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ATUAÇÃO DA EMPRESA BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO DE PETRÓLEO
E GÁS NATURAL S.A. - PRÉ-SAL PETRÓLEO S.A. (PPSA): GESTÃO E RISCO
NO REGIME JURÍDICO-REGULATÓRIO DOS CONSÓRCIOS CONSTITUÍDOS
NO ÂMBITO DO SISTEMA DE PARTILHA DE PRODUÇÃO
Alex Vasconcellos Prisco
Artigo publicado na Revista de Direito Público da Economia – RDPE 34
(abril/junho 2011)
Resumo: o presente artigo analisa o regime jurídico-regulatório que delineia o
campo de atuação da Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás
natural S.A. - Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA) junto aos consórcios constituídos no
âmbito do sistema de partilha para exploração e produção de óleo e gás nas áreas
do pré-sal. O trabalho traça um panorama dos aspectos essenciais desse marco
regulatório petrolífero, com destaque para os motivadores de criação da PPSA,
seus objetivos e sua atividade como gestora dos contratos de partilha. A análise
empreendida também enfoca alguns aspectos jurídico-institucionais da parceria
empresarial firmada entre Estado e iniciativa privada no setor upstream de
petróleo e gás, abordando aspectos ligados à governança dos empreendimentos e
à distribuição dos riscos entre as empresas participantes da associação
consorcial.
Palavras-chave: Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás natural
S.A.. - Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA). Regime jurídico-regulatório. Gestão. Risco.
Consórcio. Sistema de partilha de produção.
Sumário: Introdução: os desafios para um novo direito do petróleo - A mutação do
marco regulatório: o retorno do pêndulo - A volta do Estado empresário e o ônus
regulatório - 1 Origem e aspectos essenciais do modelo de partilha de produção -
1.1 Visão geral do modelo brasileiro de partilha de produção: base legal e
2
funcionalidade elementar - 1.1.1 Papel da Petrobras - 1.1.2 Licitação - 1.1.3
Participações governamentais e de terceiros - 1.1.4 Destinação das receitas -
1.1.5 Papéis dos organismos estatais envolvidos - 2 Papel e funções da PPSA:
estrutura jurídica básica, fundamentos e objetivos de criação da estatal - 2.1
Atuação da PPSA como gestora dos contratos de partilha de produção - 2.1.1
Instrumentalização jurídica do poder de controle da PPSA no âmbito do consórcio
e do comitê operacional - 2.1.2 A atividade de representação da União pela PPSA
na órbita dos consórcios - 2.2 A questão da natureza jurídica das atribuições da
PPSA: função empresarial ou regulatória? - 3 Uma parceria empresarial diferente:
a cláusula de incolumidade da PPSA pelos riscos das atividades mantidas sob sua
gestão empresarial - 3.1 Breve panorama das joint ventures da indústria do
petróleo - 3.2 Disciplina de alocação de riscos nos consórcios do sistema de
partilha: uma análise crítica - Conclusão
Abstract: this article analyzes the legal and regulatory framework that delineates
the field of performance of the brazilian public company known as Empresa
Brasileira de Administração de Petróleo e Gás natural S.A. - Pré-Sal Petróleo S.A.
(PPSA) and its participation in the consortia formed under the oil sharing system
for exploration and production in the pre-salt areas. The paper presents an
overview of the essential aspects of petroleum regulatory framework, especially the
motivators for the creation of the PPSA, its objectives and its activities as manager
of production sharing agreements. Such analysis also focuses on some
institutional and legal issues of business partnership forged between state and
private corporations in the oil and gas sector, covering aspects related to the
governance of enterprises and the distribution of risks between the companies
participating joint venture.
Keywords: oil and gas. Pré-salt. Public company. Empresa Brasileira de
Administração de Petróleo e Gás natural S.A.. - Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA).
Legal and regulatory framework. Management. Risk. Consortium. Production
sharing system.
3
Introdução: os desafios para um novo direito do petróleo
Em 20071, foram anunciadas descobertas no Brasil de volumosas reservas
de hidrocarbonetos (petróleo e gás natural), localizadas em camada geológica
denominada “pré-sal”. Como se sabe, o descobrimento desses reservatórios pode
elevar o Brasil à categoria dos grandes estados produtores de óleo e gás2, o que
trará ao País, no médio e longo prazo, a esperança de considerável ingresso de
divisas, impactando significativamente o desenvolvimento socioeconômico
nacional.
De acordo com Humberto Quintas e Luiz Cezar P. Quitans3, o bom
aproveitamento desse valioso patrimônio perpassa pela formulação e
implementação de políticas públicas industriais voltadas ao desenvolvimento da
“cadeia interna de fornecedores de produtos e serviços”, ao incentivo de estudos e
pesquisas em tecnologia e ao incremento da proteção ao meio ambiente.
Daí porque o fenômeno do pré-sal, conforme observa Carlos Ari Sundfeld4,
impõe o “desafio” de se “repensar” o “direito do petróleo”. Afinal, a exploração e
produção dessas jazidas exigirão “enormes investimentos”; sem contar que o
1 Na verdade, segundo informa Marilda Rosado de Sá Ribeiro, as primeiras discussões acerca da
existência de hidrocarbonetos nas “estruturas rift (pré-salt)” datam do ano de 1995, ocasião em que foi publicado um trabalho de autoria de S. G. Henry e outros, a respeito da “possibilidade de ocorrência de petróleo e gás na camada inferior ao sal no Brasil e na África”. A autora revela também que, em 2004, o diretor–geral da ANP à época deu uma entrevista ao jornal O Globo, na qual declarou que estudos realizados apontavam para uma nova Bacia de Campos abaixo da atual. Ela diz ainda que no mesmo período, foi divulgada nos meios especializados pesquisa de Márcio Mello indicando a presença “de um grande reservatório abaixo do sal”. (RIBEIRO, Marilda de Sá Rosado. Parecer sobre a Oitava Rodada de Licitações, Novos Rumos do Direito do Petróleo. In: RIBEIRO, Marilda de Sá Rosado (Coord.). Rio de Janeiro: Renovar, 2009, pp.85, 87 e 88). De qualquer forma, o certo é que o assunto só ganhou notoriedade para o público em geral quando o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), após ser informado pela Petrobras do descobrimento de grandes volumes de óleo e gás em áreas exploratórias sob sua responsabilidade, editou a Resolução n
o 6, de 8 de novembro de 2007, que excluiu da 9º Rodada
de Licitações a oferta dos blocos de Elevado Potencial localizados na fronteira do pré-sal. 2 Segundo matéria veiculada na revista setorial Análise Energia, Anuário 2010, p. 29: “O pré-sal
representa a possibilidade de alçar o Brasil ao seleto grupo dos dez maiores produtores mundiais de petróleo”. 3 QUINTAS, Humberto; e QUITANS, Luiz Cezar P. A História do Petróleo: no Brasil e no Mundo.
Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2009, p. 87. 4 SUNDFELD, Carlos Ari. Quanto reformar do direito brasileiro do petróleo? Biblioteca Digital
Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 8, n. 29, jan./mar.2010. Disponível em: <http://www.editoraforum.com.br/bid/bidConteudoShow.aspx?idConteudo=65861>. Acesso em: 22/06/2010.
4
Poder Público deve estar preparado para “administrar os bens e recursos
financeiros que serão gerados” com a exploração da nova fronteira exploratória.
Não há dúvida, assim, de que a descoberta dos grandes campos
petrolíferos do pré-sal demanda - ainda que minimamente - a reformulação do
modelo de regulação da atividade de pesquisa e lavra de óleo e gás. É que a Lei
do Petróleo (Lei nº 9.478/97), “embora venha cumprindo os principais objetivos
definidos quando de sua edição, não foi arquitetada “para dar conta de todos os
desafios decorrentes da nova realidade setorial, marcada pela imensa magnitude
das reservas5”.
A mutação do marco regulatório: o retorno do pêndulo
Constatada a necessidade de mudanças, surge então a indagação central:
qual seria a modelagem regulatória mais adequada ao eficiente e eficaz
aproveitamento das riquezas do pré-sal pelo povo brasileiro?
Segundo anota Carlos Roberto Siqueira Castro6, essa é uma questão
política de solução “extremamente delicada e difícil”, pois não há como se
“privilegiar a priori, de forma irrestrita e irrefletida, um determinado modelo de
exploração e produção de petróleo e gás natural”. Logo, cabe ao legislador, “após
a devida ponderação dos valores e crenças de maior peso para a sua nação”,
definir as normas que conformarão a atividade.
O mesmo autor observa ainda que, embora seja ampla a discricionariedade
legislativa na formatação desses modelos – já que não há “fórmula pré-definida ou
diretriz uniforme” -, essas decisões políticas obedecem a uma espécie de
“dualismo pendular7”, traduzindo-se em normas “por vezes mais favoráveis à
5 SUNDFELD, Carlos Ari. Quanto reformar...ob. cit.
6 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Parecer jurídico dado à Associação Brasileira das Agências
Reguladoras – ABAR acerca dos projetos de lei apresentados pelo Governo Federal para mudança do regime de exploração e produção de hidrocarbonetos na área do pré-sal e zonas estratégicas, 2009, p. 5. Disponível em: <http://www.abar.org.br/biblioteca/decisoesPareceresJuridicos/>. Acesso em: 22/09/2010. 7 A expressão foi tirada de uma obra de Fabio Konder Comparato, ao escrever sobre a trajetória
histórica de nossas políticas legislativas em matéria de direito falimentar, as quais alternadamente protegem o insolvente ou seus credores, “ao sabor da conjuntura econômica e da filosofia política
5
participação privada e por vezes revestidas de forte cunho nacionalista e
estatizante8”.
O Brasil conhece bem essa movimentação, já tendo ao longo da história
oscilado entre esses dois extremos, adotando regimes jurídico-regulatórios que
ora atribuíam à iniciativa privada ampla liberdade de atuação no setor minerário de
exploração e produção de petróleo, ora restringiam totalmente o exercício da
atividade por entes privados. O primeiro é o caso da Constituição Republicana de
1891, em que as riquezas do subsolo “pertenciam ao proprietário do solo”,
conforme art. 72, § 17, segunda parte9. O segundo é a hipótese da Constituição
da República de 1988, na redação original do art. 177, § 1º, pela qual se vedou a
União ceder a particulares “qualquer tipo de participação, em espécie ou em valor,
na exploração de jazidas de petróleo ou gás natural”10.
Nos últimos tempos, vigorou um cenário institucional de convivência
harmônica entre as esferas pública e privada envolvidas nos negócios da indústria
do petróleo. A Emenda Constitucional n° 9/95 flexibilizou o monopólio do Poder
Público sobre o exercício da pesquisa e lavra de hidrocarbonetos, sendo facultado
à União “contratar com empresas estatais ou privadas” a realização das atividades
petrolíferas11, na forma da Lei nº 9.478/97 (Lei do Petróleo). Como anota Carlos
do momento”. (COMPARATO, Fabio Konder. Aspectos Jurídicos da Macro-empresa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970, p. 98). 8 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Parecer... ob. cit. pp. 2/3.
9 Cf. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 24 de fevereiro de 1891), art. 72,
§ 17: “O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salva a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. As minas pertencem aos proprietários do solo, salvas as limitações que forem estabelecidas por lei a bem da exploração deste ramo de indústria” (destaque nosso). 10
Confira-se a íntegra da redação primitiva do art. 177, § 1º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “O monopólio previsto neste artigo inclui os riscos e os resultados decorrentes das atividades nele mencionadas, sendo vedado à União ceder ou conceder qualquer tipo de participação, em espécie ou em valor, na exploração de jazidas de petróleo ou gás natural, ressalvado o disposto no art. 20, § 1º (destaque nosso). Para uma breve resenha histórica dos regimes jurídicos da atividade de petróleo e gás no Brasil, vide QUITANS, Luiz Cezar P. A Trajetória do Monopólio do Petróleo no Brasil. Revista Jurídica Netlegis. Aracaju, outubro de 2010. <http://www.netlegis.com.br/indexRJ.jsp?arquivo=detalhesArtigosPublicados.jsp&cod2=2256>. Acesso em: 12/10/2010. 11
Cf. CRFB/88, art. 177, § 1º, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 9, de 1995: “A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo observadas as condições estabelecidas em lei.
6
Ari Sundfeld12, esse modelo se revelou bem sucedido, pois teve a capacidade de
atrair empresas privadas, que coexistem em pé de igualdade com a sociedade
estatal (Petrobras), gerando boa receita à União, a quem apenas cabe
participação financeira sobre os rendimentos da atividade (government take), sem
maiores ingerências do Estado na administração dos projetos. Nesse desenho, as
contratações são formatadas pelo regime de concessão, em que se confere aos
entes privados ampla liberdade de gestão empresarial, sendo os
empreendimentos supervisionados e fiscalizados por uma agência reguladora
autônoma (ANP), o que diminui a “interferência política na execução dessa
atividade econômica” e garante maior “segurança para os investidores (estatais ou
não)”.
Já o novo marco regulatório para exploração e produção de
hidrocarbonetos na camada pré-sal pode ser visto como um novo deslocamento
retrocedente do pêndulo: afasta-se de uma modelagem de perfil mais liberalizado -
onde existe relevante e paritária participação da iniciativa privada na condução
técnica dos projetos -, para se aproximar de uma estrutura essencialmente
estatizada - na qual o Estado, mediante empresas estatais privilegiadas, deterá o
controle da gestão direta dos empreendimentos, tudo orientado por critérios
políticos.
As novas regras do setor estão dispostas nos seguintes diplomas
legislativos:
Lei nº 12.351/2010: dispõe sobre a exploração e produção de petróleo e
gás natural sob o regime de partilha de produção em áreas do pré-sal e em
zonas estratégicas, alterando dispositivos da Lei nº 9.478/1997 (Lei do
Petróleo) e cria o Fundo Social – FS, dispondo sobre sua estrutura e fontes
de recursos;
12
SUNDFELD, Carlos Ari. Quanto reformar...ob. cit.
7
Lei nº 12.304/2010: autoriza o Poder Executivo a criar a Empresa Brasileira
de Administração de Petróleo e Gás Natural S.A. - Pré-Sal Petróleo S.A.
(PPSA), estatal responsável pela gestão dos contratos de partilha de
produção e de comercialização; e
Lei nº 12.276/2010: autoriza a União a ceder onerosamente à Petróleo
Brasileiro S.A. - PETROBRAS os direitos de pesquisa e lavra de
hidrocarbonetos nas zonas do pré-sal (a chamada “Cessão Onerosa”).
Os fundamentos articulados para criação de uma nova regulação para o
setor de óleo e gás são os de que o considerável volume de reservas do pré-sal e
os “riscos exploratórios extremamente baixos” demandariam uma maior ingerência
estatal nos destinos dos projetos, a fim de que sejam atendidas as seguintes
finalidades13: (i) “otimizar o ritmo de exploração dos recursos do Pré-Sal”; (ii)
“aumentar a apropriação da renda petrolífera pela sociedade”; (iii) contribuir para o
fortalecimento da posição internacional do País”; (iv) ampliar a “base econômica e
industrial brasileira”; (v) “garantir o fornecimento de petróleo e gás natural no
País”; e (vi) “evitar distorções macroeconômicas resultantes da entrada de
elevados volumes de recursos relacionados à exportação dos hidrocarbonetos
produzidos no Pré-Sal”.
13
Confira-se, na parte que interessa, os itens 6 e 7 da exposição de motivos ao Projeto de Lei nº 5.938/2009, que deu origem à legislação para exploração e produção de petróleo sob o regime de partilha de produção: “(...) a legislação atualmente vigente não prevê outras possibilidades de contratação das atividades de pesquisa e lavra de hidrocarbonetos de forma diversa do modelo de concessão. De acordo com este modelo, o concessionário exerce, por sua conta e risco, as atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural, adquirindo, após a extração, a propriedade de todos os hidrocarbonetos produzidos. Em compensação, paga ao poder concedente bônus de assinatura, royalties e participações especiais, cujos valores, nos dois últimos casos, dependem, em regra, do volume de produção do petróleo e do gás natural extraídos. Esse modelo, em que cabe ao concessionário a totalidade do risco e dos rendimentos obtidos com a exploração, mostra-se incompatível com a natureza da área do Pré-Sal. (...). Testes indicaram a existência de grandes volumes de óleo leve de alto valor comercial (30 graus API), com grande quantidade de gás natural associado. Trata-se de áreas nas quais são estimados riscos exploratórios extremamente baixos e grandes rentabilidades, o que determina a necessidade de marco regulatório coerente com a preservação do interesse nacional, mediante maior participação nos resultados e maior controle da riqueza potencial pela União e em benefício da sociedade.”
8
Para alcançar os objetivos idealizados, considerou-se imprescindível a
realização de profundas e intricadas modificações na ordem “político-
administrativa” das “entidades governamentais envolvidas14”, além de instaurar um
novo modelo contratual, denominado “Contrato de Partilha de Produção” (ou
Production Sharing Agreement - PSA ou ainda Production Sharing Contract - PSC,
como é internacionalmente conhecido).
A volta do Estado empresário e o ônus regulatório
Sem querer adentrar na controvérsia acerca da veracidade das justificativas
apontadas pelos formuladores da nova política petrolífera15 e independentemente
de o modelo escolhido ser ou não o mais adequado ao progresso econômico e
bem-estar social do País, o certo é que a legislação para exploração do pré-sal
enfrentará muitos transtornos para ser válida e eficazmente acomodada no
arcabouço jurídico pátrio.
De fato, são inúmeras e multifacetadas as polêmicas jurídicas que gravitam
em torno do novel regramento, acarretando aquilo que Carlos Ari Sundfeld
lucidamente denominou de excesso de “ônus regulatório”16, que são os grandes
riscos ínsitos à “criação de instrumentos contratuais, organismos (órgãos e entes
estatais) e processos decisórios completamente novos, em detrimento de todo
arcabouço institucional vigente”. Dentre os inúmeros perigos decorrentes da
“produção de novidades institucionais de alta complexidade”, estão as “inevitáveis
contestações de ordem jurídica”, que acarretam a imprevisibilidade da aplicação
14
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Parecer... ob. cit. pp. 33/48. 15
No terreno das objeções, Humberto Quintas e Luiz Cezar P. Quitans aduzem que “soam equívocas” as premissas apresentadas pelo Governo para tentar justificar as propostas de mudanças do marco regulatório petrolífero. Isso porque é impossível afirmar com tamanha segurança que “não há mais risco exploratório”, como se o pré-sal fosse uma “espécie de bilhete premiado”. Nesse sentido, os autores bem advertem que “é preciso tecnologia de vanguarda para alcançar esta camada”, que está “a mais de 6.000m (quase a altura do Monte Everest) da superfície do mar abaixo; a centenas de quilômetros mar adentro. Com correntes fortíssimas, altas temperaturas e pressão, o risco exploratório existe, principalmente porque descobertas de petróleo não pressupõem, necessariamente, descobertas economicamente viáveis”. (QUINTAS, Humberto e QUITANS, Luiz Cezar P. “A História do Petróleo...” ob cit. p. 95). 16
SUNDFELD, Carlos Ari. Quanto reformar...ob. cit.
9
do direito e, por conseguinte, acabam inibindo os investimentos necessários à
consecução das atividades petrolíferas17.
Pois bem. A criação da estatal denominada “Empresa Brasileira de
Administração de Petróleo e Gás Natural S.A. - Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA) se
insere nesse contexto problemático, uma vez que, mesmo detendo amplos
poderes de direção dos projetos do pré-sal e deles retirando vantagens
econômicas, a estatal não se responsabilizará pelos riscos e custos inerentes às
atividades petrolíferas, os quais ficarão a cargo das demais empresas
consorciadas (Petrobras e sociedades não estatais).
A intenção deste estudo, portanto, é analisar a estruturação jurídico-
regulatória que delineia o campo de atuação dessa nova estatal junto aos
consórcios constituídos no âmbito do sistema de partilha para exploração e
produção de óleo e gás nas áreas do pré-sal.
O trabalho está divido em três partes: na primeira, traçamos um panorama
da origem e dos aspectos essenciais do sistema de partilha e sua configuração
específica no marco regulatório de exploração do pré-sal; na segunda, analisamos
os papéis e funções da PPSA, com destaque para os fatores que motivaram a
criação da estatal, seus objetivos e sua atividade como gestora dos contratos de
partilha; na terceira, enfocamos alguns aspectos jurídico-institucionais da parceria
empresarial encetada entre os atores estatais envolvidos e a iniciativa privada,
dando especial realce aos temas da governança dos empreendimentos do pré-sal
e à distribuição dos riscos entre as empresas participantes da associação
consorcial.
1 Origem e aspectos essenciais do modelo de partilha de produção
17
Especificamente em relação à capacidade de atração de investimentos do modelo recém-instituído, concordamos com as observações de Carlos Jacques e outros, expendidas em estudo crítico sobre o marco regulatório do pré-sal encomendado pelo Senado Federal: “O debate político a respeito desse tema tem se dado em termos extremos: os investidores estrangeiros virão (dizem os defensores do projeto) ou não virão (afirmam os críticos). Mas o mais provável é que tais investidores venham (aparentemente dando razão aos defensores do projeto), porém aportando volume menor de capital e dando lances menos ousados nos leilões (o que daria razão aos críticos)”. (GOMES, Carlos Jaques Vieira et alii. Avaliação da Proposta para o Marco Regulatório do Pré-sal. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/conleg/textos_discussao.htm.>. Acesso em: 02/05/2010).
10
Segundo consta de estudo setorial encomendado pelo Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES18, o regime de partilha foi
inicialmente utilizado na Indonésia, nos idos de 1960, como substitutivo do modelo
antigo de concessão. A partir daí, se disseminou por diversos outros países, como
Angola, Egito, Líbia, Filipinas, Malásia, Peru, Guatemala, Trinidad-Tobago,
Quênia, Costa do Marfim, Guiné Equatorial, dentre outros. Já para outro estudo19,
a primeira aplicação do contrato de partilha de produção (Production Sharing
Contract - PSC) teria ocorrido na Venezuela, também nos anos 60, sendo que “o
formato mais refinado e moderno desse modelo contratual foi desenvolvido na
Indonésia, em 1966”.
Seja como for, o certo é que ambos os trabalhos convergem no sentido de
que a partilha de produção foi concebida como uma “resposta nacionalista”20 ao
vetusto sistema das concessões21, “que eram vistas pela população dos países
produtores como juridicamente permissivas e economicamente desequilibradas”22
18
Relatório I - Regimes Jurídico-Regulatórios e Contratuais de E&P de Petróleo e Gás Natural, referente ao estudo de alternativas regulatórias, institucionais e financeiras para a exploração e produção de petróleo e gás natural e para o desenvolvimento industrial da cadeia produtiva de petróleo e gás no Brasil para o BNDES, p. 235. Disponível em: <http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/empresa/pesquisa/chamada1/RelConsol-1de6.pdf>. Acesso em: 23/04/2010. 19
GOMES, Carlos Jaques Vieira et alii. Avaliação da Proposta... op. cit., p. 22. 20
GOMES, Carlos Jaques Vieira et alii. Avaliação da Proposta...op. cit., p. 22. 21
Segundo relata Alfredo Ruy Barbosa: “A história mais recente dos contratos de petróleo começa, de fato, com a famosa concessão outorgada pela antiga Pérsia (atual Irã), em 1920, ao cidadão inglês William Knox D‟Arcy, que ficou conhecida no setor como a "Concessão D‟Arcy". (BARBOSA, Alfredo Ruy. Breve panorama dos contratos no setor de petróleo. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 55, 1 mar. 2002. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/2794>. Acesso em: 25/12/2010. 22
Relatório I - Regimes Jurídico-Regulatórios... ob. cit., p.235. De acordo com Alfredo Ruy Barbosa, as vetustas concessões não lograram êxito em cumprir o seu objetivo principal: “o de trazer benefícios mútuos, estabelecendo um equilíbrio estável entre as partes interessadas”. Nesse sentido, o autor cita algumas condições desvantajosas aos estados hospedeiros que eram estipuladas nessas concessões tradicionais, tais como: “a) amplas áreas de concessão, sem direito de desistência, de parte a parte; b) longa duração do contrato, sem possibilidade de revisão; c) direitos exclusivos sobre todas as operações referentes ao petróleo extraído na área concedida (alguns contratos previam, inclusive, direitos sobre as operações de downstream); d) direito de propriedade sobre as reservas de petróleo em favor das companhias petrolíferas estrangeiras; e) isenção de todos os impostos e taxas aduaneiras; f) o pagamento de um reduzido valor de royalty sobre o volume total de petróleo produzido; g) transferência para o governo local da área concedida e dos equipamentos remanescentes ao final da concessão; h) fixação arbitrária e
11
em favor das companhias petrolíferas privadas. Como destacado no estudo
encomendado pelo BNDES23:
“(...) a nova „filosofia‟ de contratação aplicada ao mercado de E&P com o uso dos PSCs alinhava-se perfeitamente aos anseios nacionalistas do pós-guerra, ao garantir a manutenção da propriedade dos hidrocarbonetos produzidos pelo Estado, ao passo em que o inseria na esfera de tomada de decisões sobre exploração e produção, em contraponto à posição totalmente passiva e não-reguladora assumida pelos Estados nas concessões clássicas do início do século XX.”
Dessa maneira, o modelo de partilha, “ao garantir ao Estado a propriedade
do óleo e do gás produzidos”, evidencia “aspectos políticos” como o
“nacionalismo” e o “controle estatal” sobre as atividades petrolíferas24. Com isso,
intenta-se passar pelo menos uma maior impressão de soberania sobre os
recursos minerais e de preservação dos interesses nacionais.
Juridicamente, a nota característica do regime de partilha é a propriedade
estatal sobre os hidrocarbonetos explotados, o que representa relevante
contraposição à técnica concessional, onde o petróleo e gás, após sua extração25,
passam a pertencer ao particular que detém o exercício da atividade de pesquisa
e lavra.
Sob o ponto de vista econômico, o sistema de partilha “inverteu a lógica do
fluxo petróleo-moeda nos países que o adotaram26”. Isso porque sua conformação
unilateral do preço do petróleo extraído, sem qualquer participação do governo local” (BARBOSA, Alfredo Ruy. Breve panorama dos contratos no setor de petróleo...ob.cit.). 23
Relatório I - Regimes Jurídico-Regulatórios... ob. cit., p.235. 24
Relatório I - Regimes Jurídico-Regulatórios... ob. cit., p.235. 25
De acordo com o estudo divulgado pelo BNDES: “Como forma de garantir a soberania sobre os recursos minerais, todos os países ora analisados, com exceção dos Estados Unidos da América, asseguram expressamente em seus ordenamentos jurídicos, que a propriedade dos hidrocarbonetos in situ – ou seja, em sua condição natural na superfície ou no subsolo, antes de produzidos – são de propriedade exclusiva do Estado. (cf. Relatório I - Regimes Jurídico-Regulatórios... ob. cit., p. 24). No ordenamento constitucional brasileiro há norma expressa nesse sentido, com se vê do texto do art. 176 da CF, aplicável genericamente ao setor petrolífero que opera sob o regime de concessão (verbis): “As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra.” (destaque nosso). 26
Relatório I - Regimes Jurídico-Regulatórios... ob. cit., p.235.
12
jurídica permite aos estados produtores transferirem às empresas apenas o direito
de conduzir as atividades de exploração e produção dos minerais do subsolo,
sem, contudo, outorgar quaisquer direitos de propriedade sobre o óleo e gás
extraídos das jazidas. Ou seja, os hidrocarbonetos produzidos permanecem na
propriedade do Estado hospedeiro, que contrata a companhia petrolífera para
efetuar a exploração econômica de hidrocarbonetos sob seu próprio risco. E, no
caso de viabilidade comercial da descoberta, o Estado, na qualidade de
proprietário dos hidrocarbonetos produzidos, deverá ressarcir as empresas
contratadas pelos custos que estas tiverem incorrido na explotação das reservas
(cost oil) e partilhar entre eles o petróleo restante (profit oil), conforme proporções
previamente acordadas no instrumento contratual27.
1.1 Visão geral do modelo brasileiro de partilha de produção: base legal e
funcionalidade elementar
Entre nós, a estrutura fundante do regime de partilha de produção para
pesquisa e explotação de hidrocarbonetos localizados nas áreas do pré-sal28 está
veiculada nas normas da Lei nº 12.351/2010. Nessa modelagem, o contratado
exerce, por sua conta e risco, as atividades de exploração e produção de petróleo
e gás natural e, em caso de descoberta, é ressarcido dos correspondentes custos
pela União (“custo em óleo” ou cost oil)29, tendo ainda direito ao recebimento de
27
Relatório I - Regimes Jurídico-Regulatórios... ob. cit., p.235. 28
Toda vez que a expressão “áreas do pré-sal” (ou equivalente) for citada neste estudo, deve ficar entendido que também estamos nos referindo às “áreas estratégicas” que, segundo definição contida no inciso V, do art. 2
o, da Lei nº 12.351/2010, são as regiões de “interesse para o
desenvolvimento nacional, delimitada em ato do Poder Executivo, caracterizada pelo baixo risco exploratório e elevado potencial de produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos”. 29
Conforme definido pelo inciso II, do art. 2o, da Lei nº 12.351/2010, o “custo em óleo” representa a
“parcela da produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos, exigível unicamente em caso de descoberta comercial, correspondente aos custos e aos investimentos realizados pelo contratado na execução das atividades de exploração, avaliação, desenvolvimento, produção e desativação das instalações, sujeita a limites, prazos e condições estabelecidos em contrato”.
13
parte do excedente em óleo (“excedente em óleo” ou profit oil)30, nas proporções
estabelecidas no contrato de partilha de produção (art. 2o, I)31.
Como regra, o Poder Público não arca com os custos e investimentos
necessários à execução do contrato de partilha de produção, os quais correm por
conta exclusiva das empresas contratadas. No entanto, excepcionalmente, é
facultado à União, por intermédio de fundo específico criado por lei, participar dos
investimentos nas atividades de exploração e produção petrolíferas nas zonas do
pré-sal, caso em que assumirá os riscos correspondentes à sua participação, nos
termos do respectivo contrato (art. 6o, parágrafo único)32.
Nada obstante, qualquer que seja a formatação escolhida, os
hidrocarbonetos in natura destinados à União deverão ser comercializados
segundo política fixada pelo Chefe do Poder Executivo, por proposição do
Conselho Nacional de Política Energética (CNPE); sendo que, com relação
específica ao gás natural, a diretriz adotada deve priorizar o abastecimento do
mercado nacional (art. 9o, VI e VII)33.
30
De acordo com o inciso III, do art. 2o, da Lei nº 12.351/2010, o “excedente em óleo” é a “parcela
da produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos a ser repartida entre a União e o contratado, segundo critérios definidos em contrato, resultante da diferença entre o volume total da produção e as parcelas relativas ao custo em óleo, aos royalties e, quando exigível, à participação de que trata o art. 43” (participação do proprietário do terreno quando o bloco se situar em terra). 31
Veja-se a conceituação completa do sistema partilha de produção contida na norma citada: “(...) regime de exploração e produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos no qual o contratado exerce, por sua conta e risco, as atividades de exploração, avaliação, desenvolvimento e produção e, em caso de descoberta comercial, adquire o direito à restituição do custo em óleo, bem como a parcela do excedente em óleo, na proporção, condições e prazos estabelecidos em contrato;” 32
“Art. 6o Os custos e os investimentos necessários à execução do contrato de partilha de
produção serão integralmente suportados pelo contratado, cabendo-lhe, no caso de descoberta comercial, a sua restituição nos termos do inciso II do art. 2
o.
“Parágrafo único. A União, por intermédio de fundo específico criado por lei, poderá participar dos investimentos nas atividades de exploração, avaliação, desenvolvimento e produção na área do pré-sal e em áreas estratégicas, caso em que assumirá os riscos correspondentes à sua participação, nos termos do respectivo contrato.” (destaque nosso) 33
“Art. 9o O Conselho Nacional de Política Energética - CNPE tem como competências, entre
outras definidas na legislação, propor ao Presidente da República:” VI - a política de comercialização do petróleo destinado à União nos contratos de partilha de produção; VII - a política de comercialização do gás natural proveniente dos contratos de partilha de produção, observada a prioridade de abastecimento do mercado nacional.” (destaques nosso)
14
1.1.1 Papel da Petrobras
A exploração dos blocos contratados sob o regime de partilha de produção
terá, obrigatoriamente, a Petrobras – sociedade de economia mista - como única
operadora34dos projetos, a quem ficou assegurada participação mínima de 30%
nos consórcios (arts. 4o e 10, “c”)35, quando não a exclusividade do
empreendimento, com dispensa de licitação, conforme a ser decidido
discricionariamente pelo Poder Público (arts. 8o, I, e 12)36.
A Petrobras também poderá ser diretamente contratada para realização das
atividades de avaliação das jazidas (art. 38)37, assim como “agente
comercializador” da parcela do excedente em óleo da União (art. 45, parágrafo
único)38.
1.1.2 Licitação
34 Nos termos do art. 2
o, VI, da Lei nº 12.351/2010, o “operador” é o “responsável pela condução e
execução, direta ou indireta, de todas as atividades de exploração, avaliação, desenvolvimento, produção e desativação das instalações de exploração e produção;” 35
“Art. 4o A PETROBRAS será a operadora de todos os blocos contratados sob o regime de
partilha de produção, sendo-lhe assegurada, a este título, participação mínima no consórcio previsto no art. 20”, “que não poderá ser inferior a trinta por cento” (art. 10, alínea “c”); 36
“Art. 8o A União, por intermédio do Ministério de Minas e Energia, celebrará os contratos de
partilha de produção: I - diretamente com a PETROBRAS, dispensada a licitação”; “Art. 12. O CNPE proporá ao Presidente da República os casos em que, com vistas à preservação do interesse nacional e ao atendimento dos demais objetivos da política energética, a PETROBRAS será contratada diretamente pela União para a exploração e produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos em regime de partilha de produção.” 37
“Art. 38. A ANP poderá contratar diretamente a PETROBRAS para realizar as atividades de avaliação das jazidas previstas nos arts. 36 e 37”. 38
“Art. 45. O petróleo, o gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos destinados à União serão comercializados de acordo com as normas do direito privado, dispensada a licitação, segundo a política de comercialização referida nos incisos VI e VII do art. 9
o.
Parágrafo único. A empresa pública de que trata o § 1o do art. 8
o, representando a União, poderá
contratar diretamente a Petrobras, dispensada a licitação, como agente comercializador do petróleo, do gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos referidos no caput.” (destaque nosso) Sobre a inconstitucionalidade da contratação direta da Petrobras com dispensa de licitação, vide, por todos, SOUTO, Marcos Juruena Vilela. Propostas legislativas de novo marco regulatório....ob. cit., especialmente p. 11, item 7.1.
15
O processo licitatório de contratação sob o sistema de partilha, quando for o
caso de sua realização, será exclusivamente regido pelos dispositivos do marco
regulatório, pelas normas a serem editadas pela ANP, bem como pelo que
dispuser o respectivo edital (art. 13)39.
A licitação será efetivada na modalidade leilão (art. 8o, II)40 e poderá contar
com a concorrência da Petrobras, a fim de que a estatal possa ampliar a sua
participação mínima nos empreendimentos (art. 14)41.
Quanto ao critério de julgamento das propostas, o certame será vencido
pela empresa que ofertar o maior excedente em óleo em favor da União,
respeitado o percentual mínimo definido pelo Ministério de Minas e Energia. (art.
18)42.
1.1.3 Participações governamentais e de terceiros
De acordo com o art. 42 da Lei em comento, o regime de partilha de
produção terá como receitas governamentais (government take): (i) royalties – que
representam uma “compensação financeira” pela exploração petrolífera, na forma
do § 1o, art. 20, da CF43; e (ii) bônus de assinatura – correspondente a um valor
fixo pago pelo contratado no ato da celebração do contrato de partilha. Ou seja,
essa parcela funciona como uma espécie de “preço de outorga” pelos direitos
exploratórios.
39
“Art. 13. A licitação para a contratação sob o regime de partilha de produção obedecerá ao disposto nesta Lei, nas normas a serem expedidas pela ANP e no respectivo edital.” 40
“Art. 8o A União, por intermédio do Ministério de Minas e Energia, celebrará os contratos de
partilha de produção: II - mediante licitação na modalidade leilão.” (destaque nosso) 41
“Art. 14. A PETROBRAS poderá participar da licitação prevista no inciso II do art. 8o para ampliar
a sua participação mínima definida nos termos da alínea “c” do inciso III do art. 10.” 42
“Art. 18. O julgamento da licitação identificará a proposta mais vantajosa segundo o critério da oferta de maior excedente em óleo para a União, respeitado o percentual mínimo definido nos termos da alínea “b” do inciso III do art. 10”. 43
Art. 20, § 1º, CF: “É assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da administração direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração.”
16
Quando o bloco se localizar em terra, além das verbas governamentais
acima, o contratado deverá pagar participação de até 1% do valor da produção de
petróleo ou gás natural aos proprietários da terra onde se localiza o bloco. Trata-
se da chamada “participação de terceiro” (art. 43)44.
Importante assinalar, por fim, que nenhuma das parcelas citadas poderá ser
incluída no cálculo do “custo em óleo”.
1.1.4 Destinação das receitas
Conforme disposto no art. 46, as receitas oriundas da comercialização do
óleo e gás extraídos das jazidas do pré-sal serão alocadas em fundo de natureza
contábil e financeira alcunhado de Fundo Social – FS, disciplinado nos arts. 47 a
60. Esse fundo terá por objetivo principal constituir fonte regular de recursos para
o financiamento de programas governamentais destinados ao combate à pobreza
e ao desenvolvimento da educação, cultura, ciência, tecnologia e sustentabilidade
ambiental.
A estruturação do fundo também servirá para evitar que com o substancial
aumento da comercialização dos hidrocarbonetos extraídos do pré-sal, o País seja
repentinamente inundado por um grande volume de recursos em moeda
estrangeira, o que conduziria à vultosa apreciação cambial, “reduzindo a
competitividade dos produtos nacionais e provocando atrofia de outros setores da
economia” (desindustrialização)45.
44 “Art. 43. O contrato de partilha de produção, quando o bloco se localizar em terra, conterá
cláusula determinando o pagamento, em moeda nacional, de participação equivalente a até um por cento do valor da produção de petróleo ou gás natural aos proprietários da terra onde se localiza o bloco. § 1
o A participação a que se refere o caput será distribuída na proporção da produção realizada
nas propriedades regularmente demarcadas na superfície do bloco, vedada sua inclusão no cálculo do custo em óleo. § 2
o O cálculo da participação de terceiro de que trata o caput será efetivado pela ANP.”
45 Cf. item 5 da exposição de motivos ao Projeto de Lei n
o 5.940/2009, que institui o Fundo Social -
FS. Esse fenômeno econômico é apelidado de “Doença Holandesa” (Dutch Disease). Isso porque nos idos de 1960 “houve uma escalada dos preços do gás que aumentou substancialmente as
17
1.1.5 Papéis dos organismos estatais envolvidos
A legislação em exame redefine substancialmente as competências
institucionais voltadas às atividades de exploração e produção pelo regime de
partilha, dando maiores atribuições ao Conselho Nacional de Política Energética
(CNPE) e ao Ministério de Minas e Energia (MME). Por conta disso, esses órgãos
terão um papel mais ativo não só na formulação da Política Energética Nacional46,
como também em sua implementação.
Nesse passo, caberá ao CNPE, entre outras competências definidas em lei,
propor ao Presidente da República (art. 9o): (i) o ritmo de contratação dos blocos
sob o regime de partilha de produção, observando-se a política energética, o
desenvolvimento e a capacidade da indústria nacional para o fornecimento de
bens e serviços; (ii) os blocos que serão destinados à contratação direta com a
Petrobras ou que serão objeto de leilão; (iii) os parâmetros técnicos e econômicos
dos contratos de partilha de produção; (iv) a delimitação de outras regiões a serem
classificadas como área do pré-sal e as áreas a serem classificadas como
estratégicas, conforme a evolução do conhecimento geológico; e (v) a política de
comercialização do petróleo e gás destinados à União nos contratos de partilha de
produção.
Por sua vez, ao MME caberá o desempenho das seguintes funções (art.
10): (i) planejar o aproveitamento do petróleo e do gás natural; (ii) propor ao
receitas de exportação dos Países Baixos e valorizou o florim (moeda da época)”, derrubando “as exportações dos demais produtos por falta de competitividade”. Fonte: Wikipédia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Doen%C3%A7a_holandesa>. Acesso em: 17/11/2010. 46
Os objetivos da Política Energética brasileira estão enunciados programaticamente no art. 1o
da Lei do Petróleo. São eles: a) promoção do desenvolvimento; b) ampliação do mercado de trabalho; c) valorização dos recursos energéticos; d) proteção dos interesses do consumidor quanto a preço, qualidade e oferta dos produtos; e) proteção ao meio ambiente; f) conservação de energia; g) garantia do fornecimento de derivados de petróleo em todo o território nacional; h) incremento em bases econômicas da utilização do gás natural; i) identificação das soluções mais adequadas ao suprimento de energia elétrica nas diversas regiões do País; j) utilização de fontes alternativas de energia mediante o aproveitamento econômico dos insumos disponíveis e das tecnologias aplicáveis; l) promoção da livre concorrência; m) atração de investimentos na produção de energia; n) ampliação da competitividade do País no mercado internacional; o) incremento em bases econômicas, sociais e ambientais da participação dos biocombustíveis na matriz energética nacional.
18
CNPE, ouvida a ANP, a definição dos blocos que serão objeto de concessão ou
de partilha de produção; (ii) propor ao CNPE os seguintes parâmetros técnicos e
econômicos dos contratos de partilha de produção: a) critérios para definição do
percentual mínimo do excedente em óleo da União e os percentuais máximos da
produção anual destinados ao pagamento do custo em óleo; b) o conteúdo local
mínimo e outros critérios relacionados ao desenvolvimento da indústria nacional;
c) o valor do bônus de assinatura, bem como a parcela a ser destinada à PPSA
como contraprestação ao gerenciamento dos contratos; (iii) estabelecer as
diretrizes a serem observadas pela ANP para promoção da licitação dos blocos e
para a elaboração das minutas dos editais e dos contratos de partilha de
produção; e (iv) aprovar as minutas dos editais de licitação e dos contratos de
partilha de produção elaborados pela ANP.
O rearranjo proposto, de outra parte, ao conferir ao CNPE e ao MME – que
são órgãos eminentemente políticos - a titularidade e o exercício de muitas
funções de natureza técnica essenciais ao disciplinamento da indústria, enseja,
necessariamente, o enfraquecimento do papel regulatório da agência setorial, a
ANP, a quem caberá, entre outras competências definidas em lei (art. 11): (i)
promover os estudos técnicos para subsidiar o MME na delimitação dos blocos
que serão objeto de contrato de partilha de produção; (ii) elaborar e submeter à
aprovação do MME as minutas dos contratos de partilha de produção e dos
editais, no caso de licitação; (iii) promover as licitações, quando for o caso; (iv)
fazer cumprir as melhores práticas da indústria do petróleo; (v) analisar e aprovar
os planos de exploração, avaliação e desenvolvimento da produção, bem como os
programas anuais de trabalho e de produção relativos aos contratos de partilha de
produção; e (vi) regular e fiscalizar as atividades realizadas sob o regime de
partilha de produção, nos termos do inciso VII do art. 8 da Lei no 9.478/1997.
O desenho institucional conta ainda com uma nova empresa pública, agora
rebatizada47 de Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural
47
Como se sabe, a ideia original era denominar a estatal em questão de “Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural S.A. – Petro-Sal”. Esse era o nome completo que constava do texto do Projeto de Lei nº 5.939/2009, que autorizava a criação da empresa pública responsável por gerir os contratos de partilha. No entanto, logo depois de publicada a referida
19
S.A. - Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA), que ficará encarregada da “gestão dos
contratos” de partilha de produção e de comercialização de petróleo e gás natural
e não assumirá os riscos e nem responderá pelos custos e investimentos
referentes às atividades de exploração e produção petrolíferas (§§ 1o e 2o, art.
8o)48.
Para desempenhar suas funções de gestora contratual, a estatal em
questão, além de praticar certos atos necessários ao acompanhamento da
execução dos ajustes, deverá integrar um consórcio juntamente com a Petrobras e
as demais empresas privadas, onde atuará como “representante dos interesses da
União no contrato de partilha de produção” (art. 21)49. A empresa pública também
fará parte do “comitê operacional”, órgão responsável pela “administração do
consórcio” (art. 22)50, possuindo a prerrogativa de indicar metade de seus
integrantes, inclusive o presidente, o qual “terá poder de veto e voto de qualidade”.
Aos demais consorciados, caberá a indicação dos outros integrantes (arts. 23,
parágrafo único e 25)51.
As funções atribuídas ao comitê operacional, além de outras que forem
estipuladas no contrato de partilha, são: (i) definir os planos de exploração e de
proposta legislativa, constatou-se que já existia uma sociedade chamada “Petro-Sal”. Segundo relato de Humberto Quintas e Luiz Cezar P. Quitans, a Petro-Sal “original” era uma pequena empresa de Mossoró – RN, que atuava no setor prestando serviços para a Petrobras. Diante do impasse, integrantes do Governo chegaram a pedir em público para que a aludida microempresa, “patrioticamente”, abrisse mão do registro do nome empresarial “Petro-Sal” em favor da estatal, o que, sabe-se hoje, não foi aceito. (QUINTAS, Humberto; e QUITANS, Luiz Cezar P. A História do Petróleo...ob. cit., p. 108, nota 121). 48
Art. 8o, § 1
o: “A gestão dos contratos previstos no caput caberá a empresa pública a ser criada
com este propósito.” “§ 2
o A empresa pública de que trata o § 1
o não assumirá os riscos e não responderá pelos custos
e investimentos referentes às atividades de exploração, avaliação, desenvolvimento, produção e desativação das instalações de exploração e produção decorrentes dos contratos de partilha de produção.” 49
“Art. 21. A empresa pública de que trata o § 1o do art. 8
o integrará o consórcio como
representante dos interesses da União no contrato de partilha de produção.” 50
“Art. 22. A administração do consórcio caberá ao seu comitê operacional.” 51
“Art. 23. O comitê operacional será composto por representantes da empresa pública de que trata o § 1
o do art. 8
o e dos demais consorciados.”
“Parágrafo único. A empresa pública de que trata o § 1o do art. 8
o indicará a metade dos
integrantes do comitê operacional, inclusive o seu presidente, cabendo aos demais consorciados a indicação dos outros integrantes.” “Art. 25. O presidente do comitê operacional terá poder de veto e voto de qualidade, conforme previsto no contrato de partilha de produção.”
20
avaliação de descoberta de jazida de petróleo e de gás a serem submetidos à
análise e aprovação da ANP; (ii) declarar a comercialidade de cada jazida
descoberta e definir o plano de desenvolvimento da produção do campo a ser
submetido à análise e aprovação da ANP; (iii) definir os programas anuais de
trabalho e de produção a serem submetidos à análise e aprovação da ANP; (iv)
analisar e aprovar os orçamentos relacionados às atividades de exploração,
avaliação, desenvolvimento e produção previstas no contrato; (v) supervisionar as
operações e aprovar a contabilização dos custos realizados; e (vi) definir os
termos do acordo de individualização da produção a ser firmado com o titular da
área adjacente.
Nos itens a seguir, desenvolveremos mais detidamente a temática
respeitante à atuação dessa nova empresa estatal.
2 Papel e funções da PPSA: estrutura jurídica básica, fundamentos e
objetivos de criação da estatal
A PPSA é uma empresa pública, cuja constituição foi autorizada pela Lei nº
12.304/2010; como tal, a estatal se insere no contexto orgânico da Administração
Pública Indireta, nos moldes do art. 4o, do Decreto-Lei nº 200/1967 e art. 37, da
CF.
A PPSA está juridicamente estruturada da seguinte forma: ostenta
personalidade jurídica e patrimônio próprios52, com capital social integralmente
52
“Art. 7o Constituem recursos da PPSA:
I - rendas provenientes da gestão dos contratos de partilha de produção, inclusive parcela que lhe for destinada do bônus de assinatura relativo aos respectivos contratos; II - rendas provenientes da gestão dos contratos que celebrar com os agentes comercializadores de petróleo e gás natural da União; III - recursos provenientes de acordos e convênios que realizar com entidades nacionais e internacionais; IV - rendimentos de aplicações financeiras que realizar; V - alienação de bens patrimoniais; VI - doações, legados, subvenções e outros recursos que lhe forem destinados por pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado; e VII - rendas provenientes de outras fontes. Parágrafo único. A remuneração da PPSA pela gestão dos contratos de partilha de produção será estipulada em função das fases de cada contrato e das dimensões dos blocos e campos, entre outros critérios, observados os princípios da eficiência e da economicidade.”
21
detido pela União53; a empresa reveste-se da forma de sociedade anônima e está
vinculada ao Ministério de Minas e Energia (MME); a PPSA operará por prazo
indeterminado e terá sede e foro em Brasília e escritório central no Rio de Janeiro
(Lei nº 12.304/2010, art. 1o, parágrafo único)54.
Na exposição de motivos55 do Projeto que originou a legislação autorizativa
de criação da PPSA, a justificativa central para sua concepção baseou-se nas
particularidades da estrutura econômico-operacional do modelo de partilha, a
exigirem um organismo estatal com funções especializadas e que tenham por
finalidade última “maximizar o excedente em óleo arrecadado em favor do Estado
brasileiro”.
De fato, a complexidade funcional do sistema de partilha e a assimetria de
informações que ele gera demandam a utilização de mecanismos mais efetivos de
supervisionamento contratual. É que, no regime de partilha, o contratado assume
integralmente os investimentos necessários à execução do contrato e, em caso de
descoberta comercial, é prioritariamente ressarcido com parcela da produção dos
hidrocarbonetos - custo em óleo. A parte restante - o excedente em óleo – é
dividida entre o contratante e o Estado, na forma convencionada. Como existem
despesas a recuperar pelo contratado antes da efetivação da partilha, entende-se
necessário que os poderes públicos deem especial atenção às atividades de
monitoramento e auditoria dos custos envolvidos nos projetos de exploração e
produção de petróleo56. Afinal, quanto maior for o custo em óleo incorrido pelo
contratado, menor será a parcela do excedente em óleo a ser partilhada com a
União.
53 “Art. 6
o A PPSA terá seu capital social representado por ações ordinárias nominativas,
integralmente sob a propriedade da União. Parágrafo único. A integralização do capital social será realizada com recursos oriundos de dotações consignadas no orçamento da União, bem como pela incorporação de qualquer espécie de bens suscetíveis de avaliação em dinheiro”. 54
“Art. 1o É o Poder Executivo autorizado a criar empresa pública, sob a forma de sociedade
anônima, denominada Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural S.A. - Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA), vinculada ao Ministério de Minas e Energia, com prazo de duração indeterminado. Parágrafo único. A PPSA terá sede e foro em Brasília e escritório central no Rio de Janeiro.” 55
E.M.I. nº 00040 - MME/MP/MF/MDIC/CCIVIL, de 31/08/2009. 56
GOMES, Carlos Jaques Vieira et alii. Avaliação da Proposta...op. cit., p. 28.
22
Tal sistemática, segundo Carlos Jaques Vieira Gomes e outros57, dá azo a
comportamentos oportunistas, pois pode fazer com que o contratado, detendo
“maior volume de informações” sobre os gastos que realiza, tenha “incentivos para
exagerar os custos reportados”. Nesse sentido, exemplificam hipoteticamente que
as empresas contratadas poderiam muito bem “inflar o custo de transporte pago à
empresa do mesmo grupo econômico” ou ainda simular “preços artificiais de
venda a empresas coligadas”, incidindo em “prática conhecida como transferência
de preços”. As sociedades contratadas, assim, obteriam êxito em diminuir a verba
do excedente em óleo a ser repartida com a União e dela se apropriariam a título
de custo em óleo. Ou seja, o esquema permitiria que esse ganho fosse
dissimuladamente transferido para o custo em óleo, parcela que pertence
exclusivamente às companhias.
O estudo realizado a pedido do BNDES58 também enumera esse mesmo
risco de desvio de conduta como sendo um fator criticável do sistema contratual
de partilha. E acrescenta que tal desvirtuamento também pode advir de
dificuldades de natureza contábil inerentes à conjuntura de complexidade e
assimetria informacional do modelo:
“Considerando que, sob a rubrica do „cost oil‟, a OC poderá recuperar tanto suas despesas operacionais, como custos de capital, uma das críticas comumente feitas ao regime de PSC recai sobre a complexidade contábil dos cálculos feitos para determinar os custos incorridos pelas OCs, assim como as fórmulas matemáticas para sua recuperação. (...) Considerando que, geralmente, as OCs detêm maior expertise nas atividades contábeis utilizadas nas atividades de E&P, além de estarem amparadas por empresas multinacionais de contabilidade altamente especializadas, elas poderiam implementar mecanismos contábeis de altíssima complexidade, de modo a dificultar a fiscalização, pela NOC ou pelo Estado hospedeiro, dos custos incorridos. O objetivo último desta estratégia consiste em apropriar, sob o „cost oil‟, a maior quantidade de investimentos possível, visto que 100% destas despesas serão reembolsadas e, geralmente, em curto espaço de tempo.”
57
GOMES, Carlos Jaques Vieira et alii. Avaliação da Proposta...op. cit., p. 28. 58
Relatório I - Regimes Jurídico-Regulatórios... ob. cit., p.241.
23
Diante disso, Carlos Jaques Vieira Gomes e outros59 concluem que, no
modelo de partilha de produção, “os esforços de monitoramento contábil pelo
Estado” devem ser “consideráveis”, sob pena de ocorrerem desfalques na verba
do excedente em óleo.
Poderíamos, então, afirmar que a complexidade funcional e a assimetria de
informações são as principais características do sistema de partilha que
demandam a implementação, pelo Estado hospedeiro, de mecanismos de
incremento da supervisão do contrato60, tendo por fim último assegurar a
maximização das participações estatais sobre a produção petrolífera.
Convém, ainda, realizar uma bipartição do objetivo social da PPSA, para
dizer que a maximização do lucro óleo (profit oil) se consubstancia no objeto social
mediato ou remoto da PPSA, sendo a atividade concreta de “gestão” contratual
seu objetivo social imediato ou próximo.
Nesse passo, fica claro ser essa missão maximizadora das receitas da
União o motivador econômico central de criação da PPSA, que é, ela própria,
igualmente interessada no aumento das participações governamentais. Isso
porque a principal fonte de remuneração da estatal, como gestora dos contratos
de partilha, “será estipulada em função das dimensões dos blocos e campos”,
além de “outros critérios”, dentre os quais certamente figurará o de produtividade
das jazidas (art. 7o, parágrafo único).
Em última análise, isso significa que a PPSA persegue a maximização (ou
pelo menos a integridade) da fatia do excedente em óleo em favor da União. A
estatal atua, assim, na defesa de um interesse puramente patrimonial do Estado;
isto é, a PPSA funciona como “gestora do interesse econômico, privado, da
União”, para usar as palavras de Daniel Almeida de Oliveira61.
59
GOMES, Carlos Jaques Vieira et alii. Avaliação da Proposta...op. cit., p. 28. 60
Para melhor auxiliar no esforço de fiscalização, Carlos Jaques Vieira Gomes e outros relatam que a “experiência internacional recomenda” que o Poder Público “contrate serviços de contabilidade de alto padrão, a fim de monitorar, com eficiência, os gastos do contratado”. (GOMES, Carlos Jaques Vieira et alii. Avaliação da Proposta...ob. cit., p. 28). 61
OLIVEIRA, Daniel Almeida de. O novo marco regulatório das atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural no Brasil. O caso pré-sal. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n.
24
Nesse particular, é interessante notar que, no que se refere à persecução
de “interesses públicos”, a PPSA se distingue das demais empresas estatais. Isso
porque, normalmente, uma sociedade pública ou mista pode ou não dar lucro, na
medida em que essas entidades têm por fim último a persecução do interesse
público primário62 (rectius: interesses da coletividade), finalidade que muitas vezes
não se coaduna (ou mesmo se contrapõe) à lógica da lucratividade empresarial.
Isso quer dizer que, para as entidades estatais, o fator lucro é meramente
incidental (ao passo que numa empresa privada o lucro é elemento essencial, sem
o qual inclusive a sociedade pode ser dissolvida, por não atender à finalidade
básica para qual foi criada). Ocorre que a PPSA, ao ter por objetivo último a
"maximização" das participações financeiras da União (interesse público
secundário), ela obrigatória e necessariamente há de perseguir o lucro (“lucro
óleo”) como finalidade precípua, sob pena de não cumprir seu objetivo social, que
é afinal a sua própria razão de ser.
Nos itens abaixo, analisaremos mais detalhadamente a atividade de gestão
contratual da PPSA (limitada a análise aos contratos de partilha de produção),
buscando identificar as estruturas e a natureza de sua atuação. Esses são pontos
fundamentais para tentar compreender melhor o papel da estatal na exploração
econômica das atividades petrolífera nas áreas do pré-sal.
2.1 Atuação da PPSA como gestora dos contratos de partilha de produção
De acordo com a primeira parte do art. 2o, da Lei nº 12.304/2010, a PPSA
terá por “objeto a gestão dos contratos de partilha de produção”. No entanto, em
2399, 25 jan. 2010. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/14243>. Acesso em: 26/11/2010. 62
Sobre o tema, Rogério Mello, com apoio nos ensinamentos de Renato Alessi, pontua que: “Renato Alessi, doutrinador italiano, distinguiu a existência de dois interesses públicos: os chamados interesse público primário e o interesse público secundário. Tem-se como interesse público primário os interesses reais do Estado, expressos juridicamente através das leis. Entende-se como interesse público secundário aquele que se distancia das finalidades públicas concretas; ocorre quando o agente estatal, travestido de guardião do bem comum, passa a agir buscando um interesse particular seu, que não mais se confunde com o interesse público.” (MELLO, Rogério Luís Marques de. Da verdade real no processo administrativo disciplinar militar. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1009, 6 abr. 2006. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/8205>. Acesso em: 18/01/2011.)
25
que propriamente se constituiria a atividade de “gestão” contratual de que fala o
aludido dispositivo legal, ao definir o objeto social imediato da PPSA?
Com efeito, se fôssemos levar apenas em consideração a questão já
mencionada da necessidade de aumento dos esforços de monitoramento contábil
pelo Estado hospedeiro, poderíamos idealizar para o sistema de partilha um
conceito de “gestão de contratos” próximo daquele que comumente vigora na
realidade contemporânea das contratações administrativas em geral. Nessa seara,
o gestor contratual é um autêntico representante da Administração Pública e suas
funções são sempre exercidas em nome e no interesse do órgão ou entidade que
representa. Sua atuação limita-se às providências “diretamente” relacionadas ao
“acompanhamento de execução” do contrato. Ou seja, aqui o gestor público tem
competência para fazer “observar o cumprimento, pela contratada, das regras
previstas no instrumento contratual”, permitindo-se ao administrador detectar e
“corrigir, no âmbito da sua esfera de ação e no tempo certo, eventuais
irregularidades ou distorções” no vínculo63.
Note-se, portanto, que a finalidade da gestão de contratos, ordinariamente,
reside tão só em “buscar os resultados esperados no ajuste e trazer benefícios e
economia” para o Poder Publico contratante. Essas atividades de controle
finalístico ajustam-se ao que a doutrina administrativista moderna chama de
modelo gerencial de Administração Pública, “no qual são abrandados os controles
de procedimentos e incrementados os controles de resultados”64. Ao contratado
privado, por sua vez, cabe executar adequadamente o programa contratual
ajustado e, para tanto, detém ele ampla liberdade empresarial.
Contudo, a “gestão de contratos” prevista no contexto do marco regulatório
de exploração da camada pré-sal parece exceder em muito essa conformação.
63
Cf. Manual de Gestão de Contratos. Viçosa – MG, outubro de 2008. (Disponível em: <ftp://ftp.ufv.br/Proplan2/Formularios/manualGestaoContratos.pdf>. Acesso em: 10/11/2010). 64
DALLARI, Adilson Abreu. Alterações dos Contratos Administrativos – Economicidade, Razoabilidade e Eficiência, Direito Administrativo Contemporâneo: Estudos em Memória do Professor Manoel de Oliveira Franco Sobrinho. In: Roberto Felipe Bacellar Filho (Coord.). Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 25.
26
Basta atentar, nesse sentido, para o extenso rol exemplificativo de competências
da PPSA dado pelo art. 4o, da Lei nº 12.304/201065.
Vê-se, portanto, que muitas e variadas foram as competências acometidas
à PPSA, entre as quais destacamos as de “monitorar e auditar” os “custos”,
“investimentos” e “operações” dos projetos de E&P (inciso I, letras “d” e “e”; inciso
II, “c”). Conforme já visto, tais funções são imprescindíveis no sistema de partilha,
a fim de resguardar interesses patrimoniais da empresa pública e da sua
controladora, a União.
Ressaltem-se, ainda, as normas genéricas dos incisos I e V, as quais,
respectivamente, permitem à PPSA “praticar todos os atos necessários à gestão
dos contratos de partilha de produção”, bem como “exercer outras atividades
necessárias ao cumprimento de seu objeto social”, tornando o campo de atuação
da estatal virtualmente ilimitado.
65
Confira-se a seguir a transcrição do aludido dispositivo legal: “Compete à PPSA: I - praticar todos os atos necessários à gestão dos contratos de partilha de produção celebrados pelo Ministério de Minas e Energia, especialmente: a) representar a União nos consórcios formados para a execução dos contratos de partilha de produção; b) defender os interesses da União nos comitês operacionais; c) avaliar, técnica e economicamente, planos de exploração, de avaliação, de desenvolvimento e de produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos, bem como fazer cumprir as exigências contratuais referentes ao conteúdo local; d) monitorar e auditar a execução de projetos de exploração, avaliação, desenvolvimento e produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos; e) monitorar e auditar os custos e investimentos relacionados aos contratos de partilha de produção; e f) fornecer à Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) as informações necessárias às suas funções regulatórias; II - praticar todos os atos necessários à gestão dos contratos para a comercialização de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos da União, especialmente: a) celebrar os contratos com agentes comercializadores, representando a União; b) verificar o cumprimento, pelos contratados, da política de comercialização de petróleo e gás natural da União resultante de contratos de partilha de produção; e c) monitorar e auditar as operações, os custos e os preços de venda de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos; III - analisar dados sísmicos fornecidos pela ANP e pelos contratados sob o regime de partilha de produção; IV - representar a União nos procedimentos de individualização da produção e nos acordos decorrentes, nos casos em que as jazidas da área do pré-sal e das áreas estratégicas se estendam por áreas não concedidas ou não contratadas sob o regime de partilha de produção; e V - exercer outras atividades necessárias ao cumprimento de seu objeto social, conforme definido no seu estatuto.
27
Nada obstante, para tentar entender a real essência do que seria a gestão
dos contratos de partilha por parte da PPSA, faz-se necessário investigar um
pouco mais aprofundadamente o disposto nas alíneas “a” e “b”, do inciso I, do art.
4o, que aludem genericamente às suas funções de representação e defesa dos
interesses da União junto aos consórcios. Afinal, é exatamente aí, no seio desse
grupo de pessoas coletivas, que o intervencionismo estatal massivo se fará sentir
na vida dos empreendimentos. Em resumo, são essas as atribuições que
propiciarão à PPSA o comando da administração dos projetos do pré-sal e que
melhor traduzem aquilo que o Governo alcunhou de “mecanismos sólidos de
governança”66.
2.1.1 Instrumentalização jurídica do poder de controle da PPSA no âmbito do
consórcio e do comitê operacional
No desenho regulatório da Lei nº 12.351/2010, os agentes que forem
habilitados67 a explorar as atividades de pesquisa e lavra de hidrocarbonetos nas
áreas do pré-sal, deverão, antes mesmo de assinarem o contrato de partilha de
produção com a União, firmar com a PPSA um instrumento de “consórcio”, que
funcionará como veículo societário incumbido da execução direta e indireta das
atividades de E&P. Essa ordenação procedimental se justifica porque, nos termos
do inciso VII, do art. 2o, o “consórcio” figurará como “contratado”68 no contrato de
partilha, de modo que aquele deve preexistir a este, na forma do art. 2669.
66
Vide exposição de motivos E.M.I. nº 00040 - MME/MP/MF/MDIC/CCIVIL, de 31/08/2009. 67
O regime de partilha brasileiro admite as seguintes combinações de habilitados à exploração das atividades de E&P: (i) exclusivamente a Petrobras, “quando contratada diretamente ou no caso de ser vencedora isolada da licitação” (art. 19); (ii) a Petrobras (como operadora única) e as sociedades não estatais ganhadoras do certame (na qualidade de investidoras); (iii) a Petrobras (operadora única) e a União (investindo por meio do fundo específico de que trata o art. 9
o,
parágrafo único); e (iv) a Petrobras (operadora única), as sociedades não estatais e a União (como investidoras). 68
“Art. 2o Para os fins desta Lei, ficam estabelecidas as seguintes definições:
VII - contratado: a PETROBRAS ou, quando for o caso, o consórcio por ela constituído com o vencedor da licitação para a exploração e produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos em regime de partilha de produção;” (destaque nosso) 69
“Art. 26. A assinatura do contrato de partilha de produção ficará condicionada à comprovação do arquivamento do instrumento constitutivo do consórcio no Registro do Comércio do lugar da sua sede”.
28
Como já foi dito, a presença da PPSA nesses consórcios tem por objetivo
precípuo “representar a União” e “defender” seus “interesses” perante os “comitês
operacionais”, que são o órgão de cúpula da associação responsável por decidir,
soberanamente, a respeito de assuntos de fundamental importância às operações
ajustadas no contrato de partilha. É nessa sede, por exemplo, onde serão
definidos os planos de exploração e produção de hidrocarbonetos, as declarações
de comercialidade das jazidas, a aprovação e fiscalização de orçamentos e custos
das atividades de E&P, bem como de toda programação de trabalho. Além dessas
funções relevantes, o comitê poderá ter “outras atribuições” definidas no contrato
de partilha de produção, o que potencializa ainda mais o generoso pacote de
atividades relacionadas à função geral de “gestão de contratos” pela PPSA. Como
se percebe facilmente, o comitê operacional é quem concentrará todos os poderes
para programar e executar a política técnico-empresarial dos projetos. Enfim, se
quisermos definir esse órgão em uma só palavra, diríamos, com Alexandre Ribeiro
Chequer70, que o comitê operacional é o “cérebro” do empreendimento, já que é
“dele que serão emanadas todas as decisões que deverão conduzir a operação de
exploração, desenvolvimento e produção do campo petrolífero”.
Relativamente à sua composição, o comitê operacional terá representantes
da PPSA e dos demais consorciados. A empresa pública possuirá a prerrogativa
de indicar metade de integrantes da associação consorcial, um dos quais o seu
presidente, que terá poder de veto e voto de qualidade. Aos demais consorciados
– inclusive à operadora estatal Petrobras, responsável única pela condução e
execução de todas as atividades de E&P no pré-sal71 - caberá somente a
indicação dos outros componentes.
70
CHEQUER, Alexandre Ribeiro. Aspectos Jurídicos dos Joint Oparting Agreements na Indústria do Petróleo. Artigo constante da apostila do LL.M. em Direito Empresarial do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais - RJ (IBMEC/RJ), 2005, p. 15. 71
“Art. 2o Para os fins desta Lei, ficam estabelecidas as seguintes definições: VI - operador: a
Petróleo Brasileiro S.A. - PETROBRAS, responsável pela condução e execução, direta ou indireta, de todas as atividades de exploração, avaliação, desenvolvimento, produção e desativação das instalações de exploração e produção;” Vide, ainda, o disposto no art. 30: “A PETROBRAS, na condição de operadora do contrato de partilha de produção, deverá: I - informar ao comitê operacional e à ANP, no prazo contratual, a descoberta de qualquer jazida de petróleo, de gás natural, de outros hidrocarbonetos fluidos ou de quaisquer minerais;
29
Analisando as potenciais repercussões desse arranjo sobre o jogo de forças
das partes associadas, Carlos Roberto Siqueira Castro72 anota que a PPSA,
“tendo indicado a metade dos membros do comitê operacional, incluindo o
presidente, com poder de veto”, “poderá impedir a formação de maioria contra
suas convicções”. Sobre a prerrogativa do “voto de qualidade”, escreve que ela
“importa, na prática, a atribuição de maioria simples para a tomada de decisões da
nova estatal”. E conclui o autor dizendo que, da forma como o órgão foi concebido,
caberá à PPSA, “na qualidade de representante da União, a tomada das principais
decisões que estejam no âmbito do comitê operacional”.
Logo, se quem controla a execução das operações dos projetos é o comitê
operacional, organismo que a seu turno será incontrastavelmente comandado pela
PPSA, a conclusão inexorável é a de que, no fim das contas, é a própria PPSA
quem deterá o domínio dos empreendimentos.
2.1.2 A atividade de representação da União pela PPSA na órbita dos
consórcios
Ainda no campo das cogitações respeitantes ao poder de controle da nova
estatal, é importante tecer alguns esclarecimentos a respeito da natureza jurídica
da “representação” da União pela PPSA junto ao consórcio e ao comitê
II - submeter à aprovação do comitê operacional o plano de avaliação de descoberta de jazida de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos, para determinação de sua comercialidade; III - realizar a avaliação da descoberta de jazida de petróleo e de gás natural nos termos do plano de avaliação aprovado pela ANP, apresentando relatório de comercialidade ao comitê operacional; IV - submeter ao comitê operacional o plano de desenvolvimento da produção do campo, bem como os planos de trabalho e de produção, contendo cronogramas e orçamentos; V - adotar as melhores práticas da indústria do petróleo, obedecendo às normas e procedimentos técnicos e científicos pertinentes, e utilizando técnicas apropriadas de recuperação, objetivando a racionalização da produção e o controle do declínio das reservas; e VI - encaminhar ao comitê operacional todos os dados e documentos relativos às atividades realizadas.” 72
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Parecer... ob. cit. p. 50.
30
operacional. É que essa representação, em termos funcionais, jamais pode ser
equiparada a um “mandato” comum, nos moldes daquele previsto no art. 653 do
Código Civil, primeira parte73. Com efeito, na configuração do marco regulatório de
exploração do pré-sal, a PPSA não recebeu poderes da União para, em nome
exclusivo desta e em estrito atendimento às suas determinações, “praticar atos ou
administrar interesses” no bojo da associação consorcial. Afinal, se fosse para a
nova empresa pública ser uma simples “mandatária” da Administração Pública
Direta, fazendo apenas cumprir fielmente as orientações que lhe fossem
determinadas por órgãos da União, a PPSA sequer precisaria ser criada; não seria
necessário despender os escassos recursos públicos na constituição de um ente
personalizado, de modo que a atividade de gestão dos contratos de partilha –
notadamente a fiscalização dos custos operacionais –, poderia, com muito mais
economicidade, ficar internalizada em algum ministério ou mesmo ser outorgada à
agencia reguladora preexistente (ideia que inclusive conta com adeptos)74.
Não é isso que ocorre no caso da PPSA, pois aqui nota-se que os Poderes
da República legitimados entenderam conveniente e oportuno autorizar a
implantação de uma entidade com plena aptidão para dirigir o empreendimento, o
que logicamente pressupõe a outorga de autonomia a esse ente, pois do contrário
o poder de controle que se lhe pretende dar jamais poderia ser exercido. E é
exatamente essa “autonomia” da PPSA, na qualidade de “empresa pública”, que
73
Art. 653, do CC: “Opera-se o mandato quando alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses. (...)” 74
Nessa linha, Carlos Jaques Vieira e outros escrevem que: “No que diz respeito ao controle dos custos, reconhecemos que é provável que a presença da Petro-Sal no comitê operacional reduza a possibilidade de o consórcio inflar custos. Mas, se o objetivo é fiscalizar, (...) poderia ser mais eficiente manter a presença de fiscais da ANP nesses conselhos. Noutra passagem do estudo, afirmam que “as atribuições da Petro-Sal poderiam ser exercidas por um departamento do Ministério de Minas e Energia”. Ao justificarem a posição, asseveram que a “criação de uma estatal abre mais espaço para negociações políticas e empreguismo no setor público”. (GOMES, Carlos Jaques Vieira et alii. Avaliação da Proposta...op. cit., p. 45). Igualmente, Daniel Almeida de Oliveira cogita que se poderia “concluir pela desnecessidade” de criação da nova empresa pública, uma vez que “a auditagem das contas do operador” “poderia ser feita por autarquia ou órgão da Administração Direta, com o auxílio de empresas contábeis especializadas ou com a formação de equipe de servidores públicos de excelência”. (OLIVEIRA, Daniel Almeida de. O novo marco regulatório das atividades... ob. cit.). Curioso, ainda, que a própria Lei que institui o regime de partilha sinaliza nesse sentido, ao dispor no seu art. 63 que enquanto não for constituída a PPSA, “suas competências serão exercidas pela União, por intermédio da ANP, podendo ainda ser delegadas por meio de ato do Poder Executivo”. (destaque nosso)
31
deve ser observada e respeitada. Nesse sentido, Alexandre Santos de Aragão75,
citando Ngueyen Quoc Vinh, escreve que tais sociedades, “muito embora
dependam do Poder público”, não merecem ser chamadas de “empresa” a não ser
que detenham “vida própria” e persigam “livremente o seu objeto”.
Dessa forma, os atos praticados pela PPSA na seara dos consórcios,
embora tenham por fim último a defesa dos interesses econômicos da União, o
são imediatamente praticados em nome da própria estatal e a seu benefício,
contando ela com ampla margem de independência na gestão dos contratos. De
acordo com Octávio Manuel Gomes Alberto76:
“O alcance da atuação em nome próprio é o de fazer projectar sobre a esfera jurídica do agente, além dos efeitos característicos da situação de parte, os de natureza pessoal: é ele quem tem legitimidade para exigir e receber o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato, é contra ele que a outra parte se deve dirigir, não só para reclamar os seus créditos como para fazer valer quaisquer acções pessoais derivadas do contrato”.
Nessa ordem de ideias, portanto, não há que se falar propriamente numa
“representação” da União pela PPSA. Como já se disse, todas as funções
exercidas pela estatal no seio da associação consorcial, apesar de se realizarem
finalisticamente em favor da União, o são, em primeiro lugar, feitas em nome e no
interesse da própria estatal, que é dotada de ampla liberdade de ação e
capacidade para contrair direitos e obrigações na consecução de seus objetivos
sociais.
Segue-se daí que a relação entre a União e a PPSA está mais próxima
daquilo que o Direito Civil considera um “mandato sem representação”; isto é, em
vez de os atos praticados pela estatal produzirem efeitos na esfera jurídica da
União, como “mandante”, produzem-nos na esfera da própria empresa pública,
75
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas estatais e o controle pelos Tribunais de Contas. Biblioteca Digital Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul./set.2009: <http://www.editoraforum.com.br/bid/bidConteudoShow.aspx?idConteudo=54861>. Acesso em: 22/06/2010. 76
ALBERTO, Octávio Manuel Gomes. Contrato de Mandato. Disponível em: <http://octalberto.no.sapo.pt/contrato_de_mandato.htm>. Acesso em: 17/08/2010 (destaque nosso).
32
enquanto “mandatária”. É nessa direção, pois, que deve ser entendida função da
PPSA de “representar a União” e “defender” seus “interesses” perante os
consórcios do sistema de partilha de produção.
2.2 A questão da natureza jurídica das atribuições da PPSA: função
empresarial ou regulatória?
No regime da Lei nº 9.478/1999, costuma-se dizer que a agência
reguladora é a “gestora dos contratos de concessão”, uma vez que o art. 21
prescreve expressamente caber à ANP a “administração” dos direitos de
exploração e produção de petróleo e gás natural. Atualmente, no marco
regulatório das áreas do pré-sal, ficou estabelecido que a PPSA é quem deverá
exercer a “gestão dos contratos de partilha”, mais ou menos como a Lei do
Petróleo faz com a ANP. Com isso, veio à tona polêmica a respeito da natureza
jurídica das atividades desempenhadas pela nova empresa pública: seriam elas
regulatórias ou empresariais?
Analisando a questão em profundidade, Carlos Roberto Siqueira Castro77
parece se inclinar no sentido da empresarialidade da atuação da PPSA. Em sua
argumentação, ele chega a admitir que algumas competências acometidas à
estatal, sobretudo as de monitoramento e auditoria dos custos das operações, até
poderiam ser encaradas como uma espécie de poder regulatório de fiscalização;
mesmo porque, “a própria definição de „regulação‟ é, por si só, ampla e imprecisa,
desprovida de qualquer fórmula objetiva”, de maneira que o enquadramento de tal
ou qual atividade como sendo regulatória ou empresarial é “extremamente tênue e
de difícil separação”. Por isso, a classificação estanque de uma e outra categoria
fica bastante dependente “da via eleita pelo intérprete”. Ainda assim, o próprio
autor reconhece, por outro lado, que, no contexto específico do marco regulatório
petrolífero do pré-sal, “há argumentos para defender que, em realidade, trata-se
de funções meramente empresariais”. Seguindo nesse raciocínio, observa que
“diante da magnitude dos poderes empresariais” atribuídos à PPSA, os quais lhe
77
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Parecer... ob. cit. pp. 49, 62 e 65.
33
propiciam um “verdadeiro poder de controle da gestão do consórcio”, “não seria
necessária a atribuição à empresa pública de poderes regulatórios”. Ele então
sugere que as competências da PPSA apenas se consubstanciariam em
“atividades gerenciais mínimas e obrigatórias”, a serem observadas pelos órgãos
administrativos da estatal (Diretoria e Conselho de Administração), “no exercício
de suas funções desempenhadas no âmbito dos consórcios”. E finaliza dizendo
que “essa tese pode ser reforçada” pela “inexistência de qualquer poder
sancionatório a ser exercido” pela PPSA. Dessa maneira, conforme assinala
Daniel Almeida de Oliveira78, é possível entender que a novel estatal “não
exercerá fiscalização policial, mas sim fiscalização particular, ainda que em prol da
União”.
De outra banda, Humberto Quintas e Luiz Cezar P. Quitans79 entendem que
algumas das funções atribuídas à PPSA possuem natureza regulatória, razão pela
qual inclusive poderiam criar “conflito de competência com a ANP”. Nessa
acepção, os autores citam as competências da estatal para “avaliar tecnicamente”
os planos de exploração, desenvolvimento e produção, bem como a verificação do
cumprimento, pelos contratados, da política de comercialização de petróleo e gás
(art. 4o, I, “c” e II, “b”, da Lei nº 12.304/2010).
Entretanto, de nossa parte, encampamos a opinião de Carlos Roberto
Siqueira Castro80, vislumbrando um caráter empresarial nas funções acometidas à
PPSA; visão essa que, como esse mesmo autor afirma, é robustecida pela
ausência de outorga à empresa pública de poder de polícia, invariavelmente
presente, por outro lado, nos organismos estatais de regulação setorial.
No tocante ao suposto “conflito de competências” entre a PPSA e a ANP,
concordamos com as ponderações de Daniel Almeida de Oliveira81 que, com base
na diferenciação conceitual entre “Estado e Governo”, procura delimitar as
atribuições de cada uma das indigitadas entidades:
78
OLIVEIRA, Daniel Almeida de. O novo marco regulatório das atividades... ob. cit. 79
QUINTAS, Humberto; e QUITANS, Luiz Cezar P. A História do Petróleo...ob. cit, p. 110. 80
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Parecer... ob. cit. p. 62. 81
OLIVEIRA, Daniel Almeida de. O novo marco regulatório das atividades... ob. cit.
34
“A Petro-Sal seria o braço do Governo Federal; a ANP, o braço do Estado brasileiro. A Petro-Sal, empresa pública, teria sido projetada para ter uma visão privada, de negócio, objetivando o máximo de lucros – uma fiscalização das operações de E&P voltada para a maximização dos lucros da União. Já a ANP, autarquia, manteria a função estatal de regulação do setor, com visão de longo prazo, tratando da questão dos estoques de combustíveis, dos reservatórios, das questões ambientais, fiscalizando o atendimento das boas práticas da indústria do petróleo etc., inclusive com a aprovação dos planos desenvolvidos pelos contratados (operador e demais consorciados) do Pré-sal. A Petro-Sal seria, apenas, mais um agente econômico a ser fiscalizado pela ANP.”
Portanto, tem-se que a PPSA, à guisa de “gestão” de contrato, foi
municiada com um vasto feixe de atribuições de natureza empresarial, que lhe
franqueiam não só a prática de atos de monitoramento e auditagem do contrato de
partilha (“fiscalização privada”, carente de poder de polícia sancionatório), mas,
sobretudo, o exercício de um largo e “intenso determinismo estatal82” sobre os
destinos e estratégias empresariais dos projetos (atividade tipicamente negocial).
3 Uma parceria empresarial diferente: a cláusula de incolumidade da PPSA
pelos riscos das atividades mantidas sob sua gestão empresarial
A intenção deste tópico é somente tecer algumas reflexões acerca das
peculiaridades do regime jurídico do consórcio constituído no sistema de partilha
brasileiro, que redunda numa mescla inédita de “poder e irresponsabilidade”. É
que a PPSA, apesar deter a gestão dos empreendimentos do pré-sal e por meio
dele auferir vantagens econômicas, não assumirá os riscos e nem responderá
pelos custos e investimentos referentes às atividades de exploração e produção
de petróleo e gás.
82
A expressão foi colhida em: SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. Da regulação política à regulação técnica: o efeito da liberdade empresarial nos serviços públicos. Biblioteca Digital Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 7, n. 26, abr./jun. 2009. <http://www.editoraforum.com.br/bid/bidConteudoShow.aspx?idConteudo=57720>. Acesso em: 22/06/2010.
35
O objetivo é proceder a um exame crítico desse funcionamento bizarro do
sistema, enxergando nele um fator de distribuição iníqua dos riscos empresariais
e, por conseguinte, de desestímulo aos investimentos privados no setor.
Para tanto, julgamos conveniente traçar, preliminarmente, uma sucinta
visão panorâmica dos principais aspectos jurídicos das parcerias empresariais
encetadas no âmbito da indústria do petróleo em geral, de maneira a estabelecer
uma base comparativa para o início de nossa análise crítica do modelo regulatório
de exploração das áreas do pré-sal.
3.1 Breve panorama das joint ventures da indústria do petróleo
O setor de óleo e gás, em especial o segmento upstream, sempre foi um
campo muito profícuo à formulação de parcerias empresariais, dado que os riscos
e o volume de capitais implicados são enormes. Essa circunstância faz com que a
exploração econômica da atividade de pesquisa e lavra de hidrocarbonetos tenha
melhores chances de prosperar num cenário de cooperação entre as empresas,
proporcionando, entre outras coisas83, a mitigação dos riscos envolvidos e o
aumento da capacidade de investimento. Assim é que, juntas, as sociedades
congregarão “esforços em prol da realização de um objetivo econômico em
comum”84, que no caso é a exploração e produção de petróleo e gás. Nessa
ordem de ponderações, Alexandre Ribeiro Chequer85 assevera que:
“A fase de exploração é considerada a mais delicada e perigosa. Mas, ao mesmo tempo, a mais glamourosa e lucrativa. É o local onde o céu e o inferno estão mais próximos. A descoberta é o céu, o fracasso representa prejuízos vultosos que, às vezes, só
83 Essas uniões empresariais também buscam, frequentemente, o compartilhamento de técnicas,
tecnologias, know-how e acesso a mercados. 84
Alexandre Santos de Aragão explica que: “A indústria do petróleo, em função, principalmente dos elevados riscos, mas também dos altíssimos valores envolvidos nas atividades de exploração, desenvolvimento e produção, é campo fértil para a proliferação das chamadas joint ventures. Tal conceito, de origem doutrinária inglesa, como evolução das joint stock companies – os empreendimentos conjuntos que serviram como o veículo institucional das grandes companhias coloniais dos séculos XVII e XVIII -, implica, de maneira ampla, a conjugação de esforços em prol da realização de um objetivo econômico em comum.” (ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresa público-privada. Revista dos Tribunais nº 890. São Paulo: RT, dez. 2009, p. 36). 85
CHEQUER, Alexandre Ribeiro. Aspectos Jurídicos dos Joint Oparting Agreements... ob. cit. pp. 6-7.
36
podem ser suportados se diluídos em um grupo...A associação entre companhias de petróleo é a maneira mais inteligente que se desenvolveu até hoje como forma de se diluir esse risco. Pois, associadas as companhias podem ter um fracasso em determinado campo e obterem sucesso em outro. Esta divisão de fracassos e glórias dá mais segurança as aventurosas operações do upstream e se perfazem pela foram associativa (...)”.
Segundo cientifica Marilda Rosado de Sá Ribeiro86, essas associações da
indústria do petróleo – que raramente resultam na criação de uma nova sociedade
- costumam ser instrumentalizadas por meio de um Acordo de Operações
Conjuntas, conhecido internacionalmente como Joint Operation Agreement (JOA),
mantendo cada uma das empresas sua “personalidade jurídica autônoma” 87 (joint
venture contratual).
Citando Ernest Smith, a mencionada autora aduz que esse tipo de pacto
associativo possui duas funções essenciais: a primeira é servir como “base para
partilha dos direitos e responsabilidades entre as partes”; e a segunda é disciplinar
“o modo de condução das operações”.
Relativamente ao modus operandi dos projetos, é prática consagrada nas
joint vetures da indústria do petróleo a designação de uma empresa participante
como operadora, a qual normalmente possui “uma parte maior” no contrato de
exploração e produção de óleo e gás88. De um modo geral, caberá ao operador a
representação do consórcio perante terceiros e o gerenciamento direto das
atividades de exploração, desenvolvimento e produção de hidrocarbonetos. No
desempenho dessa função, o operador tem poderes para assumir direitos e
obrigações no interesse da associação consorcial. Assim, é ele que ficará, por
exemplo, incumbido da contratação dos insumos necessários às operações junto
a prestadores de serviços e fornecedores de bens89.
86
RIBEIRO, Marilda Rosado de Sá. Direito do Petróleo...ob. cit., p. 196. Os destaques são nossos. 87
RIBEIRO, Marilda Rosado de Sá. Direito do Petróleo...ob. cit., p. 197. 88
RIBEIRO, Marilda Rosado de Sá. Direito do Petróleo...ob. cit., p. 198. 89
Conforme observa Alexandre Ribeiro Chequer, na prática hodierna da indústria do petróleo e gás “o operador funciona como um main contractor, ou seja, ele terceiriza praticamente todas as atividades do campo através de empresas de serviços, cabendo-lhe a administração e fiscalização desse contratos”. (CHEQUER. Alexandre Ribeiro. Aspectos Jurídicos dos Joint Operating Agreements... ob. cit. p. 14)
37
O operador costuma executar as atividades petrolíferas sob a supervisão de
um órgão denominado Menagement Comittee ou Comitê de Gerenciamento, em
tradução literal. Esse organismo é composto por representantes do operador
(normalmente o presidente ou chairman) e dos demais integrantes da associação.
Estes últimos, chamados de “não operadores”, se limitam basicamente a exercer a
fiscalização e o controle dos investimentos e custos realizados pelo operador, o
qual deve prestar contas àqueles a respeito da administração e condução das
atividades.
Outra nota característica das parcerias da indústria do petróleo é que, não
raro, esses acordos contam (facultativa ou obrigatoriamente) com a presença do
Estado como associado, que costuma atuar por intermédio de sua empresa estatal
petrolífera “(„Host Company‟ ou National Oil Company‟- NOC)”90. Nessa condição,
o Poder Público figura como um sócio normal do empreendimento, partilhando,
nas proporções fixadas em contrato, os riscos e as vantagens oriundas das
operações desenvolvidas conjuntamente com as outras sociedades não estatais
(Oil Company – OC).
Em linhas bem gerais, essas são as configurações jurídicas básicas das
parcerias que comumente se sucedem na indústria do petróleo.
No entanto, a “parceria” delineada no marco regulatório de exploração do
pré-sal subverte radicalmente alguns desses paradigmas jurídico-associativos
elementares, na medida em que aqui se terá uma empresa pública, não
operadora, com amplos poderes de controle sobre a gestão empresarial dos
projetos. Ela também não aportará recursos nas operações e nem correrá os
riscos associados à atividade petrolífera, muito embora lhe seja permitido lucrar
com ela.
3.2 Disciplina de alocação de riscos nos consórcios do sistema de partilha:
uma análise crítica
90
RIBEIRO, Marilda Rosado de Sá. Direito do Petróleo...ob. cit., p. 196.
38
Logo após o caput do art. 2o da Lei nº 12.304/2010 dispor que a PPSA “terá
por objeto a gestão dos contratos de partilha de produção”, seu parágrafo único
adverte que a estatal “não será responsável pela execução, direta ou indireta, das
atividades de exploração, desenvolvimento, produção” de petróleo e gás. No
mesmo sentido é a norma do § 2o, do art. 8o, da Lei nº 12.351/2010, a qual
preconiza que a referida empresa pública “não assumirá os riscos e não
responderá pelos custos e investimentos” referentes às aludidas atividades.
Já de acordo com o art. 2o, inciso VI, da Lei nº 12.351/2010, será a
Petrobras, na qualidade de operadora única, quem ficará “responsável pela
condução e execução, direta ou indireta, de todas as atividades” de exploração e
produção de hidrocarbonetos. O contrato de constituição de consórcio deverá
ratificar expressamente essa condição, indicando a Petrobras como responsável
pela execução do contrato, sem prejuízo da responsabilidade solidária das demais
consorciadas perante a União ou terceiros, excluída expressamente a PPSA, que,
como visto, não assume nenhum risco ligado às operações petrolíferas (§ 3o, art.
20)91.
No entanto, sabendo-se que a atividade de “gestão de contratos” exercida
pela PPSA implica, de fato, a sua aptidão em “tomar todas as decisões
empresariais de gerenciamento do empreendimento”92, o que se tem aqui é um
sistema obtuso, onde quem administra não responde e quem responde não
administra.
Que divisão estapafúrdia de riscos é essa?
Ora, sabe-se que a lei, assim como o contrato, podem muito bem
estabelecer entre as partes - ainda que de forma desigual - o compartilhamento
dos riscos das atividades negociais desenvolvidas conjuntamente. Mas será que
um desenho tão desproporcional como esse se mostra adequado à atração dos
91
Diz o texto do art. 20, § 3o, da Lei nº 12.351/2010: “O contrato de constituição de consórcio
deverá indicar a Petrobras como responsável pela execução do contrato, sem prejuízo da responsabilidade solidária das consorciadas perante o contratante ou terceiros, observado o disposto no § 2
o do art. 8
o desta Lei.”
92 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Parecer... ob. cit. p. 57.
39
enormes investimentos privados necessários ao desenvolvimento das operações
nas áreas do pré-sal?
As preocupações de Humberto Quintas e Luiz Cezar P. Quitans sobre esse
esquema torto da lei são de inteira pertinência:93
“A PETRO-SAL não será responsável pela execução das atividades de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e gás natural, mas atuará na „gestão‟ dos contratos de partilha de produção, representando a União nos consórcios formados para execução desses contratos e defendendo os seus (da União) interesses nos comitês operacionais, nos quais terá „poder de veto e voto de qualidade‟ e poderá indicar metade dos integrantes, além do presidente. Este é um dos pontos mais graves da proposta do governo. Em todo mundo, a empresa pública atua na representação do governo dos interesses do governo no contrato de partilha de produção, sem, no entanto, interferir nas decisões particulares das empresas contratadas e na consecução das suas atividades. Ao outorgar à PETRO-SAL poder de veto e voto de qualidade nos consórcios, há um poder absoluto concentrado nas mãos da empresa estatal, a qual pode vir a deixar de controlar assuntos ao governo e passar, em tese, a obrigar as empresas contratadas a tomar – ou deixar de tomar – qualquer decisão empresarial, incluindo, mas não se limitando a, eleição sobre perfurar poços ou não, escolha de locações para perfuração de tais poços, declaração de comercialidade de descobertas e desempenho de atividades em caráter sole risk. Tais poderes da entidade estatal estão em completa dissonância com os riscos assumidos pelos particulares no contrato de partilha, atentando contundentemente contra previsibilidade de regras para o setor. Não seria exagero dizer que, com o poder de veto, voto de qualidade, metade dos integrantes e escolha discricionária do presidente do Comitê Operacional, as empresas que se aventurarem nos consórcios com a PETRO-SAL darão um metafórico „cheque em branco‟ à estatal; iniciarão os projetos sem saber quanto gastarão para chegar – se é que chegarão, pois será a PETRO-SAL quem decidirá – ao final dos mesmos. Da forma como foi proposto o projeto de lei, a própria Petrobras poderia ser calada pelas decisões da PETRO-SAL, o que seria um atentado contra a competência e a capacidade operacional da primeira”.
93
QUINTAS, Humberto; e QUITANS, Luiz Cezar P. A História do Petróleo...ob. cit, pp. 109-110.
40
Carlos Roberto Siqueira Castro94, por sua vez, critica com ainda mais
veemência esse modelo de regulação, tachando o consórcio de “Frankenstein
jurídico”, na medida em que a PPSA possuirá a “gestão de facto da atividade”95,
“sem a contrapartida financeira, técnica, ou mesmo assunção de riscos”.
Muito se fala, de outro lado, que o arranjo em comento não teria nada de
anormal, pois que seria inspirado no desenho norueguês de exploração
petrolífera, onde também existe uma empresa de capital 100% estatal, a Petoro
AS, que teria um papel institucional similar ao exercido pela PPSA. Ocorre que,
segundo consta do estudo encomendado pelo BNDES96, a Petoro é simplesmente
“responsável pelo gerenciamento da Participação Financeira Direta do Estado
(State’s Direct Financial Interest – SDFI)” e suas principais atribuições são: “(i)
gerenciar o SDFI nas parcerias; (ii) monitorar a venda, pela Statoil, do petróleo
produzido referente à parcela da SDFI, conforme especificado nas instruções de
comercialização entregues àquela empresa; e (iii) supervisionar o gerenciamento
e contabilidade do SDFI.” Informam ainda Rafael Batista Baleroni e Jorge Antônio
Pedroso Júnior97que, excepcionalmente, nas hipóteses de os projetos se
revelarem “muito lucrativos”, o Estado norueguês, por intermédio da Petoro,
“participa como um sócio não operador comum, realizado aporte de capital e se
sujeitando aos riscos da atividade”.
Entretanto, segundo já analisado, no modelo de partilha “à brasileira”, além
das funções em comum de monitoramento contábil das operações e de resguardo
das participações governamentais da União, a PPSA tem, em caráter permanente,
mais poderes de comando que o próprio operador; sem contar que a estatal nunca
investe na atividade e nem assume qualquer risco associado às operações. Ou
94
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Parecer... ob. cit. pp. 57-58. 95
O autor inclusive entende que essa “ingerência verdadeiramente odiosa” da PPSA “na gestão empresarial dos consórcios” seria “inconstitucional” por violar o “princípio da livre iniciativa”, posicionamento com o qual não concordamos, conforme as razões já aduzidas na parte introdutória deste trabalho (CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Parecer... ob. cit. pp. 48 e 65). 96
Relatório I - Regimes Jurídico-Regulatórios... ob. cit., p.241. 97
BALERONI, Rafael Batista; PEDROSO JR., Jorge Antonio. Pré-Sal: Desafios e uma Proposta de Regulação, Novos Rumos do Direito do Petróleo. In: RIBEIRO, Marilda de Sá Rosado (Coord.). Rio de Janeiro: Renovar, 2009, pp. 169 e 170.
41
seja, as abissais diferenças funcionais entre a Petoro e a PPSA superam
largamente suas parcas semelhanças, de modo que a comparação entre uma e
outra é de todo impertinente.
Talvez o famigerado binômio “gestão/irresponsabilidade” não causasse
tanto espanto se as atribuições da PPSA se cingissem somente àquelas
necessárias à auditoria dos custos das operações relativas aos contratos de
partilha; ou ainda se ficassem limitadas ao monitoramento do estrito cumprimento
das cláusulas contratuais e da economicidade do ajuste. E, para tais desideratos,
bastaria à empresa estatal ter apenas direito a voz junto aos comitês operacionais
do consórcio, e não um poder de controle incontrastável sobre as estratégias
empresariais dos projetos.
Aliás, essa modelagem plenipotenciária de administração vai na contramão
dos avanços da indústria petróleo, cuja tendência é justamente a de mitigar o
poder de controle da parte responsável pela administração da parceria. Esse é,
uma vez mais, o caso da Noruega, tido erroneamente como paradigma do sistema
brasileiro de partilha. Com efeito, de acordo com a exposição de Diana
Amendoeira Maciel Hjørungnes98, um dos pontos das reformas da minuta de
acordo de operações conjuntas (JOA) daquele país residiu exatamente na
“implementação de cláusulas” e na “criação de instituições visando
primordialmente ao aumento do poder dos não operadores e o seu controle sobre
as atividades conjuntas”99.
Vale citar, ainda, as diretrizes gerais editadas pela Comunidade Europeia
para regulação das atividades de pesquisa e lavra de petróleo e gás. A orientação,
nesse caso, é de que a intervenção estatal deve ser exercida “de uma maneira
que assegure a independência gerencial” das empresas privadas; e, quando o
98
HJØRUNGNES, Diana Amendoeira Maciel. Brasil, e os próximos dez anos? Novos Rumos do Direito do Petróleo. In: RIBEIRO, Marilda de Sá Rosado (Coord.). Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 130. 99
Ainda de acordo com a autora: “A idéia não soou de forma negativa aos ouvidos de um governo interessado não só em atrair novos (e menores) atores para a já madura plataforma continental norueguesa, como também em estimular a formação, em tais empresas, de corpos técnicos locais mais robustos, que estejam em melhor posição para contestar as decisões feitas pelo operador, provocando, assim, o uso de novas técnicas, tecnologias e ideias, pelo bem da maximização da produção de petróleo da Noruega”. (HJØRUNGNES, Diana Amendoeira Maciel. Brasil, e os próximos dez anos?...ob. cit. p. 130)
42
próprio Estado ou uma pessoa jurídica por ele controlada gerenciar diretamente a
atividade, eles “não podem deixar de assumir os direitos e obrigações”
correspondentes100.
Conforme pudemos observar nos debates travados durante o VI Fórum de
Óleo e Gás101, os representantes de algumas das principais empresas petrolíferas
nacionais e multinacionais externaram grande preocupação com a questão de
como será contratualmente formatada a “governança” dos empreendimentos. Para
nós, no entanto, esse ponto já está praticamente definido na lei: será a PPSA, com
poder de veto e voto de qualidade, quem, em tese, ditará os rumos empresariais
dos projetos; salvo, é claro, se na prática a estatal abdicar do exercício desses
poderes – o que se mostra muito improvável, considerando que ninguém costuma
renunciar ao uso do poder (ao contrário, tende a dele abusar, conforme conhecida
máxima de Montesquieu); ou então se a PPSA for capturada pelos interesses das
empresas petrolíferas – essa sim uma hipótese mais plausível de ocorrer,
conforme inclusive aventado por uma alta autoridade da República102.
Conclusão
É importante deixar bem claro que não se está aqui a apontar qualquer
antijuridicidade no vigoroso recrudescimento do Estado empresário brasileiro, que
será senhor absoluto dos empreendimentos petrolíferos e pretende não correr os
riscos correspondentes. Entendemos que o maior dirigismo estatal, per se, é uma
questão político-ideológica que deve ser acertada no âmbito exclusivo dos
Poderes Executivo e Legislativo, não cabendo ao Judiciário nela se imiscuir.
Entretanto, exclusivamente sob o ponto de vista das políticas públicas de
100
EC Directive 94/22EC, art. 6o, item 3, apud CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Parecer... ob. cit.
p. 59. 101
Seminário realizado no Rio de Janeiro, em 07/12/2010, pelo Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças (IBEF). 102
Em entrevista ao jornal Valor Econômico de 03/09/2009, a então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, hoje Presidente do Brasil, alertou para o risco de captura da nova estatal, ao dizer que: “Não há o risco de a Petro-sal influenciar. Na verdade, o risco que corremos é o de a Petro-sal ser influenciada pelos agentes”. (apud GOMES, Carlos Jaques Vieira et al. Avaliação da Proposta...ob. cit., p. 48)
43
desenvolvimento econômico, não podemos deixar de observar que, do modo
como estão esquematizados o sistema de administração dos consórcios e a
divisão dos riscos do empreendimento, a consequência imediata será o
desestímulo ao investimento privado na exploração de petróleo nas zonas do pré-
sal.
E não poderia ser diferente, pois se já é normalmente delicado investir alto
numa atividade naturalmente arriscada como a exploração petrolífera - máxime
numa desafiante fronteira como a do pré-sal -, imagine-se fazer isso sem que os
investidores tenham qualquer controle sobre os projetos, que ficará concentrado
nas mãos de uma novata entidade estatal, absolutamente irresponsável pelos
seus atos de gestão empresarial.
A dúvida que fica então é: será que o prêmio vai justificar o risco?
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