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Atividades físicas e esportivas (AFEs) e populações tradicionais no Brasil: indígenas, quilombolas e ribeirinhos Dulce Maria Filgueira de Almeida
Luiz Renato Vieira
Letícia Rodrigues Teixeira e Silva
Arthur José Medeiros de Almeida
Thiago Camargo Iwamoto
Reigler Siqueira Pedroza
Ana Amélia Neri Oliveira
As informações e opiniões prestadas nesta publicação são de responsabilidade dos respectivos autores e não necessariamente refletem a opinião dos editores.
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INTRODUÇÃO
As culturas tradicionais, aqui representadas por indígenas, quilombolas e
ribeirinhos, mantêm relações interétnicas, que se definem em modos de vida em que
a territorialidade conforma suas representações coletivas. O vínculo com o território
é algo imbricado em suas culturas. Por esse motivo, investidas sobre suas terras,
realizadas por outros grupos sociais, produzem graves problemas na essencialidade
de suas culturas e podem ensejar a perda da identidade e de seus reconhecimentos
como culturas tradicionais. Os mecanismos de desestruturação social, como
prostituição, alcoolismo e tráfico de drogas, são apenas alguns riscos aos quais
essas culturas estão suscetíveis. Nesse âmbito, demandas por políticas públicas nas
áreas de saúde, educação, trabalho e renda são recorrentes nas agendas sociais
dessas populações.
Em um cenário de constante expropriação, as culturas tradicionais vêm se
organizando tanto nas cidades quanto no campo. Para tanto, utilizam-se de
diferentes estratégias, que são marcadas por lutas cotidianas travadas com a
sociedade nacional em busca dos direitos consagrados na Constituição Federal, bem
como em documentos internacionais dos quais o Brasil é signatário. Esses povos,
apesar de possuírem direitos, não os veem materializados por meio de políticas
públicas no Brasil. Ao contrário, muitos de seus direitos não são respeitados, como
é o caso do direito a políticas específicas e diferenciadas que reconheçam suas
formas de produzir a vida, seus saberes e suas práticas coletivas de vivenciar o
tempo do trabalho e o tempo livre.
Ressalta-se que cada etnia, grupo ou povo possui suas formas próprias de
produzir a vida coletiva, pois cada contexto sociocultural é determinado por relações
ambientais e sociais, historicamente vividas e experienciadas em suas
corporeidades. Com isso, nota-se que são distintas as formas de produção das
atividades físicas e esportivas, entendidas, nesse sentido, de forma mais ampla por
meio do conceito de práticas corporais.
As práticas corporais são parte significativa da cultura de cada grupo social.
É precisamente por meio das práticas corporais que esses grupos constroem
relações sociais que expressam sentidos e significados, forjados em suas
consciências coletivas. Assim, por serem construções socioculturais, as práticas
corporais dependem das possibilidades de mediações que cada grupo vivenciou em
sua práxis (BOURDIEU, 2000). Fato é que, por meio da língua, dos corpos e das
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práticas corporais, as comunidades tradicionais identificam-se ou diferenciam-se de
outros.
Na literatura sociológica, as culturas tradicionais podem ser compreendidas
como comunidades, razão pela qual se adota, neste texto, o termo comunidades
tradicionais. Essa caracterização está relacionada ao fato de que os grupos
tradicionais possuem internamente traços marcantes, que se conformam por
relacionamentos com grau elevado de intimidade pessoal, profundeza emocional,
engajamento moral, coerção social e continuidade no tempo (NISBET, 1973). Com
efeito, também é válida a definição de comunidade trazida por Smith (2000) de que
comunidade é o lugar da reprodução social. Ocorre que as atividades envolvidas
nessa reprodução são fluídas a ponto de ser difícil estabelecer fronteiras espaciais
distintivas entre culturas. Assim, comunidade não significa apenas localidade, trata-
se de um conceito mais amplo e que está relacionado ao compartilhamento de
valores e de uma identidade coletiva permanentemente em construção.
1. Aspectos legais referentes às populações indígenas, quilombolas e
ribeirinhas
A defesa da diversidade cultural é um imperativo ético, inseparável do respeito à dignidade da pessoa humana (Art. 4º, Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, Unesco, 2002).
A epígrafe ajuda a delinear a importância de ampliação do debate referente
à diversidade cultural, notadamente no caso brasileiro, em que grande parte do
acervo cultural que se manifesta na cultura popular de populações tradicionais
(indígenas, quilombolas e ribeirinhas) está dispersa e ainda não foi registrada. Há,
por oportuno, no escopo da epígrafe, o sentido de que as questões que se colocam
à diversidade cultural envolvem um imperativo ético, que é indissociável da dignidade
da pessoa humana, o que é vital enfatizar.
No tocante à definição de marcadores legais que relacionassem a cultura
popular como patrimônio imaterial de populações tradicionais (indígenas,
quilombolas e ribeirinhas) no Brasil, evidenciou-se que os principais dispositivos,
tanto os constitucionais como as principais normas legais e alguns diplomas
infralegais (decretos e instruções normativas), encontram-se dispersos na legislação
brasileira em diversas áreas, notadamente no que se refere às políticas sociais e à
questão fundiária.
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1.1. Indígenas
No Brasil, a Fundação Nacional do Índio (Funai), criada por meio da Lei nº
5.371, de 5 de dezembro de 1967, vinculada ao Ministério da Justiça, é a
coordenadora e principal executora da política indigenista do Governo Federal.
Sempre que se trata de legislação indigenista e dos direitos dos povos indígenas,
remete-se à atuação da Funai, que tem, entre as suas competências, a promoção de
estudos de identificação e delimitação, demarcação, regularização fundiária e
registro das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, além do
monitoramento e da fiscalização das terras indígenas. A Funai também coordena e
implementa as políticas de proteção aos povos isolados e recém-contatados.
Cumpre, inicialmente, realçar que, no que concerne à questão indígena, o
Brasil é signatário de diversos tratados internacionais que, uma vez reconhecidos
pelo Congresso Nacional, têm valor de norma constitucional no ordenamento jurídico
pátrio. Os principais documentos estão a seguir enunciados:
a. Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em
Matéria de Adoção Internacional – Resolução nº 12 da Secretaria
Especial dos Direitos Humanos, de 09. 05.2008.
b. Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos
indígenas – ONU – 13.09.2007.
c. Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT
– Decreto nº 5.051, de 19.04.2004.
d. Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho na
língua Guarani-Kaiowá.
e. Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho na
língua Terena.
f. Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos – ONU – Decreto nº
592, de 06.07.1992.
g. Pacto Internacional Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – ONU
– Decreto nº 591, de 06.07.1992.
h. Convenção Americana sobre Direitos Humanos – OEA – Pacto de
São José da Costa Rica – Decreto nº 678, de 06.11.1992.
O artigo 5º, § 2º da Constituição Federal de 1988 prevê que os direitos e
garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e
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dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais de que a República
Federativa do Brasil seja parte.
Outro dispositivo que merece destaque é o artigo 231, que, em seu caput e
§ 1º, enuncia:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º. São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
O diploma legal mais importante no que se refere à questão indígena no
Brasil é a Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, conhecida como Estatuto do
Índio, que regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades
indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e
harmoniosamente, à comunhão nacional. O parágrafo único do artigo 1º desse
estatuto dispõe:
Parágrafo único. Aos índios e às comunidades indígenas se estende a proteção das leis do País, nos mesmos termos em que se aplicam aos demais brasileiros, resguardados os usos, costumes e tradições indígenas, bem como as condições peculiares reconhecidas nesta Lei.
Trata-se de uma lei fundamental para a proteção dos direitos dos povos
indígenas no Brasil. Encontra-se estruturada em sete títulos, entre os quais podem
ser considerados como mais relevantes o trato dos direitos civis e políticos desses
povos , a proteção às terras indígenas (Título III) e aos bens, renda e patrimônio
(Título IV) e a educação, cultura e saúde para essas populações (Título V).
Além desses temas fundamentais, a extensa legislação sobre a questão
indígena inclui vários outros que, no sítio eletrônico da Funai, aparecem classificados
nos seguintes tópicos: Cidadania, Ordenamento Territorial, Meio Ambiente,
Educação, Seguridade Social, Cultura, Organização da União, Etnodesenvolvimento,
Defesa e Pesquisa.
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1.2. Quilombolas
Em 1988, o tema dos remanescentes dos quilombos ganhou status
constitucional. A inclusão, na Constituição Federal, do direito dos descendentes aos
territórios ocupados desde tempos imemoriais representou um significativo avanço
nas conquistas de populações quilombolas no Brasil. A referência à cultura afro-
brasileira, juntamente com as culturas populares indígenas e as de outros grupos
participantes do processo civilizatório nacional, pode ser observada no artigo 215 da
Constituição Federal e parágrafos citados a seguir:
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º. O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. § 2º. A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais. § 3º. A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: I – defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II – produção, promoção e difusão de bens culturais; III – formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; IV – democratização do acesso aos bens de cultura; V – valorização da diversidade étnica e regional.
Ainda no campo cultural, é digna de nota a proteção aos documentos e sítios
históricos detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. É oportuno
transcrever a totalidade do artigo 216, para demonstrar a relevância atribuída ao
tema da proteção da memória afro-brasileira, como disposto:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (…).
Outro dispositivo constitucional importante para salvaguardar a cultura das
populações remanescentes de quilombos, bem como a questão territorial, é o artigo
68 do Ato das Disposições Constitucionais Provisórias (ADCT):
Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
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Com o propósito de regulamentar o disposto na Constituição de 1988, foi
editado o Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, que regulamenta o
procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e
titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos
de que trata o artigo 68 do ADCT.
No campo das políticas públicas, o principal instrumento de atuação do
Estado no que se refere às comunidades remanescentes de quilombos é o Programa
Brasil Quilombola da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(Seppir), lançado em 12 de março de 2004, com o objetivo de consolidar os marcos
da política de Estado para as áreas quilombolas. Um de seus desdobramentos
consistiu na Agenda Social Quilombola, instituída pelo Decreto nº 6.261, de 2007.
Esse programa de ação envolve quatro eixos, assim denominados: a) Acesso à
Terra; b) Infraestrutura e Qualidade de Vida; c) Inclusão Produtiva e Desenvolvimento
Local; e d) Direitos e Cidadania.
É relevante, finalmente, mencionar os direitos previstos na Lei nº 12.288, de
20 de julho de 2010, conhecida como Estatuto da Igualdade Racial, que estabelece,
entre outros aspectos, a necessidade de implantação de políticas para a promoção
do acesso à terra, às atividades produtivas no campo e ao financiamento agrícola,
tudo isso em vista de propiciar a igualdade étnico-racial.
1.3. Ribeirinhos
Em razão da especificidade cultural dos povos ribeirinhos, como
anteriormente apresentado, também é mais complexa a definição de marcadores
legais que venham a salvaguardar essas comunidades. Atualmente, pode-se
sublinhar dois documentos importantes para a garantia dos direitos desses povos: o
Decreto nº 8.750, de 9 de maio de 2016, que institui o Conselho Nacional dos Povos
e Comunidades Tradicionais, e o Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que
institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e das
Comunidades Tradicionais.
A definição de povos e comunidades tradicionais adotada pelo Poder
Público encontra-se no artigo 1o do Decreto nº 6.040, de 2007:
Artigo 1º. Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e
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econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
Da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais, apresentada como anexo do mencionado Decreto nº
6.040, de 2007, sobressai o inciso I do artigo 1º:
I – o reconhecimento, a valorização e o respeito à diversidade socioambiental e cultural dos povos e comunidades tradicionais, levando-se em conta, dentre outros aspectos, os recortes etnia, raça, gênero, idade, religiosidade, ancestralidade, orientação sexual e atividades laborais, entre outros, bem como a relação desses em cada comunidade ou povo, de modo a não desrespeitar, subsumir ou negligenciar as diferenças dos mesmos grupos, comunidades ou povos ou, ainda, instaurar ou reforçar qualquer relação de desigualdade (…).
Como se vê, não há dúvida de que o caminho a seguir para a garantia de
direitos dessas populações se encontra muito mais no campo do cumprimento do
papel do Estado, por meio de seus órgãos executivos, do que no aperfeiçoamento
do aparato legal específico. Com efeito, as leis existem, porém não lhes é dada
efetividade.
2. Práticas corporais de culturas tradicionais no Brasil:
indígenas, quilombolas e ribeirinhos
Os estudos que tratam das comunidades tradicionais têm adquirido especial
destaque, entre outros aspectos, pelo fato de haver um movimento de busca pela
valorização das populações indígenas, quilombolas e ribeirinhas por parte de
organismos internacionais e de governos com vista ao atendimento de demandas
sociais para a definição de políticas, notadamente de cultura e esporte e lazer.
Grupos sociais como indígenas, quilombolas e ribeirinhos são legalmente
reconhecidos como comunidades tradicionais por meio da Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), e,
de acordo com o Decreto nº 6.040, de 2007, é definido que se trata de grupos que
possuem cultura diferenciada, estrutura, gestão e organização social singulares e
relação singular com o meio ambiente.
A tipificação das comunidades tradicionais, como se pode perceber,
compreende, além da dimensão do reconhecimento da diversidade cultural e de suas
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singularidades, a forma de relacionamento dos sujeitos com o meio ambiente, o que
pode ser entendido como a relação corpo-natureza.
A relação corpo-natureza entre as comunidades tradicionais se constrói no
cotidiano e nas práticas corporais dos sujeitos de forma que, como atores sociais,
eles se investem de sentidos e significados em suas ações, ao mesmo tempo em
que definem suas demandas e travam estratégias de luta pela sobrevivência no
espaço-tempo por eles reconhecido como seu.
Esses mecanismos de luta, entretanto, materializam-se em práticas
cotidianas de resistência – de maneira direta, por meio do enfrentamento, ou, de
modo indireto, por meio do camuflar ou da omissão –, mas que, no fim, atendem ao
mesmo propósito, a saber, a luta pela legitimação desses sujeitos no espaço por eles
reconhecido como seu.
O meio ambiente e a natureza são objetos cotidianos de uma disputa
travada por sujeitos sociais. Por esse motivo, a busca de legitimação é um elemento
tão importante do processo, tendo em vista que pode servir para ordenar ou
classificar os indivíduos em grupos, definindo as relações de poder, com base em
forças em oposição. No caso das comunidades tradicionais, sejam elas indígenas,
quilombolas ou ribeirinhas, a lei é vista como um recurso aliado ao poder dominante
(tanto pelo direito de propriedade quanto pela fiscalização e pelas punições). Por
isso, “os dominados” engendram caminhos diferenciados para estabelecer seu
afrontamento com o objetivo de assegurar suas legitimidades (SUASSUNA, 2007).
Há de se considerar, no que concerne às culturas tradicionais, que os vieses
da definição de políticas, programas ou ações governamentais ou mesmo não
governamentais se pautam em compreensões, por vezes equivocadas, dos sentidos
e significados atribuídos por esses sujeitos sociais às suas práticas cotidianas, como
a caça, a pesca, a colheita de alimentos, entre outros. Para as comunidades
tradicionais, por exemplo aquelas que vivem na costa litorânea brasileira, a prática
da caça da tartaruga se constitui como parte de seu hábito alimentar porque, no
período em que não há peixe, não há de onde retirar outro alimento. A captura das
tartarugas nesse contexto é um fato que ocorria com regularidade e que estava
enraizado na consciência coletiva dos moradores nativos, tendo eficácia simbólica,
ou seja, havia a incorporação da noção de habitus, que compreende a regularidade
de condutas como um sistema de disposição para a prática (BOURDIEU, 1990 ).
Desse modo, um projeto que venha a contemplar o desenvolvimento
sustentável e sustentado não pode prescindir do reconhecimento de que a prioridade
é o desenvolvimento humano, aqui entendido como um processo que permite alargar
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o leque de opções das pessoas, traduzindo-se na possibilidade real de as pessoas
influenciarem o fluxo de suas vidas (PNUD, 2015). No entanto, para determinados
grupos sociais, o campo de escolhas é limitado. Limitado em razão da localização
geoespacial onde se vive, mas também em função das oportunidades a eles
ofertadas em uma sociedade referenciada pelo capitalismo e por suas regras e
padrões de consumo.
As comunidades tradicionais têm seus hábitos e práticas modificados –
modificações nos hábitos alimentares, na produção social de seus corpos e nos
comportamentos culturais –, deslocando-se muitas vezes os sentidos a eles
atribuídos, o que pode ocasionar rupturas no horizonte dos sujeitos sociais, por meio
da aceitação ou não do novo. Os que divergem e enfrentam o novo são vistos, muitas
vezes, como transgressores à ordem, mas o que pensar daqueles que “aceitam” o
novo? O que está em jogo nessa aceitação? Na verdade, aqui se concorda com
Polanyi (2000, p. 193), um processo de intervenção produz uma verdadeira
catástrofe na comunidade nativa, que é uma consequência direta da ruptura das
instituições básicas da vítima, e, em tal processo, aparentemente, é irrelevante se a
força é empreendida ou não. Há, portanto, a instauração de um processo de
desconstrução da identidade dos sujeitos sociais, que modificam seus esquemas de
valores, hábitos e comportamentos e passam a se identificar com o discurso que vem
“de fora”. Retoma-se, mais uma vez, o exemplo de pescadores do mar em uma
pequena vila do litoral do nordeste brasileiro. Com a chegada de um projeto
ambiental no lugar, alguns pescadores passaram a afirmar que a tartaruga marinha,
elemento que compunha o hábito alimentar local, não fazia parte da cultura local,
assimilando em suas falas as estratégias discursivas dos ambientalistas que
chegaram àquela comunidade. Isso quer dizer que, além do hábito alimentar e da
própria cultura, os pescadores desconstruíram seus valores, suas falas, suas práticas
e seus esquemas de representações, já que a tartaruga marinha representava todo
um conjunto simbólico para os nativos do lugar (SUASSUNA, 2007).
Com efeito, vale lembrar, como assinalam Costa Filho (2013) e Santana
(2013), que os povos e comunidades tradicionais, guardadas suas especificidades,
possuem características e relações diretas com o meio ambiente e o contexto
espaço-tempo no qual estão inseridos. Nessa mesma perspectiva, esses grupos
tradicionais possuem um modus operandi diferente dos ditados por uma sociedade
em geral, modo de operar que se assenta no princípio da sustentabilidade,
notadamente a sustentabilidade social (SACHS, 1993; 2000).
As culturas tradicionais formam grupos que se organizam em espaços
permanentes ou temporários, de modo a proporcionar e suprir as necessidades
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próprias, preservando o meio ambiente e utilizando os recursos naturais que lhes são
atribuídos. Com traços culturais que expressam os estilos de vida e a conformação
de um habitus, as práticas corporais revelam os grupos sociais, suas identidades e
seus referentes sociais e simbólicos. Nessa compreensão, inventariar as práticas
corporais das culturas tradicionais consiste em uma forma de registrar seu acervo
cultural e de reconhecer que suas manifestações fazem parte da diversidade cultural
brasileira. Diversidade essa que se assenta na teia de significados que são
representados na cultura popular por meio da tradição e da transmissão oral.
As práticas corporais das culturas tradicionais são, portanto, ações que
compõem os rituais e se constituem como manifestações culturais que expressam
valores de referência para cada etnia ou grupo social. A noção de pertencimento do
indivíduo ao grupo ocorre em meio ao compartilhamento de valores afetivos e
simbólicos entre pessoas. A diversidade cultural desses povos é fruto da ação das
pessoas como criadoras, guardiãs e usuárias dos bens culturais (PELEGRINI e
FUNARI, 2008). As práticas corporais, nesse sentido, são bens culturais de natureza
imaterial.
Os bens culturais, sejam eles de natureza material ou imaterial, fazem parte
da totalidade das sociedades tradicionais e colaboram para que valores, costumes,
normas sociais e comportamentos desejados sejam assimilados pelos indivíduos.
Todavia, como produtos da ação humana, esses bens são reconstruídos
constantemente em meio a um processo dinâmico e específico de cada cultura. Essa
constante recriação proporciona às práticas corporais o sentido de continuidade,
podendo ser transmitida de geração em geração, tendo como base suas tradições.
As práticas corporais são, para cada cultura tradicional, parte do patrimônio
cultural brasileiro, conforme a caracterização prevista no artigo 216, caput, da
Constituição Federal de 1988: “bens de natureza material e imaterial (...) portadores
de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira”. Assim, é pertinente apreender os sentidos e significados que
tais práticas assumem nos diferentes contextos sociais, bem como identificar a
conotação política que elas representam para os povos tradicionais no Brasil.
Compreender as práticas corporais como ações rituais performativas requer
apoiar-se nas concepções sobre ritual elaboradas por Tambiah (1985; 1997), que
considera que os seres humanos, em todas as sociedades, estruturam eventos que
podem ser reconhecidos como rituais e que possuem significados distintos em
diferentes contextos. Nessa concepção, a dança realizada durante o casamento
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tradicional Bororo, bem como em outros cenários, compreende um sistema cultural
de comunicação simbólica, que apresenta conteúdo e arranjos próprios1.
Desse ponto de vista, as práticas corporais são ações ordenadas e
padronizadas que estão associadas aos rituais festivos, tradicionais, cristãos e
interétnicos vivenciados pelos indígenas no Brasil. Nessa perspectiva, a análise de
tais práticas deve levar em consideração os sistemas econômico, político e cultural
das culturas tradicionais. As práticas corporais como sistemas de comunicação
simbólica deixam de ser apenas a ação que corresponde a um sistema de ideias,
como apregoava Lévi-Strauss (1970). “Vivemos sistemas rituais complexos,
interligados, sucessivos e vinculados, atualizando cosmologias e sendo por elas
orientados” (PEIRANO, 2000, p. 12).
No plano prático, existe uma analogia entre o rito e o jogo, pois todo jogo
possui um conjunto de regras previamente definidas e consentidas por seus
praticantes, o que o torna passível de ser disputado inúmeras vezes. “Mas o rito, que
se joga também, parece mais uma partida privilegiada, retida entre todas as
possíveis, porque só ela resulta em um certo tipo de equilíbrio entre os dois campos”
(LÉVI-STRAUSS, 1970, p. 52). Ritos são acompanhados de jogos de destreza ou de
sorte que, à primeira vista, poderiam assemelhar-se às competições desportivas,
porém são imbuídos de sentidos e significados ritualísticos. Os jogos das sociedades
tradicionais são práticas corporais que colaboram para que valores, costumes,
normas sociais e comportamentos desejados sejam assimilados por meio dos corpos
dos indivíduos, tendo como base suas tradições (ALMEIDA, 2008).
O jogo induz à criação de figuras, símbolos e materiais necessários à sua
prática. Reveste-se, assim, de um conjunto de elementos, cujo funcionamento
permite que incontáveis situações se registrem. Nele, combinam-se ideias de limite,
liberdade e criação, balizadas por regras e convenções que devem imperar e ser
respeitadas de maneira inapelável, sob pena de que se encerre o jogo. Nessa ótica,
um conjunto de restrições é acordado e aceito por todos os jogadores,
voluntariamente, para que uma ordem seja estabelecida, sem a presença obrigatória
de um indivíduo que faça cumpri-las.
No jogo, estruturas abstratas são produzidas, possibilitando o
aprimoramento de habilidades físicas e intelectuais e o desenvolvimento de atitudes
psicológicas que contribuem para a vida em sociedade e para a continuidade de uma
1 “Ritual is a culturally constructed system of symbolic communication. It is constituted of patterned and ordered sequences of words and acts, often expressed in multiple media, whose content and arrangement are characterized in varying degree by formality (conventionality), stereotypy (rigidity), condensation (fusion), and redundancy (repetition)” (TAMBIAH, 1985, p. 128).
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cultura. É um meio de introduzir o indivíduo de forma geral na vida, aperfeiçoando
sua capacidade de resolver problemas decorrentes do contexto em que vive.
Segundo Huizinga (2004), o jogo contribui para a estruturação das
instituições que ordenam a sociedade. Tem ainda uma função significante de
encerrar o sentido dentro de uma cultura, isso quer dizer que possui um elemento
imaterial em sua essência.
Os jogos e as brincadeiras tradicionais constituem importantes referentes
para essa dimensão, podendo ser compreendidos como um conjunto de hábitos e
práticas que têm como significado uma relação simbiótica entre corpo e espírito, já
que os jogos tradicionais presumem uma explicação mitológica para sua realização;
são meios de interação entre o mundo dos espíritos e o mundo real, que ocorre
durante os rituais indígenas (ALMEIDA, ALMEIDA e GRANDO, 2010).
2.1. Indígenas
No Brasil estima-se que a população indígena seja constituída por 896,9 mil
pessoas, ou seja, 0,4% da população brasileira. São pertencentes a 305 etnias,
comunidades definidas por afinidades linguísticas, culturais e sociais (IBGE, 2010).
Foram coletadas informações tanto da população residente nas Terras Indígenas
(TI), fossem indígenas declarados ou não, quanto de indígenas declarados fora
delas. Desse total, 36,2% dos indígenas vivem em área urbana e 63,8%, no meio
rural. O quantitativo de indígenas inclui os 817,9 mil indígenas que se autodeclaram
no quesito cor ou raça e 78,9 mil pessoas que residem em TI e se declaram de outra
cor ou raça, mas se consideram indígenas de acordo com aspectos, tais como:
tradições, costumes, cultura e antepassados.
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Tabela 1: População indígena e distribuição percentual, por localização do domicilio e condição indígena, segundo as Grandes Regiões – 2010
Grandes Regiões
População indígena e distribuição percentual
Total
Localização do domicílio
Terras indígenas
Fora de terras
indígenas
Total
Condição de indígena
Declaram-se indígenas
Não se declaram, mas se consideram
indígenas
Brasil 896.917 517.383 438.429 78.954 379.534
Norte 342.836 251.891 214.928 36.963 90.945
Nordeste 232.739 106.142 82.094 24.048 126.597
Sudeste 99.137 15.904 14.727 1.177 83.233
Sul 78.773 39.427 35.599 3.828 39.348
Centro-Oeste
143.432 104.019 91.081 12.938 39.413
Brasil 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
Norte 38,2 48,7 49,0 46,8 24,0
Nordeste 25,9 20,5 18,7 30,5 33,4
Sudeste 11,1 3,1 3,4 1,5 21,9
Sul 8,8 7,6 8,1 4,8 10,4
Centro-Oeste
16,0 20,1 20,8 16,4 10,4
Fonte: IBGE, 2010.
Gráfico 1: Distribuição da população indígena
Fonte: IBGE, 2010.
As informações e opiniões prestadas nesta publicação são de responsabilidade dos respectivos autores e não necessariamente refletem a opinião dos editores.
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Gráfico 2: Distribuição especial da população indígena no Brasil
Fonte: IBGE, 2010.
Gráfico 3: Dados demográficos da população indígena no Brasil
Fonte: IBGE, 2010.
Em relação às TIs, foram identificadas 505 terras. Esse quantitativo
representa 12,5% do território brasileiro, no qual residem 517,4 mil indígenas, 57,7%
do total. Somente seis Terras Indígenas tinham mais de 10 mil indígenas, 107 TIs
tinham entre mil e 10 mil, 291 TIs tinham entre cem e mil pessoas e, em 83 TIs,
residiam até cem indígenas. A TI com maior população é a TI Yanomami, localizada
nos estados do Amazonas e Roraima, com 25,7 mil indígenas.
As informações e opiniões prestadas nesta publicação são de responsabilidade dos respectivos autores e não necessariamente refletem a opinião dos editores.
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As TIs, no Brasil, encontram-se em quatro situações: “declaradas”, que possuem
Portaria Declaratória, mas aguardam demarcação; “homologadas”, aquelas já
demarcadas com limites homologados; “regularizadas”, que possuem registro em
cartório; e as “reservas indígenas”, aquelas que foram doadas por terceiros,
adquiridas pelos grupos ou desapropriadas pela União. No Brasil, a competência
para demarcações de terras indígenas é do poder Executivo Federal, porém
encontra-se em tramitação no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à
Constituição (PEC) nº 215, de 2000, que prevê a atribuição dessa competência para
o Congresso Nacional.
Tabela 2: Terras Indígenas
Fonte: IBGE, 2010.
A base da pirâmide etária dos indígenas que habitam as TIs é larga, com o
ápice estreito. Fato que demonstra o padrão de altas taxas de fecundidade e
mortalidade por idade. Já a pirâmide etária dos indígenas residentes fora das TIs
indica baixa fecundidade e mortalidade, o que indica a importância das TIs para a
perpetuação da etnia e, ao mesmo tempo, aponta que o acesso à saúde nas áreas
urbanas contribui para diminuição dos óbitos.
O acesso à educação pode ser considerado um outro entrave ao
desenvolvimento desses povos. Políticas públicas que garantem uma educação
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diferenciada têm conduzido os indígenas ao ensino superior, e a taxa de
alfabetização em 2010 é superior à taxa registrada em 2000. No entanto, verifica-se
que a população indígena ainda tem nível educacional mais baixo do que o da
população não indígena. Nas TIs, nos grupos etários acima dos 50 anos, a taxa de
analfabetismo é superior a 50%.
Esses dados repercutem na economia local das diferentes etnias. Apesar da
dificuldade de obtenção de informações financeiras, a análise de rendimentos
elaborada pelo IBGE demonstra que 52,9% dos indígenas que vivem em áreas
urbanas não possuem qualquer tipo de rendimento, proporção que alcança 65,7%
dos indígenas no meio rural. Todavia, muitos grupos étnicos realizam trabalhos de
forma coletiva e tradicional. Em muitos casos, as práticas rituais e o lazer estão
relacionados ao trabalho; nesse sentido, entende-se o significado que as TIs e as
práticas corporais tradicionais possuem para a subsistência dos povos indígenas,
constituindo as bases de sua cultura.
A diversidade sociocultural desses povos2 também é observada por meio da
linguagem verbal e corporal. O idioma e o corpo são como meios de expressões
relevantes para a identificação de uma etnia indígena. É possível afirmar que cada
povo nomina e identifica seus contextos e suas práticas corporais de forma
específica. Isso porque se evidenciam 274 idiomas distintos entre os povos indígenas
brasileiros.
As etnias indígenas, no Brasil, possuem uma diversidade de brincadeiras,
jogos, corridas, danças e lutas que compõem rituais e que, para serem vivenciadas,
exigem práticas corporais, que se revestem de técnicas. São longas caminhadas,
nado ou travessia de rios por meio de canoas, escaladas em árvores e morros e
utilização de armamentos, tais como arco e flecha, Borduna e Zarabatana.
Em 2015, foi realizado o I Fórum de Políticas Públicas de Esporte e Lazer
para os Povos Indígenas – Foppelin, como ação política do governo federal junto aos
povos indígenas no Brasil. Participaram do evento 307 pessoas para avaliar os
programas do Ministério do Esporte em desenvolvimento, estabelecer relações com
setores que viabilizam políticas indígenas e indigenistas e elaborar propostas para
orientar as políticas de esporte e lazer para os povos indígenas. Durante o evento,
foi aplicado um questionário sobre rituais e práticas corporais junto aos
representantes indígenas. Dos 146 representantes indígenas que responderam à
pesquisa, 131 afirmaram vivenciar práticas corporais diversas, enquanto 15
2 As etnias indígenas são grupos sociais que se perpetuam por meios biológicos e socioculturais, sendo comumente denominadas como “povos”.
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afirmaram não vivenciar prática corporal alguma. O gráfico a seguir traz a distribuição
das práticas corporais relatadas, veja-se:
Gráfico 4: Práticas corporais vivenciadas pelos indígenas
Fonte: Grando e Almeida (2015) .
Durante a realização dos rituais, os indígenas vivenciam diversas práticas
corporais, entre elas: danças, corridas, lutas corporais, jogos e brincadeiras. O
Quarup ou Kuarup é um ritual funerário realizado anualmente pelos povos do Alto
Xingu no estado do Mato Grosso, no qual falecidos são homenageados sob a forma
de efígies de madeira. Segundo Guerreiro (2015), esse ritual tem se tornado um
evento com participação de políticos e personalidades públicas que, ao mobilizarem
recursos financeiros por meio de setores do Estado, inserem-no na pauta nacional
de projetos de “etnodesenvolvimento”.
Durante a realização do ritual, os indígenas realizam diferentes práticas
corporais. A mais conhecida é a luta corporal denominada Huka-Huka, que consiste
em um combate entre dois guerreiros indígenas que têm por objetivo derrubar seu
oponente de modo que toque suas costas no solo.
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Imagem 1: A luta corporal
Foto: Beto Ricardo, 2002. Fonte: Instituto Socioambiental.
Consoante a relevância, já mencionada, dessas práticas corporais para essas
comunidades, faz-se necessário apresentar com maior destaque algumas delas,
considerando três eixos: os jogos e brincadeiras, as danças e o esporte.
2.1.1. As práticas corporais
2.1.1.1. As práticas corporais
O Jogo da Onça (Adugo) é um jogo de tabuleiro que simula a caçada de
uma onça. Nesse jogo, dois jogadores participam da atividade sendo que um é
responsável por movimentar a onça e o outro, 14 cachorros. O objetivo do jogador
que movimenta os cachorros é conseguir encurralar a onça em uma determinada
parte do tabuleiro para se sagrar o vencedor. Já o jogador que movimenta a onça
tem como meta capturar cinco cachorros, saltando sobre eles e posicionando-se
sobre pontos determinados no tabuleiro para vencer a disputa. A onça é um animal
sagrado para o povo Bororo; portanto, sua captura fornece prestígio ao caçador,
adotando-se como costume a oferta à família do finado como vingança de sua morte
na cerimônia ritual “Adugo Mori” (CAMARGO, 2010).
Além do jogo, as corridas constituem práticas corporais que reforçam elos
entre os mundos físico e espiritual, corroborando para a produção social dos corpos
indígenas. Entre os indígenas do Brasil são praticadas corridas com ou sem
instrumentos. Trata-se de uma prática transmitida por meio da oralidade, registrando-
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se como parte da cosmologia desses povos. Velocidade e resistência são habilidades
exigidas ao corredor; porém, elas estão relacionadas aos esquemas mitológicos de
cada etnia ou cultura indígena. Os corredores são possuidores de dons, que são
constituintes de suas identidades, de acordo com as representações sociais
(ALMEIDA, ALMEIDA e GRANDO, 2010).
Pelo menos seis etnias praticam a corrida de toras em território brasileiro, a
saber: Xerente, Gavião, Xavante, Kanela, Krikati e Krahô. Cada etnia corre com a
tora que é tradicional de sua cultura, expressando suas especificidades. Ressalta-se
que a corrida de toras varia muito de uma sociedade para outra. Os Gavião Kyikatejê
do Pará, antes de iniciarem a corrida (denominada Jãmparti), colocam duas toras de
aproximadamente três metros de altura apoiadas na areia sobre a extremidade de
diâmetro maior, ornamentada com algodão, visto que essa tora apresenta uma
diferença de diâmetro entre as extremidades (ALMEIDA, 2008). Entre os Gavião, as
toras são erguidas com a ajuda de todos os participantes e conduzidas por dois
indígenas de cada vez, que as carregam nos ombros com a extremidade de maior
diâmetro à frente. Para a passagem da tora, há uma pequena pausa até que esteja
segura por outros dois índios.
Os Kanela, tanto homens quanto mulheres, correm com toras de
aproximadamente um metro de comprimento por 30 centímetros de diâmetro. A tora
é conduzida individualmente, com o acompanhamento de outros indígenas, que
auxiliam o corredor equilibrando-a. A passagem é dinâmica, e o condutor da tora
realiza um giro colocando-a sobre o ombro do companheiro (ALMEIDA, 2008). Melatti
(1976), em estudo realizado entre os Krahô, constatou que essa prática está sempre
associada a um rito. Conforme os ritos, variam as formas das toras, os grupos que
disputam a corrida e o percurso.
As corridas vindas de fora da aldeia ocorrem geralmente no final da tarde,
quando os indígenas retornam de alguma atividade coletiva: caçada ou mutirão na
roça. Enquanto caçam ou trabalham na roça, dois deles preparam as toras,
derrubando um buriti e cortando duas seções de seu tronco. Os dois cilindros, assim
obtidos, iguais em tamanho, são rolados para fora do brejo e colocados em um lugar
limpo, e os demais indígenas se dividem. Velhos e meninos se encarregam de levar
as espingardas e os pedaços de carne, que tocaram a cada um dos rapazes e
homens adultos, enquanto os homens adultos partem correndo com as toras em
direção à aldeia (MELATTI, 1976, p. 40).
Melatti (1976) identificou sete tipos diferentes de toras, geralmente
confeccionadas de tronco de buriti. Quando utilizadas em momentos distintos, as
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toras possuem sentidos específicos. Desse modo, observa-se que, desde sua
fabricação, a tora está envolvida em um sistema de significados, o que contribui para
desmentir a ideia de que a corrida de tora seja realizada exclusivamente como um
teste matrimonial. Entre os Krahô, por intermédio das corridas de toras, há a
passagem dos elementos da natureza para o âmbito social (MELATTI, 1976).
Imagem 2: Corrida de Toras – Xavante
Foto: Revista Manchete. Fonte: Instituto Socioambiental, 2008.
Já os Bororo de Meruri também vivenciam uma representação na qual a
habilidade exigida é correr, levando sobre as costas um grande cilindro feito de talos
de caeté (palmeira típica do cerrado). Trata-se do “Aroe Mano Kurireu (Manno). É um
jogo dos espíritos” (COLBACCHINI e ALBISETTI, 1942, p. 429). Para sua realização,
é imprescindível retirar da natureza o caeté, uma planta que prospera em solo
constantemente irrigado. Após sua retirada, confeccionam-se talos que formam um
grande cilindro (Mano Kurireu). A corrida é disputada pelas duas metades: Tugarege
e Ecerae. Cada lado deve preparar seus cilindros e, para tanto, é necessário o
deslocamento de muitas pessoas da comunidade até a lagoa onde a palmeira é
encontrada.
Antes de irem coletar os talos, há a execução de cantos próprios.
Preparados pelos cantos, os índios se dirigem até a lagoa, retiram a quantidade de
brotos suficiente e os levam para a aldeia. As mulheres recebem os brotos de caeté
e correm, levando-os para o local de início da corrida (Mano Pa), onde seus irmãos
e filhos, juntos com outros homens da sua metade, preparam os talos. Os talos
possuem cerca de 50 centímetros de comprimento. Colocados lado a lado, são
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amarrados com seda retirada do broto de tucum e formam uma grande roda. Com os
cilindros prontos, o xamã canta para os encarregados das duas metades, convidando
os espíritos a entrarem nas grandes rodas. Os indivíduos pertencentes ao clã Aroroe
entregam pequenas varetas de bater no Mano Kurireu aos encarregados, que
dançam ao redor do cilindro. Depois, os cilindros são erguidos e colocados nas
costas dos corredores, que dançam novamente e, em seguida, correm em direção à
aldeia (BORDIGNON, 1995).
O arco e flecha é um instrumento utilizado para competição e, também,
como brincadeira de crianças, jovens e adultos indígenas. Os arcos são fabricados
com técnicas tradicionais e com distintos tipos de madeira. Na cultura Bororo,
conforme Albisetti e Venturelli (1962), os arcos podem ser classificados em três
categorias: Boeíga, tipo de arco usado no cotidiano que não possui adorno; Boeíga
O-iagaréu, tipo de arco com muitos adornos, que poderia ser denominado de festivo,
embora seja usado em qualquer ocasião, mesmo durante as caçadas; e Boegára,
um tipo de arco infantil de pequenas proporções. A produção das flechas também
atende a um processo singular, que envolve a escolha dos materiais a serem
utilizados, como as melhores penas, a fim de proporcionar maior estabilidade ao
artefato (ALMEIDA, 2013).
2.1.1.2. As danças
As danças indígenas são práticas corporais que constituem os rituais
festivos, cristãos, tradicionais e interétnicos. Por meio da linguagem corporal
codificada, uma ação corporal convencional exercida de acordo com um contexto
social recebe novas atribuições de sentidos e significados pelos atores sociais e pelo
público presente nas cerimônias. Em seus traços constitutivos, as danças são
compreendidas como performances culturais que, ao serem encenadas, utilizam
diferentes linguagens.
Essas práticas corporais são simbolicamente construídas por meio do corpo
e de projetos de marcação corporal. São pinturas, adornos corporais e indumentárias
seus principais signos. Tais signos atendem a um domínio semântico convencional,
possuindo significados para cada ritual realizado. Eles expressam em seus sentidos
a posição social do sujeito, o seu reconhecimento perante o grupo e seu poder na
estrutura social indígena.
As danças são práticas corporais ritualizadas que apresentam uma
comunicação codificada que incita elementos sensoriais e emocionais dos atores
envolvidos em uma experiência. Essas práticas podem ser consideradas ações
As informações e opiniões prestadas nesta publicação são de responsabilidade dos respectivos autores e não necessariamente refletem a opinião dos editores.
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rituais performativas, pois, assim como os ritos, são expressões performáticas dos
atores envolvidos no processo de comunicação (LONDRES, 2004). Os bens culturais
que compõem as danças são permeados por saberes de que somente alguns
indígenas são autorizados a se apropriarem e possuem procedimentos determinados
por normas tradicionais que devem ser seguidas. Portanto, cada dança possui sua
particularidade.
A dança, como uma cerimônia social, permite às pessoas unirem-se na
mesma ação e performarem como um corpo. Por um lado, pode-se dizer que um
ritual público reproduz leis aparentemente invariantes e sequências estereotipadas,
assim como fórmulas, papéis e normas de comportamentos seguidas. Por outro lado,
os festivais, rituais cósmicos e ritos de passagem estão relacionados à reivindicação
do status, a interesses dos participantes e aos significados contextuais.
Almeida (2013) construiu um inventário do acervo de danças praticadas por
indígenas brasileiros. São elas:
1) Jure, que é uma dança comum entre os indígenas brasileiros,
possivelmente por ser a única que pode ocorrer em um contexto não
funerário . Possui três sentidos entre os Meruri, como se percebe a
seguir:
a. Pode compor uma ação pedagógica da escola indígena,
quando um dos professores, pertencentes ao clã
Baadojebae, que estava se preparando para ser Bapo Rogu,
estuda o canto, a técnica de toque dos chocalhos e os
movimentos corporais dos participantes, com a finalidade de
transmiti-la aos mais jovens.
b. Colabora para a estruturação de normas e valores cristãos,
tendo a finalidade de manter o estabelecimento da relação
histórica entre os Bororo e os missionários salesianos. Aqui,
é conduzida pelo cacique, que tem a prerrogativa para dirigir
a dança e realizar os cantos.
c. Pode comunicar à comunidade a possibilidade e a ocorrência
de uma troca matrimonial regida pelas regras e pelos
princípios da cultura Bororo3. Nesse caso, os participantes
são homens adultos (iniciados) e suas mulheres, e é
conduzida pelo chefe religioso.
3 Conforme Taylor: “las performances funcionan como actos vitales de transferencia, transmitiendo saber social, memoria y sentido de identidad a través de acciones reintegradas” (2003, p. 18).
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2) Toro é outra dança indígena, porém, diferentemente da Jure, pode
ocorrer durante rituais funerais ou não e está a seguir tipificada:
a. Toro Ekureu, que é uma dança que compõe o ritual do
funeral. Nesse caso, a saia é amarela e o material utilizado é
o broto novo, sem a seda.
b. Toro Coreu, realizada em cerimônias não funerárias. A saia
utilizada é escura e fabricada com a folha de buriti aberta.
3) Kaiwô, que compõe um ritual funerário, foi realizada pela primeira vez
em local interétnico, com adaptações, durante a cerimônia de abertura
da X edição dos Jogos dos Povos Indígenas4. Até então, essa dança
consistia em um segredo pertencente ao clã Paiwoe da cultura Bororo.
4) A performance do Roia Kurireu, que é constituída por um canto
dançado dos Bororo, também foi realizada pela primeira vez em ritual
interétnico durante a X edição dos Jogos.
2.1.1.3. O esporte
O futebol é o esporte mais praticado pelos povos indígenas no Brasil.
Embora seja recorrente entre esses povos, ainda é pouco estudado. Trata-se de um
“fato social total”, isto é, um acontecimento que envolve aspectos socioculturais,
psicológicos e biológicos (MAUSS, 2003). É um fenômeno complexo que possui
características próprias5.
Vianna (2001) apresentou um significativo estudo para a compreensão do
futebol entre os indígenas da etnia Xavante, da aldeia Abelhinha, no Território de
Sangradouro, localizado no sudeste do Mato Grosso. Ao analisar a prática corporal,
o autor observou diferentes modos de vivenciá-la, proporcionando não só novos
significados ao jogo como também o estabelecimento de outras práticas ritualísticas
e de outras redes de relações por meio de interações interétnicas entre os Xavante
e os “não índios”, em jogos realizados na aldeia ou fora dela. Para Vianna (2001), os
modos como os Xavante vivenciam o futebol, dentro e fora dos limites geográficos
do campo e da aldeia, são semelhantes àqueles das “peladas” assistidas ou
praticadas, bem como aos da televisão e dos estádios que os “brancos” estão
acostumados a frequentar. Entretanto, o autor identificou que, entre os Xavante da
Abelhinha, as práticas, ideias e vontades que envolvem o futebol são próximas dos
4 Realizados em Paragominas/PA, em 2009. 5 Trata-se de uma prática moderna e que “resultou de um processo de modificação [...] de esportivização de elementos da cultura corporal de movimento das classes populares inglesas, e também de elementos da cultura corporal de movimento da nobreza inglesa” (BRACHT, 2003, p. 13).
As informações e opiniões prestadas nesta publicação são de responsabilidade dos respectivos autores e não necessariamente refletem a opinião dos editores.
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sentidos atribuídos às corridas (VIANNA, 2001). Essa concepção coloca tal prática
corporal como um importante elemento para a compreensão das relações sociais
entre os Xavante, já que aspectos cosmológicos relacionados à corrida de toras
passam a ser associados ao futebol.
Não se tem exatidão do momento em que essa prática corporal foi
introduzida entre os Bororo de Meruri nem do modo como isso aconteceu. De acordo
com a liderança do povo Bororo, o futebol chegou à aldeia Meruri por meio dos
missionários salesianos, que foram os primeiros não índios a estabelecerem contato
com esse grupo (ALMEIDA, 2013). Essa afirmação pode ser aceita, pois os
missionários salesianos utilizavam exercícios físicos – “ginástica” – como meio de
civilização dos índios no início do século XX (CASTILHO, 2000 p. 63).
De fato, o futebol foi inserido em um período histórico no qual sua prática
estava direcionada para o desenvolvimento de um “processo civilizador” dos
indígenas; em outros termos, o esporte era utilizado como meio de educação do
corpo fundamentado pelos ideais modernos. Nesse sentido, o futebol aprendido
pelos Bororo de Meruri contribuiu promovendo alterações na corporeidade dos
indígenas. Alterações essas decorrentes de uma racionalidade moderna imposta por
atores externos e que, por conseguinte, influenciaram na incorporação de outras
crenças. O intuito era discipliná-los. Portanto, a assimilação do futebol no primeiro
terço do século XX – período em que se desenvolvia uma dominação carismática por
parte dos missionários e uma dominação legal por parte do Serviço de Proteção ao
Índio (SPI) – foi ao encontro dos interesses dominantes à época (ALMEIDA, 2013).
Além dos Xavante e dos Bororo, a prática do futebol também existe entre o
povo Kaingàng. No entanto, nesse caso, o futebol constituiu-se conforme sua
cosmologia. Assim, os mitos são reproduzidos no futebol por meio da adaptação dos
valores tradicionais (PEIRANO, 2000). Há, entre esses indígenas, a construção de
uma segunda natureza, conforme interpretação de Fassheber (2010), assim
entendida em razão da reatualização das tradições culturais na execução da prática
corporal do futebol. Baseando-se na noção de faculdade mimética, Fassheber (2010)
afirma que as diferentes sociedades fazem do futebol um jogo congruente com as
especificidades de cada cultura, isto é, sobre ele recaem as construções específicas
de cada grupo social, operando na produção de novas e inigualáveis relações
sociais.
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2.2. Quilombolas
Os quilombos constituem-se por sua dinamicidade, capacidade de resistência
e diversidade. A história do quilombo tem sua origem no processo de resistência ao
regime escravista, que se sustentava na força física e no poder de dominação pelo
uso da violência simbólica (BOURDIEU, 1990 ). Os quilombos ou mocambos, como
também eram conhecidos (ambas as palavras de origem africana), existiram em
todas as províncias do Brasil durante o período colonial. Os primeiros registros datam
de 1575 na região da Bahia. Naquele período, eram constantes os conflitos entre o
poder instituído e a resistência dos negros escravizados.
O quilombo dos Palmares, peculiar em relação a outros quilombos do Brasil,
sobreviveu por quase um século, resistindo até 1694. Apesar de controvérsias entre
historiadores, tudo leva a crer que foi em Palmares que surgiu Zumbi6. Para a
população negra da época, Zumbi tornou-se um personagem de resistência ao
regime escravista, por incitar, no imaginário de outros negros, rebeliões e a formação
de novos quilombos.
Notadamente, não somente de negros fugidos eram constituídos os
quilombos, mas também de mulatos e brancos, que poderiam ser fugitivos da justiça
ou americanos. Apesar desse dado histórico, esses grupos eram uma minoria nos
quilombos e seu poder na organização social era pequeno (SCHWARTZ, 1996).
Segundo nos relata Reis e Gomes (1996), ao longo de todo o território nacional, os
quilombos foram formados com características distintas de acordo com cada região,
levando em consideração aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais. Silva
(1998) afirma que os quilombos eram um símbolo de mudança social e de busca pela
liberdade, o que levava a um segundo estágio de luta pela liberdade étnica e política.
Com a Constituição Federal (CF) de 1988, o termo quilombo adquire uma
interpretação atualizada, ao ser contemplado no artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT). Esse dispositivo reconhece o direito territorial
às comunidades remanescentes de quilombo, que ainda ocupavam suas terras,
cabendo ao Estado garantir reconhecimento e titulação. Essa determinação legal,
como nos aponta O'Dwyer (2002), confere ao termo quilombo a conotação de direitos
territoriais.
6 A criação do Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro, foi uma homenagem à morte de Zumbi dos Palmares, que ocorreu no ano de 1665. Durante uma semana questões relacionadas ao movimento negro e aos direitos humanos e sociais são objeto de debate e reflexão em várias cidades brasileiras.
As informações e opiniões prestadas nesta publicação são de responsabilidade dos respectivos autores e não necessariamente refletem a opinião dos editores.
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Outro aspecto importante que ocorreu com a CF foi a criação da Fundação
Cultural Palmares na Constituição Federal, que, dentre suas competências, é
responsável pelo reconhecimento das comunidades quilombolas do país. Outro
marco para a redefinição de políticas para o setor se deu com a criação da Secretaria
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) em 2003. À época, essa
secretaria, que tinha status de ministério, era responsável pela formulação,
coordenação e articulação de políticas públicas e diretrizes para a promoção da
igualdade racial, bem como pela proteção dos direitos de indivíduos e grupos étnicos,
em especial da população negra.
Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), há
2.523 comunidades certificadas pela Fundação Palmares no território nacional,
número que representa apenas parte das comunidades tradicionais negras do país.
Desse total, cerca de 1.533 estão com processos em tramitação para a regularização
fundiária. Nesse espectro de processos junto ao Incra, temos a seguinte distribuição
pelas regiões do país:
Tabela 3: Percentual de titulação de terras de acordo com as regiões brasileiras
Região Terras quilombolas (%)
Centro-Oeste 7,11
Sudeste 18,19
Nordeste 56,88
Norte 8,4
Sul 9,32
Fonte: Os autores, com base em informações do Incra (2016) .
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Mapa 1: Distribuição das comunidades quilombolas no território nacional
Fonte: Os autores, com base em informações do Programa Brasil Quilombola (SEPPIR, 2016 ).
Na atualidade, 210 títulos de terra foram expedidos, beneficiando 151
territórios quilombolas, 241 comunidades e 16.009 famílias. Esses números
representam menos de 10% da demanda apresentada ao Incra pelas comunidades
quilombolas até o mês de fevereiro de 2016, como destaca o próprio relatório
institucional (INCRA, 2016 ). No mesmo documento, consta a informação de que
esses títulos representam apenas 0,23% do território nacional. De forma hipotética,
caso todas as comunidades quilombolas que atualmente reivindicam o direito à
posse da terra tivessem seus títulos emitidos, como ilustrado no mapa acima de
acordo com a Seppir (2016) , esse percentual ainda não atingiria 1% das terras
pertencentes ao território nacional. Em contrapartida, as terras dos agropecuários
atingem, de acordo com o mesmo relatório, 40% desse mesmo território.
As informações e opiniões prestadas nesta publicação são de responsabilidade dos respectivos autores e não necessariamente refletem a opinião dos editores.
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Com relação à certificação, etapa inicial do processo de titulação das terras
junto ao Incra, tem-se:
Gráfico 5: Histórico recentes dos territórios quilombolas certificados
Fonte: Os autores, com base em informações do Programa Brasil Quilombola (SEPPIR, 2016) .
Nota-se que as políticas públicas, nesse período, foram decisórias na
ampliação do reconhecimento dessas comunidades no território nacional, em
especial a partir da ação da Fundação Palmares. Entretanto, como já dito, o
percentual de terras tituladas está aquém da demanda social requerida pelas
comunidades quilombolas. Vejam-se os seguintes gráficos:
Gráfico 6: Histórico das terras tituladas com processos já finalizados de posse da terra
Fonte: Os autores, com base em informações do Programa Brasil Quilombola (SEPPIR, 2016) .
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Esses dados explicitam lentidão, problemas e limitações das políticas
públicas no sentido de garantir o direito à titulação das terras quilombolas. Nesse
contexto, é importante mencionar que a posse da terra tem centralidade nesse
processo por duas razões: uma de ordem material e outra de ordem cultural. Para as
populações tradicionais quilombolas, assim como para os indígenas e ribeirinhos, a
terra é um elemento identitário, atende a um valor simbólico e constitui a base da
formação da consciência coletiva. Do ponto de vista material, o território é a condição
primária para que direitos e demandas sociais possam ser resguardados e
requeridos ao poder público, como a educação, a saúde, a moradia, a
empregabilidade, a sustentabilidade, a cultura e o lazer.
Ao considerar os dados demográficos dessas comunidades tradicionais
negras, de acordo com a Seppir (2013), tem-se que 214 mil famílias pertencem a
comunidades quilombolas no país, o que totaliza cerca de 1,17 milhão de pessoas.
Desse número, 79,78% são beneficiários do Programa Bolsa Família; 74,73%
encontram-se em situação de extrema pobreza; 92,1% se autodeclararam pretos ou
pardos; 24,81% não sabem ler e 82,2% desenvolvem, como atividade econômica, a
agricultura, o extrativismo e/ou a pesca artesanal.
2.2.1. As práticas corporais
2.2.1.1. Os jogos e brincadeiras
Os jogos e as brincadeiras tradicionais, nas comunidades quilombolas, têm
perdido, paulatinamente, espaço para os brinquedos industriais e se restringido à
memória dos mais velhos. Segundo Falcão e Pedroza (2011) , foi possível identificar:
brincadeiras de roda, contação de estórias, declamação de versos, adivinhações,
casinha, confecção de bonecas de pano e materiais artesanais, petecas e brinquedos
artesanais. Vejamos a fotografia seguinte:
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Imagem 3: Boneca confeccionada a partir da palha de milho na Comunidade Quilombola do Cedro (Mineiros/GO)
Fonte: Acervo do relatório da pesquisa “Manifestações da cultura corporal em comunidades quilombolas:
um acervo inicial no estado de Goiás” (MINISTÉRIO DO ESPORTE, 2009-2010).
Apesar de esses jogos e brincadeiras coexistirem com as novas
experiências lúdicas apresentadas pela mídia, temem os mais velhos que o
videogame, por exemplo, leve ao esquecimento as formas tradicionais de brincar. No
tempo dos mais velhos, as brincadeiras tinham uma relação mais intrínseca com as
formas de produção da vida material, portanto, do meio rural e suas formas de
significação da tradição cultural. Esse distanciamento das crianças das formas
tradicionais do jogar e brincar tende a um rompimento simbólico com os saberes
valorados por esses grupos étnicos, que são transmitidos de forma privilegiada pela
oralidade.
O pocan, por exemplo, brincadeira tradicional entre os membros mais velhos
da Comunidade Quilombola do Cedro cujo objeto era construído utilizando laranja e
galhos de árvore seca, não é mais brincado pelas crianças na atualidade.
Falcão e Pedroza (2011) enunciam que uma brincadeira denominada
cavalo de pau pode ser identificada no grupo social, servindo, inclusive, como
representação social do uso do cavalo nas atividades laborativas de grupos
familiares entre os quilombolas.
Os jogos e as brincadeiras das crianças quilombolas permeiam um
hibridismo entre a vida no campo, o mundo do trabalho e as relações sociais
construídas na cidade. Wiggers e Flausino (2011) identificaram as brincadeiras de
caça como uma dessas atividades que se referem ao hibridismo, já que a construção
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e o uso do estilingue para atirar bem como o uso de espingardas de chumbinho
propiciam, no imaginário infantil, a representação do mundo do trabalho que a
experiência no campo exige de um adulto.
2.2.1.2. As danças
As manifestações de dança nas comunidades quilombolas constituem ritos
performáticos de suas tradições culturais. Dentre o universo de práticas corporais
que podem ser inventariadas, pode-se salientar: danças de roda, samba de
umbigada, congadas, caça da rainha, reizados, jongos, folia e forró. Entre as
populações quilombolas espalhadas pelo Brasil, duas dessas práticas corporais são
notadamente evidenciadas: o jongo e a folia (dando destaque à performance da
sussa, no momento do “giro”, e do forró no momento da “entrega”).
O jongo é uma performance corporal presente entre comunidades
quilombolas do estado do Rio de Janeiro, sendo compreendido como manifestação
de uma cultura de resistência, de reorganização política e de afirmação da identidade
negra. A participação dos jovens nas rodas de jongo, proibidas em um passado
recente pelo seu caráter mágico, reinventou-se como tradição para aproximar as
novas gerações dos saberes, mitos e valores transmitidos no e pelo corpo na roda
de jongo. De acordo com Maroum (2014), esse movimento possibilitou a esses
grupos sociais visibilidade étnica e perspectivas de sobrevivência coletiva, superando
o forte preconceito sofrido pelo jongo no início do século XX, a ponto de ser
caracterizado como uma prática corporal marginalizada ou socialmente malvista pela
sociedade branca. Sua dança coletiva, os tambores e o canto permeados por traços
da cultura afro-brasileira colocam o corpo como elemento central. Nas irmandades
negras de Minas Gerais, o jongo é conhecido como caxambu, também caracterizado
por ser uma dança circular, com canto e tambores. Em ambos os casos, temos a
influência da ancestralidade africana da nação Banta, dado que a memória é
transmitida pela tradição oral como forma de construção desses saberes.
A folia e o conjunto de performances que a significam na Comunidade
Quilombola Kalunga do estado de Goiás podem ser entendidos como parte do
processo ritual que atende a um hibridismo cultural entre esse grupo social. Por
envolver aspectos do catolicismo camponês e práticas corporais dos ritos de tradição
afro-brasileira, a folia pode ser entendida como uma manifestação sincrética e
híbrida. A folia compreende três etapas: a saída, o giro e a entrega. O giro, por
exemplo, é composto por cincos performances: o agasalho, o canto para o dono da
casa, o bendito de mesa (parte um e parte dois), as brincadeiras (curraleira, sussa,
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catido, corrido etc.) e a despedida. A realização dessas performances ocorre por
meio de cantos, toque dos instrumentos (viola, violão, caixa e rabeca) e danças
ritualísticas, dentre elas a sussa e o forró.
A sussa ocupa um papel de centralidade entre essas danças ritualísticas
porque, de um lado, revela a força da presença das mulheres – já que são elas que
definem os lugares e papéis ocupados por cada ator social na ritualística – e, de
outro, representa a identidade Kalunga, visto que essa dança, ao que parece, apenas
existe entre esse grupo social. Observemos as fotografias a seguir:
Imagem 4: Dança da sussa na entrega da folia de São Sebastião da Comunidade Quilombola Magalhães (Nova Roma/GO) – tronco matrilinear da Comunidade Kalunga de Monte Alegre/GO
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Fonte: Acervo do relatório da pesquisa “Manifestações da cultura corporal em comunidades quilombolas:
um acervo inicial no estado de Goiás” (MINISTÉRIO DO ESPORTE, 2009-2010).
A sussa é um marco identitário imaterial de afirmação da tradição cultural
Kalunga. Os grupos de sussa são compostos e organizados por mulheres que
ocupam papéis de liderança nas comunidades e se apresentam em festivais e
eventos de cultura popular pelo país. Por meio desses grupos, os Kalunga visibilizam
suas bandeiras de luta.
O forró, última dança na entrega da folia, corresponde ao seu arremate e é
uma prática corporal que acaba por agregar todos os participantes da folia. Desse
modo, se a sussa é uma tradição pertencente aos mais velhos do grupo e é definida
pelas mulheres, prioritariamente, que a transmitem aos mais novos da comunidade
no processo do ritual, o forró é uma prática corporal de todos, sendo intergeracional
não somente entre os membros da comunidade como também entre os visitantes. O
forró corresponde ao coroamento dos festejos e assegura formas de sociabilidade
nas comunidades, reforçando valores, estabelecendo outras relações sociais e
aproximando as gerações. Salienta-se, por fim, com relação a essas práticas
corporais entre os povos quilombolas, que todas as manifestações revelam traços e
cosmologia desses sujeitos, reforçando suas identidades coletivas, bem como seus
anseios sociais.
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2.2.1.3. O esporte
As manifestações esportivas das comunidades quilombolas relacionam-se
a dois fatores: (a) a influência dos meios de comunicação de massa e (b) as relações
que se estabelecem entre corpo e natureza. Essas experiências são ressignificadas
conforme os contextos culturais e por meio da relação com o tempo e o cotidiano.
Alvarez (2011), ao investigar as comunidades quilombolas de Goiás, aponta
que a prática esportiva nesses grupos sociais possui uma íntima relação com o lazer.
Notadamente, é necessário realizar uma diferenciação na conceituação de lazer,
haja vista que a categoria “tempo livre” preconizada na literatura moderna não possui
ressonância objetiva nas formas como essas comunidades quilombolas se
relacionam com o trabalho. A percepção de temporalidade nesses grupos sociais
adquire uma acepção distinta devido à forma como produzem a vida material, que se
baseia na agricultura de subsistência e no extrativismo, levando ao necessário
deslocamento do eixo de análise da percepção do lazer e da forma como
classificamos o “esporte”.
A caça, nessas comunidades, aproxima-se de uma lógica de trabalho
ontológico que realiza as necessidades do gênero humano em uma totalidade
significativa, pois não há a divisão de tarefas, muito menos a fragmentação dos
processos simbólicos da ação humana. Pedroza (2013), ao perguntar a Seu Loro, da
Comunidade Quilombola Magalhães, o que gostava de realizar no seu tempo livre,
obteve o seguinte depoimento: “quando o sol esquenta na roça, eu vou fincar uma
cerca, campear um gado, banhar no rio, pescar...”. Verifica-se, assim, não haver
processos descontínuos entre as atividades do mundo do trabalho e as atividades
concebidas como da esfera do lazer, o que pode ser ilustrado na imagem seguinte.
Durante o trabalho na lavoura, por exemplo, o sujeito toma banho no rio,
aposta corrida de cavalo e pesca, ou seja, realiza um conjunto de atividades que
perpassam a compreensão de trabalho, mas também a de lazer. Como destaca Silva
(2011) , há uma relação indissociável desse corpo com os elementos da natureza
(terra, água, fogo e ar). A natureza não apenas é o locus em que se garante a
sobrevivência orgânica, mas onde se produz a cultura para atender necessidades
simbólicas, o que inclui as formas lúdicas de sociabilidade desse grupo social.
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Imagem 5: Banho de jovens no Rio Paraná situado na Comunidade Quilombola Magalhães (Nova Roma/GO)
Fonte: Acervo do relatório da pesquisa “Manifestações da cultura corporal em comunidades quilombolas:
um acervo inicial no estado de Goiás” (MINISTÉRIO DO ESPORTE, 2009-2010).
Imagem 6: Roda de capoeira entre jovens da Comunidade Quilombola Jardim Cascata (Aparecida de Goiânia/GO).
Fonte: Acervo do relatório da pesquisa “Práticas corpo(cultu)rais em comunidades remanescentes de
quilombos: oficinas temáticas de trabalho como possibilidades educativas” (MINISTÉRIO DO ESPORTE, 2011-
2012).
O esporte presente na comunidade de maneira mais contundente é o
futebol. No entanto, o futebol entre os quilombolas atende a características
peculiares. O campo em que se joga é de terra, assim como no futebol de várzea,
mas ele é construído coletivamente, isto é, de forma colaborativa. Durante a partida
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de futebol, não há a figura do juiz, e as regras são arbitradas de acordo com a
necessidade e a situação específica. Desse modo, pode haver alteração da regra a
qualquer tempo da partida, e todos aceitam a decisão, porque ela foi coletivamente
decidida. Além disso, o tempo de jogo, convencionalmente de 90 minutos, também
não segue o padrão estabelecido, depende de cada situação e da decisão do grupo.
O esporte, assim como a relação com o trabalho e o lazer nas comunidades
quilombolas, sofre ressignificações e se subordina a elementos das tradições
culturais, modificando seus sentidos e significados.
2.3. Ribeirinhos
Distintamente dos povos indígenas e quilombolas, os ribeirinhos encontram-
se espalhados ao longo do território brasileiro. No entanto, à similitude das outras
duas culturas tradicionais, constroem suas vidas pautados na territorialidade, que é
por eles compreendida por meio da localização geoespacial da vida às margens dos
rios.
No Brasil, não há informação sociodemográfica específica desse grupo
social, sendo caracterizado como populações que habitam a zona rural. Estima-se
que 29.830.007 pessoas vivam na zona rural do país, o que representa 16% da
população total. A região Nordeste apresenta o maior indicativo, com 14.260.704,
seguida pelas regiões Sudeste (5.668.232), Norte (4.199.945), Sul (4.125.995) e
Centro-Oeste (1.575.131) (IBGE, 2010), como se verifica no gráfico seguinte.
Gráfico 7 – População da zona rural distribuída por regiões do país
Fonte: Os autores, com base em informações do IBGE (2010).
Norte14%
Nordeste48%
Centro-Oeste5%
Sul14%
Sudeste19%
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Atentando-se para a distribuição geográfica conforme os estados, é na
Bahia que se encontra o maior número de habitantes da zona rural, contando com
3.914.430 pessoas. O estado de Minas Gerais vem em segundo lugar, com
2.882.114 pessoas, e o estado do Amapá possui o menor número de habitantes, com
68.490. Almeida et al. (2011), em um estudo que objetivou estimar a população das
várzeas utilizando a base de dados dos censos demográficos de 1996, identificaram
que a população da região das várzeas da Amazônia possui 1.066.614 pessoas,
tendo o estado do Pará 79.854 famílias; seguido por Amazonas, com 63.784 famílias;
Maranhão, com 15.033 famílias; Acre, com 14.175 famílias; e Mato Grosso, com
7.448 famílias (ALMEIDA et al., 2011). Outro aspecto importante é que as pesquisas
realizadas sobre povos ribeirinhos geralmente ocorrem com grupos específicos e
comunidades territorialmente definidas, o que também se mostra como impeditivo
para se obter dados nacionalmente referenciados.
Imagem 7: Comunidade ribeirinha na Amazônia
Fonte: EcoD (2009).
Definidos por sua territorialidade – visto que ribeirinho é aquele que vive à
margem do rio e dele provém sua subsistência, bem como todas as suas
representações coletivas e sua cosmologia –, esses povos convivem com as
adversidades da natureza, alguns em áreas de risco, estando, por vezes, propensos
a enchentes e alagamentos em períodos de chuva intermitente.
Os ribeirinhos são também chamados de “caboclos”, “homens do rio”,
“povos das águas” e “beiradeiros”, possuindo um modo de vida baseado no
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aproveitamento e na exploração de recursos provindos da natureza, disposição
territorial permanente ou temporária, identidade cultural e simbólica própria e
determinadas crenças e valores (ALMEIDA et al., 2016). A interação do homem com
o ambiente tem relação direta com o ecossistema presente próximo aos rios. O rio é
parte integrante das comunidades ribeirinhas, servindo como base para a
sobrevivência destas. Os recursos naturais oriundos do rio são vitais para a vida
social, para a manutenção de laços sociais e para a construção da cultura ribeirinha.
O território e o rio constituem cenários culturais e propiciam uma relação indissociável
entre o homem e o meio ambiente, que produz sua corporeidade, geralmente
construída com base na pesca no rio, e define seu processo identitário.
Imagem 8: Crianças ribeirinhas em embarcação
Fonte: ECOA (2013).
As identidades, suas identificações culturais, suas cosmologias e seus
esquemas de representações perpassam o reconhecimento do rio, o medo da água,
os segredos da pesca, as simbologias dos peixes, enfim, um conjunto de práticas,
que apresentam para o grupo sentidos e significados próprios em seus tempos e
espaços. Entretanto, é oportuno lembrar que há um sentido subjetivamente visado
na ação de cada sujeito; por isso, alguns aceitam a intervenção do novo e outros a
ela resistem. Esse processo, que poderia ser interpretado com “conformismo e
resistência”, dá ensejo a pensar as comunidades não como um todo homogêneo,
mas como um cenário em que é possível enxergar, em determinados momentos,
rupturas. Assim, concorda-se com Chauí que, analisando as formas de resistir ou se
conformar, mostra que a consciência “trágica” – definida assim com base na tragédia
grega – “opera com paradoxos, porque o real é tecido de paradoxos, e que opera
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paradoxalmente, porque tecida de saber e não-saber simultâneos, [é a] marca
profunda da dominação” (CHAUÍ, 1993, p. 178).
Os ribeirinhos possuem estilos de vida, práticas e habitus constituídos com
base na relação com a natureza, com o rio e com a pesca. Todavia, com a entrada,
em regiões pesqueiras, de grandes empreendimentos de pesca no país, bem como
com o contínuo processo de urbanização, rupturas nos hábitos e costumes
tradicionais desses povos passam a ser promovidas (SUASSUNA, 2007; AMARAL
et al., 2013; CARDOSO FILHO, 2013 ).
Os papéis sociais entre os ribeirinhos são definidos por meio da relação
entre o tipo de atividade econômica e o gênero. A mulher realiza tarefas domésticas,
cultivo de plantas e criação de animas. O homem é considerado o provedor, sendo
seu papel direcionado às atividades econômicas e de subsistência, como chefe da
família. Os filhos, notadamente os do gênero masculino, também ocupam papel
importante na família, participando do trabalho nas atividades de pesca, extrativismo
e agricultura. A criança ou jovem é direcionado ao trabalho desde cedo, o que dificulta
a educação formal (CARDOSO e CARDOSO FILHO, 2013; SCHERER, 2005; SILVA
et al., 2010).
Imagem 9: A vida à margem do rio
Fonte: Projeto Povos Ribeirinhos (s.d.).
Em um estudo produzido por Cañete e Cañete (2010) com uma população
de ribeirinhos do Purus, rio da Amazônia que atravessa o Peru, bem como os estados
brasileiros do Acre e do Amazonas, verificou-se que a pesca é a principal atividade
econômica. A agricultura situa-se em segundo lugar, sendo importante para 90% das
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famílias entrevistadas. A extração de produtos naturais, por sua vez, corresponde a
60% da economia local, com ênfase em produtos como andiroba, copaíba, seringa e
castanha. Também se identificou a caça e o corte de madeira como importantes para
esses povos. Quanto à pesca, todas as famílias analisadas utilizam esse recurso,
como forma de consumo próprio ou para a venda.
Imagem 10: Pesca artesanal no rio
Fonte: Fundação Amazonas Sustentável (2015).
Com efeito, a pesca, sobretudo a artesanal, a agricultura de subsistência, a
caça, a colheita e a pecuária de animais de pequeno porte são evidenciadas nessas
comunidades como hábitos e práticas para assegurar a sobrevivência. Os recursos
excedentes são utilizados para fins de comercialização.
Pode-se caracterizar o acervo cultural dos ribeirinhos em três âmbitos,
nomeadamente: (a) o uso do corpo e de instrumentos técnicos para assegurar a
subsistência; (b) as práticas consistentes em jogos e brincadeiras; e (c) as danças e
suas relações com as religiosidades.
2.3.1. As práticas corporais
2.3.1.1. O uso do corpo e instrumentos técnicos
Em pesquisa com ribeirinhos das Ilhas de Belém, Silveira e Bassalo (2012)
apontaram gestos e técnicas corporais no barco como próprias de pescadores do rio,
revelando uma dinâmica do movimento e uso do corpo peculiar ao grupo.
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Imagem 11: A criança e a tarrafa
Fonte: Carta Capital (2015a)
Sautchuck (2013), Cardoso (2014) e Mussi et al. (2015) demonstraram a
relação entre o uso social do corpo e o desenvolvimento de habilidades técnicas,
com a finalidade de subsistência ou como forma de introdução dos mais jovens em
suas culturas. Crianças ribeirinhas, desde cedo, praticam a submersão e aprendem,
de forma lúdica, como detectar o peixe. Isso lhes propicia autonomia e ajuda a
desenvolver habilidades com os materiais da pesca, que se projetarão para jogos e
brincadeiras e, mais tarde, servirão como aprendizado com o arpão. Assim, as
pesquisas evidenciadas indicaram que o equilíbrio necessário para se manter em pé
nas embarcações bem como a forma de jogar a tarrafa, o anzol ou o arpão
correspondem a um conjunto de técnicas corporais singulares ao homem ribeirinho,
ao tempo em que necessitam se adaptar às condições do meio natural e do mundo
do trabalho.
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Imagem 12: O rio como forma de apropriação cultural: o brincar e o nado
Fonte: TV Brasil (2014).
O extrativismo também constitui uma prática corporal significativa para o
grupo. Matos e Ferreira (2007) ressaltam que, para a extração do palmito ou do açaí,
é necessária a escalada. Para tanto, são desenvolvidas noções corporais e
habilidades específicas, que são ensinadas pelos mais velhos aos mais novos, de tal
modo que o conjunto de técnicas que se consubstancia no uso do corpo como objeto
técnico produz atos com eficácia e tradição para o grupo, forjando-se uma educação
do corpo.
Imagem 13: As técnicas corporais para a prática corporal para a extração do açaí
Fonte: Brasil (2016 ).
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As andanças dos povos ribeirinhos pelo meio da floresta podem ser
abordadas como elemento da corporeidade e podem ser identificadas como práticas
próprias ao grupo. A caminhada em longas distâncias, com o propósito de chegar ao
local de plantio ou mesmo à escola, serve como exemplos de que o sentido e o
significado da caminhada estão atrelados ao modo de vida e à forma de interação
com o meio ambiente.
2.3.1.2. Os jogos e brincadeiras
Um mapeamento de jogos e brincadeiras realizado entre os ribeirinhos de
Abaetetuba, estado do Pará, por Pojo e Barreto (2015) identificou pelo menos dez
manifestações culturais locais, notadamente: o formô, o fio ou pula corda, o futebol,
a bandeirinha, a queimada, o mata no meio, o pira esconde, o pira cola, a amarelinha
e a pira alta. Todas essas manifestações da cultura popular dos ribeirinhos da
Amazônia consistem em jogos e brincadeiras próprios do universo infantil, que
existem independentemente dos adultos, sem distinção de gênero, e respeitam a
diversidade climática e territorial. Pojo e Barreto (2015) também evidenciaram haver
uma relação de respeito entre os mais jovens (crianças) e os mais velhos durante as
brincadeiras e no cotidiano do grupo.
Imagem 14: Brincadeiras tradicionais, a ciranda
Fonte: Correia (2010).
Simão (2012) também constatou haver um conjunto de práticas corporais de
escolares em uma área ribeirinha de Porto Velho, estado de Rondônia. As práticas
As informações e opiniões prestadas nesta publicação são de responsabilidade dos respectivos autores e não necessariamente refletem a opinião dos editores.
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verificadas entre ribeirinhos de Porto Velho, Rondônia, foram: a dança do ciringandô,
o forró, a corrida de canoa e o quadrado (jogo típico da região). Andar a pé, jogar
bola, equilibrar-se nas canoas e subir e descer barrancos são atividades comumente
realizadas por esse grupo social e que contribuem tanto para o desenvolvimento de
habilidades do gesto motor como para os processos de socialização e formação
identitária das crianças.
2.3.1.3. As danças
A dança se constitui como uma expressão representativa de diversos
aspectos da vida social. Pode ser considerada como uma linguagem corporal que
permite a transmissão de sentimentos, emoções, costumes e hábitos, contribuindo
significativamente no estabelecimento de relações de sociais. Os movimentos
corporais propiciados pelo dançar, juntamente com o ritmo (musicalidade),
transcendem o gesto técnico. Entre os ribeirinhos, a dança contribui para a reflexão
de questões sociais, artísticas e religiosas (SAMPAIO, 2011).
As mulheres ribeirinhas, por exemplo, ao lavarem roupa no rio, não só
cantam como também apresentam técnicas que revelam, por meio de gestos, o
dançar conforme o ritmo daquilo que entoam. São, portanto, expressões corporais,
mas que se revestem de linguagens da alma, da cosmologia da comunidade e da
cultura local.
O samba de roda foi a prática corporal identificada por Araújo (2013) às
margens do Rio São Francismo /BA. Corpo e musicalidade proporcionam um
movimento sinérgico dos atores sociais naquilo que podemos chamar de
performance cultural (TAMBIAH, 1985). A roda, por sua vez, é considerada como um
elemento mutável e, dependendo do espaço e do tempo em que é realizada, serve
para unir e socializar, mas também consiste, para o grupo, em um espaço simbólico
em que as representações individuais se tornam coletivizadas. Na roda, os
participantes constroem suas ações performáticas, a fim de se fazerem representar.
Para tanto, vestimentas, adornos e adereços são elementos fundamentais para a
constituição do processo coreográfico da cena, transformando a roda de samba em
um momento singular para aquele grupo social.
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Imagem 15: A dança
Fonte: Carta Capital (2015b).
Os povos ribeirinhos da região Nordeste, em suas práticas na vida cotidiana,
além da interação com o meio ambiente, tentam manter determinados elementos que
conformam valores e tradições construídas ao longo da história, como, por exemplo,
os próprios adereços que são postos no barco, as chamadas “carrancas”, cujo
principal significado é espantar maus presságios.
É válido mencionar que as comunidades ribeirinhas, assim como a indígena
e a quilombola, possuem um acervo considerável de manifestações ou práticas
corporais dançadas. Outro estudo, realizado por Santos (2011), registrou, por
exemplo, em Mato Grosso, dois tipos de dança: siriri e cururu. Osório (2012) aponta
que esses dois tipos de dança são manifestações da cultura popular bem difundidas
na região Centro-Oeste. O cururu é caracterizado como “uma dança de caráter
religioso, provavelmente de origem ameríndia e introduzida nas festas cristãs pelos
missionários jesuítas” (OSÓRIO, 2012, p. 237), e o siriri é composto por elementos
africanos, portugueses e espanhóis, com expressão hispano-lusitana, dançada aos
pares, em rodas e fileiras (OSÓRIO, 2012).
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Imagem 16: A Dança do Siriri
Fonte: Visite o Brasil (s.d.).
As festividades de cunho religioso podem ser consideradas como um
conjunto de manifestações mais evidenciado entre povos ribeirinhos. A conformação
dos rituais atende a princípios tanto do catolicismo quanto de outras expressões de
religiosidades. O catolicismo pode ser evidenciado entre povos pesqueiros do Rio
Doce, em Regência Augusta, no estado do Espírito Santo, conforme registrado por
Suassuna (2007). Outras expressões de religiosidades, relacionadas a outras
divindades ou construções mitológicas, foram observadas por Sautchuck (2007) em
Vila do Sucuriju, no Amapá.
Ambos os autores concordam que as manifestações encontradas
contribuem para a definição de associações entre os aspectos simbólicos, que
orientam o mito originário das comunidades, bem como compõem a trama da vida
social. Assim, laços de parentesco e possíveis desavenças entre eles, disputas
territoriais ou pelo poder local e a relação entre os corpos e a natureza (que
geralmente enseja a necessidade de respeito à força do rio, das águas, da
correnteza) – remetida a um passado distante que se torna um presente retrospectivo
– formam parte da cena cotidiana que é incorporada às práticas corporais dançadas
e cantadas durante as festividades religiosas. O fato de falarem sobre o passado,
deixando o presente em suspense, pode ser interpretado com base no sentido de
retrospecção, termo usado por Bourdieu (1989), a partir de Husserl (1977). Segundo
os autores, a retrospecção é uma forma inteligente de dar sentido às suas práticas
no presente, porém deixando sempre “em aberto” suas formulações sobre ele.
Sobre as práticas voltadas para o trabalho e o lazer, Miranda et al. (2012)
elaboraram um estudo com o objetivo de identificar as atividades físicas, do trabalho
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e de lazer em comunidades ribeirinhas do Médio Solimões, tendo 43 homens e
mulheres que vivem em seis comunidades próximas às margens do rio. Essa
perspectiva identificou que as principais práticas no trabalho para os homens eram a
agricultura e a pesca, consideradas mais desgastantes fisicamente. No entanto,
apesar de haver a referência ao homem e ao trabalho, as mulheres contribuíam para
o sustento da família e, algumas vezes, auxiliavam os homens, além de
desenvolverem atividades domésticas. Porém, um importante resultado encontrado
pelos pesquisadores é a evidência de que, entre os ribeirinhos do Médio Solimões,
trabalho e lazer não constituem categorias antagônicas, mas esferas da vida social
que se mesclam nas práticas cotidianas do grupo.
3. As políticas públicas para o setor
3.1. As políticas públicas para o setor
Compreende-se que a política social consiste em uma estratégia de governo
que, normalmente, apresenta-se sob a forma de relações jurídicas e políticas, não
contendo em si uma definição nem resultando apenas no despertar do espírito
humano. É uma forma de expressão das relações sociais cujas raízes se situam no
mundo da produção, o que remete à compreensão de que os projetos, os programas
e outros documentos referentes, em certo momento, a uma política – setorial ou
social/econômica – não se colocam como totalidade absoluta. A política social atende
a determinado Estado, classe social e ação política (VIEIRA, 1992).
Outro aspecto interessante diz respeito à formulação, à implementação ou
aos resultados da ação política, que devem contemplar a análise de situações
concretas, com fundamento em problemas empíricos para possível (des)legitimação
da escolha definida (REIS, 2003). Convém acrescentar que, para o desenvolvimento
de ações e programas, no contexto das políticas voltadas para o setor do esporte e
do lazer, que tenham a continuidade como característica, é imprescindível
estabelecer políticas de Estado (SUASSUNA et al., 2007).
No período contemporâneo, pós-Segunda Guerra Mundial, assistiu-se à
eclosão e, em seguida, à generalização do Estado-providência, cuja missão de
proteção social e de redistribuição dos ganhos parece inaugurar, de fato, uma nova
forma de cidadania. Nesse contexto, as políticas sociais, como ação do Estado, além
de garantirem os direitos sociais, tornaram-se possibilidades concretas de exercício
da cidadania.
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3.2. Direitos sociais, cidadania e políticas de esporte e lazer para
populações tradicionais
Os direitos são práticas, discursos e valores que afetam a maneira como as
desigualdades e diferenças são apresentadas na esfera pública, como os interesses
se mostram e como os conflitos se concretizam. Sob o prisma da dinâmica societária,
os direitos se referem, antes de qualquer coisa, à maneira como as relações sociais
são estruturadas. Portanto, os direitos inseridos, na perspectiva da sociedade, não
se relacionam apenas às garantias formais inscritas nas leis e instituições. Com isso,
não se desconsidera a importância da ordem legal e do aparato institucional, que são
asseguradores da cidadania e da democracia. Os direitos estabelecem um modo de
sociabilidade no qual o sujeito reconhece seus pares como sujeitos de interesses
válidos, valores pertinentes e demandas legítimas (TELLES, 1999).
Os direitos sociais, além de atenderem à satisfação das necessidades
humanas, norteiam as práticas sociais e favorecem a construção de canais de
diálogo, que poderiam impulsionar o desenvolvimento da autonomia e da auto-
organização social. Mas isso só é possível por meio de uma cultura pública
democrática que reconheça os conflitos como legítimos e os direitos demandados
como exigência da cidadania (TELLES, 1999).
Consoante a Constituição Federal de 1988, o lazer7 é direito de todo cidadão
brasileiro. Ela também estabelece o dever do Estado no que diz respeito à garantia
do direito ao esporte, aqui reconhecido como prática corporal. O esporte e o lazer
são direitos sociais assegurados à população brasileira no plano jurídico-formal.
Entretanto, compreende-se, apoiado em Telles (1999), que os direitos sociais
precisam estar pautados na dinâmica social como demanda de cidadania e, ao
mesmo tempo, ser um vínculo social.
Para Santos (1987), a cidadania pode ser aprendida, de modo a torná-la um
conhecimento/prática inerente à cultura. Demo (1995), por seu turno, depreende a
cidadania como a competência humana de se constituir como sujeito para fazer
história própria e organizada no âmbito coletivo. Completa com a afirmação de que
a cidadania é o cerne dos direitos humanos, uma vez que estes só podem manifestar-
se nos momentos em que sociedade se comporta como sujeito histórico, capaz de
discernir e efetivar seu plano de desenvolvimento. A cidadania tem seu cerne na ação
humana, na capacidade de o sujeito constituir-se como um ser social e histórico.
7 CF/88 em seu Art. 6 : “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta constituição”. O documento também estabelece, em seu Art. 217, que “é dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um (...)”.
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Logo, quanto maior o grau de desenvolvimento da cidadania, maior a possibilidade
de expansão dos canais de participação ativa do cidadão e a garantia dos direitos
sociais.
Frisa-se, ainda, que a cidadania perpassa a dinâmica social, as suas
relações e as suas contradições e manifesta-se na ação dos sujeitos no cotidiano e
na prática política. Logo, a participação dos atores sociais com vista ao atendimento
das necessidades e de interesses individuais e coletivos é fundamental para a
existência da cidadania e para o estabelecimento de um Estado democrático. Com
esses contornos, a cidadania possui elos claros com os direitos sociais, mas também
com os direitos humanos. Nessa perspectiva, o desafio do Estado legítimo ou de
direito é, primeiro, que seja público de maneira a servir aos interesses comuns e,
segundo, de serviço no sentido de promover o bem comum (DEMO, 1995).
No cenário nacional, evidenciam-se ações que tinham como norte a garantia
do direito ao esporte e ao lazer, notadamente na primeira gestão do governo Lula
(2003-2007) com a criação do Ministério do Esporte . Suassuna et al. (2007) lembram
que, na nova conjuntura política daquele governo, o esporte e o lazer passaram a
compor a agenda política governamental à semelhança da saúde, da educação e do
meio ambiente, dentre outros prescritos na Carta Magna de 1988.
Sob a ótica da materialização de políticas de esporte e lazer para as
populações tradicionais, parece imprescindível que, tendo como norte o
desenvolvimento humano, tais políticas considerem a relação que essas populações
constroem com o meio ambiente – sobretudo suas vinculações com os territórios – e
a proteção da cultura popular, bem como o respeito às suas práticas corporais (jogos
e brincadeiras, esporte, danças e usos do corpo). O significado dessa orientação é o
respeito à diversidade cultural e étnica, aos direitos sociais e humanos das culturas
tradicionais e à preservação desse acervo cultural como patrimônio imaterial.
3.3. Políticas públicas
Para a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) ,
as políticas públicas direcionadas aos povos e comunidades tradicionais, no contexto
brasileiro, são recentes e têm como marco a Convenção nº 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) , que trata dos direitos dos povos indígenas e tribais
no mundo.
No Brasil, os grupos sociais em questão passaram a integrar a agenda
política nacional em 2007, referenciados pelo Decreto n° 6.040 de 2007, que instituiu
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a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais (PNPCT), sob a coordenação da Seppir da Presidência da República. A
política em xeque tem por finalidade reconhecer, na esfera formal, a existência e as
especificidades dos grupos populacionais em tela, de modo a garantir os seus
direitos territoriais, socioeconômicos, ambientais e culturais, considerando o respeito
e a valorização de suas identidades e instituições.
Diante do quadro apresentado no cenário político nacional, quanto à
constituição de políticas públicas voltadas aos indígenas, quilombolas e ribeirinhos,
destacam-se as políticas do Ministério do Esporte e do Ministério da Cultura, que
fomentam a preservação do patrimônio imaterial desses povos, notadamente sua
cultura popular referenciada por práticas corporais.
Uma ação que, em tese, tem como horizonte a democratização e
universalização do acesso ao esporte e ao lazer no escopo da Política Nacional de
Esporte (2005) diz respeito ao Programa Esporte e Lazer da Cidade. Esse programa
tem como objetivo a ampliação, democratização e universalização do acesso à
prática e ao conhecimento do esporte recreativo e de lazer (BRASIL, 2008) , inclusive
entre culturas tradicionais (populações indígenas, quilombolas e ribeirinhas).
Os Jogos dos Povos Indígenas (Jopin) surgiram como demanda do Comitê
Intertribal de Memória e Ciência Indígena – ITC e se estabeleceram como ação do
Ministério do Esporte em relação ao esporte e ao lazer para os povos indígenas no
Brasil. A XII edição dos Jopin foi realizada em 2013 e contou com a parceria da
Universidade Federal de Mato Grosso.
Nos Jopin, articulam-se práticas corporais próprias de alguns povos com
esportes da cultura ocidental e são organizados da seguinte forma:
Modalidades de integração indígena:
1) Arco e flecha
2) Arremesso de lanças
3) Canoagem
4) Cabo de força
5) Corrida de tora
6) Corridas – velocidade (100 m e 4 x 100 m), resistência (5 mil metros)
7) Natação (travessia em águas abertas)
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Modalidades demonstrativas tradicionais indígenas:
1) Corrida de tora
2) Lutas corporais
3) Jikunahati
4) Hipipi
5) Katulaywa
6) Jawary
7) Tihimore
8) Rõkran
9) Peikran
10) Kagót
11) Insistró
12) Jãmparty
13) Akô
14) Zarabanata
15) Ngokhônkasêkê
16) Nhwrareni
17) Khwraronô
18) Kgwrareni
19) Pásyhrãdáki
20) Pẽnsôgthâky
21) Xaká-akere
Modalidade ocidental:
1) Futebol de campo
O Ministério do Esporte também apoiou, em 2012, a realização da Kari-oca,
um acontecimento indígena que teve como objetivo realizar os Jogos Verdes
Indígenas, como um evento paralelo ao da ONU – Rio+20. A partir dessas
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experiências, apoiou também a realização dos I Jogos Mundiais dos Povos
Indígenas, que aconteceram em Palmas em 2015.
As políticas públicas de esporte e lazer para os povos indígenas estão
localizadas institucionalmente no Ministério do Esporte da seguinte forma: Secretaria
Nacional de Esporte, Educação, Lazer e Inclusão Social – Snelis, Departamento de
Desenvolvimento e Acompanhamento de Políticas e Programas Intersetoriais –
Dedap e Coordenação-Geral de Políticas Esportivas Indígenas – CGPEIN. A fim de
ampliar essas ações, a Coordenação-Geral de Políticas Esportivas Indígenas –
CGPEIN foi criada em 23 de setembro de 2012 e consolidada em 16 de fevereiro de
2014 como área estratégica do governo federal, por meio do Ministério do Esporte,
com o intuito de promover interação e integração com base no esporte entre as etnias
indígenas existentes em todo o território nacional (GRANDO e ALMEIDA, 2016).
No escopo da Secretaria Nacional de Desenvolvimento do Esporte e do
Lazer (SNDEL), o Programa Esporte e Lazer da Cidade (Pelc), criado em 2003,
assume papel de destaque na agenda do esporte e lazer para inclusão social e
desenvolvimento humano do governo Lula da Silva, alicerçado em uma proposta de
política pública e social para atender às necessidades de esporte recreativo e de
lazer da população brasileira. No governo Dilma Rousseff (2011-2014), passou a
integrar o conjunto de ações da Secretaria Nacional de Esporte, Educação, Lazer e
Inclusão Social (Snelis).
O programa promove a prática de atividades físicas, culturais e de lazer de
viés intergeracional e inclusivo, guiando-se pelo convívio social e pela formação de
gestores e lideranças comunitárias, bem como pelo fomento à pesquisa e pela
socialização do conhecimento, de modo a contribuir para que o esporte e o lazer
sejam tratados como políticas públicas e direito de todos (BRASIL, 2013) .
Grupos, comunidades e populações com baixo reconhecimento da sua
identidade cultural estão incluídos no público prioritário do Programa Cultura Viva,
com destaque para os povos indígenas e as comunidades tradicionais. O programa
apresenta como ação principal os Pontos de Cultura , os quais consistem em grupos,
coletivos e entidades, no âmbito da cultura, que desenvolvem e articulam atividades
culturais em suas comunidades, e também em redes, e são reconhecidos e
certificados pelo Ministério da Cultura (Minc) por meio da Política Nacional de Cultura
Viva .
Orientados pelas políticas públicas supracitadas, percebe-se haver esforços
no sentido de que as populações indígenas, quilombolas e ribeirinhas venham a
compor a agenda política nacional, ao passo que já existem alguns mecanismos
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legais e institucionais para preservação e difusão de suas práticas corporais como
manifestações esportivas e culturais.
RECOMENDAÇÕES
Apresentam-se, a seguir, algumas recomendações que podem vir a dar
suporte à definição de políticas para as populações tradicionais, com referência às
manifestações da cultura popular:
(a) Formação de grupo de trabalho permanente envolvendo órgãos
públicos, organizações não governamentais e pesquisadores da área, com o
propósito de assegurar eficiência, transversalidade e transparência às políticas
dirigidas aos povos tradicionais, com destaque para a proteção das práticas
corporais.
(b) Organização de programas de incentivo e fomento à pesquisa de
caráter interdisciplinar, envolvendo pesquisadores do tema.
b.1 Realização de pesquisas que apresentem, de modo continuado,
informações sociodemográficas dessas populações, sobretudo considerando as
populações ribeirinhas, que, por sua condição geoespacial, não apresentam dados
sociodemográficos específicos.
b.2 Realização de pesquisas que sejam tanto de cunho quantitativo como
qualitativo, a fim de propiciar o inventário das práticas corporais e das manifestações
da cultura popular dessas populações.
(c) Realização de uma política de formação que contribua para a
divulgação e a orientação da importância da salvaguarda do patrimônio imaterial para
os povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos.
(d) Ampliação de políticas sociais no que concerne à saúde, à educação,
ao esporte e ao lazer para essas populações.
d.1 No âmbito da saúde, ressalta-se a necessidade de políticas que tratem
de aspectos infraestruturais nas comunidades, atentando para o fato de que o
território tem um significado peculiar para esses grupos sociais. Devem ser
considerados, nessas medidas, a carência de tratamento de esgoto e saneamento,
a distribuição de energia elétrica e o abastecimento de água, que se encontram
aquém do necessário.
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d.2 No contexto da educação, a formação e capacitação de professores das
comunidades tradicionais em universidades, notadamente as públicas, visando à
democratização do conhecimento e, ao mesmo tempo, ao respeito à diversidade
cultural.
d.3 Do ponto de vista do esporte e do lazer, fortalecer, em cada grupo ou
comunidade, suas próprias manifestações, considerando os entrelaçamentos que
elas apresentam entre a dimensão do trabalho e do lazer.
(e) Aperfeiçoamento dos mecanismos de participação popular, de
controle social e de gestão democrática, com o objetivo de possibilitar o exercício da
cidadania na construção de uma agenda política local e nacional que represente as
necessidades dessas populações no que toca ao acesso, à democratização e à
universalização dos direitos sociais.
(f) Criação de estratégias de divulgação e transparência das políticas
públicas intersetoriais executadas nas esferas municipal, estadual, distrital e federal,
de modo que a sociedade reconheça a abrangência e os resultados das ações e,
assim, perceba os atores sociais indígenas, quilombolas e ribeirinhos como sujeitos
de direito.
(g) Elaboração de diagnóstico sobre a eficiência das políticas públicas
direcionadas para as comunidades tradicionais, assim como a implementação e
efetivação dessas políticas para o desenvolvimento humano, econômico,
educacional, social, sustentável e outros.
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