotricidade, aprendi-zagem motora ou cinesiologia.97 Essa autonomia não se justificano plano mais geral dos objetivos educacionais nem, mais especi-ficamente, no dos objetivos de cada escola em particular. É bastan-te freqüente ler e ouvir que a educação física escolar tem objetivospróprios e independentes daqueles vigentes para a educação básicae para as propostas de cada escola. Proponho, em idéias um poucodiferentes, basicamente, que a educação física deve submeter-seaos objetivos educacionais e inserir os seus próprios dentro deles,realizando seus objetivos específicos somente quando realizar osobjetivos educacionais gerais e de cada escola em particular.

Embora a educação física escolar tenha se legitimado, afir-mando objetivos específicos, essas prioridades merecem ser revi-sadas. Não pelo fato de a carga horária escolar e as condições detrabalho impossibilitarem o atingimento desses objetivos, comoalguns pensam, pois sempre é possível aumentar a carga horáriaescolar e melhorar as condições de trabalho. Um objetivo centralda escola e da educação física é a valorização da escola e esta ape-nas poderá ser atingida, fazendo dela um lugar excitante, emocio-nante, que satisfaça os gostos das crianças. O segundo objetivo é ode fortalecer os processos de autoformação, dar-lhe destaque e

96 Destaco aqui novamente o valor da autonomia escolar, Lovisolo, 1993." Sobre o sentido da expressão "educadores físicos" e de modo geral sobre minhas ponderaçõesem relação com a educação física, ver Lovisolo, 1995, capítulo l.

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prioridade, embora a heteroformação continue ocupando um lu-gar significativo.

Nossa concepção da natureza, das crianças e dos jovens estáprofundamente marcada pelos componentes estéticos dos jogos,das brincadeiras e dos esportes. Representamos as crianças comonaturalmente dispostas ao exercício do corpo e dos sentidos. O serda criança reside principalmente no prazer, no gosto de exercitarseu corpo, no movimento e nos sentidos. Um ser pleno de potênciasensório-motora que se expressa nos jogos, nas brincadeiras, nosesportes. Há, assim, uma poderosa legitimação cultural para a edu-cação física escolar, entendida como desenvolvimento do lúdicona criança.

Acredito que é no seio da estratégia combinatória das normas,interesses e gostos, e especialmente, no fazer da escola um lugargostoso, que a educação física pode dar sua maior contribuição.Nossas representações sobre a criança e sobre o valor dos jogos,brincadeiras e esportes em sua formação autorizam e solicitam es-sa contribuição. Compete aos educadores físicos, em função de su-as possibilidades vantajosas, participarem e contribuírem num po-deroso movimento, de longa duração, para que a escola seja umlugar valorizado pelas crianças. Embora esse seja um problema daescola como um todo, e de cada docente em particular, são talvezos educadores físicos os que contam com a força da legitimaçãocultural e com os recursos técnicos para colaborarem destacada-mente com esse objetivo. Lado a lado com eles, deveriam estar osprofessores de artes e de música. Em conjunto, deveriam iniciarum movimento que, a partir de nossas representações sobre as cri-anças, faça da escola um lugar interessante, gostoso e, portanto,valioso. Se concordarmos nos objetivos é bem possível que po-nhamos nossas cabeças e corpos, ou nossos corpos e cabeças, apensar e a se movimentar, para atingi-los gradativamente.

Os objetivos particulares — de saúde, de iniciação esportiva,de desenvolvimento psicomotor, entre outros — devem estar sub-metidos e englobados pelo objetivo mor de valorização da escola epelo vigor dos processos de autoformação. A educação física esco-lar tem seu presente e seu destino vinculado ao da escola e é umarica possibilidade de contribuição, quando submetida ao todo daescola, na procura de harmonização das normas, utilidades e gos-

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tos. A educação física pode contribuir para criar o clima escolarque demanda o domínio da linguagem do gosto e, sobretudo, ogosto pelo autodescobrimento, experimentação, reflexão e diálogo.

Valorização da escola e ênfase nos processos de autoformaçãosão as duas faces do mesmo desafio.

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