atores em aÇÃo: o jogo no psicodrama e os jogos … · psicodrama, seja possível abrir caminhos...
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MARIA DULCE SANTIAGO DE CARVALHO
ATORES EM AÇÃO: O JOGO NO PSICODRAMA E OS JOGOS
ELETRÔNICOS
São João del-Rei
PPGPSI-UFSJ
2017
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MARIA DULCE SANTIAGO DE CARVALHO
ATORES EM AÇÃO: O JOGO NO PSICODRAMA E OS JOGOS
ELETRÔNICOS
Dissertação apresentada como requisito para obtenção do título
de Mestre em Psicologia
Linha de Pesquisa: Processos Psicossociais e Socioeducativos
Orientadora: Dra. Maria de Fátima Aranha de Queiroz e Melo
São João del-Rei
PPGPSI-UFSJ
2017
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Ao meu amado esposo, eterno companheiro, que tanto estimula
meu crescimento e minha incansável busca por ser uma
profissional melhor.
Às minhas amadas filhas, Ana Clara e Beatriz, que, mesmo sem
saberem, se sacrificaram por mim.
À minha querida e inestimável mãe, que não poupa esforços em
me ajudar.
Ao meu guerreiro pai, que se esquece de si para olhar por mim.
A Deus, o começo, o agora e o sempre comigo!
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Agradecimentos
Agradeço à minha orientadora Dra. Maria de Fátima Aranha de Queiroz e Melo, por me abrir o
caminho e me mostrar a direção, fazendo-me voar com a pipa...
À Professora Dra. Larissa Medeiros, pela leveza na transmissão do conhecimento, pelo
convívio e pelo apoio presente durante o processo.
Ao Psicodramatista Didata Supervisor pela FEBRAP Dr. Luiz Contro, referência para mim,
pela prontidão e acolhimento e que, com sua generosidade e sabedoria, foi acendendo as luzes
do caminho...
À Professora Psicodramatista Didata Supervisora pela FEBRAP Dra. Júlia Maria Casulari
Motta, que contribuiu enormemente para o meu aprendizado e conhecimento.
À Jéssica, minha colega e parceira de mestrado, sempre disposta a me socorrer com minhas
dúvidas neste processo, aliviando o frio na barriga! Às colegas do grupo de estudo da Teoria
Ator-Rede, que abrilhantaram nossas discussões.
Agradeço à Graça, Psicodramatista Didata Supervisora pela FEBRAP e Diretora do IMPSI
(Instituto Mineiro de Psicodrama Jacob Lévy Moreno), e aos amigos também do IMPSI, pelas
trocas, aprendizado e incentivo constante. Egos-auxiliares inesquecíveis!
Aos jogadores do The Sims 4, que me trouxeram suas vivências, pautaram minhas reflexões e
foram atores também na minha pesquisa.
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O mundo todo é um palco
E todos os homens e mulheres são simples atores.
Eles entram e saem de cena
E cada um no seu tempo representa diversos papéis.
William Shakespeare
Indo além...
Não humanos também participam do espetáculo
E provocam os humanos, são companheiros, parceiros
Dividem a cena, são atores numa rede de conexões
Um vir a ser permeado de fusões e significações.
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RESUMO
Defrontamo-nos, na atualidade, com a emergência de uma tecnologia que nos permite viajar de
um mundo real a um mundo fictício e criado, onde o computador funciona como um segundo
eu e o indivíduo pode, nos jogos eletrônicos, criar seu próprio mundo e desempenhar papéis
variados. Buscando pensar a temática do jogo de papéis, este estudo procurou traçar
articulações que envolvem o Psicodrama como método de ação, num cenário lúdico de
experimentação da fantasia e de desempenho de papéis com a realidade virtual dos jogos
eletrônicos, palco para a construção de personagens diversos. Guiados por uma leitura da Teoria
Ator-Rede, que nos remete à noção de vínculo, conexão e alianças entre atores humanos e não
humanos, que se influenciam, se afetam e modificam uns aos outros nessas interações, lancei-
me como um ator na rede em uma autoexperimentação, atuando no cenário dos jogos de papéis
digitais e buscando correlações com o jogo no Psicodrama. Tomados pela ludicidade que
envolve os jogos, buscamos colocar em cena reflexões acerca de uma realidade virtual, que, por
permitir a passagem do “como é” para o “como se”, possibilita que se instale a realidade
suplementar e, com isso, a entrada no universo protegido do faz-de-conta, podendo provocar
efeitos na vida dos jogadores.
Palavras-chave: Jogos Psicodramáticos. Jogos Eletrônicos. Realidade Suplementar. Teoria
Ator-Rede.
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ABSTRACT
We have currently been facing the need of technology which allows us to travel from a real
world to a virtual world in which the computer plays the role of a second “I”. In such world,
especially via electronic games, the person is able to create their own environment and perform
a full range of roles. Taking into consideration the paper games, this study aims at mapping out
the articulations which involve Psychodrama as a method of action in an experimental ludic
scenario of fantasy and the roles performance with the virtual reality on electronic games, which
serve as a stage for creating different characters. The Actor Network Theory refers us to the
notion of belonging, alliances amongst human and non-human actors who influence as well as
modify each other in these interactions. Bearing this in mind, I have engaged as an actor on the
network in an auto-experimentation mode to perform on the digital paper games scenario
searching for correlations with the psychodrama games. Within the playful profile that
encapsulates the games, we have tried to activate some critical thinking of the virtual reality in
order to install a supplementary reality, which allows room for a change in the status from “as
it is” to “as if it is”, a factor which grants entry a protected make-belief universe that may
provoke effects on the players’ lives.
Key words: Psychodramatic Games. Electronic Games. Supplementary Reality. Actor
Network Theory.
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SUMÁRIO
1 Apresentação: abrindo as cortinas ........................................................................................ 10
1.1 A ação lúdica ..................................................................................................................... 11
1.2 O lúdico e as novas tecnologias ........................................................................................ 13
1.3 A Teoria Ator-Rede ........................................................................................................... 15
1.4 As controvérsias e suas posições no jogo ......................................................................... 18
1.5 Experimentando as controvérsias ...................................................................................... 22
2 Objetivos .............................................................................................................................. 25
3 Metodologia ......................................................................................................................... 26
4 Revisão de literatura.............................................................................................................. 28
4.1 Jogos e ludicidade.............................................................................................................. 28
4.2 A imaginação no cenário psicodramático ......................................................................... 29
4.3 EncenAção: o uso da fantasia nos jogos digitais .............................................................. 30
4.4 Aquecendo para entrar em cena ........................................................................................ 33
4.5 Apresentando os atores do jogo ........................................................................................ 34
4.5.1 O personagem no Psicodrama ........................................................................................ 34
4.5.2. O avatar nos role-playing games digitais ...................................................................... 36
4.6 E onde é o palco do jogo? ................................................................................................. 37
5. No palco ou nas telas: simulando ou vivendo um drama? .................................................. 39
5.1 O jogo no Psicodrama ....................................................................................................... 39
5.2 Os jogos dramáticos: palco para a realidade suplementar ................................................ 40
5.3 O jogo nas telas: o universo da simulação ........................................................................ 44
6 Não humanos também jogam................................................................................................ 48
7 Jogo de papéis: quem sou eu x quem quero ser.................................................................... 51
8 Das experiências no jogo às vivências na vida real ............................................................. 55
8.1 A catarse e a ressignificação no psicodrama ......................................................................55
8.2 A tecnologia digital como autorreparação ........................................................................ 56
9 Uma psicodramatista no universo dos videogames ............................................................. 58
9.1 Seguindo os atores: montando o dispositivo ..................................................................... 59
9.2 Minha imersão no jogo ..................................................................................................... 63
9.3 Ouvindo os jogadores: atores participantes ...................................................................... 66
9.3.1 Preparação/Aquecimento para o jogo ............................................................................ 66
9.3.2 Experimentando possibilidades e idealizações no universo da simulação .................... 67
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9.3.3 Expressando sentimentos ............................................................................................... 69
9.3.4 Personagens que se aproximam de sua vida real ........................................................... 69
9.3.5 Personagens que se distanciam de sua vida real ............................................................ 70
9.3.6 Percepções/Efeitos na vida real ...................................................................................... 71
10 Tecendo histórias ............................................................................................................... 72
10.1 As espécies companheiras .............................................................................................. 72
10.2 O jogo chega ao fim... Interlocuções: uma conexão possível? ....................................... 73
Referências .............................................................................................................................. 75
Anexos..................................................................................................................................... 81
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Apresentação: abrindo as cortinas...
O que me propus a investigar permeia toda minha trajetória profissional. Construí-me
profissionalmente na busca de métodos e abordagens psicológicas que permitissem minha
aproximação terapêutica com meus pacientes e que fugissem da padronização de conceitos e
técnicas praticadas. Estava à procura de um método de ação por meio do qual minhas
intervenções pudessem promover um contato verdadeiro do meu paciente com ele mesmo e
com suas emoções e sentimentos, mas de uma forma dinâmica e participativa, utilizando, não
exclusivamente, mas principalmente, recursos lúdicos, dramatizações, vivências, músicas,
histórias etc.
E, então, aconteceu meu encontro com o Psicodrama. Passo a me entregar a uma
abordagem de trabalho que me faz encontrar com o que buscava e acreditava. Surge o
Psicodrama como teoria e metodologia com a qual vou me identificar e me orientar enquanto
psicoterapeuta. E nesse campo psicodramático, vou ficando cada vez mais fascinada pelo lúdico
e pelo jogo, que fazem brotar a espontaneidade e emergir o sujeito criador presente dentro de
cada um. O ousar e o imaginar oferecem a experimentação dentro de um universo protegido de
faz de conta, onde tudo é possível. Por isso, pode-se errar, arriscar uma solução, buscar novas
estratégias.
Nesse sentido, como psicodramatista, passei a refletir sobre uma aproximação do lúdico
no psicodrama com a ludicidade no universo virtual. Cheguei ao mestrado atraída pela
possibilidade de pesquisar como o lúdico, nos dois cenários, possui similaridades e como pode
provocar mudanças nas pessoas envolvidas. Partindo, portanto, do olhar e do lugar de
psicodramatista, senti-me provocada a estudar o jogo e seus desdobramentos no cenário
psicodramático e os jogos no cenário virtual, entendendo que esses dois espaços poderiam
funcionar como um palco para representação de papéis. Os jogos digitais bem como o jogo no
psicodrama poderiam se revelar como um cenário lúdico de experimentação da fantasia para os
jogadores/participantes e como possibilidade de encontro consigo mesmo mediante as próprias
experiências no jogo. As questões que compõem os jogos digitais envolvem o ciberespaço,
onde humanos e não humanos1 encontram-se conectados em rede e em processo constante de
subjetivação. Acreditamos que, tecendo correlações entre os jogos eletrônicos e o jogo no
psicodrama, seja possível abrir caminhos para que as tecnologias digitais entrem em cena como
1 Os não humanos compõem os coletivos com os humanos, tendo a potencialidade de se revelarem actantes, ou
seja, de exercerem ou sofrerem algum tipo de ação, participando de um processo. É tudo que, não sendo humano,
joga a favor da construção da nossa humanidade (Latour, 2001).
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dispositivo capaz de provocar efeitos na vida real das pessoas e chamar a atenção de
especialistas e das pessoas em geral para seu potencial de transformação e de reconstrução da
identidade.
Buscamos, neste estudo, uma articulação do jogo no psicodrama com a realidade virtual
dos jogos eletrônicos, verificando possíveis interlocuções com elementos que emergem no
contexto dos jogos no psicodrama, como os conceitos de papel, personagem, objetos
intermediários, aquecimento, realidade suplementar e catarse. Seguindo, com a Teoria Ator-
Rede (TAR, doravante), o jogo no psicodrama e os jogos eletrônicos, temos a possibilidade de
estudar a ação que ocorre em rede nos dois cenários, uma vez que a TAR estuda a maneira como
as redes se constroem e se desconstroem pela ação dos atores, fato que podemos constatar tanto
nas ações desenvolvidas no psicodrama, assim como nos jogos digitais.
Por ser um método de ação, pautado na espontaneidade e na criatividade, o Psicodrama
oferece a experimentação pela dramatização e pelo imaginário, sensibilizando as pessoas
envolvidas. O modelo psicodramático se aproxima o mais possível da vida como ela é ao
mesmo tempo em que permite experimentar novas formas de ser e estar no mundo. Pela
utilização de suas técnicas dramáticas, promove o exercício da espontaneidade/criatividade2 e
facilita descobertas. Introduz a imaginação como fonte criadora, fazendo surgir a ação cênica
e, então, a possibilidade de se criar a vida.
O ambiente, tanto psicodramático como virtual, funcionam como um teatro
participativo, lúdico e de desempenho de papéis. Aprofundamo-nos no estudo que envolve o
conceito de jogo no âmbito psicodramático, relatamos depoimentos de jogadores e também
descrevemos, através da minha própria imersão no jogo eletrônico que percepções fazemos de
nossas vivências, que experiências e aprendizados trazemos para nossa vida real, a partir dos
papéis que experimentamos nos jogos e, se dentro desse cenário de experimentação da fantasia,
existe uma aproximação com conceitos oriundos da teoria psicodramática.
1.1 A ação lúdica
A ação lúdica pode existir em qualquer espaço onde é possível arriscar e ousar e onde
todas as emoções são bem-vindas. Bustos et al. (2005) acreditam que, ao perdemos nossa
2 Espontaneidade é a capacidade de agir de modo adequado diante de situações novas, criando uma resposta inédita
ou renovadora ou, ainda, transformadora de situações preestabelecidas (Gonçalves, Wolff, & Almeida, 1988, p.
47). A espontaneidade é o estado de produção, o mecanismo propulsor capaz de fazer o potencial criativo
manifestar-se. A criatividade caminha junto com a espontaneidade.
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capacidade lúdica, perdemos também a essência existencial. É por meio dela que é possível
reencontrarmos sonhos, refazermos histórias e criarmos o futuro. Dessa forma, a ludicidade
oferece um novo olhar sobre as relações interpessoais trazendo a ação e, consequentemente,
reflexão de atitudes; reencontrando a compreensão. Também, de acordo com Ramalho (2010),
a dramatização do lúdico estabelece uma ponte entre a realidade e o imaginário, sendo que o
psicodrama trabalha numa atmosfera lúdica e permissiva, num campo relaxado, que favorece o
aparecimento de uma atuação espontânea e criativa, delineando histórias e desencadeando
novas descobertas. Uma vez que o caráter lúdico não pode faltar ao psicodrama, ambos se
confundem e se misturam, agregando possibilidades de uma nova construção do ser.
Indo além nessas considerações, Queiroz e Melo (2003) aponta que o lúdico funciona
como um canal de experimentação da realidade que nos possibilita tentar e também errar.
Seguindo o pensamento da autora, podemos entender que brincar/jogar é deixar-se viver um
problema num cenário de experimentação de si, de outros, de ambientes e tecnologias: “arriscar
uma solução, errar, buscar novas estratégias” (Queiroz e Melo, 2003, p. 15).
Percebemos que o jogo, como recurso lúdico e estratégia psicodramática, nos convoca
a ir a um mundo não real, ao mundo da imaginação. Torna possível ao homem encontrar
respostas para seus problemas e achar soluções para os desafios da vida, fazendo emergir sua
espontaneidade criativa.
O jogo se insere no Psicodrama como uma atividade que propicia ao indivíduo
expressar livremente as criações do seu mundo interno, realizando-as na forma de
representação de um papel, pela produção mental de uma fantasia ou por determinada
atividade corporal (Monteiro, 1979, p. 7).
Conforme explica Monteiro (1979): “Moreno adorava o jogo porque nele se encontra a
liberdade... Tudo vale, sempre que estejamos de acordo, até o mais absurdo pode acontecer: a
parede se derrete, o frio queima, a tartaruga corre e o rato fala!” (Monteiro, 1979, p. IX).
No jogo se luta, se representa, se imagina ou se sensibiliza para alguma coisa. O jogo
enfeita a vida e se constitui numa necessidade para o homem, ao lhe dar uma
consciência de ser diferente da vida cotidiana, de compreender e influenciar o mundo
em que vive (Monteiro, 1979, p. 4).
Está em pauta nesta discussão não qualquer jogo, mas o jogo de faz de conta e de
experimentação da fantasia. Entendemos o lúdico como uma matriz de experimentação de si,
do mundo e das relações. Dentro dessa matriz, há várias formas de experimentar, das quais o
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jogar/brincar de faz de conta é uma delas. Aqui, lúdico e jogo se fundem e se complementam,
não se podendo falar de um sem falar do outro.
Segundo Vygotsky (1989), a imaginação é o brincar em ação. Ainda que ele se remeta
ao brinquedo da criança que adquire ludicidade devido ao caráter imaginário atribuído a ele,
podemos fazer uma aproximação com o jogo de faz de conta. O autor considera o brincar/jogar
o mundo ilusório e imaginário, onde os desejos não realizáveis podem ser realizados. De modo
semelhante, no enfoque psicodramático, o indivíduo pode, por exemplo, se tornar uma criança,
desempenhar o papel de seu pai, criar uma cena que não existiu, até mesmo trazer para perto
uma pessoa que está longe ou dizer a alguém o que sempre quis e nunca foi dito, entrando em
contato com suas emoções e sentimentos. Todo esse trabalho envolve a liberação da
espontaneidade, de forma a favorecer a criatividade, e é um caminho para reflexões e
desvelamentos.
1.2 O lúdico e as novas tecnologias
E o que dizer dos jogos eletrônicos3? A partir da perspectiva de Queiroz e Melo e
Perfeito (2013), o lúdico, na contemporaneidade, encontra-se influenciado pelas novas
tecnologias. Nesse sentido, os jogos eletrônicos assumem uma posição de destaque à medida
que promovem experiências que envolvem o aprendizado, a socialização e a identidade.
Vários jogos têm ganhado versão digital. Tal fato mostra o constante movimento das
tecnologias e traz novas formas de se experimentar a realidade e de encarar a ludicidade sobre
a ótica das relações permeadas pelos jogos digitais. Queiroz e Melo (2003) esclarece que,
independentemente de novas ou velhas tecnologias, o lúdico sempre será um canal de
experimentação da realidade, onde podemos explorar o velho método da tentativa e do erro. Os
espaços virtuais vêm se transformando em um verdadeiro local de encontro, onde os jogadores
se relacionam, se interagem e podem fazer aprendizagens. Na vida cotidiana, estamos
conectados com o mundo virtual pelas redes sociais como o Facebook, o Instagram, o
Whatsapp e também através dos jogos digitais.
Portanto, não há como negar que o ciberespaço está cada vez mais presente em nossa
vida. É possível viajar de um mundo concreto a um mundo imaginário, que também não deixa
de ser real. Percebemos um incremento das relações pautadas não apenas na comunicação real,
3 Os termos jogos eletrônicos, videogames e jogos digitais aqui usados alternadamente assumem a mesma
significação e devem, portanto, ser entendidos como uma coisa só, estando relacionados ao contexto virtual.
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como na comunicação virtual, através de sites, grupos e comunidades. Conforme Lévy (1996),
“o virtual não se opõe ao real, mas sim ao atual” (p. 15). Ele considera que atualização implica
a invenção de uma forma a partir de uma configuração dinâmica de forças e finalidades. Para
esclarecer suas ideias, o autor declara: “O real assemelha-se ao possível; em troca, o atual em
nada se assemelha ao virtual: responde-lhe” (Lévy, 1996, pp. 16-17). Lévy acredita que não se
pode considerar a realidade virtual como desprovida de existência. Ela não é uma não realidade.
De acordo com ele, o virtual é uma parte do real e criador de possibilidades. Isso significa que
as interações virtuais não deixam de ser reais.
O indivíduo se lança no ciberespaço e é conduzido a liberar a fantasia e a imaginação,
ao mesmo tempo em que também conduz a própria experimentação de suas facetas, construindo
cenários e criando personagens; enfim, brincando numa atmosfera que lhe permite ir além do
seu eu real. Os jogos eletrônicos se revelam como um canal para a exploração da imaginação e
da criatividade, fazendo emergir, a partir da experimentação de papéis, uma interpenetração do
universo virtual com a realidade. As pessoas podem jogar com suas fantasias e expressar
sentimentos, liberando emoções. Também, os autores Queiroz e Melo e Perfeito (2013)
consideram o jogo como um palco onde os jogadores têm a possibilidade de experimentar
ações, exercer papéis diversos e trocar experiências.
Ao falarmos em “palco”, traçamos relações com o teatro, constatando que o jogador,
nos games, se aproxima do ator do teatro. Mergulhados numa atmosfera criativa, são capazes
de desempenhar papéis e encenar seu drama. O cenário vai sendo preparado e modificado o
tempo todo. Conforme indica Goffman (2002), a decoração e os acessórios do lugar onde vai
se desenrolar a ação contribuem para provocar uma espécie de encantamento sobre o
espetáculo. Prosseguindo com estas reflexões, o autor ainda declara: “O palco apresenta coisas
que são simulações4... no palco, um ator se apresenta sob a máscara de um personagem para
personagens projetados por outros atores” (Goffman, 2002, p. 9). O autor entende, que ao
montar o palco para representação de si, o ator se encontra em meio a um ciclo de encobrimento,
descobrimento, revelações, descobertas. O usuário/jogador, por sua vez, passa a ser visto para
além dessa imagem. Ele é um ator que interage com a interface o tempo todo quando está online,
tornando-se um representante em ação. Por meio do enredo, as histórias vão ganhando sentido
e ele pode apresentar, enfim, seus próprios eus. O jogador e, então, ator, pode até mesmo passar
4 Simulações no sentido de representações que não têm compromisso de ser coerentes com a realidade; ator e
personagem podem experimentar papéis e situações que nada se aproximam do real.
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a acreditar na própria realidade criada por ele, uma vez que Goffman (2002) ressalta que “a
representação apresenta uma idealização da situação” (p. 40).
Considerando esse ponto de vista, podemos afirmar que a imaginação é de fundamental
importância, uma vez que a realidade virtual exige um grau notável de criatividade e de
interação social entre os jogadores. Segundo Lévy (1993), as tecnologias digitais assumem um
papel cada vez mais significativo na vida dos indivíduos, pois é pela simulação e pela
imaginação que os indivíduos organizam e reorganizam suas visões de mundo. Lévy (1999)
considera que as simulações podem servir para testar fenômenos ou situações em todas suas
variações imagináveis, para conhecer sistemas complexos e ainda para explorar universos
fictícios de forma lúdica: “Você fica imerso em um universo virtual fechado sobre si mesmo,
que o envolve à medida que você o cria” (p. 68).
Tomando por base essas ideias, entendemos que existem questões que convergem para
a ludicidade como um meio para o encontro consigo mesmo e até mesmo de transformação. É
nesse sentido que consideramos que os jogos digitais podem favorecer o processo de
subjetivação do indivíduo e de construção de sua identidade. Acreditamos que o cenário virtual
pode se manifestar como um espaço com função terapêutica no sentido de ser capaz de provocar
efeitos no jogador, uma ponte entre o real e o imaginário5. Esclarecemos que entendemos como
“terapêutico” qualquer transformação de comportamento ou sentimento da pessoa submetida a
alguma ação externa para que a pessoa se sinta melhor consigo mesma.
1.3 A Teoria Ator-Rede
Observamos que técnicas e indivíduos encontram-se ligados e se influenciam
mutuamente, criando novas formas de comunicação e estabelecendo vínculos. De acordo com
Turkle (1997), “os computadores não se limitam a fazer coisas por nós, fazem coisas a nós,
incluindo as nossas formas de pensar acerca de nós próprios e das outras pessoas” (p. 37). Tal
perspectiva nos remete à Teoria Ator-Rede de Bruno Latour, que se refere à ligação entre
humanos e não humanos, uma vez que os fenômenos ocorrem de forma articulada, nas
associações que fazem os atores. Para Latour (1994), a palavra ator refere-se tanto a humanos
como a não humanos, que agem e produzem efeitos na rede, deixam rastros e podem, portanto,
ser seguidos. Interessa-nos estudar os rastros destas conexões entre homens e jogos digitais e
5 Esse cenário pode também ser potencial e potente para a deflagração de estados patológicos, mas este trabalho
não tem por objetivo seguir essa vertente; apenas, tem essa controvérsia como pano de fundo.
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psicodramáticos. Esse autor considera que não há uma separação entre ambos, humanos e
técnicas, criando possibilidades e interferindo sobre a realidade. Em consonância com esse
ponto de vista, Turkle (1997) aponta: “À medida que os seres humanos se confundem cada vez
mais com a tecnologia e uns com os outros através da tecnologia, as velhas distinções entre o
que é especificamente humano e o que é especificamente tecnológico tornam-se mais
complexas” (p. 30).
Tendo como base Latour (2012b), Moraes e Queiroz e Melo (2016) alimentam a
temática de nossa discussão ao abordar a técnica como modo de existência, argumentando que
um indivíduo só faz sentido em contraste com outros indivíduos, em relação ao meio com o
qual está em conexão ou do qual emerge. A construção do indivíduo está atrelada a muitos
elementos subjetivadores e não se pode conceber a humanidade e tecnologia como polos
opostos, porque isso implicaria descartar a própria humanidade (Latour, 2001). As técnicas se
tornam tão familiares que se tornam invisíveis e acaba-se por omitir a cadeia de ações e
referências, fazendo desaparecer todo o encadeamento de construção das coisas. A isso, Latour
(2012b) chama de duplo-clique, que remete à obviedade da técnica.
A Teoria Ator-Rede busca investigar as relações estabelecidas entre humanos e não
humanos e, no caso deste estudo, o relacionamento do homem (eu pesquisadora e jogadores)
com o jogo eletrônico e o jogo psicodramático. A TAR procura construir uma sociologia das
associações na tentativa de entender como elementos heterogêneos, tão diferentes entre si, se
relacionam. Indica, ainda, que haja simetria entre pesquisador e pesquisado, e que ambos os
atores sejam também nós da rede pesquisada.
Com o advento da internet, a noção de rede passou a ser relacionada a este contexto. No
entanto, segundo Tsallis, Ferreira, Moraes e Arendt (2006), esse termo sempre existiu para
designarmos, por exemplo, redes de esgoto, rede de televisão, redes sociais etc. A palavra “rede”
nos remete à noção de vínculo, conexão e alianças, que, para a TAR, implica a relação entre
atores humanos e não humanos, que se influenciam, se afetam e modificam uns aos outros
nessas interações. Muitas vezes, não nos damos conta da importância do não humano actante
numa cena. Somos levados a refletir como seria se esse actante não estivesse presente e o que
teríamos que fazer na ausência dele. Os actantes participam e modificam a rede de relações.
Assim, informa-nos Law (1992): “O que compõe o social não é simplesmente humano” (p. 3).
O autor esclarece que não teríamos uma sociedade se não fosse pela heterogeneidade das redes
do social e que quase todas as nossas interações com outras pessoas são mediadas por objetos.
“Se os seres humanos formam uma rede social, isto não é porque eles interagem com outros
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seres humanos. É porque eles interagem com seres humanos e muitos outros materiais também”
(Law, 1992, p. 4).
Seguindo essas considerações acerca da noção de rede e da relação entre humanos e não
humanos, Lemos (2015) afirma: “é pela rede externa que a produção da interioridade se dá” (p.
10). E esclarece: “É ao ouvir música ou jogar, que produzimos nossa subjetividade, fazendo
com que ela seja parte de uma trajetória de instauração que nos constituirá” (p. 12).
Entendemos, nesse sentido, que tudo que nos constitui é ser-enquanto-outro. Ninguém é
ninguém por si só; somos porque “somos enquanto outros”. O interior não é tão interior assim
porque passa pelos outros, e o ser-enquanto-outro vai sendo ainda mais infinitamente alterado.
Latour (2012b) argumenta que, “pela técnica, o ser-enquanto-outro aprende que ele pode ser
ainda mais infinitamente alterado como até aqui não acreditávamos” (p. 223).
Considerando essas reflexões, sentimo-nos convocados a conceber os jogos eletrônicos
como mediadores do ser-enquanto-outro, observando sua construção e seus encadeamentos. Os
jogos, de maneira geral, podem ser elementos subjetivadores, de onde indivíduo e técnica
emergem em relação, em rede. Uma vez que todos devem passar por outros para existir, segundo
Lemos (2015), os jogos podem ser esses outros, que o autor chama de seres da metamorfose,
seres da ficção e seres da técnica (citando Latour, 2012b), e que todos estes constituem os seres
do jogo. O modo de existência do lúdico está ligado a esses seres, que se constituem em seres
de ligação, os quais desencadeiam associações e criam um mundo envolvido por um círculo
mágico.
Frente a essas colocações, consideramos que, além de vivermos em rede, nessas redes,
somos todos atores, humanos e não humanos, e que não existe individualidade fora da
coletividade; somos interdependentes; somos atores-rede. Tomando por base essa compreensão
a respeito do referencial teórico-metodológico, por vivermos em um sistema de relações,
procuramos observar as redes e como somos afetados por elas.
Nos jogos eletrônicos e nos jogos psicodramáticos, uma rede de objetos e uma rede de
jogadores/pessoas participam do social, se movimentam e agem, podendo produzir novos
conhecimentos. Tsallis et al. (2006) nos falam que “humano e não humano se modificam na
relação, um aprende com o outro” (p. 61), e o mesmo acontece na relação de um pesquisador
com seu objeto de estudo. Esta leitura dos jogos serve para que eu me veja como uma
pesquisadora psicodramatista envolvida pelo jogo de papéis e que se coloca à prova para estudar
possíveis correlações com o jogo no psicodrama e seu potencial de transformação. Sou um nó
nesta rede.
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1.4 As controvérsias e suas posições no jogo
Não poderíamos penetrar neste campo sem mencionar as controvérsias que permeiam
este estudo. As tecnologias digitais são alvo de controvérsias por parte de especialistas. Existem
psicólogos que acreditam apenas nos impactos negativos dos jogos digitais na vida das pessoas,
como a promoção da violência e suas potencialidades viciadoras, conforme aponta Oliveira
(2006).
Vale destacarmos que há profissionais, os quais enfatizam que os videogames afastam
as pessoas do convívio familiar e social, criando uma dependência da tecnologia, o que faz com
que experimentem intenso sofrimento quando o acesso lhes é dificultado ou negado. Existem
ainda hipóteses de que a internet é produtora de ilusões e de que o uso excessivo dos jogos
eletrônicos e da internet configuram-se num novo transtorno psiquiátrico. Diferentes definições
e termos surgem para se referir a esse assunto, como dependência de internet ou
ciberdependência, compulsão por jogos digitais e transtorno de adição à internet, entre outros.
Ao contrário do que se tem discutido, de que a internet amplia o universo social, facilita
o aprendizado e funciona como uma ferramenta de trabalho, há profissionais que enfatizam o
caráter negativo da internet na vida das pessoas, ressaltando os prejuízos na vida pessoal e na
profissional. É o que se chama de netdependência.
Oliveira (2006) esclarece que o indivíduo se torna dependente da internet, com sintomas
cognitivos, emocionais e fisiológicos. Ela aborda pesquisas realizadas por Young (1996), que,
através da realização de questionários, conclui que existe algum tipo de distúrbio psíquico
associado ao uso da internet. Em suas pesquisas, Young (1996) detectou sintomas de
dependência em vários usuários compulsivos da rede e informa que o problema começa quando
esse uso compulsivo começa afetar a vida da pessoa e de pessoas próximas a ela, de maneira
semelhante à dependência de outras drogas.
Para tanto, vêm sendo realizadas pesquisas que abordam diferentes concepções. Tem-se
falado em Transtorno de Adição à Internet (TAI), numa tentativa de incluí-lo no Transtorno de
Personalidade Ansiosa, que já existe no Código Internacional de Doenças (CID). Discute-se,
também, a possibilidade de se enquadrar a TAI entre as dependências sem substâncias, em que
está implicado, por exemplo, o jogo patológico. Outros estudos apontam-na como melhor
enquadrada entre os Transtornos do Controle de Impulsos, ao qual se encontra vinculada a
compulsão por compras ou pelo trabalho, entre outras. Ainda assim, são necessárias pesquisas
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que discutam e confirmem, como explica Oliveira (2006), se a compulsão por internet constitui
numa patologia ou se representa apenas um sintoma de um outro quadro emocional subjacente.
Nos estudos mencionados por Lemos e Santana (2012), jogadores podem relatar uma
vida frustrante e vazia sem o mundo virtual, desenvolvendo atitudes obsessivas, perda de sono
e de apetite, negligenciando atividades cotidianas e profissionais. Os aspectos negativos do uso
dos jogos eletrônicos têm sido discutidos na mídia e nos meios acadêmicos, com repercussão
negativa nos âmbitos familiar, acadêmico e profissional. Jogar videogame passa a associar a
imagem do jogador a um sujeito dependente, viciado ou obsessivo. Os autores apontam ainda
estudos realizados nos Estados Unidos e Europa, que informam que a dependência dos jogos
digitais varia conforme a localidade, havendo oscilações na epidemiologia. Outrossim, também
segundo eles, a relação entre jogos eletrônicos, dependência e violência vem ganhando destaque
e indica que há autores que acreditam que o jogador possa desenvolver comportamentos
violentos mesmo sem estar diante de um jogo que explora tais características, sugerindo que o
uso excessivo de jogos caracteriza dependência.
Nesse campo de argumentações, Turkle (1997) nos diz que a experiência virtual dos
jogos pode acontecer em espaços onde as pessoas podem desabrochar ou ficar presas e
bloqueadas. A possibilidade de criar e experimentar muitos personagens pode fazer com que
percam o foco na sua própria identidade, uma vez que o eu se encontra envolto num mundo de
fantasia. A questão colocada pela autora implica justamente uma fuga à realidade à medida que
os jogadores podem se perder no jogo e deixar para trás a vida e seus problemas ou dificuldades
reais. Esses argumentos nos alertam para o fato de que os jogos podem promover a descoberta
de si mesmo, mas nem sempre. Às vezes, o jogador fica tão envolvido com sua existência no
ciberespaço, que se mantém preso a um mundo onde as coisas são mais simples do que na vida
real. Isso pode gerar um impacto na sua vida, levando para mais longe a fronteira entre o jogo
e sua vida real. De forma análoga, as discussões acerca de um possível deslocamento para uma
existência virtual ressaltam que a absorção mental desse novo personagem/avatar tem um papel
negativo no funcionamento da vida real interpessoal e familiar. Há, nesse ponto, mais uma
importante consideração; a vida nos jogos digitais pode, ao invés de facilitar a reexploração de
si mesmo, fazer com que a pessoa reviva dificuldades que a atormentam na vida real ou repita
o mesmo tipo de padrão de comportamento.
Envolvidos pela controvérsia que tem como pano de fundo os impactos que permeiam
o uso das tecnologias digitais e os desdobramentos que existem na vida do jogador, há estudos
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que se posicionam de forma distinta e apontam que a possibilidade de se criar uma persona6 no
mundo virtual garante ao jogador uma saída segura para suprir necessidades psicológicas
inadequadas.
Notadamente, entretanto, o foco das discussões direciona-se fundamentalmente aos
aspectos negativos e se esquece de que, na verdade, tudo que é demasiado ou intenso foge da
zona de equilíbrio da pessoa. Portanto, parece claro que todo potencial de vício gira em torno
de como a própria pessoa faz uso das tecnologias digitais. O que precisa ser considerado é a
conscientização das pessoas de que os benefícios que podem obter desses recursos dependerão
em grande escala da sua capacidade de discernimento quanto ao seu uso. É a forma como se
usa que a torna benéfica ou nociva. O uso de modo equilibrado, consciente e maduro pode
contribuir de maneira a oferecer uma análise menos desfavorável dos jogos digitais,
identificando seus pontos positivos e sua possível repercussão benéfica na vida real das pessoas
envolvidas. Destarte, é fundamental conhecer a realidade do jogador para se compreender qual
a influência dos jogos digitais na vida dele e que relação ele mantém com estes.
Percebemos que a controvérsia gira em torno de uma conotação de dependência dos
jogos eletrônicos. Busca-se, com isso, correlações entre videogames e drogas, uma vez que se
encontram semelhanças entre essas duas. Há fatores que sugerem a vulnerabilidade da pessoa
à dependência dos videogames, como a insatisfação e a falta de sentido na vida. Desse modo, a
internet seria um veículo para amortecer a dor e a solidão e escapar temporariamente do
problema, buscando experiências significativas.
Nesse sentido, Fortim (2005) desenvolve a noção de escapismo, sendo o mundo virtual
utilizado como refúgio. As pessoas podem encarar essa experiência como a forma mais
confortável de se expressar ou a única possibilidade de existência. Não serão os jogos
eletrônicos válvulas de escape para as vivências de sofrimento e angústia dos jogadores? Por
outro lado, Turkle (1997) nos diz que “a virtualidade não tem que ser uma prisão. Pode ser uma
jangada, a escada, o espaço transicional, a moratória” (p. 393-394). Ela pode exercer a função
de uma ponte que permite alcançar maior liberdade. Esse espaço transicional, para Fortim
(2005), “é um espaço onde o usuário tem a sensação de poder fazer dali uma extensão de sua
mente” (p. 6). Turkle (1997) complementa: “Não temos que rejeitar a vida no ecrã7, mas
também não temos que tratá-la como uma vida alternativa. Podemos usá-la como um espaço de
crescimento” (p. 394). À vista disso, buscamos explorar as possibilidades e potencial positivo
6 O termo persona origina-se do teatro grego antigo e significa máscara (Ramos, 2005). 7 Ecrã é como os portugueses chamam a tela.
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que os jogos digitais oferecem aos seus jogadores, como o fortalecimento da noção de EU,
ressignificação de afetos, maior confiança e autoestima. Todavia, apenas pesquisas futuras
poderão nos responder se a utilização excessiva dos videogames deve ser entendida e encarada
como um novo diagnóstico psiquiátrico ou se eles podem favorecer a expressão de conflitos ou
problemas que buscam elaboração; ou ambos.
A controvérsia que atravessa nosso objeto de pesquisa pode ser expressa com algumas
questões: até que ponto podemos afirmar que os jogos digitais exercem impactos negativos na
vida das pessoas? De fato, podemos afirmar que a virtualidade nos afasta das pessoas? Será que
esses jogos poderiam se constituir como mecanismo terapêutico e até mesmo aproximá-las?
Talvez, com essas inquietações e indagações, possamos lançar um novo olhar e por que não
uma nova compreensão das relações estabelecidas online.
Outras controvérsias precisam, então, ser destacadas. Quais seriam os efeitos
inesperados surgidos com a experiência dos jogos eletrônicos? Até que ponto o sujeito
envolvido no jogo digital pode perder-se de si mesmo e da sua realidade? O que faz com que a
pessoa se perca de si mesma, envolvendo-se na pele de um personagem virtual que é ela, mas
não é ela? Como a simulação pode oferecer novas possibilidades, mas também comportar certos
riscos? São todas essas questões que nos serviram como provocações e nos instigaram a estudar,
tomando como base nossa experiência nos jogos psicodramáticos, o movimento do jogadores e
o meu próprio movimento na atmosfera lúdica, assim como os efeitos dos jogos digitais em
nossas vidas.
Outras questões devem ser apontadas para serem consideradas e seguidas como
desdobramento deste estudo: como o jogo no Psicodrama pode ser identificado nos jogos
eletrônicos? É possível uma aproximação dos jogos psicodramáticos com o que é vivenciado
no ciberespaço? Quais analogias são possíveis de serem feitas entre os jogos nos dois cenários?
Quais efeitos ou impactos da ludicidade mediada por humanos e não humanos no jogador?
Buscamos questionar o que se pretende constituir como caixas-pretas8, que sustentam
com relativa facilidade a influência negativa dos jogos digitais na vida das pessoas e que
afirmam que estes levam os jogadores para fora de suas vidas reais, e colocar em pauta uma
discussão em torno da repercussão dos jogos eletrônicos na vida real das pessoas.
8 Segundo Latour (2000, p. 230), caixas-pretas são “fatos inegáveis”, “máquinas altamente sofisticadas”, “teorias
eficazes”, “provas irrefutáveis”, enfim, tudo aquilo que é dado como certo, pronto, usado por todos – “ponto de
passagem obrigatória” –, cuja força e solidez apontam para uma grande quantidade de associações que mantêm
coesa uma multidão de aliados, com a expectativa de operar bons efeitos.
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1.5 Experimentando as controvérsias
A TAR se apresenta, neste estudo, como norteadora para observar as controvérsias que
permeiam os jogos digitais, as quais focam nos seus aspectos negativos, como dependência e
isolamento social. Venturini (2009) explica que observar controvérsias é observar e descrever
o trabalho incessante de amarrar e desamarrar conexões feitas pelos atores. Implica questionar
e discutir ideias que podem estar sendo tomadas como versões únicas, evitando que as
controvérsias se tornem precocemente caixas-pretas ou investigando aquelas que nem mesmo
ainda foram fechadas. A versão acerca da influência negativa dos jogos digitais sobre os
jogadores é tomada aqui apenas como um dos lados da controvérsia pela problematização de
ideias preconcebidas e pelo levantamento de outros olhares sobre as tecnologias digitais.
Para colocar à prova essas ou aquelas afirmações, pretendi fazer, pela
autoexperimentação, uma imersão no cenário lúdico dos jogos digitais, buscando uma
interlocução com o lúdico que emerge nos jogos psicodramáticos e investigando a expressão
de emoções nos role-playing games, bem como os efeitos produzidos por esta relação homem-
máquina. Colocando-me à prova, pude observar, a partir dos vários pontos de vista em que pude
me situar, quais movimentos me foram possíveis e como se deram os efeitos produzidos nesta
relação jogador-interface-máquina-jogo de papéis. No caso deste estudo, o que adquiriu
relevância é como eu, tanto no papel de psicodramatista como também de jogadora, poderia ser
afetada pela relação estabelecida com a interface, o que traria para minha vida real a partir da
experiência virtual e se seria possível traçar correlações com o jogo dramático desenvolvido no
psicodrama. Ainda que possamos nos deparar com psicodramatistas que consideram que os
jogos virtuais encontram-se distantes da proposta que envolve os jogos no psicodrama, uma vez
que os pressupostos desse último são diferentes, esclarecemos que a intenção deste estudo não
é afirmar que os dois tipos de jogos são a mesma coisa ou que são semelhantes, mas sim levantar
questões que envolvem o jogo de papéis nos dois cenários e seus possíveis efeitos nos
jogadores.
Como esclarece Pedro (2008), são necessários alguns movimentos no processo de
cartografar as controvérsias. Primeiramente, devemos buscar uma porta de entrada, que, neste
estudo, consiste num melhor conhecimento dos jogos eletrônicos e de seus aspectos lúdicos,
mais especificamente na experimentação de estratégias em um jogo escolhido mediante
investigações preliminares e imersões em diferentes jogos para conhecimento do campo. O
cenário virtual dos jogos eletrônicos é por onde eu entrei de forma a participar da dinâmica
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lúdica que o envolve. Em seguida, Pedro (2008) informa a importância de identificarmos os
porta-vozes. Neste estudo, além dos jogadores consultados, sou também porta-voz, enquanto
jogadora, e interessou-me ouvir o que poderia dizer do que experimentei no jogo de papéis,
quais percepções e descobertas pude fazer sobre o meu movimento nos jogos, quais sentimentos
e sensações foram suscitados pelo desempenho de papéis e o que me levou a escolher
determinado personagem/avatar no jogo. Neste percurso, foi importante buscar também as
vozes discordantes que também circulavam pela rede, ou seja, se indicavam aproximações ou
não com o que eu, jogadora, expressava. Ainda segundo Pedro (2008), é preciso acessar os
dispositivos de inscrição e, no caso deste estudo, os textos e livros, o download de jogos e os
jogos em si, que me deram suporte e me ofereceram informações que procurava colher. Por
último, a autora menciona o mapeamento das ligações da rede, as relações que se estabelecem
entre os atores-autores, jogos, jogadores, artigos, livros e os nós que compõem a rede, bem
como as traduções produzidas por eles. Dessa forma, o que pretendi fazer encontra-se atrelado
com as conexões que existem entre os jogos dramáticos e os jogos eletrônicos, buscando propor
correlações baseadas no jogo de papéis.
Em vista disso, interessou-me seguir os meus movimentos no jogo em pleno
acontecimento e observar as trocas entre nós e as conexões que se fizeram numa configuração
de rede instável e dinâmica. Portanto, como jogadora, lancei-me no jogo digital, experimentei
papéis, assumi personagens e joguei com minha bagagem vivencial.
Na ótica de Latour (1994), um ator não se define apenas pelo que ele faz, mas pelos
efeitos daquilo que ele faz. Considerando esse estudo, meu olhar se concentrou em acompanhar
os efeitos dessa ação, no caso, da relação que eu estabeleci com a interface do jogo e com outros
jogadores, como também os efeitos decorrentes dessa interação na nossa vida real e os rastros
deixados por essa relação.
Seguir os meus rastros, enquanto pesquisadora, permitiu que meu olhar estivesse
voltado a apreender a rede tal como ela se fez, sendo eu um nó na rede, as interações entre os
personagens, a escolha dos avatares, a criação do cenário, as ações, as atitudes e os movimentos
no jogo, que foram delineando contornos e se entrelaçando, bem como os efeitos provocados
na minha vida real. Essa estratégia consiste, tal como explica Pedro (2008), na principal diretriz
metodológica da cartografia das controvérsias. Deixar que os atores falem por eles mesmos e
seguir suas ações permite mapear a dinâmica das traduções que se encontram em ação na rede,
como cada um, de modo singular, faz sua apropriação da rede e na rede. Nessa perspectiva,
Pedro (2008) faz referência ao conceito de tradução na TAR, que implica a “capacidade de um
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ator ‘decodificar’ os anseios do outro ator” (p. 5). A autora explica que os “atores-rede estão
permanentemente traduzindo suas ações, linguagens, identidades e desejos, tendo em vista as
manifestações dos outros atores” (ibidem). Esclarece ainda que não há traduções certas ou
erradas, mas mediações e singularidades, sendo que toda tradução implica traição, uma vez que
o que um jogador apropria na sua vivência no ciberespaço difere do que outros jogadores
apropriam e, dessa forma, se modificam e modificam a rede. Tendo em vista essas diretrizes,
busquei observar as traduções que faria a partir desta vivência no mundo dos jogos eletrônicos,
dando visibilidade à minha experiência como um ator na rede.
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2 Objetivos
Como objetivo geral, nosso interesse se concentrou em verificar e descrever as possíveis
analogias do jogo de papéis que dá suporte às práticas psicodramáticas e aos jogos eletrônicos
mediatizado pela atmosfera lúdica.
Entre os objetivos específicos, destacamos:
Verificar como se dá o processo lúdico nos role-playing games.
Buscar interlocuções dos jogos dramáticos no psicodrama com os jogos digitais.
Investigar a prática de jogos eletrônicos como meio para expressão de afetos e
sentimentos no jogo de papéis.
Observar os efeitos produzidos na prática dos jogos eletrônicos oferecendo material para
a controvérsia em curso.
Analisar o meu movimento enquanto jogadora na atmosfera lúdica e possíveis efeitos
na minha vida real.
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3 Metodologia
A Teoria Ator-Rede é o referencial teórico-metodológico deste estudo. Com essa lente,
proponho uma interlocução entre os jogos no psicodrama, mais especificamente os jogos
dramáticos, e os jogos digitais, entendendo que o jogo de papéis pode vir a exercer uma função
de ressignificação ou autorreparação na forma de ser e estar no mundo dos jogadores.
A expressão ator-rede significa que nenhum ator age sozinho, todo ator é uma rede,
resultado de outras redes e interligados a outras tantas. É aquele que produz efeitos na rede e é
afetado por ela, fazendo surgir novas redes e redefinindo suas identidades. Portanto, podem ser
atores: pessoas, animais, coisas, objetos e instituições. Neste meu estudo, eu sou um nó na rede
e pretendi buscar interconexões entre os jogos no Psicodrama e os jogos eletrônicos, não me
limitando à relação estabelecida com o jogo eletrônico. Desde os parâmetros que definem a
TAR entendo também, e registro de antemão, que, junto comigo, ao longo deste estudo,
participam, interagem e escrevem vários atores (orientadora, colegas do grupo de estudo,
autores, jogadores e textos), fazendo parte da rede de conexões que atravessa esta pesquisa.
Tomando por base uma leitura de Venturini (2009), entendemos que a metodologia da
Teoria Ator -Rede consiste basicamente em mobilizar a realidade, seguindo os atores na rede e
os vínculos nas práticas que associam humanos e não humanos. Valoriza-se como as trajetórias
se fizeram, como uma coisa foi levando à outra, sem anular as mediações. Implica não tomar
os objetos técnicos como óbvios e procurar recuperar as conexões até o movimento que os
transformou e cuja trajetória é singular. Requer que as cadeias que permeiam a relação entre
atores heterogêneos sejam consideradas; portanto, implica pensar como ator e jogos eletrônicos
e dramáticos se influenciam e se constroem nessa relação. Nessa perspectiva, a cartografia das
controvérsias oferece um modelo mais didático da TAR, sendo um conjunto de técnicas para
explorar e visualizar questões. Segundo Venturini (2009), torna-se fundamental considerar três
pontos importantes de acordo com a cartografia das controvérsias: 1- O pesquisador não deve
restringir a sua observação a uma única teoria ou metodologia; 2- Ele deve observar a partir de
vários pontos de vista; e 3- Ele deve ouvir as vozes dos atores mais do que suas próprias
presunções. O termo controvérsia, conforme Venturini (2009), se refere a situações, nas quais
os atores discordam (ou melhor, chegam a um acordo sobre o seu desacordo), gerando
indagações.
De acordo com a TAR, não existe ator isolado e as mediações se destacam num processo
dinâmico de transformações e redefinições. Os atores agem e interagem, moldando relações e
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sendo moldados pelas redes. O ator/jogador deste estudo está engajado e articulado em um tipo
particular de rede sociotécnica, tal como conhecemos os jogos eletrônicos, híbridos de engenho
humano e possibilidades que a matéria e as técnicas oferecem. Considerando que todo ator é
uma rede, tanto decorrente como também componente de outras redes, o estudo se dará nesta
interface, ou seja, nesta comunicação entre jogador e jogo mediado por objetos, com foco no
jogo de papéis. Entendemos que os objetos técnicos não se prestam apenas a servir a nós
humanos; eles exercem uma função de complementaridade e são agentes participantes e capazes
de delinear transformações (Pedro, 2008). E, assim, vão construindo a existência.
Para tanto, este estudo se constituiu de três fases. O primeiro momento, primeira diretriz
metodológica, é composto pela revisão de literatura e se refere ao estudo e aprofundamento dos
temas que são abordados como lúdico, os jogos no âmbito psicodramático e os jogos no cenário
virtual, bem como as controvérsias que permeiam esse campo e foram tomadas como
necessidade de minha investigação. Nesse intuito, busquei fazer correlações entre os dois tipos
de jogos, com suas características e peculiaridades, provocações e efeitos. A segunda parte se
refere ao contato com jogadores que me introduziram no universo dos jogos digitais, incluindo
o conhecimento técnico necessário, estratégias do jogo e manipulação dos avatares. Suas
atividades consistiram em fornecer informações técnicas e práticas do jogo, incluindo
depoimentos espontâneos sobre a sua percepção de suas vivências no jogo. Esses jogadores
foram contatados a partir das minhas próprias redes sociais ou de meus contatos informais de
relacionamento social. Um jogador participou de dois encontros de aproximadamente uma hora
com a jogadora, sendo esta a própria pesquisadora. A terceira fase consiste na minha imersão
nos jogos eletrônicos, que foram escolhidos pela proximidade com o que buscava investigar,
ou seja, o jogo de papéis e seus efeitos no jogador, quando assumi papéis e joguei com meus
personagens. Portanto, nessa fase, o ator-rede a ser seguido foi a própria pesquisadora em uma
autoexperimentação, atuando no cenário dos jogos de papéis digitais mediados pela ludicidade.
Nesse sentido, guiada pelas controvérsias que se apresentam e utilizando o que Venturini (2010)
diz que a TAR tem um afeto por técnicas digitais, senti-me provocada a observar as nuanças, as
quais surgiam em meio as controvérsias que envolvem o mundo dos jogos digitais e como se
articulavam as associações.
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4 Revisão de literatura
4.1 Jogos e ludicidade
Jogo e lúdico encontram-se intimamente ligados, à medida que consistem na liberdade
e na imprevisibilidade, estimulando a ousadia e o correr riscos. Huizinga (2001), figura
protagônica na temática, afirma que o jogo consiste numa atividade voluntária, sendo que o
jogo sujeito a ordens deixa de ser jogo. Refere-se ao lúdico, situando essa atividade como a raiz
de toda a cultura e promovendo, assim, uma inversão na tese de que brincamos porque somos
culturais. Na visão dele, toda cultura emerge porque brincamos, sendo as construções humanas,
como a música, a poesia e a ciência, resultados da atividade lúdica em seus níveis mais
sofisticados.
Ainda segundo Huizinga (2001), o lúdico está na nossa vida desde muito cedo e os jogos
são fundamentais na nossa cultura. Para ele, toda atividade lúdica tem uma função social e
cultural porque possui significado. E nas brincadeiras com bonecas ou carrinhos, fingimos ser
outra pessoa, representamos um papel e vestimos máscaras. Sendo assim, o autor declara que
deveríamos chamar a espécie de “homo ludens”.
Fazendo referência ao jogo, Castilho (2010), por sua vez, diz que o jogo “quase sempre
é mediado por alguma relação humana, seja ela direta, ou seja, um contato entre pessoas, ou
indireta, um contato pessoas-objetos – como acontece com o auxílio de um computador – ou
ainda com o auxílio de uma plataforma de videogame” (p. 51).
Com base nos ensinamentos de Huizinga (2001), Castilho (2010) afirma que o jogo
surge da cultura e se desenvolve concomitantemente com esta: “Faz parte da cultura humana e
(...) o homem está sempre procurando uma maneira lúdica de expressar sua humanidade, em
busca da diminuição de suas angústias e de seus conflitos” (p. 52). E lança uma reflexão: “O
que é mero jogo não é sério?” (ibidem). Portanto, os jogadores podem, pela vivência virtual,
buscar o melhor aproveitamento, transformando o jogo numa ferramenta para o aprendizado,
com objetivos sérios e definidos.
Datner (1995) expõe que o jogo permeia toda a dimensão humana e torna difícil pensar
a existência humana desvencilhada desse contexto, uma vez que é essa ação que lhe confere a
possibilidade de estabelecer relações com outras pessoas e objetos. Nessas relações, sua
existência vai ganhando sentido e adquirindo significado, e o jogo trabalha para que mudanças
e transformações aconteçam.
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Refletindo um pouco mais sobre os afetamentos implicados no jogar, Motta (2002) nos
diz que Huizinga considera que o poder de fascinação do jogo não pode ser explicado por
análises biológicas e que é no fascínio que reside a característica primordial do jogo. Existe
algo de obscuro e que desperta conferindo sentido à ação. Conforme Huizinga (2001), também
o jogo parece encerrar em si um sentido. Ele adquire algum significado que ultrapassa os limites
da atividade física.
O jogo pode ser entendido também como um processo de cura, uma vez que, tendo
permissão para entrar no mundo do faz de conta, ainda que sem qualquer tipo de interpretação,
o sujeito pode elaborar ou resolver uma série de conflitos. A possibilidade de reexperienciar um
episódio que foi vivenciado como uma derrota, com um resultado diferente e bem-sucedido,
reduz o dano provocado e reflete positivamente na autoestima (Blatner & Blatner, 1988).
4.2 A imaginação no cenário psicodramático
Com a ação lúdica, buscam-se também o divertimento e o relaxamento, o que não deixa
de ser um ambiente de aprendizado. Considera-se que a imaginação dramática está por detrás
de toda aprendizagem humana. Tendo por base essa reflexão, podemos pensar que, pela
dramatização, o homem tem a possibilidade de resgatar a espontaneidade perdida. Todavia, para
tanto, necessita da imaginação e do acesso ao mundo da fantasia.
A cena psicodramática é sempre uma criação, não real, sendo lócus do mundo
imaginário, povoada por seres, objetos, fatos e histórias fantasiadas. Sua função é
sempre de significação, de dar sentido à existência. Dá e cria novos sentidos à história
individual (Rubini & Weeks, 2006, p. 5).
Ainda que a “imaginação” possa dispensar apresentações para entrar em cena,
esboçamos aqui noções acerca desse termo, destacando sua importância na condução do
processo criativo. A imaginação, como força criadora, permeia o desenvolvimento emocional,
psicológico e social do indivíduo, conduzindo-o para além da realidade dos fatos e
transcendendo o mundo real e concreto. Rubini e Weeks (2006) definem “a imaginação como
um processo de representação, modificação e encadeamento de imagens, sendo esta a expressão
da realidade interna do sujeito, não se subordinando ao controle da realidade externa” (p. 3). É
como se ele pudesse criar e fazer surgir o que não é real.
De acordo com Rubini e Weeks (2006), “o ser humano é um indivíduo por vir-a-ser,
uma vez que não nasce pronto. É apenas possibilidade” (p. 3). Sob esse prisma, a imaginação
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se configura como aquilo que permite ao ser significar as experiências a seu modo, criando
imagens das relações que estabelece com os outros e com o mundo, e tecendo fantasias.
O Psicodrama, como método, utiliza técnicas que exploram a imaginação e encorajam
o indivíduo para fazer escolhas, tomar novas decisões e criar. “O poder do Psicodrama consiste
no fato de ele unir os reinos da imaginação e a objetividade objetiva (sic), o desejo e a
capacidade realista, a fantasia onipotente e as limitações frustrantes da existência física”
(Blatner & Blatner, 1988, p. 96). A ideia dinâmica de livre criação pode fazer emergir aspectos
ainda desconhecidos, mas carregados de significado. Nas palavras de Motta (2002), “o
psicodrama é a expressão encenada do desejo e da imaginação” (p. 12).
À luz dessas discussões, a imaginação nos oferece a reversibilidade e quebra a
temporalidade – “não há passado, nem futuro, só o momento” (Rubini & Weeks, 2006, p. 6). E
é justamente a capacidade imaginativa que torna possível o psicodrama. Ela é mola propulsora
da ação psicodramática.
4.3 EncenAção: o uso da fantasia nos jogos digitais
Defrontamo-nos na atualidade com a emergência de uma tecnologia que nos permite
viajar de um mundo real a um mundo fictício e criado, onde o computador funciona como um
segundo eu e o indivíduo pode, nos jogos digitais, criar seu próprio mundo e desempenhar
papéis variados.
Na internet, ninguém sabe quem você é. Somos quem queremos ser... Somos quem
fingimos ser... De acordo com Turkle (1997), “Na internet ninguém sabe que tu és um cão (...)
O anonimato oferece às pessoas a oportunidade de expressarem múltiplas facetas da sua
personalidade, muitas vezes inexploradas, de brincar com sua identidade ou experimentar novas
identidades” (p. 16).
O anonimato estimula o uso de máscaras e disfarces, permitindo que a pessoa se sinta
protegida e experimente papéis e personagens diversos. Por se tratar de um espaço livre de
críticas, julgamentos ou censura, os jogos digitais incentivam a desinibição ao mesmo tempo
em que se caracterizam como uma espécie de esconde-esconde, onde o jogador assume e
experimenta diversas identificações, consistindo talvez numa tentativa de ocultação de aspectos
de sua própria pessoa. O jogador pode ser protagonista de sua própria história, escolhendo quem
quiser ser e viver do jeito que desejar, sem precisar se preocupar com as consequências. Ele se
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torna autor e ator de sua própria vida e assume a posição de criador e controlador das
experiências vividas na tela.
O ambiente virtual é um exemplo dramático de como a comunicação mediada pelo
computador contribui para a construção e a reconstrução da identidade. O “eu” que não tem
corpo consegue alcançar os mais diversos tipos de experiências, é fluido, múltiplo e livre e
propicia uma nova relação da pessoa com sua identidade.
Turkle (1997) coloca que, nos jogos de simulação, as pessoas descobrem-se a si mesmas
em novos cenários e reencontram-se consigo próprias. A vida no espaço virtual permite
descobrir sua própria natureza e o jogador tem a possibilidade de explorar a si próprio e
relembrar situações tensas ou conflituosas num cenário lúdico, onde pode examiná-las e
interpretá-las de uma nova maneira, dando-lhe uma nova resposta. O contato com personagens
criados permite ir de um mundo real a um mundo de faz de conta, onde o indivíduo pode se
confrontar consigo mesmo, com o que ele é ou com o que gostaria de ser ou ter sido. Toda essa
dinâmica pode impulsionar a construção de sua identidade, operando um encontro do indivíduo
com toda a sua singularidade.
De acordo com Turkle (1997), envolvidas por uma cultura da simulação, as pessoas se
sentem instigadas a substituir o real por representações da realidade. Nessa cultura da
simulação, o indivíduo tem toda a realidade de que necessita. As pessoas buscam experiências
que possam modificar suas maneiras de pensar e sentir, e os mundos de fantasia oferecem o
cenário adequado. A internet é um convite para o exercício da fantasia, sendo que as tecnologias
digitais têm um impacto sobre essa última. As telas dos computadores, segundo Turkle (1997),
são os novos panoramas para as nossas fantasias e ali projetamos nossas próprias ficções, das
quais somos produtores e realizadores ao mesmo tempo.
E o que o eu virtual pode dizer da pessoa? Como é esta relação entre experiências
virtuais e presenciais? O que o “fingir” pode revelar? Acerca das identidades online, os
jogadores podem perceber suas experiências no âmbito virtual, atentando para aspectos do real
que nem haviam se dado conta ou desconheciam. É como se as próprias máscaras tivessem um
poder revelador justamente na tentativa de ocultação. Como se pudesse descobrir algo que não
se quer saber. A máscara tem o poder de ocultar, mas também de revelar. Também, utilizando a
ideia de Goffman (2002), pode ser que, na tentativa de manipular seu comportamento, algo
pode escapar ao controle e, então, o ator/jogador se revela.
A identidade virtual possibilita que as pessoas penetrem num território repleto de
significados e implicações, que podem levar a autodescoberta e até mesmo a uma
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autotransformação. O jogador, nos jogos de simulação, experimenta uma existência paralela à
vida real e pode aproximar elementos do jogo com sua própria vida diária. Consideramos que,
em muitos casos, um personagem online é um paradoxo dela na vida real. Portanto, ele pode
recriar na tela tanto situações que remetam a ou se aproximem do seu cotidiano como também
podem modificá-las conforme seu desejo.
Através do que é vivenciado nos jogos digitais, o jogador pode transpor a aprendizagem
e fenômenos experienciados nas relações virtuais para sua vida real, refletindo sobre seu lugar
no mundo e sobre sua identidade, como também pode ressignificar sua história de vida. Para
Turkle (1997): “O ciberespaço torna possível à pessoa assumir identidades muito diferentes do
seu eu da vida real” (p. 305) e o jogador tem a possibilidade de explorar várias facetas suas. A
autora também argumenta que, na contemporaneidade, coexistem diferentes personas reais e
virtuais sem que nenhuma delas assuma uma posição centralizadora.
Os jogos digitais podem favorecer uma vivência emocional corretiva, ao permitir
reproduzir parte ou fragmentos da vida das pessoas, de modo que tais circunstâncias sejam
trabalhadas dentro de um contexto mais consciente e protetor. Por meio da ludicidade, o
indivíduo pode brincar de ser o que e quem quiser no ciberespaço, sem se ater às amarras que
o impedem de se expressar livremente e experimentar novas formas de estar no mundo. Pelo
lúdico, de acordo com Lemos (2015), ficamos muito tempo disputando em um outro mundo,
fora do espaço ou do tempo, jogando em um círculo mágico, que dá sustentação às ligações.
Nesse contexto, a imaginação assume uma posição de destaque, uma vez que a
criatividade não pode faltar na realidade virtual, povoada de fatos e imagens do real. Lanzarin
(1999) comenta que resta aos humanos buscar a satisfação de seus anseios, desejos e até ideais
identificatórios no sonho, e brincar com a possibilidade de ter um corpo sem órgãos, sem
marcas, liberto das determinações (de gênero, raça, classe). E questiona: “Não seria justamente
o anonimato, a acorporeidade das relações virtuais que possibilitam o jogo da fantasia?” (idem,
p. 3)
Sendo o jogo permeado pela imaginação, ao representar na tela personagens diversos e
desempenhar papéis imaginários, a pessoa pode dramatizar a sua própria vida. Sarturi (2012)
esclarece que “personagem vem da definição grega de máscara, que em Roma passou a ser
chamada de ‘persona’, que inicialmente não tinha relação direta com o ator, mas sim
correspondia ao papel dramático” (p. 37). Colocando seus personagens em ação, as pessoas
podem trazer comportamentos que desejam, experimentados na realidade virtual para sua vida
presencial. “Isto é, um jovem tímido pode experimentar ser, no jogo, extrovertido e alegre, e,
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com isso, aos poucos trazer esse comportamento para a vida presencial” (Fortim, 2005, p. 7).
Muitas pessoas trazem para a vida cotidiana a realidade vivenciada no ambiente virtual e
conseguem dar vazão a sentimentos e comportamentos bastante diferentes, conseguindo
ampliar a percepção de si mesmas, promovendo o encontro de personagens imaginários com os
personagens reais que habitam seu mundo interno.
A seguir, veremos como a fase de aquecimento nos jogos dramáticos encontra expressão
análoga nos jogos eletrônicos e se revela expressiva, direcionando o foco para o jogo e
colocando imagens em ação.
4.4 Aquecendo para entrar em cena
Para o Psicodrama, o jogo se inicia com um aquecimento, que consiste na etapa que
prepara o indivíduo para a ação, criando o clima do jogo, reduzindo as resistências e gerando
um campo relaxado. Moreno (1978) faz do binômio espontaneidade/criatividade o eixo central
de sua teoria e de sua forma de terapia de ação, e o aquecimento é conduzido de forma a alcançar
a manifestação desses elementos. Neste percurso, o processo de aquecimento provoca
estimulações que podem ser externas ou internas ao protagonista e que são provocativas para
aquecê-lo para um desempenho espontâneo e criativo de papéis. Os diferentes estímulos que
podem desencadear o aquecimento são os iniciadores, por meio dos quais se pretende, como o
próprio nome diz, iniciar a pessoa na ação que está por vir, podendo ser, como explica Bustos
(1985), corporais, emocionais e ideativos. Os iniciadores corporais são aqueles direcionados
aos movimentos do próprio corpo. Os emocionais focam mais na condução de sentimentos e
emoções, e os ideativos se referem às reconstruções mentais da cena dramatizada. As várias
técnicas de aquecimento desencadeiam a imaginação e ativam a sensibilidade da pessoa,
aquecendo-a para a ação. O que se pretende com o aquecimento é promover um campo relaxado
e a mobilização de afetos para facilitar a expressão das emoções.
Almeida (1998), por sua vez, cita sete tipos de iniciadores: 1- Físicos (andar, alongar,
gestos, danças etc.), 2- Intelectivos (mediante, por exemplo, ideias-título), 3- Temáticos
(envolvem temas específicos), 4- Sociorrelacionais (eventos significativos do âmbito social),
5- Psicoquímicos (alteração do estado vigil da consciência), 6- Fisiológicos (estimulações dos
sentidos) e 7- Mentais ou Psicológicos (imagens, fantasia, imaginação). Todos eles se
constituem como fator de aquecimento para a cena psicodramática. No caso deste estudo, não
nos aprofundaremos nesses tipos, considerando apenas o que é pertinente com a pesquisa em
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questão, sendo que o principal, e que chamamos a atenção, é para a importância do aquecimento
como preparação do indivíduo para ação.
Entrar no jogo sem estar aquecido é como o jogador de futebol entrar em campo sem ter
feito seu processo de aquecimento. Trata-se de uma etapa que o prepara para um bom
desempenho. O aquecimento é, portanto, imprescindível no psicodrama e pode ser estimulado
mediante várias técnicas psicodramáticas e atividades e mediadas pelo próprio jogo. Dentre as
diversas técnicas, destacamos desde o andar pelo espaço onde se desenrolará a ação, o alongar-
se e expressar-se corporalmente, até o uso de imagens, da fantasia e da imaginação, que se
constituem como fator de aquecimento para a cena psicodramática. Por meio dele, o
protagonista no palco psicodramático é estimulado a se desligar das tensões desnecessárias,
distanciando-se das cenas reais e voltando sua atenção para aspectos relevantes do aqui-e-agora,
para que possa estar preparado para trabalhar cenas conflituosas ou carregadas de significados
para ele.
Deslocando a questão do aquecimento também para os jogos digitais, ele pode vir a
exercer uma função importante e semelhante no jogo de papéis. Ele favorece a imaginação,
estimulando o jogador na representação de seus papéis e na criação do próprio cenário do jogo.
À medida que o jogador vai se deparando com o que o jogo lhe oferece em termos de escolhas
e comandos, vai permitindo fluir sua espontaneidade e liberando sua criatividade. São
oferecidos a ele categorias e itens diversos nos jogos, que podem exercer função instigante para
ele expandir sua potência de experimentação e de criação de avatares, atitudes e performances.
O jogador estará se aquecendo com as possibilidades de customização do seu avatar, com a
construção de casas, estilos de vida, profissão, histórias fantásticas e muito mais, estimulando
sua criatividade, fazendo com que ele se prepare para entrar em cena, assuma seu personagem
e jogue com seus papéis.
4.5 Apresentando os atores do jogo
4.5.1 O personagem no Psicodrama
Contro (2000) considera o personagem como uma metáfora. Bustos et al. (2005)
também revelam que “a criação de personagens permite que se introduza a metáfora, que amplia
o significado da ação em níveis que transcendem o princípio explícito” (p. 95). Pertinente a
essas concepções, Calvente (2002) afirma que personagem está ligado à fantasia, à imaginação
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e também ao ambiente, e o considera um híbrido ou um produto transicional. Para isso, ele toma
Pirandello9 (1994), autor teatral italiano, como ilustração, que define personagem como a
representação de uma verdade nascida da imaginação, que é a verdadeira realidade e coincide
com a vida. Turkle (1997) considera os personagens adotados como uma evidência significativa
da multiplicidade do self. Desse modo, defende a ideia de um self múltiplo e fluido e que se
constitui na interação. Os personagens, tanto no teatro como no Psicodrama, são transposições
da realidade, simulações e revelações, segundo esses autores.
Qual a relação com os papéis? Para Calvente (2002), “um mesmo personagem aparece
representando papéis diferentes, mas com uma coerência e lógica próprias do personagem” (p.
27). O autor acredita que personagem é mais estrutural que o papel. A origem dos personagens
encontra-se na fantasia e na imaginação, as quais, modeladas pelas relações, geram personagens
mais ou menos expressivos e úteis, que permanecem ou vão sendo abandonados. Descobrimos
personagens que nos acompanham por toda a vida e nem sabíamos, antigos e atuais,
personagens rejeitados ou temidos, personagens sonhados... Podem se originar em
identificações e depois passam a ter vida própria.
Quanto ao processo de formação na teoria psicodramática, distinguimos três fases:
personagem assumido (aquele meio imposto, racionalizado), personagem representado (veste-
se com roupas diversas conforme a situação e tem a possibilidade de respostas espontâneas) e
personagem criativo (quase se confunde com a pessoa, não é o que faz, mas faz o que é).
Desde esses parâmetros, Calvente (2002) considera que “o papel contém as
identificações e ambos estão contidos no personagem” (p. 39). Não há personagens bons e
maus. Todos eles são a melhor resposta possível a determinadas circunstâncias. No psicodrama,
seja no âmbito individual ou grupal, por exemplo, o indivíduo pode criar um personagem
através de uma sensação ou sentimento, e o potencial metafórico, com seus papéis e
identificações, conduz a cenas que promovem aprendizagem e ressignificação. À medida que o
indivíduo se apropria dos personagens, coloca-os a seu serviço ou os modifica. Essas cenas
remontam histórias, revelam aspectos desejados e ansiados, e descortinam medos e conflitos.
O indivíduo pode se sentir profundamente representado pelo personagem, sendo possível,
portanto, trabalhar com situações temidas e encontrar cenas que fizeram surgir as dificuldades
e inibições.
9 Pirandello, L. (1994). Seis personajes em busca de autor. Ed. Nuevo Siglo S.A.
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Parece haver, segundo Calvente (2002), uma relação entre papéis, identificações,
personagens e identidade, e o personagem passa a ocupar um lugar importante na construção
da identidade do indivíduo. Nessa perspectiva, Bustos et al. (2005) desenvolvem o conceito de
papel gerador de identidade, colocando que todas as pessoas têm um papel central e
predominante que impregna os demais e auxilia a cimentar a identidade.
4.5.2 O avatar nos role-playing games digitais
No contexto do jogo, os personagens virtuais são chamados de avatares e exercem
função semelhante ao personagem do psicodrama. “Os avatares são imagens gráficas,
geralmente em três D que, nos jogos eletrônicos, representam pessoas cuja criação é feita
através da escolha de roupas, sexo e características físicas” (Mota, Thomaz, & Queiroz e Melo,
2010, p. 3). A partir da concepção de avatar, entendemos que essa figura é a própria encarnação
do jogador no jogo, mas pode ser também algo independente que nem se assemelha ao jogador.
A questão em torno do personagem e do avatar encontra-se também interligada com o
processo identitário. A identidade é um processo em andamento, constantemente construída e
reconstruída; um devir. É produção sempre inacabada; é acontecer. No jogo eletrônico,
encontram-se articulados ator, personagem e jogador em meio a um enredo criado pelo criador
do jogo e assumido por aqueles que se dispõem a jogar.
O intercâmbio de personagens se configura como uma função significativa na
constituição da identidade, uma vez que o jogo é um ambiente de aprendizado e estamos sempre
em construção. Assim, o indivíduo pode ser muito mais do que os personagens que o aprisionam
em determinado momento de sua vida, e a articulação dos personagens entre si permite o acesso
a outros “eus”, conduzindo-o ao encontro consigo mesmo. Essa plasticidade definida pelo vir-
a-ser caracteriza a própria vida, pois o ser humano é uma porta abrindo-se em mais saídas. Esse
movimento consiste numa constante transformação e, consequentemente, implica algum
aprendizado.
Podemos manipular os avatares como se fossem nós mesmos, brincar com os
personagens e experimentar ideais identitários. Conforme diz Batista (2010), “Da mesma forma
que o jogador interfere na realidade do jogo, o jogo igualmente interfere na realidade do
jogador, que passa a repensar suas próprias estratégias de vida” (p. 72). Portanto, há
repercussões na vida real do jogador à medida que ele incorpora um personagem e pode levar
para o jogo sua própria história de vida e ao mesmo tempo tem a possibilidade de aprender algo
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em troca. Na visão do autor, “o jogo seria uma via de mão dupla” (ibidem). Talvez, possamos
falar “eu estou no jogo assim como o jogo está em mim”. Podemos pensar que os jogos
eletrônicos não são apenas “apropriados” pelos humanos como também agem sobre eles. Enfim,
as tecnologias não deixam de ser sujeitos da ação.
4.6 E onde é o palco do jogo?
Tudo é real porque tudo é inventado.
Guimarães Rosa
O palco do jogo é onde a imaginação se faz presente, onde tudo é possível. É lá, é aqui,
é no mundo real, é no espaço virtual, basta que as imagens sejam criadas e busquem sentido
através da realização simbólica das fantasias. Essa realização pode até mesmo ir além da
concretização imaginária, podendo a pessoa estendê-la ao contexto do aqui-e-agora da sua
realidade.
Motta (1995b) nos faz refletir sobre onde nasce a realidade virtual e questiona: “Será
esta a fonte da espontaneidade-criatividade, ou o contrário? Ou serão ambas filhas do
imaginário?” (p. 133) Quantos níveis de realidade existem? Não será a realidade, para o homem,
uma verdade relativa? O ator traz para o palco ações que modificam a visão do real; é a
realidade-verdade ou realidade-ilusão? Daí, onde é o palco do jogo?
A concepção de Motta (1995b) lança um olhar para a potencialidade do jogo de delinear
histórias repletas de impossibilidades possíveis. “O jogo, como papel de fantasia, desenvolvido
na realidade suplementar, reúne o par dialético realidade-ilusão, o faz de conta que possibilita
às personagens recontarem seus dramas” (Motta, 1995b, p. 136). Indo mais além nessas
considerações, a autora explica que “o lúdico circula entre vários níveis de realidade-verdade,
ora mais próximo da realidade-verdade social, ora mais próximo da realidade-verdade virtual,
mas a criação no jogo é atributo da realidade-suplementar” (idem, p. 138). Não estarão,
portanto, os jogos eletrônicos implicados numa realidade que “suplementa” a vida? Será que a
realidade virtual também não permite, enfim, que se instale uma realidade suplementar? A
possiblidade de experimentar papéis sonhados e desejados ou rever seus próprios papéis atuais
conduz o jogador a entrar numa outra realidade, uma realidade que pode ser criada, construída
e revista.
Através do que é imaginado, o jogador/ator já faz uma ponte com o real, trazendo para
perto de si uma realidade, ainda que criada, mas que é real porque foi pensada. Nesse processo,
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o lúdico se faz presente, une a realidade-verdade e a realidade-ilusão; nisso consiste a
transformação do ser. “Para jogar é imprescindível acreditar na mentira-verdade e na realidade-
ilusão (o faz de conta). Quando o homem perde esta crença está impedido para o movimento
transformador” (Motta, 1995b, p. 140).
À luz dessas considerações, percebemos que é a possibilidade de ser provocado a
penetrar na brecha entre fantasia e realidade somadas à plasticidade e movimento entre os dois
que permite que mudanças emerjam, que novas possibilidades de ação se manifestem. Motta
(1995b) chama de mentira lúdica o faz de conta, que consiste numa verdade que oferece o novo,
no qual o desconhecido renova o conhecido. Imaginar muitas mentiras faz com que muitos
personagens possam ser criados e cenas possam ser dramatizadas num palco real-virtual,
verdade-ilusão.
No jogo, provocado pelo encanto do lúdico, o jogador reescreve suas possibilidades, nas
quais vários níveis de realidade-verdade ou realidade-ilusão se reúnem nesse palco do faz de
conta, sem se anularem ou se confundirem. Ao voltarem para o contexto da realidade-verdade,
podem ser capazes de avaliar quais fronteiras foram testadas ou rompidas pelo jogo e perceber
a bagagem que trouxeram dessa viagem (Motta, 1995b). Pela condução do
psicodramatista/diretor e do uso das técnicas psicodramáticas, o participante apresenta seu
espetáculo no palco psicodramático, explorando papéis diversos, experimentando personagens
criados por ele e ampliando sua autopercepção.
Com inspiração nas observações feitas, assim como o palco psicodramático definido por
Moreno (1978) investe plenamente no poder de uma outra realidade calcada na fantasia, o
ambiente virtual oferece as mesmas possibilidades, favorecendo o role-playing e a
experimentação da fantasia. Tanto o mundo real como o virtual podem exercer a função de um
palco, onde se buscam a afirmação pessoal e social e a descoberta de si e do outro. É nesse
palco de imaginação que se desenrola o jogo.
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5 No palco ou nas telas: simulando ou vivendo um drama?
5.1 O jogo no Psicodrama
O jogo assume uma significativa importância na teoria da “espontaneidade-
criatividade”, referência para o Psicodrama. Nesse processo, o lúdico promove a imaginação,
favorecendo o desdobramento criativo das ações humanas. Motta (1995a) comenta sua atração
pelos jogos e “pelo seu poder de levar as pessoas ao alcance da liberdade do lúdico, da criação
e da fantasia no contexto do teatro moreniano” (p. 7). Para Moreno (1993), ser espontâneo, criar
e viver estão interligados.
Historicamente o psicodrama se origina dos princípios do jogo. A brincadeira sempre
existiu, é mais velha que a humanidade, acompanhou a vida do organismo vivo como
uma manifestação de exuberância, nível precursor de seu crescimento e
desenvolvimento (Moreno, 1993, p. 106).
Merece destaque a perspectiva de Motta (1995a), que diz que “o jogo, portanto, não é
sinônimo de brincar ou de lúdico” (p. 10). Para ela, o lúdico se remete a uma brincadeira sem
compromisso de regras, vindo a ser uma qualidade que se refere a jogo, sendo que o jogo já
pressupõe uma ação que visa a um objetivo e encontra-se pautado num contexto onde regras
estão presentes. “Jogo é sinônimo de divertimento, de brincadeira que segue algumas regras.
Sem o aspecto lúdico, não há jogo embora este não se oponha à seriedade” (Castanho, 1995, p.
25). E prossegue: “Jogar é uma interrupção temporária da vida real para se entrar na esfera do
faz de conta” (ibidem). O role-playing, de acordo com Motta (2002), abre para o homem uma
nova dimensão da existência, um lugar onde o homem pode ser livre. Pode, portanto, ser quem
ele quiser. Moreno dizia que representar é experimentar a vida em suas múltiplas possibilidades.
Isso envolve o comportamento realista em situações imaginárias.
Sendo o jogo um canal de manifestação de emoções e sentimentos, traz consigo uma
significação e atribui um sentido à ação. A possibilidade de transitar entre um mundo real e um
mundo da imaginação permite o brincar com a fantasia sem, todavia, se desvencilhar da
realidade. O homem, assim, tem a chance de elaborar anseios e fantasias e obter respostas para
seus problemas ou buscar novas formas de lidar com os desafios que encontra na vida.
No ambiente psicodramático, o lúdico estimula os participantes/atores a lançar mão da
sua espontaneidade-criatividade, sendo-lhes não só permitido, como possível, explorar novas
possibilidades de ser. O jogo no psicodrama confere sentido à experimentação de papéis, e o
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lúdico é o canal de manifestação desses personagens que emergem no contexto do “como se”.
Pela condução do psicodramatista/diretor e do uso das técnicas psicodramáticas, o participante
é provocado a ousar, tudo numa atmosfera protegida do faz de conta.
Motta (2002), por sua vez, fez uma pesquisa acerca do conceito de jogos no psicodrama,
buscando repensar formulações e ideias que permeiam esse tema. Nesse intuito, a autora
encontra diferentes definições, algumas que consideram o jogo como dramatização e a de
Monteiro (1979, p. 40), que entende que “dramatização é o jogo propriamente dito em
realização”. Na perspectiva de Alves (1995), o jogo é um ato de exteriorização, no qual
experimentar, liberar e criar se fazem possíveis. Tem-se a possibilidade de colocar à prova o
que foi imaginado e sonhado.
No entanto, Motta (2002) esclarece que não há conceitos definidos ou fechados acerca
do que vem a ser o jogo no psicodrama. Visões e opiniões são trazidas à tona por pesquisadores
psicodramatistas, que são conduzidos a formar seu próprio conceito de jogo no psicodrama.
Esclarecermos que, neste estudo, nos remetemos aos jogos dramáticos como sendo um
tipo de jogo do Psicodrama, com características próprias, com o objetivo de se promoverem o
lúdico e a imaginação, trabalhando para que mudanças e transformações aconteçam, geralmente
ancoradas na realidade suplementar, que abordaremos no tópico seguinte.
5.2 Os jogos dramáticos: palco para a realidade suplementar
O jogo dramático é um recurso muito valioso do psicodrama, possibilitando, através do
faz de conta, o contato da pessoa com seus sentimentos, a qual pode aprender a canalizar suas
emoções de maneira mais adequada. Pela improvisação, reproduzem-se situações vividas ou
imaginadas e vislumbram-se, com clareza, os caminhos que terá pela frente.
Penetrar no campo dos jogos psicodramáticos sinaliza para a necessidade de discutirmos
questões específicas de sua dinâmica. No intuito de pontuar e esclarecer alguns pontos que
permeiam a tônica dos jogos dramáticos, Rodrigues (1995) elenca certas diferenças entre estes
e dramatização. O jogo dramático se rege por um acordo e vigência (todos precisam saber que
vão jogar, o que e como vão jogar, bem como o início e o término do jogo). Além disso, é
necessário que as regras estejam bem esclarecidas e definidas. A dramatização, ao contrário,
não é pautada em regras; constitui-se como uma das etapas de uma sessão de Psicodrama, vindo
a acontecer após os aquecimento inespecífico e específico.
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A dramatização é marcada geralmente pela existência de uma plateia, ao passo que no
jogo todas as pessoas participam. Outra diferença consiste no fato de que na primeira o
protagonista é quem monta a cena enquanto no jogo todos organizam a cena, sendo que nenhum
elemento é destacado para essa função. Ainda que ambos se configuram em um faz de conta e
mobilizam papéis psicodramáticos, a dramatização tem em sua base a existência de um conflito,
e uma história vai sendo contada enquanto se dramatiza. Já no jogo, o que predomina é a
experimentação em um campo relaxado e o enredo vai sendo criado durante o processo do
próprio jogo. Entretanto, é essencial que o psicodramatista mantenha o foco claramente
definido.
Levando adiante essas reflexões, segundo Motta (2002), nesse tipo de jogo, a criação
está ancorada no lúdico, mas a autora também difere jogo dramático de dramatização. Para ela,
os dois são recursos essenciais na metodologia psicodramática, mas não devem ser confundidos.
Nem tudo que acontece no contexto dramático é dramatização e nem todo jogo é dramático,
sendo que este pode ser precedido por outros jogos, como jogos de percepção, jogos de
iniciação e jogos de improviso, os quais não são alvo deste estudo, sendo apenas citados. Esses
tipos de jogos são diferentes de jogo dramáticos, mas podem ser usados conforme a finalidade
do psicodramatista.
Outras considerações merecem ser destacadas. Jogo é diferente de jogo dramático.
Motta (2002) acredita que “jogo dramático é somente um tipo de jogo que ocorre no trabalho
psicodramático” (p. 43). De acordo com Datner (1995), os jogos dramáticos apresentam
características próprias e pertencem à metodologia psicodramática, fazendo parte do Projeto
Socioeconômico de J. L. Moreno. Na ótica de Castanho (1990), o jogo dramático envolve os
participantes emocionalmente na atividade de expressar as criações de seu mundo interno. A
autora afirma que jogo dramático é aquele que tem dramaticidade, portanto, que expressa algum
conflito. Continuando o diálogo entre as psicodramatistas, conforme Motta (2002), é aquele em
que ocorre uma transformação do ator, do homem criador que reescreve o script de sua cena.
Castanho (1990) também afirma que “o jogo dramático não é apenas aquele que é dramatizado”
(p. 314). Desse modo, uma brincadeira infantil de teatro não pode ser considerada um jogo
dramático ainda que haja dramatização e envolva a fantasia. Para ser jogo dramático, é
necessário, além de dramatização, mobilizar os participantes de forma que eles vivenciem algo
que repercuta dentro deles, que os comova; deve envolvê-los emocionalmente. E é a
dramaticidade que permite a aproximação terapêutica do conflito.
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No jogo, é possível viver quase tudo. Personagens são criados, limitações são
compensadas e impasses são resolvidos. A partir de iniciadores como máscaras, música, objetos
intermediários e outros, cada participante define seu personagem, e surge entre eles uma
interação. Segundo Castanho (1995), “o personagem criado guarda uma relação metafórica com
algum aspecto da dinâmica interna do indivíduo” (p. 34).
O jogo se constitui num ambiente lúdico povoado de metáforas que enriquecem o
mundo interno da pessoa ao provocar reflexões e possibilitar que encontre saídas para situações
semelhantes à que vive. De acordo com Conceição (2012), a pessoa pode transpor o que viveu
para sua realidade e, assim, encontrar respostas para seus conflitos ou dúvidas.
Neste campo de reflexões, Datner (1995) expressa que “o jogo dramático tem como
núcleo vivenciar o jogo assumindo personagens em permanente caráter lúdico” (p. 86). São
levadas ao cenário dramático as dinâmicas interpessoais, favorecendo a expressão de
sentimentos, emoções e sensações. Os participantes são estimulados a adotar novas atitudes,
outros movimentos, resgatando o arriscar-se, o ousar, na possibilidade de experimentar o novo.
Articulando um diálogo entre psicodramatistas, Mazzotta (1995) manifesta sua
concepção de que “o jogo dramático traz consigo uma licença ou permissão para que os
participantes voltem sua atenção para um outro (personagem) que, ilusoriamente, não tem o
compromisso de ser coerente com aquilo que definem como sendo eles mesmos” (p. 16). Ainda
conforme a autora “o jogo dramático caracteriza-se pelo caráter simbólico das personagens
constituídas no drama” (idem, p. 20). Cunha (1995), outra psicodramatista, nos diz que o que
se quer é “uma aproximação com o não dito, um clima de permissividade, a entrada no outro
drama pela porta do brincar, do jogo livre” (p. 60). Nesse sentido, Datner (1995) completa que
“a dramaticidade garante a assimilação e a apropriação da realidade através do imaginário e da
fantasia” (p. 87).
Em consonância com essas ideias, Motta (2002) declara que “todo jogo necessita de um
palco lúdico” (p. 16). Assim, o contexto que favorece o “como se”, o faz de conta é a realidade
suplementar, no qual todos os participantes assumem seus personagens jogadores e entram no
“como se”, no contexto de uma realidade calcada na imaginação e na criatividade.
No Psicodrama, a realidade suplementar consiste numa experiência que trabalha as
fantasias e os desejos, numa atmosfera ao mesmo tempo permissiva e acolhedora, permitindo à
pessoa vivenciar cenas que exteriorizam os personagens do seu mundo imaginário, desde
personagens heroicos a maquiavélicos. Diante de situações imaginárias semelhantes a situações
reais, a pessoa vivencia o papel num ambiente mais protegido e acolhedor. O “como se” amplia
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o potencial criativo e torna a realidade mais flexível. Desse modo, o indivíduo pode jogar com
todas as possibilidades, experimentando novas formas de estar no mundo. Drummond,
Boucinhas e Bidart-Novaes (2012), ao mencionarem a Teoria dos Papéis de Moreno (que será
abordada no próximo tópico), falam sobre o caráter relacional de nosso estar no mundo, nosso
vínculo com os objetos e demais atores da cena. Declaram ainda que o indivíduo pode
descristalizar cenas que se repetem com frequência em sua vida, descongelando-as e
remoldando-as. O indivíduo pode, portanto, escrever o roteiro e dirigir as cenas de sua própria
vida.
Guiados pelo diálogo entre as autoras, dentre outros psicodramatistas, percebemos que
todos os participantes são atores e que o jogo ao qual se referem é pautado pela espontaneidade
e pela criatividade, num ambiente que permite experienciar o “como se” da cena dramática.
Motta (2002) diz que o jogo cria a realidade suplementar e é criado nela, possibilitando ao
jogador viver a imaginação da realidade (p. 83).
Para Soliani (1998), “o valor que têm a realidade e a fantasia no psicodrama depende da
quantidade de realidade que pode ser dada à fantasia e da quantidade de fantasia que pode ser
emprestada à realidade no palco psicodramático” (p. 58). Podemos dizer, segundo a autora, que
“realizar psicodramaticamente é encarnar no palco, na trajetória entre fantasia e realidade,
qualquer papel imaginado, seja ele real ou não” (idem, p. 60).
E o psicodrama oferece uma experiência nova e ampliada da realidade. É o role-playing
que será o produtor dessa realidade a mais atrelada às percepções do mundo de um indivíduo.
Conforme afirma Soliani (1998): “Enfim, todas as técnicas psicodramáticas nos conduzem a
essa possibilidade existencial de viver a realidade suplementar, que é a realidade do psicodrama,
a realidade da representação dramática” (p. 62).
No palco psicodramático, o protagonista desempenha seu drama, conflitos ou
dificuldades. “É em torno do protagonista que a dramatização se centraliza. É ele quem traz o
tema para dramatizar e ao mesmo tempo o desempenha. É, portanto, autor e ator” (Monteiro,
1998, p. 14). É o palco da vida, onde pequenas vinhetas de seus mundos privados emergem. O
que é revelado no palco pode ser uma metáfora da realidade e, como tal, pode ser reconhecida,
ampliada e explorada.
Desse modo, a liberdade contida no “ser quem ele é” pode fazer com que ele se permita,
se descubra e se encontre, seja com partes dele, seja com ele por inteiro, envolvendo a
autorrevelação. No psicodrama, também, os papéis vão sendo redramatizados e o indivíduo
consegue ampliar sua vivência e atribuir novos significados a ela.
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A história, no cenário psicodramático, é o que o protagonista traz e evolui conforme o
que acontece no palco por intermédio das técnicas psicodramáticas usadas pelo
psicodramatista/diretor. O protagonista pode ter uma ideia do que fazer, mas não sabe como
serão vividas as cenas. Ele constrói o contexto dramático e dá as coordenadas das cenas que
serão levadas para o palco. O diretor no psicodrama é aquele que dirige a ação cênica,
conduzindo o protagonista e fazendo uso das técnicas psicodramáticas. Pode ser um
psicoterapeuta, um professor, um psiquiatra, contanto que tenha formação em psicodrama para
fazer uso adequado de suas ferramentas. E no caso do RPG, atrevemo-nos a pensar: o mestre
não seria o diretor? Mas isso é assunto para outra história...
Um protagonista tem a liberdade de se expressar no palco sem ser constrangido por
outras pessoas. A ação dramática no palco permite a máxima identificação do protagonista com
aspectos de sua personalidade e lhe são oferecidas escolhas o tempo todo.
No palco psicodramático tudo e qualquer coisa é possível. O tempo pode fluir em
qualquer direção ou velocidade. Pode ser comprimido ou interrompido a qualquer
momento. O espaço pode ser diminuído ou ampliado e pode ser ocupado com qualquer
coisa, desde a própria imaginação do protagonista como ele percebe o mundo externo.
Pela exploração de metáforas, feita pelo diretor, qualquer coisa pode representar
qualquer outra coisa e, pelo processo denominado ‘concretização’, ideias ou imagens
podem ser colocadas em dimensões espaciais na forma de objetos ou pessoas no palco
(Farmer, 2004, p. 31).
“Trata-se de um mundo que pode nunca ter sido e nunca pode vir a ser; no entanto, é
absolutamente real. Ele tem o poder de redenção” (Moreno & Rützel, 2000, p. 30). A cada
tentativa e erro, o desempenho vai se enriquecendo, ampliando o autoconhecimento e
oferecendo possiblidades de aprendizado.
E, assim, cenas se desenrolam. O ator se lança rumo à experimentação de papéis e se
mostra tal como é ou está, lá no porão de suas emoções. Por intermédio do seu personagem,
pode se emocionar, sentir alegria, tristeza ou raiva, ficar tenso ou relaxado; pode se encontrar e
se distanciar do que é. Ele se mostra e se esconde, mas se expressa. Expressa quem é e para o
que veio. Mas, para tanto, precisa contar com sua imaginação e criatividade à medida que entra
e sai de cena, que propõe novas representações e revelações.
5.3 O jogo nas telas: o universo da simulação
Os jogos eletrônicos, na visão de Falcão (2011), são dispositivos que envolvem a
interatividade e, através do desenrolar do jogo, podem desencadear processos de produção de
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significado. Autores como Pereira, Neca, Facchini, Lima e Freitas (2012) informam que
“videogames tratam de aventuras com protagonistas que exploram ambientes desconhecidos,
desvelam tramas, estabelecem relações e crescem à medida que o jogo progride” (p. 82).
O termo MUDs significa Multi-user dungeons and dragons e refere-se a um ambiente
virtual – um jogo de aventura em que o usuário cria personagens num espaço interativo e
compartilhado. Os MUDs são ancestrais dos jogos de RPG (Role Playing Game) e são também
uma realidade virtual, permitindo criação de mundos e a experimentação de papéis, onde não
apenas se joga, mas se vive. “Viver o MUD como uma realidade e representá-la na vida
cotidiana pode dar vazão a sentimentos, personagens e comportamentos muito diferentes de sua
vida presencial” (Fortim, 2005, p. 7).
Na vida online, o jogador tem a possibilidade de criar muitos personagens e participar
de muitos jogos diferentes. O eu é, dessa maneira, multiplicado sem limites. Eles possuem
potencialidades terapêuticas, que facilitam projeções de fantasias, porque são mais que um jogo,
fazendo uma ponte entre o imaginário e o real. Os MUDs podem, portanto, exercer a função de
um complemento psicológico da vida real (Turkle, 1997).
Os MUDs permitem ao jogador sempre começar do zero conforme sua vontade. Por
isso, à medida que muda sua personagem, o jogador é capaz de sentir-se renascer. Cada uma
das identidades virtuais assumidas ou construídas constitui facetas de si próprio. A pessoa tem
a oportunidade de falar de suas dificuldades e elaborar problemas que fazem parte de sua vida
real num espaço lúdico, facilitando a autodescoberta e podendo reinventar a si mesma. Portanto,
os MUDs funcionam como uma ferramenta de exploração e elaboração de conflitos.
Os mundos virtuais permitem o acesso a experiências que dificilmente poderíamos
vivenciar na vida real, além de poderem ser um espaço para exprimir aspectos de sua pessoa
que se encontram inibidos na sua vida real. Permitem simulações e a possibilidade de estar no
comando de sua vida. Não que na vida real não estejam; apenas, podem simular diferentes
escolhas e saídas.
Para entrar em cena neste estudo, consideramos importante refletir um pouco sobre
jogos de simulação e RPGs. Pelo entendimento que construí ao longo da pesquisa bibliográfica,
os dois possuem características bastante semelhantes e acabam por mesclar peculiaridades. Os
jogos de simulação oferecem ao jogador a possibilidade de experimentar uma existência
paralela à vida real, preenchendo-a com imaginação. O jogador pode criar novos mundos sem,
contudo, ter um roteiro ou um final predeterminado e ter a sensação de experimentar uma
realidade que pode ser construída e controlada. Tal fato pode ter implicações na vida real do
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jogador, à medida que ele é livre para fazer sua escolha e vislumbrar novas maneiras de ser,
ressignificando aspectos de sua história e desconstruindo padrões de comportamentos nocivos
que pode ter consigo ou para com sua vida. No caso dos RPGs, o personagem é fictício ou
mitológico, pode possuir poderes e executar missões. Em geral, constitui-se como um mundo
mais fantasioso e baseado num universo medieval, com tramas menos fundadas na realidade.
Muitos jovens não fazem distinções entre esses dois tipos de jogos e consideram os jogos de
simulação uma versão dos RPGs, nos quais personagens são simulados, papéis são
desempenhados e situações são criadas, o que ocorre tanto no jogo de simulação como no RPG.
No ciberespaço, ao representar na tela personagens diversos e, portanto, desempenhando
papéis imaginários, o jogador pode estar dramatizando aspectos de sua própria vida, lançando
um novo olhar para suas atitudes e recriando-se enquanto pessoa. Corrêa (2013) relata a
vivência de seu paciente:
Ao representar na tela personagens heroicos, lutadores e dragões gigantes, M.
dramatizava a própria vida, desempenhando papéis imaginários que não podiam ser
atuados em papéis sociais efetivos (...). Será que poderíamos pensar, nesse caso, em
papéis dramáticos virtuais? Ou seja, será que, na medida em que catalisa emoções e
vivências de seus participantes, o espaço virtual potencializa a dramatização destas,
os conflitos e as relações que delas fazem parte? (p. 101)
Esses papéis desempenhados se desenvolvem mais na esfera da imaginação do que na
realidade e o jogo digital representa um palco no qual a pessoa desempenha vários papéis
dramáticos virtuais de que está precisando. Essa possibilidade amplia a potência dramática do
jogo, aproximando-se de uma “realidade suplementar: um universo para além da realidade
objetiva, constituído pela subjetividade, pelos desejos e pelas fantasias que se articulam,
obviamente às propriedades virtuais do jogo” (Corrêa, 2013, p. 101). A autora reflete:
Essa proposição é absurda? Se quando assistimos a um filme podemos nos modificar
(ainda que provisoriamente) ou compreender algo que não compreendíamos, porque
não haveria essa possibilidade com o jogo eletrônico? Diferentemente do palco
psicodramático, com suas qualidades específicas que propiciam o desempenho de
papéis psicodramáticos, o cenário virtual acena para uma perspectiva que pode ou não
estimular certa intensidade dramática, aproximando-se do que denominamos
realidade suplementar (Corrêa, 2013, p. 101).
Reportamo-nos à ampliação da vivência real porque ela suaviza os limites que a
realidade impõe, propiciando a experimentação e a realização, ainda que simbólica. O cenário
oferece a junção entre fantasia e realidade e permite que personagens fictícios e da alucinação
sejam representados, como o diabo, princesas e deuses.
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Nesse palco virtual, o jogo e o “como se” comandam as emoções do sujeito, dando-lhe
significado e resgatando sentimentos, através do uso da imaginação. O usuário/jogador é um
ator que interage com a interface o tempo todo quando está online. No universo virtual, por
meio da construção e customização do seu avatar, ele encarna papéis imaginários ou não e
representa no palco virtual extensões do seu eu.
A cada jogada, ele se depara com a criação de um mundo diferente. Tal como no teatro
cênico, a cada ato, cenas diferentes se desenrolam, novas atuações e desempenhos diversos são
apresentados. O mundo dos jogos digitais se revela como um mar de imagens para a pessoa se
jogar, mergulhar na fantasia e na imaginação, criar um espetáculo para o diálogo entre as várias
facetas do seu eu.
Estar no mundo virtual potencializa a reinvenção de si mesmo, uma vez que o jogador
é protagonista e livre para ser o que é, sem roteiro determinado, controlando sua própria história
que se desenrola nas cenas que surgem. É criador do cenário e do seu script, e domina quando
entra e quando sai de cena e quando o espetáculo termina. Caso não esteja satisfeito com o
desempenho de seu avatar, ele pode transformá-lo, adquirindo uma nova performance.
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6 Não humanos também jogam
O Psicodrama, de forma correlata à TAR, demonstra interesse por atores não humanos,
uma vez que há a possibilidade de se trabalhar com objetos, máscaras e bonecos, que adquirem
importância e são denominados objetos intermediários. Tanto nos jogos dramáticos do
Psicodrama como nos jogos eletrônicos, os elementos não humanos são valorizados como
atores, uma vez que fazem a mediação na dinâmica do jogo. Para a Teoria Ator-Rede, não
humanos são tudo aquilo que, não sendo humano, contribui para constituir a nossa humanidade,
não se restringindo às técnicas ou aos objetos. Melhor seria chamá-los de atores híbridos, pois
se constituem de uma mescla de engenho humano e qualidades da matéria. No Psicodrama, são
considerados objetos intermediários porque funcionam como facilitadores do contato entre duas
ou mais pessoas, sendo, então, a relação com o outro intermediada pelo objeto. Mediante os
objetos intermediários, é possível a expressão de emoções e sentimentos, sendo que eles
exercem um papel de complementaridade, adquirem voz e podem ser corporificados. Desse
modo, almofadas, vassouras, canetas e qualquer outro objeto entram em cena no contexto
psicodramático, lançando um foco de luz sobre situações e conflitos, dividindo a cena com o
protagonista e assumindo também um papel de ator, ainda que em situação de
complementaridade, numa rede de conexões.
No que se refere à TAR, Tsallis et al. (2006) declaram que os objetos são não humanos
que enriquecem nossas relações e a sociedade é formada por redes heterogêneas, sendo que
quase todas as nossas interações com outras pessoas são mediadas por objetos. Afinal, os
objetos funcionam como os intermediários possíveis no estabelecimento dessa relação. Estamos
rodeados por eles. Estamos conectados, em rede, pessoas e objetos, numa posição simétrica,
fazendo alianças. Latour (2012a), por sua vez, utiliza o termo mediadores, sendo para a Teoria
Ator-Rede este melhor empregado do que o termo intermediário. “Os mediadores transformam,
traduzem, distorcem e modificam o significado ou os elementos que supostamente veiculam”
(idem, p. 65). Ao contrário, assim ele define intermediário: “Um intermediário, em meu léxico,
é aquilo que transporta significado ou força sem transformá-los: definir o que entra já define o
que sai” (ibidem). Entendemos, portanto, que, na Teoria Ator-Rede, eles são considerados
mediadores quando fazem diferença nas redes em que atuam; ou seja, quando exercem alguma
ação. Quando são chamados intermediários, figuram num sentido oposto ao que lhes é atribuído
no Psicodrama; isto é, não fazem diferença na cena. No entanto, salientamos que essa questão
não consiste em ponto para nossa discussão. Apenas destacamos o modo de o autor citado
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perceber o termo intermediário, oferecendo um novo termo, mediadores. O que merece
destaque aqui é a importância dos não humanos na relação estabelecida com os humanos,
gerando aprendizado e efeitos.
Castanho (1995) esclarece que nos jogos dramáticos utilizam-se objetos quando o tema
que se está trabalhando suscita emoções que bloqueiam o participante ou deixam o campo muito
tenso e, pela relação mediada pelo objeto, o clima pode ficar mais leve e permissivo, permitindo
um contato mais verdadeiro do participante com suas emoções. No campo mais relaxado, ele
consegue enxergar com mais clareza, porque a espontaneidade está alta e, assim, consegue fazer
melhores escolhas, buscar suas próprias respostas e ver novas saídas.
De acordo com Drummond et al. (2012), o objeto intermediário vem sendo utilizado em
situações quando a dificuldade maior é a comunicação. Quaisquer objetos, como, por exemplo,
papel, revistas, bexiga ou massa de modelar, podem ser facilitadores dessa comunicação, na
qual o participante é estimulado a expressar-se por intermédio dele e o objetivo consiste em
promover um distanciamento que relaxa, mas enriquece as relações.
Parece-me impossível não perceber a parceria dos não humanos no trabalho
psicodramático. Eles estão ali mediando a interação entre as pessoas e, muitas vezes,
concretizando relações e emoções, seja por meio do próprio palco demarcado, da cadeira, das
almofadas, das máscaras e demais acessórios utilizados. Ganham vida, participam. São atores,
actantes e modificam a rede.
Nos jogos digitais, os não humanos estão em ação, jogando, provocando os humanos.
Na interface, os avatares customizados convocam o jogador, produzem efeitos nos humanos,
assim como o contrário. Essa relação, por isso, vai sendo modificada, afetada, conduzindo a
uma vivência de parceria, fusões e significações.
No universo dos jogos eletrônicos, utilizando, portanto, uma leitura da TAR,
pretendemos buscar articulações com o jogo na metodologia psicodramática. O cenário é rede,
pressupondo que todos estão interligados e podem se conectar, humanos e não humanos, cada
um assumindo importância no drama que se desenrola no palco da imaginação. A teatralidade
do psicodrama pode ser estendida ao ambiente virtual, onde ator, jogador e protagonista se
misturam numa mesma função e estão envolvidos com o imaginário e o lúdico. Para a
dramaturga Amaral (2004), “o atual interesse por atores não humanos, tais como manequins,
máscaras, bonecos ou objetos, parece resultar de um longo processo histórico das artes cênicas”
(p. 9). Os objetos viram sujeitos e protagonistas e, nas palavras de Amaral (2004), “cada vez
mais, figuras inanimadas representam o ator vivo” (p. 17). Nos jogos digitais e nos jogos
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dramáticos do Psicodrama, o jogador/protagonista contracena com objetos, animais e outros
elementos.
Para Law (1992), é difícil pensar em qualquer ação humana sem recorrer à parceria de
não humanos. Neste estudo, eles se fazem presentes de várias formas: na caneta, ao escrever.
no meu computador, ao digitar; o papel que me orienta com meus manuscritos. Assim como
também o conhecimento que venho adquirindo ao longo da minha trajetória profissional, os
objetos que me rodeiam e que são atores não apenas na rede da construção das minhas ideias
como na minha relação com as pessoas permitem o encadeamento dos fatos e fazem parte de
um processo de subjetivação.
Formas não humanas se manifestam constantemente, mantendo uma relação simétrica
conosco, humanos. A cadeira na qual me sento como apoio, o mouse do meu computador que
me permite criar, desfazer e recriar, os livros que me cercam, a música que me inspira, o
cachorro que late lá fora, o balançar das folhas nas árvores do meu jardim... A conexão humana
com vários elementos não humanos não deixa de oferecer novas possibilidades de se conceber
o homem enquanto um ser em relação e um ser-enquanto-outro. Tudo que nos constitui é ser-
enquanto-outro, e vamos nos modificando nessa relação e produzindo nossa subjetividade.
Reforçamos que, cada vez mais, o não humano representa um ator que interfere na rede
de relações que estabelece com os humanos. Eles dividem o espaço, se relacionam, se
influenciam. Provocam um ao outro. Os não humanos se manifestam, nos completam e nos
mantêm em rede. O não humano é real, interage na rede, tem funções e significados, como
podemos verificar tanto nos jogos dramáticos como nos jogos eletrônicos.
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7 Jogo de papéis: quem sou eu x quem quero ser
O homem é um ator de Deus no palco do universo (Jacob Levy
Moreno)10
Podemos falar que existe uma relação entre jogos, personagens e papéis. O Role Playing
Game se configura como um jogo de representação de papéis em que a atuação do jogador se
assemelha a um teatro improvisado, sendo um fator de aproximação com o Psicodrama.
Nos Role Playing Games, temos papéis e temos personagens. O termo papel é utilizado
como uma metáfora e assemelha-se ao termo personagem. De acordo com Sarturi (2012),
“como cada tipo de personagem, o papel está ligado a uma conduta específica” (p. 40).
Começaremos esta seção tecendo algumas considerações sobre a teoria dos papéis na
visão psicodramática, sendo que, para o psicodrama, toda relação interpessoal acontece por
intermédio dos papéis. A noção de “papel” era essencial para a teoria desenvolvida por Moreno
(1978), sendo a primeira unidade ordenadora e estruturante do “eu”. Os papéis não são máscaras
ou disfarces para o “eu”, mas na realidade o constituem.
Podemos falar que existe uma relação entre jogos, personagens e papéis. Na concepção
moreniana, papel se refere “à forma de funcionamento que um indivíduo assume no momento
específico em que reage a uma situação específica, na qual outras pessoas ou objetos estão
envolvidos” (Moreno, 1978, p. 27). O mesmo autor entende que o papel pode ser a forma real
e tangível que o eu assume e indica que ele pode ser definido como uma pessoa imaginária
criada por um autor dramático, sendo que também pode se referir a um modelo para a existência
ou a um personagem da realidade social. Portanto, pode ser uma imitação da vida ou, ainda
como assinala Moreno (1978), o papel que o eu adota. Ao falarmos de papel, incluímos todos
os tipos de personagens existentes em nossa imaginação, figuras fictícias, pessoas que habitam
nossas recordações ou sonhos.
Para Moreno (1978), “o desempenho de papéis é anterior ao surgimento do eu. Os papéis
não emergem do eu; é o eu quem, todavia, emerge dos papéis” (p. 25). Segundo o próprio
Moreno, o indivíduo anseia por desempenhar mais papéis além daqueles que lhe são permitidos,
e todo indivíduo está cheio de diferentes papéis que pretende desempenhar em diferentes fases
10 Fonte: https://pensador.uol.com.br › Autores › Jacob Levy Moreno
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do desenvolvimento. No Psicodrama, papéis estão presentes sob diferentes formas e técnicas:
no desempenho de papéis, com a inversão de papéis, o duplo e o espelho, por exemplo.
O próprio termo papel, utilizado no psicodrama, vem da linguagem de palco. Rubini
(1995) esclarece que, para Moreno, “a fonte inspiradora da teoria de papéis foi o teatro” (p. 47).
Tal fato nos remete à ideia de que somos atores do improviso, que podemos modificar o meio
ou o final e que, quanto mais espontâneos formos, mais verdadeiros nos tornaremos. O mesmo
autor explica que
Através da nova forma de seu teatro, Moreno buscava tanto o desenvolvimento
pessoal quanto social do indivíduo. Para alcançar esses objetivos, acreditava que o
homem podia se transformar através da ação, experimentação e vivências, refletindo
e modificando sua conduta (Rubini, 1995, p. 48).
A teoria psicodramática dos papéis busca transformar o homem por meio da ação. Ao
longo de toda a vida, o homem vem desempenhando diversos papéis, podendo, assim, se
realizar tanto em nível pessoal como na sociedade. Os papéis podem ser aprendidos, variados,
modificados ou redefinidos. Tomando a criança como ponto de referência, podemos perceber
que esta vai conhecendo os papéis que pode representar na vida e como pode representá-los.
Desse modo, ela vai se identificando com um certo número de papéis, tomando consciência de
si e descobrindo quem ela é. O papel parece, então, exercer um impacto no descobrimento de
si mesmo e no processo de construção da identidade. Trata-se de uma ferramenta que pode
facilitar o desenvolvimento contínuo ao longo da vida, uma vez que o indivíduo experimenta
uma ampla gama de papéis e aprende com eles. Rubini (1995) ainda ressalta que o conceito de
papel pressupõe inter-relação e ação, o que se configura num gancho fundamental na teoria e
prática do psicodrama.
Os papéis podem ser desempenhados na vida real ou na imaginação. Rubini (1995)
afirma que, com a brecha entre a fantasia e a realidade, o indivíduo necessita do fator
espontaneidade, como princípio da adequação de sua ação a seus próprios papéis, para que lhe
seja possível a passagem do mundo da fantasia para a realidade, e vice-versa.
Uma vez que o eu é revelado pelo desempenho de papéis, Rubini (1995) destaca o fato
de Moreno privilegiar a técnica do role-playing com todo seu desdobramento terapêutico. O
role-playing permite ao ator experienciar papéis diferentes daqueles já experienciados, papéis
que foram negligenciados, papéis desejados. Segundo Moreno (1999), “o jogo de papéis pode
ser utilizado como um método para pesquisar mundos desconhecidos ou para a expansão do
eu” (p. 226). Por isso, remete-nos a um caráter de experimentação, pois favorece o aprendizado
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para o desempenho mais adequado dos papéis. A pessoa pode se transformar ao desempenhar
os seus papéis de forma diferente. Jogando no papel de um outro (personagem), a pessoa pode
experimentar outras possibilidades de ser e, dessa maneira, ser provocada a desenvolver uma
identidade mais flexível ou funcional.
Calvente (2002) explica que o desenvolvimento de um papel no cenário psicodramático
passa por três fases: 1) a tomada do papel (role-taking), na qual o indivíduo adota um papel,
podendo apenas imitá-lo; 2) o jogo de papéis (role-playing), que é a representação ou
desempenho que permite certa liberdade e espontaneidade. Consiste em jogar o papel
explorando simbolicamente suas possibilidades de representação; e 3) a criação de papéis (role-
creating), que permite alto grau de liberdade, possibilitando ao ator usar sua espontaneidade,
ter iniciativa e criar.
Impossível pensar o Psicodrama, com suas técnicas e instrumentos, desvinculado de
papéis e atores que os vivenciam. Nesse sentido, Rubini (1995) deixa bem claro: “Toda
dramatização, jogo ou qualquer técnica psicodramática somente pode acontecer quando papéis
são colocados em ação e, através destes, personagens interatuam se vinculando como
interlocutores” (p. 54).
No Psicodrama, o indivíduo encontra-se com seu eu em papéis imaginários e recupera
a capacidade de realizar transformações autênticas em sua vida, nas suas relações e no meio
onde vive. Por intermédio das técnicas de desempenho e criação de papéis, Rubini (1995)
assevera:
O Psicodrama possibilita ao indivíduo utilizar seu potencial imaginativo/criativo para
transformar a realidade, retomar papéis sociais instituídos, cristalizados e
conservados, para recriá-los modificando-os e invertê-los, reinventando-os na
vivência das relações em que se encontra envolvido e implicado (p. 55).
É pelo conjunto de papéis que desempenha no jogo da vida que o homem pode se ver
livre das amarras que o aprisionam. Assim, o Psicodrama procura resgatar este homem
espontâneo-criativo, oferecendo a possibilidade de ele recriar o seu eu. O homem, portanto,
pode ser considerado um jogador de papéis, e a teoria dos papéis representa a possibilidade de
renegociação ou desenvolvimento criativo.
Fonseca Filho (1980) destaca que “todo papel é uma resposta a outro (de outra pessoa).
Não existe papel sem contrapapel” (p. 20). Tomando por base essa colocação, podemos pensar
como a interação entre os jogadores no ciberespaço mantém-se atrelada, uma vez que o papel
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que um indivíduo exerce depende de outrem, e vice-versa. Desse modo, o sujeito encontra-se
envolvido numa rede de inter-relações.
Na vida real, uma pessoa vive num complexo composto de diversos papéis. No
psicodrama, por meio do jogo de papéis, podem expressar uma faceta da personalidade ou
retratar a personalidade em diferentes situações. Será que papéis que se encontram
supervalorizados é por que outros estão sendo negligenciados? O que determinado papel está
dizendo do indivíduo? Ou tentando ocultar? É talvez na ocultação que ele se revela? O que
coloco de mim nesse papel?
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55
8 Das experiências no jogo às vivências na vida real
8.1 A catarse e a ressignificação no psicodrama
Vários termos existem para definir a catarse, mas cada abordagem terapêutica a define
e a emprega conforme sua própria terminologia. O que se acredita é que a catarse se configura
como uma ferramenta valiosa para penetrar em espaços profundos da experiência. O momento
quando ela ocorre oferece um alívio reconfortante, e as pessoas podem ter a sensação de que
tudo estava obscuro e veio à luz. Nesse sentido, Blatner e Blatner (1988), ao tratarem do jogo
de papéis no psicodrama, mencionam “um ‘alívio do papel’, uma liberação de tensão ou prazer
por poder desempenhar papéis tão diferentes daqueles que exerce na vida real” (p. 116). O
participante se liberta ao se permitir jogar outros papéis, sem necessidade de ser coerente com
os seus papéis reais e atuais, abrindo-se para novas descobertas. No jogo dramático, mediante
os papéis vivenciados, pode expressar raiva, afeto, dor e o que mais que o papel desempenhado
fizer emergir.
Entendemos a catarse como uma descarga emocional que atua de forma a eliminar
tensões, liberando qualquer conteúdo negativo que tenha sido armazenado dentro da pessoa.
Vulgarmente falando, significaria “tirar seus guardados do baú”. “A catarse seria a liberação
desses conteúdos armazenados por intermédio de sua expressão afetiva” (Kellermann, 1998,
pp. 88-89).
Almeida (2012) explica que Moreno ampliou o sentido da catarse, criando o termo
catarse de integração, devendo essas palavras serem usadas em conjunto para adquirir o
verdadeiro sentido que ele buscava. O autor vem nos dizer que a catarse conduz à integração e
à apropriação de aspectos antes desconhecidos, que vêm à tona a partir e por meio da ação
dramática, provocando no indivíduo maior consciência de si mesmo e de suas experiências,
fazendo-o apreender novos aspectos da realidade vivida e tendo, assim, um efeito
transformador.
Portanto, no Psicodrama, a catarse tem a função de promover a autoexpressão e
favorecer a conduta espontânea. Ela se torna crucial na medida em que propicia novos
aprendizados de estratégias de enfrentamento a partir da integração dos sentimentos liberados.
Sendo assim, ela pretende restaurar a ordem num caos emocional interior, permitindo uma
ressignificação de aspectos conflituosos ou dolorosos, de modo a seguir à frente. Também, por
meio da ação dramática, é possível explorar conteúdos profundos que, muitas vezes, não foram
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elaborados e precisam que sejam expressos e significados, para que, assim, a pessoa possa se
revelar, se descobrir e fazer algo com essa descoberta.
Moreno transforma o espectador em possível ator e criador à medida que ele apreende
novos aspectos da realidade vivida e vislumbra novas possibilidades. Pela encenação do seu
próprio espetáculo, o ator poderá se transformar e ressignificar sua existência no mundo. A
catarse monta o cenário para que emoções sejam expressas, mas os conflitos precisam ser
trabalhados; caso contrário, ela não tem fundamento. É como se eu tivesse que fazer algo com
aquilo que descobri ou percebi. Não basta “vomitar” os sentimentos. É preciso fazer algo com
eles, trabalhá-los, elaborá-los.
De acordo com Kellermann (1998), todo arsenal das técnicas psicodramáticas visam à
maximização do momento catártico. E informa: “A catarse não é induzida nem inibida, mas
autorizada a emergir a seu próprio tempo, e sob a forma que lhe seja própria” (Kellermann,
1998, p. 95). No entanto, os benefícios proporcionados pela catarse estão atrelados ao modo
como as pessoas respondem ao se expressarem. Tudo depende do mundo experiencial do
indivíduo; pode acontecer, no momento catártico, retaliações de sentimentos de raiva ou
frustração vivenciados pela pessoa. Desse modo, ela deixa de ser construtiva ou de ter
potencialidades de integração de experiências. Por fim, ela pode consistir numa conotação
positiva, mas nem sempre, e pode nem mesmo ser terapêutica.
8.2 A tecnologia digital como autorreparação
E nos jogos eletrônicos, será possível algo semelhante? Ao colocar em pauta a discussão
em torno da catarse, reportamo-nos, neste momento, às vivências que ocorrem nos jogos
digitais, considerando que, pela estimulação dramática no jogo, o jogador pode alcançar a
liberação de emoções, de medos e, às vezes, até mesmo, de sentimentos negativos, com
conteúdos agressivos ou repressivos. O cenário dos jogos digitais permite o desenrolar de cenas
nas quais o jogador pode experimentar sentimentos de alegria, raiva ou alívio, dando voz aos
seus gritos abafados. Seria algo semelhante a uma experimentação catártica? Nos jogos
eletrônicos, o jogador conseguiria vomitar seus temores, chorar suas dores, expressar alegria ou
triunfo? Ele, ao terminar o jogo, por ter assumido diferentes personagens e papéis, pode
experimentar sentimentos que provocam nele alívio, conforto ou libertação. À luz das
experiências vividas no jogo como positivas, o indivíduo tem a possibilidade de refletir sobre
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seu comportamento e contrabalancear atitudes de modo a incorporar essas vivências positivas
na sua personalidade ou integrá-las na sua autoimagem.
Tem-se a oportunidade de trazer conflitos antigos em um cenário novo e renovador. Isso
posto, acreditamos que as tecnologias digitais também podem desempenhar a função de
autorreparação, oferecendo uma estratégia construtiva e proporcionando ao jogador a chance
de se deparar com a possibilidade de rever aspectos de sua vida que lhe foram conflituosos ou
difíceis.
A internet pode ser um espaço de descobertas e conceder ao jogador a possibilidade de
regressar ao mundo real mais preparado, para que possa repensar suas atitudes e elaborar
dificuldades ou conflitos. O computador pode dar acesso à entrada num outro mundo, que
favorece a autodescoberta, a autorreparação e, consequentemente, a recriação de si próprio.
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9 Uma psicodramatista no universo dos videogames
Considerando que alguns jogos digitais nos oferecem um olhar de base teatral, à medida
que lançam um cenário de improviso e de experimentação de personagens e papéis, podemos
supor que possuem características psicodramáticas pelo fato de se permitir o role-playing, a
representação de papéis e as múltiplas possibilidades de ser. É nesse sentido que buscamos
tecer correlações com os jogos dramáticos no contexto do Psicodrama, o que nos remete
também à relação que estabelecemos com tudo à nossa volta e que assume significado na nossa
vida pela mediação do jogo de papéis, pelo lúdico e pela exploração da fantasia. Como
pesquisadora, passei a refletir como a teoria psicodramática pode ter conexões com os jogos
eletrônicos e com a TAR, e vice-versa. Vivemos em rede, em coletividade composta por atores
humanos e não humanos. Tomando o que diz Goffman (2002): “o ator torna-se sua própria
plateia, ele vem a ser ator e assistente do mesmo espetáculo” (p. 79). Mas não está sozinho...
Podemos pensar que os não humanos exercem um papel também essencial no desenrolar das
cenas, sendo que, sem eles, poderia não haver um espetáculo bem-sucedido.
Essas questões são disparadoras para o entendimento do método aqui escolhido. Ao
penetrar no universo virtual dos jogos digitais, tendo a TAR como referencial, consideramos
algumas articulações com os jogos dramáticos pelas redes que foram se fazendo à medida que
eu penetrava neste estudo. Trata-se de um jogo de transformações, simulações e revelações.
Jogar videogame é se deixar afetar por elementos do jogo; é ser convocado a experimentar, a
agir, fazer escolhas e tomar decisões. E isso é o que buscamos neste estudo.
Nesse sentido, tomando Lanzarin (1999) como referência, podemos pensar na
transposição das experiências vividas na realidade virtual para a presencial. De modo contrário,
também, pode haver um deslocamento da vida real do jogador para o universo virtual, aonde
ele leva aspectos e experiências muito semelhantes à sua vida real para a vivência nos jogos
digitais. Colocar-me à prova poderia fornecer elementos para refletirmos essas questões.
Considerando a interface como um prolongamento do eu ou como uma vida paralela,
no momento do jogo, o jogador experimenta este sair de si e vivencia personagens numa
atmosfera lúdica, bem como o ator/protagonista na cena psicodramática. É o que acontece
depois que pode permitir o encontro consigo mesmo e oferecer reflexões e insights à medida
que produz efeitos. Quais sentimentos são suscitados durante o jogo e como a experimentação
do personagem toca ou sensibiliza o jogador? Entendendo que humanos e não humanos podem
se conectar e produzir efeitos, jogadores e jogos eletrônicos se encontram interligados e são
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afetados um pelo outro, semelhante ao que ocorre no ambiente psicodramático. A imersão no
jogo eletrônico faz uma rede para que o lúdico emerja. É através desta ludicidade que permeia
o desenvolvimento do estudo que busquei atrelar aspectos das vivências dos jogos eletrônicos
com elementos da vida real.
É como os meus movimentos como jogadora ocorreram, como as trajetórias foram se
fazendo e como uma coisa foi levando à outra, sem anular as mediações que assumiram
importância neste estudo, pautando na cautela em não tomar as coisas como óbvias. Dessa
forma, como jogadora, criava minha própria história, que retratava minha singularidade de ser
e estar no mundo, valorizando todo processo que envolve essa corrente de construção do
personagem e do enredo no qual se desenrola a ação.
9.1 Seguindo os atores: montando o dispositivo
Como pesquisadora, desconhecedora de muita coisa referente ao mundo dos jogos
digitais, lancei-me a fundo nesse universo, buscando conhecimento e esclarecimento por parte
de jogadores e sites específicos de jogos digitais. Confrontei-me com inquietações e dúvidas,
como, por exemplo, tipos de jogos específicos para serem usados na minha pesquisa, quais os
jogos que mais se aproximam dos pressupostos do jogo no Psicodrama e como fazer a imersão
no jogo, uma vez que nunca joguei. Impasses como a necessidade de aprender a jogar,
estratégias a serem desenvolvidas e desconhecimento técnico me acompanharam por um
notável tempo.
Meu percurso, portanto, enquanto pesquisadora, foi povoado de dramas, fazendo com
que eu precisasse me reorganizar com relação ao campo. A partir de supervisões com minha
orientadora e nos grupos de estudo, fui conseguindo penetrar mais no panorama dos jogos
eletrônicos. Pude debater e refletir as questões que permeavam a escolha pelo jogo eletrônico e
meu receio de me colocar enquanto jogadora e participante de minha própria pesquisa. Era uma
incerteza a ser vivida, principalmente pelo fato de eu nunca ter jogado.
Em meio a incômodos e receios, assim como o participante/jogador nos jogos se dispõe
a correr riscos, lancei-me como uma jogadora e também psicodramatista para fazer a imersão
no jogo e seguir os rastros das minhas conexões com a interface, colocando-me à prova como
um ator na rede.
A escolha pelo jogo encontrou-se carregada de conflitos, sendo que eu buscava um jogo
que poderia manter conexões com os jogos dramáticos. Na trajetória da minha pesquisa
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bibliográfica, deparei-me com concepções diversas a respeito de jogos de simulação e RPGs. A
partir das indagações que me rodeavam, surgiu a ideia de ouvir, informalmente, jogadores sobre
o que eles percebiam de diferença entre esses dois tipos de jogos. Com base nas próprias
percepções que eles têm sobre essa questão e quais jogos conhecidos por eles se aproximavam
do que buscava na minha pesquisa, meu caminho rumo à imersão no jogo foi sendo aberto.
Os jogos de simulação parecem impor a narrativa deles e o jogador tem que se adaptar
ao “mundo” do jogo, o qual ele está sempre mudando ou desafiando. É o que o jogo propõe que
direciona o jogador a definir seus movimentos e lances. Nos RPGs, por sua vez, são os
jogadores que fazem as narrativas e criam seus objetivos. O jogador é livre para criar conforme
seus desejos e expectativas e o final do jogo tende a mudar de acordo com as atitudes dos
jogadores (disponível em www.ataquedosnerds.wordpress.com). Os jogadores desempenham o
papel de um personagem em um cenário fictício, provocados a assumir identidades e
desempenhar tarefas. Percebemos, aí, o eixo central da teoria psicodramática, assim como de
alguns jogos eletrônicos. Tanto os jogos de simulação como os RPGs parecem estimular a
imaginação e a criatividade.
Nessa perspectiva, investiguei o mundo dos games, buscando uma forma de
experimentar um jogo gratuito disponível no origin. Inicio uma pesquisa pela escolha do jogo,
que seria a porta de entrada para este estudo. Lancei-me no ciberespaço para conhecer o jogo
World of Warcraft, o Empire, o City Ville e o Sim City, mas considerei o The Sims, mais
especificamente a última versão deste, o The Sims 4, o mais próximo da minha proposta por
ele oferecer a possibilidade de controlar emoções, traços de personalidade e habilidades.
Dessa forma, tinha como estratégia inicial criar uma conta que me permitisse acessar
um dos jogos a ser explorado – The Sims 4. Após ser criada a conta e ter a possibilidade de
baixar gratuitamente os jogos disponíveis, poderia experimentar se o jogo escolhido se
aproximava do que eu buscava investigar. Em vão. Não conseguia entender como entrar no
jogo, pois tudo dava errado. Frustrações passaram a me rodear e um sentimento de
incompetência como jogadora me invadiu.
Considerei, então, a possibilidade de adquirir a versão paga do jogo, acreditando que
isso poderia facilitar meu entendimento além de me permitir experimentar as interações com
outros avatares. Decidi, dessa maneira, comprar um jogo de simulação – o mesmo The Sims 4,
original e que permitia jogar online com outros jogadores. Assim, este foi outro passo: adquiri
o The Sims 4, versão paga.
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A compra foi feita pela internet e a demora pela chegada do produto provocou ansiedade
pelo desconhecido, pelo novo que está por vir. Ao mesmo tempo despertou curiosidade e passou
a fazer sentido para mim, envolvida pelo rumo que minha pesquisa foi tomando.
O jogo chegou e busquei instalá-lo no meu computador. Sem êxito. Precisei mergulhar
na prática dos jogos digitais para me envolver enquanto jogadora, mas deparei-me com
dificuldades técnicas o tempo todo. Busquei sites que ensinam como baixá-lo, fazer download
e executá-lo, para que eu possa conhecê-lo virtualmente, mas na realidade apenas fui
conhecendo e reconhecendo minhas limitações enquanto futura jogadora.
Cabe lembrar que o contato com jogadores que poderiam me introduzir no universo dos
jogos digitais era outra estratégia essencial na execução metodológica deste estudo, porque
nunca estive envolvida no mundo dos games e precisava de todo know-how. Portanto, antes de
começar a jogar, busquei parceria com jogadores que podiam me mostrar a interface do jogo e
me explicar a dinâmica de seu funcionamento, bem como colher depoimentos de jogadores
espontâneos disponíveis na rede.
Estabeleci contato inicial com dois jogadores, que foram permitindo minha
familiarização com o universo do The Sims 4. Muitas indagações foram sendo sanadas ou
esclarecidas, uma vez que eu acessava sites e fóruns do The Sims 4, para uma visão mais
panorâmica do jogo, mas faltava aterrissar nos elementos mais específicos do jogo. Não
conseguia, por exemplo, ter dinheiro, construir casas, viajar de um lugar para outro, escolher
aspirações e, posteriormente, de trajes, entre outras dúvidas. Os dois jogadores conseguiram me
oferecer o suporte técnico e macetes necessários, mas não imaginava o quão difícil para mim
seria encarnar na pele o papel de jogadora que nunca fui. Torna-se relevante também registrar
que sites como http://thesimmers.org, busca no Youtube por tutoriais com Malena, por exemplo,
e amizade no Facebook com The Sims Center, além de fóruns como http://forums.thesims.com
e http://simscenterbr.blogspot.com/ foram essenciais na busca da minha formação enquanto
jogadora.
Depois de superadas as fases de conhecimento técnico e da introdução ao jogo, passei a
jogar off-line e meus avatares interagiram com os demais, tomando decisões, fazendo escolhas,
construindo o cenário e utilizando as estratégias que o jogo escolhido como instrumento
permitia. Havia, inicialmente, a intenção de jogar online também, mas os jogadores com os
quais mantive contato também desconheciam a estratégia para tal; portanto, limitei-me a jogar
off-line. Outra estratégia que me norteou foram as anotações que eram feitas no meu caderno
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de campo, registrando fatos e movimentos, percepções e emoções para facilitar o
acompanhamento o mais fidedigno possível do meu movimento no jogo.
Eu joguei três vezes na semana, por aproximadamente uma hora a uma hora e meia, por
quase dois meses. No início, estava radiante pelas conquistas que fui alcançando no papel de
jogadora inexperiente-pesquisadora, antes distantes para mim. Fui Maria Moreno, Joana
Morato, Liana Rosset, Ana Yalom, Lys Stevens, Val Melchiori e Lys Monteiro. Percebia de fato
que até mesmo a escolha pelo nome era pautada em algo que me afetava: o sobrenome Moreno,
por exemplo, sobrenome do pai do psicodrama que tanto admiro. Fui solteira, fui casada, tive
filhos e quis engravidar de novo. Essa experiência me remeteu a uma época que foi
significativamente importante na minha vida, mas que hoje não caberia mais. Daí, quis criar
novo jogo. Não gostaria de passar por uma gravidez novamente. Criei famílias semelhantes à
minha; outras, no entanto, que nada tinham a ver, mas que me provocavam a fazer diferente, a
experimentar outras escolhas.
Mas não dava liga, não me sentia envolvida, não entrava nesse papel. O papel virtual
das personagens que criava não deixava de ter algo de mim, de falar de mim através da tela.
Mas ao mesmo tempo, algo fugia, escapava. Escapava o concreto, o corpo a corpo, o toque, o
olhar nos olhos, que são experimentados no cenário psicodramático. Escapava, antes de mais
nada, o papel de jogadora. No mundo virtual, deparo-me com um conflito: “não sou eu, mas
sou eu”. O personagem que crio e que ganha vida na tela, a partir dos meus comandos, não
deixa de ser eu, mas de certa forma me soa falso, distante do papel que tinha dificuldade em
assumir: o de jogadora. Não me sentia conectada com o jogo, faltava envolvimento, faltava ser
a jogadora que não era.
Não conseguia, por isso, avançar mais do que o próprio jogo oferecia. Imagino que o
jogo oferece até mais possibilidades, mas não me sentia provocada a agir nesse mundo virtual.
Questionei se, adquirindo alguma expansão do jogo, poderia modificar meu envolvimento,
porém acreditei que poderia confundir ainda mais uma jogadora-inexperiente-frustrada,
provocando, de maneira oposta, um distanciamento maior ainda.
Por fim, busquei, nos fóruns e blogs do The Sims 4, depoimentos espontâneos de
jogadores que remetessem às experiências e às emoções suscitadas pelo jogo de papéis no
universo da simulação, mas não encontrei nada que coubesse como ilustração, uma vez que as
postagens se referiam mais aos aspectos técnicos do jogo. Desde o começo da pesquisa
bibliográfica, eu já fazia parte do grupo do The Sims Center no Facebook. Dessa forma, optei
por postar no grupo, explicitando do que se tratava a pesquisa, uma solicitação para que
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jogadores pudessem emitir depoimentos livres a respeito de suas vivências e sentimentos no
jogo e a partir do jogo.
De fato, temia o que dali poderia surgir. Todavia, 38 depoimentos vieram colaborar e
enriquecer e puderam ilustrar muitas ideias esboçadas aqui neste estudo. A partir deles, criei
categorias de análise, guiando-me pelo que se repetia e também pelo que se distanciava. Vários
desses depoimentos se encaixam nessas categorias e corroboram os resultados da pesquisa.
A pesquisa me permitiu refletir e investigar os elementos que emergem no contexto dos
jogos dramáticos, como os conceitos de aquecimento, papel e personagem, realidade
suplementar e catarse, a partir do lugar de psicodramatista-pesquisadora-participante, a qual,
ainda que não tenha jogado efetivamente o papel de jogadora, consegue trazer suas impressões
e percepções,
Fazendo uma ponte entre o que vivenciei e percebi no jogo e o conhecimento construído
enquanto psicodramatista acerca do jogo no psicodrama, vou me atrevendo a traçar conexões
entre ambos. A minha participação no jogo e o depoimento espontâneo dos jogadores se
constituem como pontos de vista que busquei para abordar, ilustrar e construir essa ponte entre
os dois tipos de jogos.
Terminada a fase da imersão no jogo The Sims 4, os dados obtidos foram transcritos e
analisados, buscando verificar as experiências no jogo digital que revelassem articulações com
os jogos dramáticos no âmbito do Psicodrama. Para tanto, foi criado um roteiro de orientação,
com itens específicos, que norteassem a pesquisadora-jogadora após a fase de imersão no jogo
e que seria somado à análise dos próprios depoimentos dos jogadores. Por meio de categorias
de análise estipuladas pela pesquisadora, os dados foram comparados entre si investigando as
percepções registradas e os efeitos das vivências na vida real.
Cabe lembrar ainda que o projeto, antes de sua realização, pela proposta oferecida, foi
submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, a fim de que, então aceito, se
pudesse proceder sua execução.
9.2 Minha imersão no jogo
A minha participação no jogo buscou oferecer pontos de vista para pensarmos um
paralelo entre os jogos digitais e os jogos dramáticos, tendo como referência o desempenho de
papéis e o que surge a partir dele e seus possíveis efeitos na vida real dos participantes.
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Buscando seguir o roteiro criado para atender às dúvidas e questões levantadas durante
a pesquisa e proceder a análise dos dados obtidos com a minha imersão, inicio uma discussão
acerca das minhas percepções enquanto jogadora-pesquisadora. Minha relação com o não
humano computador/jogo eletrônico foi bem delicada, ora estressante, ora envolvente. Por
vezes, senti-me frustrada e cheguei a questionar o que me levou a investigar algo voltado à
tecnologia se nem eu mesma me considero “tecnológica”. A relação foi em grande parte
complicada, mas o estudo envolvendo a Teoria Ator-Rede esclarecia e fazia com que eu
acalmasse meus sentimentos nessa relação. O jogo, envolvido pelo caráter lúdico, era o canal
para eu penetrar nesta investigação, e a TAR me ofereceu o suporte teórico-metodológico
necessário ampliando meu olhar sobre as relações estabelecidas nestes dois universos: virtual e
real.
Minha atenção estava voltada, principalmente, aos meus movimentos enquanto
jogadora, como eles se faziam e me afetavam. Isso era importante eu não perder de vista. Antes
de começar a jogar, já se iniciava meu processo de aquecimento para o jogo. Eu escolhia o
nome, se eu seria jovem adulta ou adulta, o corpo, o rosto, o cabelo, forma de andar, trajes,
traços de personalidade etc. Esses elementos já promoviam meu envolvimento com o
personagem que eu estava assumindo e com os papéis que eu iria desempenhar. Escolher o
corpo, o rosto e os trajes foram fatores que eu percebi que me provocavam e ocupava um bom
tempo nessa preparação. Gostava. Opções são muitas e ainda existe a galeria, de onde o jogador
pode pegar ou comprar o que ele achar interessante, até mesmo avatares/Sims prontos. Eu nunca
peguei. Gostava de criar o meu, a não ser a casa. Sempre comprava casas prontas. Tinha muita
preguiça de construir uma, porque dava muito trabalho.
O interessante e que relato aqui é que meus Sims sempre eram muito parecidos comigo.
Às vezes, fisicamente, mas quase sempre com traços de personalidade que percebo em mim,
como: sociável, criativo, amigável etc. Percebam que disse “quase”. Sim, porque houve uma
vez em que quis experimentar ser um Sim com o traço “cabeça quente”. Sentia que precisava
explorar essa característica e ver o que dali poderia acontecer. Era Isadora Moreno. Ela explodia
com qualquer coisa e com outros Sims com os quais interagia. Julgo fundamental expressar
raiva. Talvez, por isso, encontrei nela a possibilidade de colocar para fora algumas emoções.
Entretanto, foi diferente de mim. O Sim com essa característica reage de forma explosiva quase
sempre, fica muito vulnerável. Fisicamente, não experimentei Sims gordos. Buscava corpos
mais magros e esteticamente mais bonitos, uma vez que pratico exercícios físicos. Procurava
sempre interagir com outros Sims vizinhos e tentei, enquanto solteira, estabelecer uma relação
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com um homem, a fim de evoluir para algo mais sério. Muito interessante, porque me remeteu
à minha adolescência, quando eu tinha problemas de autoestima e não me sentia capaz de
seduzir um homem. No jogo, eu fui. E fui muito. Experimentei estar casada, com duas filhas e
engravidar de novo. Desespero ver a barriga crescendo. Passar pela experiência de novo, veio
me incomodar. Deixei o jogo. Comecei do zero. Não tinha mais a ver comigo essa história.
O que mais percebi é que quando criava famílias, buscava sempre fazê-las o mais
parecidas com a minha: marido e duas filhas. Mas em alguns jogos, eu me fiz sozinha, viajava,
ia para academia. Não precisava cuidar de ninguém, dona de mim, e podia fazer e ser o que eu
queria. Queria experimentar outras aspirações e profissões, mas precisaria adquirir um pacote
de expansão do jogo, por isso limitei-me a escolher profissões um pouco mais próximas do que
eu gosto, dentro daquelas disponíveis pelo jogo, como, por exemplo, escritora.
Percebo que, se eu tivesse conseguido de fato entrar no papel de jogadora experiente,
poderia traçar conexões de forma mais profunda, uma vez que é o jogo de papéis que permeia
toda a temática. Portanto, minhas percepções serviram para que eu, enquanto pesquisadora,
pudesse fazer uma ponte entre os dois universos de jogos. Nesse intuito, pude perceber que, à
medida que caracterizava o Sim parecido comigo ou com minha história de vida, eu buscava
explorar mais os papéis dentro desse personagem/avatar, outras ações e atitudes e que poderiam
se remeter à minha vida. Esse caráter de experimentação me abria possibilidades e outras
maneiras de enxergar a vida que meu Sim estava levando, como, por exemplo, festas, convidar
para minha casa, convidar para viajar e tomar atitudes que o próprio comando do jogo me
fornecia como outros caminhos. Ao contrário, nas vezes que criei Sims diferentes de mim (e
abandonei o jogo), encobria a intenção de explorar facetas às vezes desconhecidas minhas. Mas
me vi tão diferente fisicamente e nas atitudes que o jogo simplesmente não foi à frente. No
entanto, considero que existe uma aproximação com o jogo dramático por estar presente a
possibilidade real de experimentar papéis, ainda que virtuais, explorá-los e trazê-los para a
nossa realidade, atribuindo novos significados ou percepções. Por que não dizer papéis
dramáticos virtuais calcados numa realidade suplementar que eu criava conforme minha
vontade, guiada pela minha imaginação. Eu, na pele de jogadora, pude vivenciar papéis, ainda
que com dificuldade, devido às minhas próprias limitações enquanto jogadora, mas a ponte está
sendo construída... personagens são criados, papéis são desempenhados e isso é jogar com a
fantasia e fazê-la real, mesmo que apenas no jogo, no faz de conta.
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9.3 Ouvindo os jogadores: atores participantes
Para a análise dos dados obtidos, seguimos alguns passos. O primeiro consistiu em
analisar as informações obtidas e submetê-las a um processo de preparação. Ou seja, foi feita
uma leitura de todos os depoimentos colhidos dos jogadores, tomando o cuidado de decidir
quais deles iam ao encontro dos objetivos da pesquisa. Foram criados também códigos
referentes aos depoimentos, constituídos das iniciais dos nomes dos jogadores. As unidades de
registro consistem nos depoimentos que foram colhidos espontaneamente a partir do Facebook,
conforme explicitado anteriormente. Esclarecemos que incluímos os depoimentos na íntegra,
com seus possíveis erros de grafia ou pontuação, além da linguagem própria dos jogadores.
O próximo passo consistiu em criar categorias de análise, agrupando dados,
considerando a parte comum existente entre eles e buscando o que se aproxima ou se repete nos
depoimentos dos jogadores, mas também o que se diferencia ou distancia, orientando
posteriormente a discussão dos resultados. São os seguintes:
9.3.1 Preparação/Aquecimento para o jogo
Muitas vezes eu pesquiso historias nem que seja novelas ou assim e me inspiro nas
personagens e nas vidas delas... (M.R.M.)
Não crio meus personagens pensando no que ele vai ser. Primeiro eu crio, visto e fico
olhando e pensando em como ela seria se fosse real. Aí distribuo os traços de
personalidade. Depois coloco a aspiração que combine mais com o personagem.
(B.B.)
Eu crio meus personagens inventando uma pré história, depende muito de uma
experiência fora do jogo. Por exemplo, assisti uma série em que tinha uma casa
antiga, então criei logo no the Sims Dois personagens país e filhos, bem modernos,
porém pobres, que a mãe do pai morreu e nisso eles ficaram com o casarão. Então
tem sempre uma pré-história. (K.T.)
Eu crio uma história de fundo e crio os sims para viver aquilo.(...) Crio cidades
inteiras, ou um bairro, com os sims para serem amigos, inimigos e neutros que vou
vendo como fica na história. (L.Z.L.)
Sempre é baseado no que eu acho bonito no momento! Agora esse ano eu comecei a
escrever um série de The sims, e os personagens da série tbm não baseados em mim,
ou em experiências comigo, sei lá!(M.S.)
Uso o The Sims pra criar os meus personagens de acordo com uma história/situação
pré estabelecida. (H.S.)
Percebemos, pelos depoimentos, que existem jogadores que se lançam no jogo a partir
da estimulação da sua criatividade, inspirando-se em novelas, séries ou histórias, preenchendo
o jogo com sua imaginação e fantasia e permitindo-se o envolvimento, o fluir, o vir a ser do
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avatar, do Sim. Como no jogo dramático, predomina a estimulação do binômio
espontaneidade/criatividade, preparando a pessoa para entrar em cena, explorar papéis e
experimentar possibilidades de forma mais aquecida, favorecendo um melhor desempenho.
Assim como no Psicodrama, podemos caminhar por temas que permeiam nossa
sociedade e que nos atingem ou provocam de alguma maneira. Trabalhamos nas histórias e
cenas que surgem a nossa forma de lidar com elas e até também novas condutas frente a elas.
De forma correlata, nos jogos eletrônicos, existe a possibilidade de, no encontro com enredos
que legitimamente abordam questões sociais envolvendo raça, violência, violência doméstica,
desigualdade, desemprego, drogas, guerra e homossexualismo, entre várias outras, o jogador se
enxergar envolto a um mundo onde pode experienciar vivências reais de uma sociedade.
Questões como essas podem ser representadas numa “outra” realidade dentro do jogo. Não é
sentar no trono do Rei?11
Entretanto, por outro lado, não podemos deixar de considerar que, ao se deixar conduzir
por ideias baseadas em séries e novelas, o jogador poderá também se distanciar do que o
aquecimento no jogo no Psicodrama busca atingir um nível essencial de espontaneidade para
que o participante, a partir do desempenho de papéis possa deixar fluir seus sentimentos, porque
aquele papel vivenciado tem a ver particularmente com ele, fala por ele de alguma forma, não
sendo uma mera brincadeira de contar histórias. O aquecimento é uma provocação que, no palco
do “como se”, mostra seus efeitos no papel desempenhado pelo participante.
9.3.2 Experimentando possibilidades e idealizações no universo da simulação
(...) Eu adoro jogar pq, no jogo, eu posso criar uma vida pra mim, como queria que
ela fosse, como imagino meu futuro. (B. P.)
Normalmente crio-me sempre a mim e tento criar a meu ideal de "familia perfeita",
mas começo sempre do zero para ser realista (R.B.)
Quando eu jogo, tenho como objetivo ser como eu queria ser na vida real e faço coisas
que eu faria, se pudesse. (A. F.)
Eu crio meus personagens com o tipo de personalidade e aparência que eu gostaria
de ter. (N. V.)
11 A Áustria sofria com a falta de liderança política e social alguns anos após a guerra. No dia 1°de abril de 1921,
no Komoedien Haus, um teatro dramático de Viena, Moreno estava só no palco, onde havia um trono, uma coroa
e um manto de púrpura. Moreno, diante do teatro repleto, entre autoridades, políticos, pessoas comuns e amigos,
na intenção de provocar o público para um debate sobre o futuro do país, disse que estava à procura do rei e
convidou as pessoas para subirem ao palco para falarem de suas ideias sobre o líder e sentarem no trono. Essa
noite foi considerada, do ponto de vista histórico, o nascimento do Psicodrama (Marineau, 1992).
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Sempre criei personagens baseado no que eu queria ser ou me tornar. Usava o jogo
como fuga da realidade, pois nele eu podia ser quem eu gostaria de ser, inclusive,
comecei a evitar socialização e preferia ficar em casa jogando a ter que entrar em
contato com a minha realidade. (L. A.)
Eu jogo como eu queria q a minha vida fosse. (L. C.)
O jogo me ajuda a liberar minha criatividade e nele eu posso ser quem eu quiser,
homem, mulher criança etc. (K. T.)
eu sempre faço personagens que eu gostaria de ser, magra, bonita, com roupas
estilosas (...) Sempre faço o meu ‘namorado’ ou ‘marido’ como o homem que eu
gostaria que fosse de verdade. (B. L.)
Minhas sims ou meus sims a maior parte deles trai muito ou se metem com homens
comprometidos kkkk (M. R. M.)
O jogo nos possibilita desapegar um pouco da correria de nossas vidas e ser quem
somos, ainda que em forma de um bebezinho, uma criança, uma mãe de família, ou
um pai. O jogo te liberta dos padrões, do certo e do errado. Te dá a possibilidade de
brincar com as pessoas de uma maneira saudável. (G. C.)
Todas as famílias que crio e suas histórias de vida são baseadas na vida que eu queria
ter, em como eu queria ser e como eu queria viver, sempre as mesmas histórias da
família perfeita, o casamento perfeito, os filhos perfeitos e toda aquela perfeição que
a vida real nada tem. Acho que no geral é uma forma de fugir da realidade e
experimentar um sonho impossível, uma fantasia. Quando eu estou jogando a
sensação que eu tenho é como se eu mesmo estivesse vivenciando e experimentando
aquelas situações pelas quais meus sims passam, fico feliz, triste, orgulhoso e
desapontado, acho que por isso TS foi sempre tão divertido para mim. Eu também
raramente me aproximo das coisas desagradáveis da vida, como traição, brigas e
desgraças (L. H.)
É onde eu tenho pleno poder das coisas. Tenho poder sobre a vida e o cotidiano das
pessoas... Pode parecer meio bizarro ou psicopata, mas é onde eu brinco de ser
Deus... e sou. (C. A.)
Realmente é outro mundo onde você pode fazer o que quiser, e se der algo errado é
só não salvar o jogo e começar novamente, e isso é muito legal. (V. F.) Faço meu marido e eu q na vida real não queremos filhos, então me encho de filho
no jogo, rsrs. (J. B.).
Percebemos, pelos depoimentos, que o jogo é permeado pela idealização: ser a pessoa
perfeita, esteticamente linda, ter a vida que sempre sonhou, a profissão desejada, o modelo de
família ideal. Essa concepção idealizada pode fazer com que emerjam cenas carregadas de
significados que podem ser explorados, lembrando do que acontece também no cenário
psicodramático. Também, é presumível experimentar possibilidades, como ser criança, homem,
mulher, idoso... É possível enxergar outros caminhos: experimentar uma relação homoafetiva
ou se relacionar com pessoas comprometidas. Os jogadores podem explorar performances e
representar na tela personagens e papéis imaginários que não podiam ser desempenhados em
papéis sociais efetivos. O universo da simulação permite ousar nesta atmosfera, ao mesmo
tempo, permissiva e acolhedora, onde predomina a realidade suplementar. Permitindo a
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passagem do “como é” para o “como se”, o jogo favorece testar outras possibilidades e oferece
outras escolhas, conduzindo o jogador a vislumbrar outros caminhos e saborear suas
idealizações. O jogador se sente brincando de ser “Deus” e entra na pele dele, tendo o poder de
criação, fazendo-nos lembrar de Moreno, aos quatro anos brincando de ser Deus, que quebra o
braço direito ao cair das cadeiras e mesas colocadas umas em cima das outras, fingindo ser o
céu, na intenção de voar. Ele entrou realmente no papel de ser Deus.
No jogo dramático, busca-se levar o participante a fazer algo a partir de e com suas
idealizações, como ele pode trazer para sua realidade as idealizações projetadas em nível da
fantasia. Significa que o desempenho de papéis no “como se” possibilita experimentações de
outras escolhas, caminhos e possibilidades, encorajando-o a ousar e se lançar rumo ao que
busca. Implica fazer alguma coisa na sua vida com o papel vivenciado no jogo, chegando o
mais próximo possível dessa idealização. Nos jogos digitais, o jogador pode também ser
conduzido a alcançar uma aproximação com seu ideal de vida, por meio do jogo de papéis,
ampliando sua autopercepção, como veremos na categoria percepções/efeitos.
9.3.3 Expressando sentimentos
Eu crio personagens fictícios, alguns atores, gente que eu não gosto na vida real e
minha família. Crio gente que não gosto pra poder fazer eles se darem mal no jogo,
mas acabo não jogando com eles. (Coisa de doido) (J.B.)
Podemos experimentar o outro lado: ser o “diabinho”, vivenciar nosso lado sombrio ou
obscuro e “cuspir” nossa raiva, frustração ou inveja. Como nos diz Prado (2000): “Os jogos
digitais possuem valores psicodramáticos, pois existe a possibilidade de se fazer role-playing”
(p. 79), podendo-se utilizar avatares para expressar sentimentos. Por intermédio do avatar, o
jogador pode colocar para fora o que está guardado dentro dele, sejam bons ou maus
sentimentos.
9.3.4 Personagens que se aproximam de sua vida real
Bom, quando crio meus personagens eu, sempre, faço eu mesma e jogo. São raras as
vezes em que crio algum que se distancie de mim de alguma maneira. (B.P.)
Minha personagem tem aspectos que eu queria ter, a vida, a profissão, as habilidades
e traços são baseados nas minhas escolhas pessoais... (A.F.)
Geralmente crio eu mesma no jogo, às vezes já casada, as vezes sozinha, busco fazer
coisas e ter ações mais próximas possíveis do que eu faria na realidade. (A.L.)
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As pessoas que crio inspirada na vida real eu coloco a verdadeira personalidade,
incluindo minha família e eu. (J.B.)
Eu também normalmente adoto crianças, ao invés de fazê-los, e me baseio nisso pois
sou filha adotiva! (B.L.)
Os jogadores buscam não fugir do que são, não destoando o avatar de sua própria
natureza. Talvez, possa haver pequenas modificações, mas são mínimas a ponto de não gerar
desconforto ou discrepância exagerada. Geralmente, há uma sintonia entre as condutas do
jogador e as atitudes que ele indica para seu avatar, assim como hábitos e habilidades. E, assim,
vão fazendo vir à tona pequenas vinhetas de seus mundos privados e dramatizando aspectos de
sua própria vida. Podem se reconhecer nos papéis que desempenham ou ampliar a percepção
de si e de sua vida, sendo uma mola propulsora para novas atitudes.
9.3.5 Personagens se distanciam de sua vida real
(...) eu crio meu personagem mas não tem nada com minha história de vida, eu faço
tudo com minha sim tudo que não faço na real como por exemplo ter vários bbs, casar
várias vezes, matar a família toda kkkk, refazer toda a família (...). (G.E.)
Eu crio meus personagens sem nenhuma ligação com a história da minha vida. Mas
antes de criar eu penso na carreira que vão seguir e faço o personagem de acordo
com que planejo. Como eu disse, eu não crio os personagens de acordo com a minha
vida, eu tenho pavor na verdade kkkk nunca fiz um personagem com meu nome ou
nome da minha mãe, pai, namorado ou amigos próximos. Acho que estranho pq eu
penso que é realmente a pessoa e se ela morrer ou algo acontecer vai ser meio
esquisito kkkkk. (Y.M)
Eu crio meus personagens meio que aleatoriamente, mas normalmente são do tipo
que foge dos nossos padrões sociais, então, normalmente são negros, gordos, com
cabelos diferentes e sem diferenças de roupas entre homem e mulher. (B.B.)
Bom, eu geralmente crio personagens que não tem nada a ver comigo! Sempre coloco
a personalidade excêntrica kkkk e faço as maiores maluquices com elas. (...) Elas
sempre trabalham em um ramo relacionado a artes e tem uma vida noturna bem
agitada (ao contrário de mim, sou diurna e à noite sou mal humorada). (C.Z.)
Eu crio personagens totalmente opostos de mim. E crio com personalidades variadas.
As casas eu faço bonitas e luxuosas como eu gostaria que fosse a minha quando eu
ganhar na Mega Sena. Kkkkk nunca fiz eu mesma no jogo pq de pobre e frustrada já
basta na vida real. Prefiro criar as Sims lindas, felizes e ricas. (F.X.)
Sempre crio personagens diferentes de mim. (B.B.)
Sempre crio personagens sendo o oposto da minha personalidade! Nunca me criei no
jogo! (V.G.)
Bom eu saio da realidade. Tento criar algo que eu gostaria de ser e viver.
Tudo bem fora da minha realidade. (G.B.)
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(...) pq senão é como se eu tivesse uma segunda ‘vida’ paralela com a minha rela,
acho que isso pode ser até ruim pra mim mesma! Por isso tento ao máximo distanciar
os sims da minha história do que eu sou de verdade, apesar de que eu já coloquei
coisas que realmente aconteceu comigo na minha série, ou com pessoas que eu
conheço, (...) (M.S.)
À medida que o jogador busca criar personagens diferentes de si mesmo, ele tende
também a experimentar ideais identificatórios, projetar idealizações e explorar possibilidades,
fugindo da sua realidade. Nesse sentido, ao se distanciar do que são ou de sua história de vida,
aproxima-se de uma realidade suplementar, na qual os desejos e fantasias são expressos e
encenados. É como se buscassem no jogo a realização, ainda que simbólica, de seus desejos e
anseios. Mas que, para o jogador, enquanto está jogando, é absolutamente real.
9.3.6 Percepções/Efeitos na vida real
(...) até que decidi correr atrás das mudanças que eu queria e atualmente jogo
raramente. (L.A.)
Acho que através do TS eu me conheci melhor, através dos traços do jogo eu percebo
quais seriam os meus e isso é bem legal também. (L.H.)
Seguindo o movimento dos jogadores, a partir dos depoimentos, percebemos que os
personagens e os papéis desempenhados provocam novas ações e podem modificar a forma de
o jogador se lançar na sua vida real. O primeiro depoimento é de um jogador que passava muito
tempo envolvido no jogo, fugindo de sua realidade, conforme ele mesmo diz, mas que fez com
que ele percebesse que ele mesmo precisava fazer as mudanças, as quais ele desejava
acontecerem em sua vida. No segundo depoimento, o personagem permitiu que ele
reconhecesse aspectos e traços seus, ampliando seu autoconhecimento e fazendo novas
aprendizagens.
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10 Tecendo histórias
10.1 As espécies companheiras
O jogador entra no jogo. Cria seu personagem, seu avatar. Ele já não está mais sozinho.
Jogador e avatar vão se fazendo, se construindo, se afetando. São parceiros, vivem juntos no
aqui-e-agora do jogo e talvez até além dali. Um dá sentido ao outro. Nesse ponto, meu olhar se
volta, encantado, ao que Haraway (2008) registra ao falar do pai, um escritor de esportes, que
conviveu com várias espécies companheiras devido a um problema físico crônico.
Avatar: uma espécie companheira que pode fazer diferença na vida do humano/jogador.
Nenhum dos dois briga pela supremacia de sua existência; apenas de certa forma, fazem parte
um do outro. Existe uma intensidade nessa relação, indicando uma fusão. O jogador não é um
mero espectador. De sua cadeira ou poltrona diante do computador, ele emerge numa
interatividade constante com seu avatar, numa relação próxima e tênue, estimulando um vir a
ser através de fusões. Mediado pelas telas, ele se envolve, é criador, autor, ator numa rede de
conexões que se movimentam e se fazem ao longo do jogo, a partir das vivências no jogo. Vidas
se entrelaçam, se complementam, gerando um emaranhado de associações pelas próprias
conexões que vão se fazendo durante o jogo. À medida que o jogador sai de sua pele para entrar
na pele no avatar, ele experimenta possibilidades, estimula mudanças e vislumbra novas saídas.
O avatar expande as possibilidades de ação. A partir da discussão de Arendt e Moraes
(2016) sobre o projeto ético de Haraway somos implicados em aceitar a multiplicidade do
mundo e a heterogeneidade que caracteriza humanos e não humanos, e que desfocar a atenção
do que o indivíduo é possibilita olhar o que esse mesmo indivíduo poderia ser, numa situação,
ela própria plena de possibilidades. O jogo oferece o “posso”, ampliando as possibilidades de
ação. Esse movimento reconecta o indivíduo com sua história, podendo agregar e integrar
significado para ele, a busca de um sentido, de algo novo; e a espécie companheira avatar torna
isso possível. O jogador se faz na relação com a espécie companheira. As histórias vividas pelos
avatares reconectam o jogador com suas próprias vivências. São histórias que remontam
dramas, desejos, receios. São histórias reais trazidas à tona, são histórias fictícias... Têm
novelas, tramas, suspense, num movimento constante de associações. Podem religar, mas
podem ter também o poder de desligar o jogador do seu mundo, conduzindo-o para um mundo
à parte, povoado dos sonhos realizados e longe do mundo dos desejos calados; o seu mundo,
um lugar seu. Por vezes, pode se apresentar também como um universo sombrio e vazio, mas,
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na maioria das vezes, os jogadores se confrontam com tudo de melhor que buscam para si e
para sua vida. O avatar pode trazer à luz algo que estava na escuridão. Pode apontar caminhos
e produzir aprendizado.
10.2 O jogo chega ao fim... Interlocuções: uma conexão possível?
Ao costurar esse cruzamento de perspectivas, passamos a refletir sobre possíveis
analogias dos jogos psicodramáticos com os jogos digitais pelo uso da fantasia, na mediação de
cenas e por intermédio do jogo de papéis. Longe de serem reduzidos um ao outro, apenas
consideramos possíveis conexões entre eles feitas pelo caráter lúdico de experimentação de
papéis no palco do imaginário, do “como se”.
Estar atentos aos pontos de vista de todos os atores na rede, como os autores, jogadores,
colegas do grupo de estudo da TAR e ao meu também enquanto
pesquisadora/jogadora/psicodramatista, nos conduziu a explorar os elementos que emergem
nesses dois cenários, os quais podem provocar um ao outro e promover efeitos na vida dos
participantes.
Fui me sentindo convocada a entrar nesse jogo e conferir como os personagens eram
criados, o que eles podiam nos dizer sobre si próprios, que percepções poderiam ocorrer e que
novos movimentos na vida e para a vida o jogo poderia provocar os jogadores a fazer, bem
como são construídas as redes onde humanos e não humanos interagem. O jogo de papéis pode
tornar-se uma ferramenta que facilita a percepção do próprio papel, viabilizando mudanças que
conduzam a um melhor funcionamento no contexto social.
Colocar os sujeitos em ação é colocar em cena o devir humano. E não é essa nossa
condição? O vir-a-ser possibilita um constante processo de subjetivação e de construção do eu.
Entendemos que os jogos digitais e os jogos dramáticos oferecem a ação e a expressão,
estabelecendo uma noção de acoplamento, na qual sujeito e interface/grupo se influenciam e se
constroem nessa relação, que é uma rede. É nas e pelas relações que nos fazemos. E o modo de
nos relacionar com os outros e com o mundo contribui para definir nossa identidade. O que está
em cena é o vínculo, a conexão, o ser afetado, de tal forma que gera repercussões e efeitos no
jogador/participante, desencadeando algum aprendizado.
Guiados por essas considerações, nos jogos eletrônicos, tem-se a possibilidade de fazer
role-playing e o jogador pode explorar papéis e experimentar emoções, que podem ser
semelhantes àquelas que seriam vivenciadas no cenário psicodramático. Há um jogo em comum
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entre os dois: o jogo de papéis. Tem-se a possibilidade de elaborar conflitos por meio do jogo.
Nesse sentido, o jogo passa a exercer uma função terapêutica. A construção de personagens
oferece a liberdade para interpretar variados papéis. Assim, o jogador/participante vai
desenhando sua identidade.
Nesse jogo de ser/não ser, papéis são experimentados, cenas são criadas e o jogador é,
em certa medida, livre para ousar, tudo numa atmosfera protegida do faz de conta, bem como a
tela do computador e o anonimato no ambiente virtual. Nos jogos eletrônicos, pelo seu potencial
criativo, o indivíduo pode experimentar e modificar papéis desempenhados conforme sua
vontade, lançando mão de papéis que favoreçam a expressão de sentimentos e afetos que
encontram no mundo imaginário a possibilidade de liberação. Nos jogos dramáticos, o jogador
pode renunciar, também, a papéis que vivencia na realidade como negativos e experimentar
papéis que necessitam ou que estão sendo negligenciados. Pode, ainda, rever papéis que se
encontram supervalorizados, dosando-os na medida certa.
Correlato ao ambiente psicodramático, o mundo virtual também parece exercer a função
de um palco, onde jogadores são atores e se lançam em um cenário de livre criação,
experimentando sensações e extravasando emoções. Nesse contexto, o protagonista tem a
possibilidade não apenas de experimentar atuações, mas de apresentar no “palco” seus próprios
EUs. Enfim, é o teatro dos EUs, sendo a plataforma de videogame onde o drama se revela. O
alcance dos jogos eletrônicos consiste na estimulação da imaginação e da criatividade, e
mobiliza o pensar, o sentir e o agir. O palco do faz de conta da realidade suplementar é onde
tudo isso pode acontecer, abrindo as cortinas para o jogador vislumbrar novas maneiras de ser,
podendo ressignificar aspectos de sua história.
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ANEXO A – Roteiro de Orientação após a etapa da imersão nos jogos eletrônicos
Como foi a minha relação com o não humano computador/jogo eletrônico?
Como se dava o meu aquecimento para jogar/desempenhar determinado tipo de papel?
A partir de que ideias criava o meu personagem?
Em que este personagem se assemelhava a mim e à minha história de vida?
Em que este personagem se distanciava de mim e da minha história de vida?
Quais papéis desempenhava no jogo que se aproximam daqueles que desempenho na
minha vida real?
Quais papéis desempenhava no jogo que são diferentes daqueles que desempenho na
minha vida real?
Quais sentimentos eram suscitados em mim pela experiência no universo do “como se”?
Que percepções eu tive ou que descobertas eu fiz das minhas vivências nos jogos
eletrônicos?
Ao final da etapa de jogar o jogo, quais sentimentos se fazem presentes?
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ANEXO B – Postagem no Facebook
Olá pessoal! Sou psicóloga e estou fazendo mestrado em Psicologia e na minha pesquisa
investigo o jogo The Sims 4 como meio para expressão de afetos e sentimentos no jogo de
papéis. Sou uma jogadora novata, inexperiente, que tem jogado The Sims 4 após jogadores e
colaboradores estarem me ensinando. Será que poderiam me ajudar com minha pesquisa
postando depoimentos a respeito de como se preparam para desempenhar determinado tipo de
papel, a partir de que ideias criam seus personagens e se eles se assemelham ou distanciam de
vocês e das suas histórias de vida? Que sentimentos são suscitados em vocês pela experiência
nesse universo da simulação e que percepções vocês têm ou que descobertas fazem das suas
vivências no jogo? A minha própria experiência no jogo também é parte da pesquisa, mas
preciso fundamentalmente da colaboração de vocês.
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ANEXO C – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE)
Prezado(a) participante.
Você está sendo convidado(a) a participar da pesquisa Atores em Ação: O Jogo no
Psicodrama e os Jogos Eletrônicos, desenvolvida por Maria Dulce Santiago de Carvalho,
discente do Mestrado em Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), sob
orientação da Professora Dra. Maria de Fátima Aranha de Queiroz e Melo.
O objetivo central do estudo é verificar as possíveis correlações do jogo na prática
psicodramática e os jogos eletrônicos, mediados pela ludicidade, e os efeitos dos jogos de papéis
na vida real da pesquisadora.
O convite à sua participação se deve ao fato de você ser jogador e ter conhecimento sobre os
jogos eletrônicos e suas técnicas específicas. A sua participação consistirá em fornecer
informação e técnicas de como jogar jogos eletrônicos que possam se enquadrar em aspectos
observados nos jogos dramáticos do Psicodrama.
O tempo de duração dos encontros com a pesquisadora é de aproximadamente uma hora, sendo
que serão marcados de um a dois encontros.
Sua participação é voluntária, isto é, ela não é obrigatória, e você tem plena autonomia para
decidir se quer ou não participar, bem como retirar sua participação a qualquer momento. Você
não será penalizado de nenhuma maneira caso decida não consentir sua participação ou desistir
da mesma. Contudo, ela é muito importante para a execução da pesquisa. Serão garantidas a
confidencialidade e a privacidade das informações por você prestadas.
Qualquer dado que possa identificá-lo(a) será omitido na divulgação dos resultados da pesquisa,
e o material será armazenado em local seguro. A qualquer momento, durante a pesquisa, ou
posteriormente, você poderá solicitar do pesquisador informações sobre sua participação e/ou
sobre a pesquisa, o que poderá ser feito através dos meios de contato explicitados neste Termo.
Os benefícios relacionados com a sua colaboração nesta pesquisa consiste na possibilidade de
você receber informações acerca de características dos jogos no âmbito psicodramático,
agregando novos conhecimentos. Também, é possível que, no decorrer da transmissão das
informações de sua parte junto à pesquisadora, na imersão do jogo, você perceba suas próprias
vivências nos jogos, ampliando seu autoconhecimento.
Os desconfortos relacionados com a sua colaboração se referem ao tempo que você
disponibilizará ou gastará nos encontros com a pesquisadora. Para minimizar, os horários serão
agendados com flexibilidade, visando ao melhor horário para você.
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Os dados colhidos no presente estudo serão utilizados na Dissertação de Mestrado, em artigos
científicos e em apresentação em congressos.
Garantimos, desde já, a confidencialidade, a privacidade, o anonimato dos participantes e a
proteção dos dados. Os dados coletados serão armazenados no computador da pesquisadora
pelo prazo mínimo de três anos sob responsabilidade desta.
Informamos que este Termo é redigido em duas vias, sendo uma via para o pesquisador e a
outra fornecida ao participante. Todas as páginas deverão ser rubricadas pelo participante da
pesquisa e pelo pesquisador responsável com ambas as assinaturas apostas na última página.
Em caso de dúvida quanto à condução ética do estudo, entre em contato com o Comitê de Ética
em Pesquisa da CEPSJ. O Comitê de Ética é a instância que tem por objetivo defender os
interesses dos participantes da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no
desenvolvimento da pesquisa dentro de padrões éticos. Dessa forma, o Comitê tem o papel de
avaliar e monitorar o andamento do projeto de modo que a pesquisa respeite os princípios éticos
de proteção aos direitos humanos, da dignidade, da autonomia, da não maleficência, da
confidencialidade e da privacidade.
Tel. e Fax: (0XX) 32- 3373 5479
E-mail: [email protected]
Endereço: Praça Frei Orlando, 170, Centro, São João del-Rei, Minas Gerais, CEP 36307-352,
Campus Santo Antônio
Obs.: nas pesquisas que necessitarão análise da Conep, deve-se colocar ainda o endereço e
contato da Comissão.
Se desejar, consulte ainda a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep)
Tel.: (61) 3315-5878 / (61) 3315-5879
E-Mail: [email protected]
__________________________________________________
Nome e Assinatura do Pesquisador
Contato com o(a) pesquisador(a) responsável:
Tel.: (0XX) 32- 988360529
e-mail: [email protected]
São João del-Rei, _____ de ___________ de 2016.
Declaro que entendi os objetivos e condições de minha participação na pesquisa e concordo em
participar.
____________________________________________________
Nome e Assinatura do participante da pesquisa do participante