balandier georges. o poder em cena

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~fiLg~ampus Universitário - Asa Norte '" DAT~ .,

70.910 - Brasilia - Distrito Federal ~ ~

TI 1 .. al L P . S' d G B al~ 'S :& "_ -_ ' -'- ",\'lo~tu o ongm : e ouvO Ir sur cen es e eorges an

DOAÇÃOE A E 1 C H I UFMQ

Impresso no Brasil

Editora Universidade de Bras il ia

Copyright © 1980 hy Éditions Bal land

Direitos exclusivos de edição em lingua portuguesa:Editora Universidade de Brasíli a

Capa:

Arnaldo Camargo Machado Filho

EQUIPE TÉCNICA

Editores:

Lúcio Reiner, Manuel Montenegro da Cruz,

Maria Rizza Batista Dutra e Ma ri a Rosa Magalhães.Su pen n s or G rá fi co :

Elmano Rodrigues Pinheiro.S u pe ro is o r d e Reo isã o:

José Reis.Contra/adores d e T e xt o:

Antônio Carlas Aires Maranhão, Car la Pat rí ci a Frade Nogueira Lapes,

Clarice Santos, Fernanda Borges, Laís Serr a Báto r, Mar ia d el Puy Diez de Uré Helinger,

Maria Helena Miranda, Mônica Fcrnandes Guimarães, Patrícia Maria Silva de Assis,Thelma Rosane Pereira de Souza, Wilma G. Rosas Saltarelli

Ficha Catalográfica

(Elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasília)

B171P Ralandier, GeorgesO Poder em Cena. Trad. de Luiz Tupy Caldas de Moura.

Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1982 © 1980.

78p, (Coleção Pensamento Político, 46).

Título original: Le pouvoi r sur scenes.

32(0:82-2)

série

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SUMÁRIO

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CAPÍTULO 1

PREFÁCIO ·· ··· · · · ·· · · · · · ·· ·· · ·· · · · ·· · · · ·· · ·· · · · .

5

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CAPÍTULO 2

O Drama ···· · · ·· · · ·· · ·· · · · · · · · · · · · · · ,···

A Confusão , . u

CAPÍTULO 3 O Inverso , . 4 iCAPÍTULO 4 A Tela ..... , ..... · · ·· · · ·· · · ,· ·· · · · · · · · · · · · · · · · ·· · 8 1

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PREFÁCIO

/o político comanda o real através do imaginário, num espetáculo em qUI 11

cenas sesucedem, ora ref let indo const rangimentos originados no passado ao n fY I lda cultura, ora em decorrência de t ransformações sociais , cuja intelegibll ldad.Georges Balandier apreende ao surpreender o nível profundo das relações IOClaJl

que dão o sentido da ação, a par das est ruturas oficia is , as aparências superfIcla il,controladas diretamente pelo poder. O poder é concebido como um jotodramático que permanece ao longo dos tempos e ocorre em todas as sociedadlt.Para o autor, os terrori stas , por exemplo, vão buscar na morte a sacralízação de IUUidéias; os sacrifícios e o sagrado levam tanto à desordem, quanto à ordem como O

verso e o reverso de uma medalha são indissociáveis.

Sem recorrer a modelos, Georges Balandier penetra na dinâmica de cadasociedade, dando sentido às imagens codi ficadas , universalizando o especif ico,comparando situações em termos de tempo e de espaço, afastando-se do modeloda análi sé duali sta, tão ao gosto das ciências sociais , em que uma dada c ivil izaç lo,aconsiderada mais avançada, é apresentada como parâmetro, meta' para o.integrantes das outras civilizações. Toda sociedade tem a sua própria dinâmica e aação dos homens tem nelas sentido específico, universal. Balandier, recorrendo lsociologia, à antropologia e à his tória , tem o mérito de demonstrar a semelhançados mecanismos do poder em várias civilizações, contrapondo espaço e tempo,valorizando o conceito de alternativas que possibili tam a escolha da orientação diação a partir de diferenças que, juntamente com os valores, oferecem o sentido daorganização social e da polí tica. .

"

Georges Balandier, que atualmente ensina sociologia e antropologia lV oSorbonne, onde substituiu Georges Gurvitch na cátedra, iniciou sua carreira d,pesquisador no Continente africano. No plano da sociologia, sua obra culminoucom apublicação de SociologieAc tuel le de l'A f ri que No i re e com Sens et Puissance, l ivro d,ensa ios de alto cunho teórico. Com Anthropologie Polit ique eAnthropo-logiques lanç ••••no domínio da antropologia, avançando, desde então, para a área da cienc~1política e do ensaio, através de H i st oi re s d es A u tres, e agora com esta obra que IEditora da Universidade de Brasília tem a satisfação de apresentar aos leito rei dilíngua portuguesa. .

P ro l F e rn an d o M o u " ' ,

Brasilia , jun ho dt J 911 ,

. . - - - - ,

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1o DRAMA

Por trás de todas as formas de arranjo da sociedade e de organizaçlo do.poderes encontra-se, sempre presente, governando dos bastidores, a "teatrocrJ.o

cia". Ela regula a vida cotidiana dos homens em coletividade. É o regiml

permanente que se impõe aos diversos regimes politicos, revogáveis, suceuivo ••

Ela deve este nome a um russo de múltiplos talentos e atividades, ml.desconhecido - exceto de Beckett que recebeu sua influência ao estabelecer o

teatro da zombaria - Nicolau Evreinov. Sua tese, expressa a partir de ilustraç&••

extremamente variadas, monta um tribunal teatral para todas asmanifestaçOel da

existência social, notadamente as do poder: os atores políticos devem "pagar .IUtributo cotidiano à teatralidade".

o argumento émenos recente do que o termo que o denomina. Shakelpelrt

já lhe tinha dado o simbolo: "O mundo inteiro é uma cena"; e suas peçu

principais são o comentário dramático das formas em que as práticas coletiva•••

revelam, as dos participantes e as dos confinantes dos poderes e das ações social••

Um jogo encenado afim de mostrar osjogos da sociedade, que os faz edesfaz; uma

sociologia que não depende de enunciação, mas da demonstração pelo drlml. ;l '

Esta última expressão tem, de sua origem grega, um duplo sentido: O de qire o de representar o que está em movimento a fim de provocar a descob~él.-til,.

verdades escondidas em todos os assuntos humanos. A constaração do parenteleo

existente entre as palavras "teoria" e "teatro" completa a lição, pois transmi~"mesmo ensinamento. Ela sugere que o primeiro modo de teorizar é de car•• r ,dramático. A vida social, as transposições efetuadas pelos atores do drama e ' Iteoria têm ligação; juntos, compõem e expõem uma mesma ordem de rea l ídad ••Âcidade grega antiga, os grandes mitos e o teatro que os apresenta estiO .mcorrespondência. Esses, pelo jogo dos personagens reveladores -Prom~n!lU,

Édipo, Antigona, na primeira fila- tornam ayarentes os princípios que governam

a vida coletiva, os debates e conflitos que engendra. Tirando uma conclullo

radical, certos politólogos contemporâneos localizam a verdade do poder n osubstrato das grandes mitologias mais do que no saber produzido pela sua prôprl&

ciência

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Oeorl.1 la landl t r

o Imagln6rlu Ilumina po ls o f en ô m en o p ol tu co : Ne m dúvida de den tro, poisque de le ~ I II II U f lU l' lr consthuinte. Todo sistema de poder é um dispositivodestlnado a produzir efeitos. entre os quais os que se comparam às ilusões criadaspehu l I u N ô c N do t e a t ro , As imagens propostas por Maquiavel identificam oPrínclpe ao dcmiurgo ou ah herói; elas sacralizam seus empreendimentos,tornando-o cúmplice da instituição sagrada estabelecida - a religião e suascer imônias . No entanto, a tr ansposição requerida pela prática política é de outraespécie: o Florentino, por sua própria experiência , inclusive a de autor dramático,

conhece a relação íntima de parentesco entre a arte do governo e a arte da cena. Astécnicas dramáticas não são utilizadas exclusivamente no teatro, mas também nadireção da cidade. O Príncipe deve se comportar como ator politico paraconquistar e conservar o poder. Sua imagem, as aparências que tem, poderão.lIlm corresponder ao que seus súditos desejam encontrar nele. Ele não saberia(l'uvernar mostrando o poder desnudo (como está o Rei no conto) e a sociedade emUI I I I I transparência reveladora. Tomemos pois o risco de uma fórmula : a ace itaçãoresulta em grande parte das ilusões da ótica social.

Maquiavel tentou interpreta r este fenômeno insóli to, produzido em Florençaem fins do século xv - a ditadura de Savonarola . O exemplo é demonstrativo.Com efeito, nada parecia favorecer o sucesso deste monge dominicano inflamado,que se tornou o artesão solit ár io de uma revolução soc ial , econômica e polít ica. Elesurgiu, "inspirado por Deus", em uma cidade dominada pelo ateísmo. Ele prega emoraliza. Ele diz o que é "o governo natural de Florença". Ele lança éditos edomina sem participar diretamente, a vida política, através das instituições.Savonarola mobil iza o povo, encontra apoio nas artes , organiza uma propagandaque provoca a adesão e formação dos "novos cidadãos". Ele dramatiza habil-mente, suscitando as encenações de rua. Ele restabelece o Carnaval, fazendo deleUIII meio de moralização; ele faz transformar as canções libertinas em hinos da"milícia da virtude". Ele espalha as fogueiras da vaidade, queimando os sinais deluxo e com eles o mal. Mas, a grande fes ta das aparências é s ituada em outro plano.A rel igião é empregada para uma transformação polí ti ca total. Florença é colocadadebaixo da realeza do Cristo e o monge inspirado, em "embaixada junto àVirgem", faz de sua profecia um programa. Ele constrói uma cidade divina, ele j á a

mostra, sua pregação transforma o imaginário em presença. Savonarola fala e éobedecido. A mecânica empregada para produzir efeitos é a máquina oratória. Opoder adquirido é teatral na acepção mais imediata do termo. Nasce de uma voz,no sentido lirico de termo. P. J. Salazar, em um estudo recente, considera queFlorença é então submetida a "uma ditadura davoz". É com este desempenho queo imaginário e a ideolog ia se tornam ilusões realizadas.

O grande ator político comanda o real através do imaginário. Ele pode, aliás,manter-se em uma ou outra destas cenas, separá-Ias, governar e produzirfumespetáculo. Como Luís XIV em seus divertissements , o Rei se torna comediante.A ópera francesa se edifica sobre um terreno político. O Balé Cômico da Rainha,

. . ::'."i".b.

o Poder em Cena ,

produzido em outubro de 1581 por ocasião do casamento do duque deJoyeUI'com a cunhada de Henrique llI, foi uma das primeiras manifestações deite dpo,Ele marca a ruptu ra com as práticas das "Entradas Principescas" ou doa IIIntlr-médios" à italiana. É uma representação centrada inteiramente no Rei, RIU"rando em seu carro-camarote. A ópera do século XVII, segundo a exprelllo d.P. J. Salazar em seu trabalho consagrado às ideologias da ópera, manifesta o mitoafirmando a "perfeição da cidade, do Estado, da natureza monárquica", Ela.concebida como uma expressão estética perfeita, uma arte mimética da naturtll

fisica e da sociedade monárquica. Sua ordem e esplendor mostram suas virtude.similares, e finalmente, um mundo acabado de que o monarca é o centro aparent ••Desde os mecanismos da natureza descritos pela fisica cartesiana, até as maqul·narias e reconstruções básicas da ópera e os dispositivos do Estado mantido. peloRei, tudo se encontra em correspondência. O imaginário clássico projeta sobre .1.

cena, onde se desenrola o drama lírico, as representações de uma ordem. ondetudo é harmonia. Produz es ta ilusão, e, fazendo-o, a just if ica.

O poder estabelecido unicamente sobre a força ou sobre a violência nlc)'controlada teria uma existência constantemente ameaçada; o poder expOICOdebaixo da iluminação exclusiva da razão teria pouca credibilidade. Ele nloconsegue manter-se nem pelo domínio brutal e nem pela justi ficação racional. 11 .

só se realiza e se conserva pela transposição, pela produção de imagens, pellmanipulação de símbolos e sua organização em um quadro cerimonial. Elcaloperações se efetuam de modos variáveis, combináveis, de apresentação disociedade e de legitimação das posições do g~verno. Logo que a dramatur,l.política traduz a formulação religiosa, ela faz uma réplica da cena do poder ou umlmanifestação do outro mundo. A hierarquia é sagrada - como o diz a etimoloFI"e o soberano depende da ordem divina, dela fazendo parte ou recebendo O 'tumandato . Logo o passado coletivo, elaborado em uma tradição, em costumJ,;taorigem da legitimação. É uma reserva de imagens, de símbolos, de modelo. d.ação; permite empregar uma história idealizada, construída e reconltruldasegundo as necessidades, a serviço do poder presente. Este gere e assegura IIU'

privilégios colocando em cena uma herança.

É, entretanto, o mito do herói que acentua com mais freqüência a tea tralidadlpolítica; ele engendra uma auto ridade mais espetacular do que a rotineira, que ~.looferece surpresas. O herói não é desde logo considerado como tal porque seria no·tadamente "o mais capaz" - de assumir o encargo da soberania, como afirmaCarlyle. Ele é reconhecido em virtude de sua força dramática. Dela deriva IUIqualidade e não do nascimento ou da formação recebida. Ele aparece. " '1provoca a adesão, r ecebe o poder. A surpresa, a ação, e o sucesso são as tre, lei. dodrama que lhe dão existência. Ele deve ainda respeitá-Ias na condução do gO.verno,manter-se no próprio papel, mostrar que a sorte permanece sua aliada contrltodos. Nas formas contemporâneas,' o herói muda de figura; ele é mono.companheiro da fortuna do que mestre da "ciência" das forças históricas, Ele II

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conhece, ele pode dominá-lu e tornar .eu. efeitos positivos; todas as manifes-

taÇOl '8 exteriores do poder são feitas a fim de dar esta impressão. O recurso ao

Imaginário está na convocação de um futuro em que o inevitável se transformará

em vantagem para o maior número de súditos. As luzes da cena do futuroIluminam a do presente.

Todos estes processos, isoladamente ou mais freqüentemente associados,

def inem funcionamentos políticos reconhecidos. Um deles se situa à parte, poisque

luaspotencialidades dramáticas são mais fracas.

Éomodo democrático que se

basela na representação e em que o poder resulta da regra majoritária. Ele não

depende ordinariamente nem da conivência dos deuses ou do respeito da

tradição, nem do surgimento do herói ou do controle das correntes históricas.

Depende da arte da persuasão, do debate, da capacidade de criar efeitos que

favoreçam a identificação do representado ao representante. Ele dramatiza pela

eleição, ocasião que uma "partida" nova parece serjogada. A intensidade da ação

resulta da incerteza quanto à maioria, sua manutenção ou sua mudança; o

momento espetacular é o das crises de governo. Ocasionalmente, a surpresa -

vulgarmente denominada um "golpe" - quebra a rotina, espanta e dá vantagens.

A s novas técnicas dão meios mais poderosos à dramaturgia democrática, os da

mídia, da propaganda e das sondagens políticas. Elas reforçam a formação das

aparências , ligam o destino dos homens de poder tanto àqualidade de sua imagem

pública quanto às suas obras. Denuncia-se então a transformação do Estado em"espetáculo", em teatro de ilusão. O que se encontra assim submetido à critica,considerado como perversão, não é senão o aumento de uma propriedadeIndissociável das relações de poder.

Uma amplificação idêntica pode se realizar independentemente do concurso

da tecnologia contemporânea, pois que é da natureza de certos regimes recorrer a

efeitos extremos para sustentar o domínio. É o caso das sociedades totalitárias

onde a definição política - isto é, a submissão de todos e de tudo ao Estado -leva a

função unificadora do poder ao seu mais al to grau. O mito da unidade, expresso

pela raça, pelo povo ou pelas massas torna-se o cenário da teatralização política.

Ele mobiliza e recebe sua aplicação mais espetacular na festa que põe a nação

inteira em situação cerimonial. Durante um curto período, uma sociedade

imaginária, e, conforme a ideologia dominante, pode ver e viver. O imaginário

"oficial" mascara a realidade e faz sua metamorfose. A festa nazista, à qual não

faltam nem mesmo os poderosos simbolismos cósmicos, é a ilustração lembrada

('0111 mais freqüência. Ela apaga asdiscriminações sociais, ela elimina o discurso em

proveito do sortilégio, é quase uma comunhão, ela leva quase à alienação. J.

nu vignaud diz que ela substitui a sociedade civil por uma "fusão delirante". Ela

transforma um povo inteiro em uma multidão de figurantes fascinados pelo drama

em que os envolve o senhor absoluto do poder.

Nos países de regime socialista onde prevalecem o Estado e o poder pessoal, a

festa dá ensejo à sociedade de semostrar "idealmente" de modo espetacular. Os

o Poder em Cena ,desflles, tanto militar como civil, são expressões cerimoniais do dogma e di

pedagogia dos governantes. Neste caso, o 1.° de Maio socialista i!bem mal. do qUI

uma simples festa do trabalho. Ele reúne, ele iguala, ele alia em um momento O

povo e seus chefes na exaltação das realizações comuns. Mostra o poderio,

notadamente o das armas; ele celebra os desempenhos tidos como realizado ••

menciona o que falta fazer. Ele remodela os atores sociais, engajando-os em um

espetáculo em que representam não o que são, mas o que devem ser em função do

que o Estado, e,portanto, o partido espera deles. Éo aspecto mais n otá ve l d e uml

dramatização mais geral que personifica as categorias ou entidades: o Plano e 01dados econômicos, o proletariado e sua ditadura, o imperialismo e leu.

cúmplices.

As situações e as circunstâncias, não somente a natureza dos regimes, podem

contribuir para acentuar a teatralidade política. AAmérica Latina, essencialmente

não igualitária e aberta aos efeitos da dominação exterior, produziu - e ainda tem

a hipertrofia do poder, de um modo que associa a tragédia, de que sofrem 01

povos, e o grotesco autocrático, com que os governantes enfeitam sua medíocrl-

dade. Alguns escritores latino-americanos, Garcia Marquez, Alejo Carpentier, ROI

Bastos, mostram estes heróis de encruzilhada estabelecidos na cena nacional, o,nde

se cruzam seus próprios delírios e o destino doloroso dos que lhes estio

submetidos. Roa Bastos, em seu romance "Eu, o Supremo", transforma um

momento da história do Paraguai em um verdadeiro mito do poder total. O senhorda "Ditadura Perpétua" é o modelo absoluto de todos os governantes abuslvOI,

delirantes, que reduzem a ação e a palavra políticas a um drama barroco,

Éassim que são classificadas as práticas de muitos dos novos Estados tropicai"

Elas teatralizam em excesso, elas montam seus cenários sobre a pobreza ~I

maioria dos súditos, elas mascaram poderes sem controle. A procurada grandezl

se transforma em nefasta grandiloqüência, freqüentemente ruinosa. Na Guln.

Equatorial, um ditador se diviniza, na África Central um Presidente "víralícíe"

imita Napoleão, em Uganda, um militar elevado à culminância torna-se um

marechal do arbitrário e do imprevisível. A morte e o grotesco, segundo o nOIlO

ponto de vista, se aliam nos jogos de um poder que nos parece sem limite e sem

regra. Alhures no Irã, o furor religioso desce às ruas e. depois se instala. Ele

dramatiza, moraliza, executa, submete, entretém a ilusão de uma revoluçãe

permanente - quando arrisca substituir a ditadura e osexcessos da tradição aos di

modernização negocista. Já se disse que o revolucionário, desde que triunfa e I'estabelece para governar se torna uma caricatura. É que há uma passagem dicomunhão libertadora para a dominação instituída, do ato que sacrifica e destrói

um poder ao de fundação que estabelece um outro. Durante este periodo 'rl••

transfiguração, todos os caracteres ficam de qualquer modo deformados pelo

aumento, e, especialmente pelo .aspecto dramático da instituição política. 01regimes arbitrários motivados pelos próprios excessos, não saem deste estado; nOI

outros ele é apagado pela ação do tempo sob o efeito do que hoje chamamo.

normalização.

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1 0 Otol'lfl'

Todo poder polltlco obtém f inalmente a lubordln.çlo por meio da teatral i-dade, mais aparente em certas sociedades do que em outrlll, pula que suasdiferenças de civilização as tornam desigualmente "espetaculares". Representa emtoda acepção do termo a sociedade que governa. Ele se mostra como suaemanação, ele lhe assegura sua apresentação no exterior, ele devolve uma imagemidealizada desta sociedade e portanto aceitável. No entanto, a representaçãoimplica em separação, em distância; ela estabelece hierarquias; ela muda os queestão em diferentes cargoSl e esses dominam a sociedade fazendo dela um

espetáculo onde ela deve (ou deveria) se ver aumentada. As manifestações dopoder não seacomodam bem com a simplicidade. A grandeza ou a ostentação, adecoração ou o fausto, o cerimonial ou o protocolo geralmente as caracterizam.

o poder utiliza, aliás, meios espetaculares para marcar sua entrada na história(comemorações), expor os valores que exalta (manifestações) e afirmar sua força(execuções). Este último aspecto é o mais dramático, não somente porque põe emação a violência das instituições como porque também sanciona publicamente atransgressão dos interditos decretados como invioláveis pela sociedade e seupoder. A praça da Greve foi palco deste drama produzindo a representação deumsacrifício pela força,' e que tem um valor de exemplo para o público assistente eparticipante. Os grandes julgamentos políticos, em seu desenrolar, na apresen-

tação, levam a dramatização a seu mais alto grau de intensidade. Elesimpõem umaencenação, um cenário, papéis, instâncias secretas e violências, revelações e efeitosde surpresa que levam geralmente à confissão do acusado. Recorrem aoextraordinário, inclusive no arranjo do cerimonial judiciário. São calcados emuma lógica implacável, mas seu funcionamento provoca emoções ~ desde areprovação até a cólera e o ódio populares. Elestransformam durante algum tem-po a cena política em um teatro trágico, pois que a meta do drama é a morteflsica ou moral daqueles que o poder acusa em nome da salvaguarda da forma edos valores supremos da sociedade. '

O poderio político não aparece unicamente em circunstâncias excepcionais.Ele se quer inscrito duravelmenre, imortalizado em uma matéria imperedvel,

expresso em criações que manifestem sua "personalidade" e seu brilho. Ele dirigeuma política de lugares e obras monumentais. Amonarquia de LuísXIVsemostra,fala e se glorifica pelo Castelo de Versalhes, que se constrói, e na ópera que seconstitui como drama lírico. Cada "reinado", mesmo republicano, marca de ummodo novo um território, uma cidade, um espaço público. Ele arranja, modifica eorganiza, segundo as exigências dos proveitos econômicos e sociais de que éguardião, mas, também, para não ser esquecido e para criar condições para suascomemorações futuras. Ao centro das ilusões produzidas pelo poder seencontra acapacidade de escapar aos assaltos do tempo. Tão inevitável como os embaraçosnaturais ele quer ser fator de continuidade, ele apresenta asprovas de sua duraçãoem face dos homens e das gerações que passam, de seus súditos que morrem.

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o Poder em Cena 11

Inversamente, uma capital nova materializa uma nova era; ela monra 01princlpios de um empreendimento coletivo; éo espetáculo que o poder oferece d.nação em atividade e dele próprio. Um decreto a cria, principalmente para lheconferir uma força expressiva. Brasília é a ilustração mais importante. A mal. demil quilômetros do litoral, onde se situam ascidades históricas, sobre um planutode vegetação escassa, abandonado a rebanhos nômades, a capital federal do BrallIfoi edificada em 4 anos. Ela tem a forma de um gigantesco avião pousado perto deum lago igualmente artificial. Ela excede as medidas, em relação ao espaço e 10

tempo; dissolvida na imensidão, para ser repesentativa de um país-continente; navertical sobre um território vazio e plano, e construidasegundo um modernlsmede vanguarda, para afirmar a antecipação do futuro. E sempre inacabada a fim deque este tenha sempre lugar. Brasília apresenta o poder em uma "encenação" deNiemeyer: emoldurando uma praça imensa, dedicada aos 3 poderes públ lces ,erguem-se os palácios do Governo, daJustiça e do Parlamento; ligada a ela, umavasta esplanada em que se escalonam os Ministérios. O resto compõe 01

bastidores, sem limites precisos, as maquinarias que desempenham as funçOI'indispensáveis - diplomacia, cultura, assuntos econômicos, exército e resid~ncia.,Pode-se ver a hierarquia das classes e dos empregos; um sistema de diferença cuj.expressão espacial é regulada pelo poder. Ele é o regente e o ator, por conta dahistória.

As cidades formadas através de um longo período histórico compõem-se demúltiplas cenas construídas pelos regimes sucessivos. Apresentam um espagl)urbano onde abundam os símbolos e as significações. Roma é uma delas. Não foipor acaso que Freud acalentou o projeto de visitá-Ia e estudou sua topografiaapaixonadamente. Ele pressentia que o essencial ali estava inscrito. Para começar,o que denuncia as origens da cidade chamada eterna: um mito e um homicfdlo,uma fundação traçando o espaço da civilização, um nascimento - o de um poder,"imperium". Esta cena original permaneceu como inspiração no decorrer dOI

séculos: de Pedro edificando um império espiri tual , dos construtores da ltilllmoderna unificada, de Mussolini fazendo surgir no espaço romano seu sonhoimperial . Em seguida, os cenários dos diferentes períodos se embaralham. C,Delacampagne, procurando descobrir a "geometria louca" de 'Roma, revelou II

estranhas ligações que associam os tempos da Loba no princípio aos doflorescimento barroco do século XVII e depois aos da modernidade. O que I .encontra nestas caminhadas é sempre o poder e o sagrado; cada época inscrevendosua maneira de seligar e de semostrar no que as precedentes edificaram. É bemsignificativo terem sido os papas construtores do século XVI, empresários da f~edo poder, osque fizeram nascer deseus sonhos uma remodelação dacidade, aindaatual.

No decorrer de sua história toda cidade seenriquece de lugares aos quais podeser atribuída uma função simbólica, recebida por destinação ou em virtude dealgum acontecimento. São os teatros onde se apresenta a sociedade "oficial" t,

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12 Oeorlel Balandler

inversamente os em que se"manifesta" o protesto popular. A topografia simbólica

de uma grande cidade é uma topografia social e polftica; a Bastilha designa os

componentes sociológicos das classes e das atividades, ao mesmo tempo em que é

um espaço aberto às demonstrações de reinvidicação ou de revolta. Certos lugaresexprimem o poder e impõem seu ar sagrado melhor do que qualquer explicação.

Abasílica de São Pedro de Roma, valorizada pela praça de colunatas concebida por

Bernini, é um cenário que provoca veneração e temor. Aí, a liturgia se torna

participação e espetáculo, uma consagração da onipotência de Deus como da do.

soberano pontífice, outrora senhor de um império. No México, a vasta praçaZocalo, que cerca o Palácio Nacional, no centro da cidade, é um lugar de

celebração. Todos os anos, no dia 15de setembro, às 11horas da noite, diante de

uma multidão de algumas centenas de milhares de pessoas, o Presidente da

República reitera do balcão do palácio o grito de revolta lançado pelo padre

Miguel Hidalgo, iniciador da Independência em 1810. Ele oficia; o povo-um coro

imenso - responde por um "Viva!" a cada uma de suas fórmulas. Soam os sinos eos

fogos de artifício iluminam a festa. Com este ritual periódico, os dirigentes se

tornam guardiões da continuidade mística da Revolução. Eles criam a ilusão da

permanência revolucionária. A praça Vermelha em Moscou é sem dúvida um dos

mais fascinantes espaços simbólicos remanescentes, um teatro político dos mais

elaborados. Elajá era o centro da cidade primitiva. O Kremlin lhe dá um de seus

limites - cidade do poder fechado, antiga sede religiosa em sua praça das Catedrais

onde os czares eram coroados, depois coração de um novo império iluminadopela estrela vermelha. O sagrado desaparecido - São Basílio, edificado na

extremidade sudeste da praça por iniciativa de Ivan, o Terrível, transformado em

museu pelas autoridades soviéticas - seopõe ao novo ídolo vindo da Revolução _

Lenine imóvel em seu mausoléu de mármore guardado por sentinelas e por onde

passam as multidões mudas em procissão. E ainda os nichos da muralha do

Kremlin onde estão encaixados os despojos dos personagens ilustres, as tumbas

cobertas de relva onde repousam os heróis mortos e Stalin. Dois centros governam

esta configuração polftica: um oculto (no interior dos muros), onde se assenta o

poder, outro visível (àfrente dos muros) constituído pelas tribunas onde seposta a

hierarquia suprema por ocasião das manifestações oficiais. É incontestável que

todo o poder se mostra neste teatro. O espetáculo visual é suficiente, não sendo

necessárias as palavras.

O silêncio e uma linguagem própria definem a expressão verbal do poder e são

uma das condições da arte dramática. Constituem em parte sua substância. Visam

o efeito mais do que a informação e procuram a influência duradoura sobre os

indivíduos, o que permite aodiscurso político terum conteúdo fraco ou repetitivo,

pois o que importa é a maneira de dizer e de ser ambíguo; a polissemia assegurainterpretações múltiplas de audiências diferentes. Reconhecido e dominado, o

poder das palavras engendra uma retórica; isto é, o recurso a um léxico específico,

a formas e estereótipos, a regras e modos de argumentação. Estes hábitos

identificam um regime, dele são constituintes parciais e contribuem para o seu

O Poder em Cena 11

estilo. Há uma eloqüência parlamentar, ridicularizada na França republicana

desde o século XIX. Há uma linguagem intensamente codificada dos dirigente.

comunistas que tem de ser decifrada para perceber a "Unha" adotada e o elcado

das relações de força no seio dos governantes. Uma personalidade excepcional

pode impor a marca de sua palavra ao poder. De Gaulle foi, segundo o cliché da

época, um "estilista" no governo, dublado por um ministro "do Verbo e do

Gesto", Malraux. Criticavam-no de ter uma política baseada sobre a crença n.

proclamação. A palavra, pela sua força e seus efeitos, ilusiona para conseguir que I

idéia se realize; e também para manipular na teatralidade e na ambigüidade, iverdade que nestes domínios a maestria foi absoluta.

Estas características aparecem na superfície; na análise em profundidade I

linguagem do poder revela outras. Desde logo, ela setem como válida além davida

imediata, banalmente cotidiana. Ela se refere a algo além, em direção do panado

e/ou do futuro: aos fundadores, a uma carta inicial easeus principios, às imagen. esímbolos, ao progresso, à mudança, a um programa impondo desde logo a genlo

do futuro. Em certas sociedades tradicionais estudadas pelos an t ropóloges , a

palavra dos poderosos não vem deles, mas dos antepassados que seexprimem por

seu intermédio. Estes ditam a Lei que será traduzida em comandos. O imagintrlo

informa o governo do reaL.Nas sociedades modernas avançadas, a validaçlo •

explicitamente "técnica" e, em graus diversos, ideológica. Ela parece ter esvaziadoo imaginário; aparentemente torna-se ainda mais explicativa. De fato, o discurlo

técnico modificou sobretudo o modo de produção das imagens e dos efeitol,

A linguagem do poder contribui necessariamente para tornar manifesta. I'

diferenciações sociais, e em primeiro lugar, as que separam os governantes do.

governados e muitas vezes até o ponto extremo em que a palavra política nã c .1

transmite diretamente, mas gradualmente, e por intermediários. Em multol

reinos antigos da Áfricao soberano nunca se exprimia nem ouvia sem recorrer I

um porta-voz. As palavras do poder não circulam como as outras. A eUI

propriedade se liga uma segunda, que faz da linguagem política, a despeito di

impressões contrárias que querem identificá-Ia a um ruído, ao vento, uml

linguagem que se deve considerar "discreta". Ela necessita uma comunicaçlo

calculada; procura efeitos precisos; não desvenda senão uma parte da realidade,pois o poder também deve sua existência à apropriação da informação, do.

"conhecimentos" exigidos para governar, administrar, e para exercer seu doml-

nio. Os governantes gostam do segredo, o que é às vezes justificado pela razlode Estado; e osgovernados sabem que "algumas coisas lhes são ocultadas". Aarte

do silêncio é parte da arte política. Houve reis que foram mestres tradicionala ou

que só foram notados sob este único aspecto pelos observadores estrangeiro I-

como o soberano do brilhante reino do Benin, na África Ocidental, apresentado

sob a figura de um personagem imóvel e mudo. Nas sociedades modernu O

contraste se acentua com freqüência entre as manifestações públicas do poder, I

aparição, a aparência, o ruído da periferia, e o silêncio do centro onde seefetua o

Il

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I ' !

1 4Georges Balandler

governo. A prolixidade sobre o acessório mascara o silêncio sobre o essencial, emparte ou no todo.

Os sis temas pol íti cos e as encenações do poder estudados pelos antropólogosconstituem uma documentação rica pela sua diversidade e uma referêncianecessária em vista do escla recimento de aspec tos até então desconhec idos . O quese impõe desde logo é o fato da apresentação espetacular da vida social não seseparar de uma representação do mundo, de uma cosmologia rraduzida em obras

e em prática. A China imperial, universo dos signos por excelência, é deles a maisrefinada das manifestações. M. Granet explica em "O Pensamento chinês" que opalácio imperial se situava no centro do país e que comportava em seu própriocentro um edifício sagrado, a "casa do calendário". Esta representava a terra porsua base quadrada, e o céu, pelo seu teto redondo. Seus quatro lados correspon-dem aos orientes, suas doze aberturas aos meses do ano. Ela representa todo ouniverso. O imperador deve, no decorrer dos dias, circular em volta destafiguração do mundo a fim de manter a harmonia no seu reino e de sustentar a p az ea prosperidade para seus súditos.

Os Astecas, fundadores do México quando os Capetos reinavam na França,geradores de poder e de glória aos olhos de seus vizinhos, criadores de umimpério, ligaram indissociavelmente a economia pol íti ca e a economia cósmica. C.Duverger, em um livro de título inquietante "A flor letal", mostra como estaassociação foi exagerada, indo até ao paroxismo e ao paradoxo. No México antigo,todas as gestões - a da cidade, a do império e a do Cosmos - se ligam; são um todoúnico, Os homens têm o encargo de assegurar a marcha do mundo, porque elacondiciona seu destino e o porvir de sua sociedade. A interpretação asteca sebaseia numa obsessão permanente da entropia, do desperdício, do fim do futuro.O cosmos engendra sua própria decadência, o tempo se desintegra, a energia seesgota "no calor da vida" . Esta f ís ica e es ta metaf ísicat rágicas são acompanhadaspor uma sociologia que não o é menos: a sociedade também sofre a l ei da usura ea sforças sociais se erodem. Nem um povo parece ter dado uma dimensão tãodramática ao problema da ordem. Eis o drama - a ameaça pesa sem tréguas sobretudo que só existe como sua conseqüência.

A resposta deve ser permanente, total, sem negligência nem vacilações, eprogramada em detrimento do indivíduo que o coletivo subordina de modoabsoluto. Ela depende primeiro de uma economia de energia, na acepção maisampla do termo. A moral asteca impõe uma codificação rigorosa doscompor-tamentos, ela se traduz em uma planificação completa de todas as condutas. Ojogo em sua gratuidade, os desvios e a marginalidade em sua não-conformidadesã o proscritos como despesas inútei s. A energiaJ .ndividua l é intei ramente posta aserviço da comunidade. Esta "boa" gestão não basta - épreciso o aperte de energianova, recarregar o universo e com ele a sociedade. Os sacrifícios humanosconstituem a tecnologia empregada para este fim. Eles fazem vida com a morte,

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o Poder em Cena 1 ' 5 ! .

eles captam ritualmente forças vitais que seriam destinadas à disslpaçlo lem luafreqüente realização. A sociedade asteca é deste modo dramatizada intesral·mente; as cenas de sacrif ício são montadas para as manifes tações das cerimOnial 'para as solenidades públicas convidando o povo para uma espécie de teatro dacrueldade. Os guerreiros fornecem as vitimas e aterrorizam os estrangeirol,efetuando sua captura. Os sacerdotes sacrificadores alimentam os deu.e. qUIgovernam os signos, os elementos e a natureza, os homens e a sociedade; e 1 • •

associam a elite à comunhão por ocasião dos repastos antropofágicos que .1seguem aos sacriflcios. C. Duverger diz que o povo asteca recebia a violênda dOIsacrifícios com um sentimento de "fascinação assustada". Todo O si stema do,poder, em uma abundância de símbolos e ritos, está a serviço de uma ordemdevoradora que liga solidariamente o universo eo mundo humano. O sacriflclo 61solução adotada para a conservação permanente desta ordem canibal.

O exemplo é radical; parece-nos absolutamente exótico e bárbaro apesar dobrilho da civilização as teca. É preciso saber que os poderes tradicicnals temsempre o duplo encargo da ordem das coisas e da ordem dos homens e que dllloresulta um desdobramento de símbolos e cerimônias de uma riqueza profull,uma multiplicação de prescrições e interditos, uma dramat ização generalizadl'

tendo como cenários a natureza, as cidades e as aldeias. A racionalização poUtiCInão apaga inteiramente os antigos costumes. Todos os períodos de crise grav.repõem tudo em causa, até provocar a formulação de uma nova teoria da natureza ,inclusive da natureza do homem. A primeira Revolução francesa o demonstrou,As sociedades contemporâneas regidas pela racionalidade técnica tornam- se dinovo e aparentemente mais responsáveis pela gestão do mundo natural, do meioem que se inserem os agrupamentos humanos. Elas abrem o Espaço e ai I'entregam às rivalidades de poder. Elas exploram uma forma de energia. - a doátomo - trazendo em si a capacidade de destruição absoluta ou, quando mal.pacificada, o risco. Elas sentem a limitação de recursos em matérias-prima ••energéticas, e estão envolvidas em uma guerra econômica endêrnica.: Ela. lidescobrem - e o confessam mais ou menos - culpadas de poluições e degradaç&1Ida natureza. O Drama se recoloca em uma cena cujos limites ultrapassam I 'fronteiras da sociedade. Reaparecem as entidades negligenciadas: Hélio!, nocentro das novas festas solares torna-se um mensageiro do futuro. Entretanto aligação poder/natureza se mostra de um modo mais cotidiano. Na gestão: Iadministração de Los Angeles gere o ar da aglomeração;, os ministros doAmbiente começam a ser, aqui e acolá, responsáveis pela boa ordem do meionatural. No protes to: as lutas teatralizadas asseguram a defesa cont ra as poluiç&e.indust riai s e contra o es tado antinatural cr iado nas megalópoles em expansão. Ocombate ecológico, recorrendo aos símbolos e espetáculos, também fornece Iprova de que o poder é o culpado. Ele visa definir a economia de outro modo (noque se relaciona com a natureza), as relações sociais e o regime político que I'exprime.

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16Georges BaJandler

A lição antropológica, pois que baseada principalmente no estudo das

sociedades da tradição, sublinha até que ponto o poder resulta do jogo das

diferenças, de' sua simbolização e de sua manifestação espetacular. É sabido que opoder separa, isola, fecha. Acima de tudo ele muda os que a ele têm acesso. A

entronização é uma modificação. Os Reis são feitos. A .antropologia política

africanista disso tem dado demonstração, repetidas vezes, mesmo no caso de

pequenas sociedades sem aparato e de governo discreto. No Togo setentrional, o

chefe do clã dos Moba não tinha acesso a seu cargo senão depois de um retiro ao

lado dos altares protetores. Ele aíera formado, sagrado e recebia asinsígnias. Ele se

tornava "outro", sendo marcado fisicamente por uma mutilação sexual, receben-

do um novo nome, aprendendo um código de conduta específico que lhe

impunha especialmente não mais falar a não ser pela língua de um intermediário.

As grandes realezas antigas obedeciam a este processo de maneira mais

constrangedora e mais dramática. O soberano Yatenga, governando um dos reinos

Mossi do Alto-Volta, não era, em uma primeira fase, mais do que o chefe de todos

oschefes. Ele sópodia receber a qualidade de rei depois de um itinerário iniciático

de longa duração, através de uma parte do reino, a que tem os lugares simbólica e

historicamente fortes. Durante o percurso a pessoa real se formava e o poder real

se acentuava. O ato decisivo e último serealizava onde fora estabelecida a primeira

residência do fundador do Estado. O rei estava então definitivamente feito. Eraexposto em pleno dia sobre a "pedra do poder", apresentado ao povo montado

num garanhão que simbolizava o novo reinado e coberto de vestimentas brancas

especiais. Sua volta se fazia em triunfo e ele recebia todas asmarcas de submissão.

O rei, no decurso destas provas formadoras, "assimilava" o espaço e a história

Mossi. Ele os incorporava: termos da mesma raiz designam, ao mesmo tempo, a

busca iniciática, o reino, o soberano; o sentido radical é: comer, alimentar.

A informação africanista abrange inúmeras descrições comparáveis. No reino

de Loango, na periferia do império Kongo, o rei é eleito e passa por um noviciado.

Durante os 7 primeiros anos do reinado, ele não é um soberano em toda a

plenitude, ele "fica chocando". Elediz receber as "forças" - os poderes que não se

reduzem somente à capacidade de obter a subordinação - fazendo um retiro juntoaos sacerdotes e adivinhos. Ele tem a obrigação de governar de uma maneira

exemplar. Ao fim deste período probatório ele recebe a última, formação, a

consagração e o assentimento dos poderosos, no curso de um périplo de muitos

meses nas 7 províncias do reino. Ele deve vencer muitas provações iniciáticas eflsicas, compreendida a da reserva em face de uma virgem que participa de sua

companhia. Ele visita os santuários mais venerados, ele faz sacrifícios entre os

quais alguns têm criancinhas por vítimas. No final, a entronização mostra

publicamente, com fausto, o rei completo; ela o sagra, lhe dá a sede, as vestes

distintivas, seu nome de reinado; ela manifesta a fidelidade dos chefes, mastambém os limites da autoridade do soberano.

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o Poder em Cena 1 ' 1 1

Nestes regimes tradicionais, em que abundam os símbolos, a tran.fisuraçl.oprovocada pelo poder e a encenação da hierarquia se tornam evidente •. Tudo ••

relaciona ao soberano, se simboliza e se dramatiza por ele: re lações com o

universo, no mundo exterior, no território politico, no passado e portanto nl

história, na sociedade e em suas obras. Ele está no centro da repre.entaçlOI

palácio, cortesãos, desdobramento de força, cerimonial e festa, marca. didiferenciação e comportamentos codificados. Mais ainda, ele mesmo IIpel . 1 1 0 1

corpo" , lugar de representação. Modificações físicas, às vezes sexuais, podem •••••lhe impostas. O poder o "veste" ou fixa sua figura sobre a superfície de sua p el e, Osoberano Loango, pintado de ocre e de caolim, desde a fronte até os anelhol,

torna-se um registro onde o poder se inscreve em signos e motivos. De tudo latoresultam duas conseqüências principais. Diferenciando de modo absolutO, .o

poder torna sagrado, separa, põe os súditos de lado, como os fiéis em face du

divindades - bem que a política e a religião se aparentam. Requerendo eUI

transformação radical, o poder impõe um procedimento para efetuá-Ia. Ascarta.

dinásticas permitem designar um soberano entre ospretendentes; em seguida falta

fazer um rei, esperando eventualmente desfazê-lo: pela revolta, pelos ataquI.

insidiosos, pela prova de seus erros - entre os quais os de ordem a.lelapresentando risco de contágio.

As sociedades da modemidade estão, sob estes aspectos, mais próxima. di

tradição do que parece. Elasmudaram o modo da representação, mas não tocaflm

no essencial. Um candidato ao cargo supremo não pode irromper, surgir do

desconhecido, a não ser em circunstâncias excepcionais que façam dele um herói.salvador.

Se não, deve ter sido preparado, ter adquirido uma imagem pública, uml

"dimensão nacional", uma credibilidade resultante de provas de sua iniciaçlo.

de seus sucessos anteriores. Vencedor, ele terá a obrigação de representar com o.

recursos de um cerimonial, de governar, manifestando sua competência e '1 .11

"sorte", de dominar, mostrando que mantém o controle das "forças" - compr ••

endidas aspróprias. Sua condição físicadeverá ser revelada espetacularmente, plll

natação, pela caça, pela corrida ou por qualquer outro desempenho. Ela ~ um

dado político, e sua decadência aparente afetará o nível da opinião públ icafavorável.

A lição da história completa a da antropologia, restabelecendo modo. didramatização social e política menos desconcertantes. O contraste mais choc,lntl

é, sem dúvida, o de um Ocidente medieval que pratica a teatralização generall".rhl

da sociedade, e de um Ocidente da Renascença que "representa", principalmente,

pela festa com a colaboração das diferentes artes. Esta última como instrumento do

poder, efetua a transposição dramática dos eventos históricos, a traduçlo

simbólica das relações políticas e sociais e a encenação da ideologia.

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11 Oeorgea Balandier

As sociedades medievais eram todas impregnadas de imaginário; G. Dubymostrou seu conteúdo e suas funções. A Idade Média começa quando" Roma nãoera mais do que um cenário arruinado no Ocidente", mas a fascinação romanasubmete então os Barbáros. Ela se define no comportamento da Igreja que impõeà consciência cole tiva, durante séculos, "uma representação glo bal da sociedade" .Esta repete o Reino de Deus sobre a terra; seu centro é o rei, guia do povo cristão,garantia da ordem, protetor dos pobres e da Igreja que poderá substituí-lo quandofaltar a autoridade real; sua unidade acaba traduzida, com referência ao planodivino, em um arranjo hierárquico das funções religiosa, guerreira e produtiva. Oterceiro registro do imaginário se abre com as grandes transformações do séculoXI, que farão das cidades ressurgidas as cenas do poder, da riqueza e da criação.Três fontes alimentam deste modo, no curso do tempo, as sociedades emmovimento que se criam produzindo uma ordem figurativa própria, suas imagense seus espetáculos.

J. Duvignaud as qualifica de "sociedades visuais"; tudo aí se mostra e serepresenta , as prá ticas socia is serealizam com uma dramat ização permanente. Oslaços sociais estabelecidos com uma encenação rigorosa fazem de cada encontropúblico uma representação. As circunstâncias da vida indiv idual - nascimento,casamento, morte- se traduzem em atos representáveis, exemplares ou exaltantes.

As festas, montadas como verdadeiras liturgias cívicas, põem em cena ashierarquias constitutivas da sociedade, a fim de expô-Ias e confirmá-Ias, ou decontestá-Ias s imbol icamente nessas pantominas sagradas que são a ce lebração doAsno ou a dos Doidos. As condições, as paixões, as emoções se representam: nostorneios, os jogos de sociedade e de amor. Uma "superabundância de efusõesreligiosas e de pavor sagrado", segundo a fórmula de J . H uiz inga semanifes ta sobformas extravagantes, hiperbólicas, dramáticas. As reliquias dos santos tornam-seatração de uma espécie de canibalismo metafórico e ostentatório. Os poderososopõem por vezes uma humildade teatral, momentânea, ao luxo e àmagnificênciade sua existência habitual.

O poder aparece progressivamente em cena, inclusive debaixo de sua formarepressiva no momento das execuções capitais, no curso das quais a hierarquizaçãosocial é exposta e o "exemplo" convertido em espetáculo. O final da Idade Médiafoi rico de manifestações públicas em que os poderosos figuram como persona-gens de uma representação que a sociedade oferece a si mesma. Elas substituem aordem rea l pelas aparências e asseguram aos heróis do drama prest ígio e respeito.Elas Ihes dão de volta o assentimento e a obediência em troca das demonstraçõesde poder e de continuidade do poder.

A Renascença fez da representação uma arte, essencialmente polltica,praticada em casa dos príncipes e nos logradouros públicos. São as festas porocasião dos nascimentos e dos casamentos, as celebrações e solenidades da corte,os jogos, as consagrações, as "entradas" e os triunfos, mas também os cortejos

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o Poder em C en a I'cívicos das grandes cidades, o teatro de rua e as transposições romlnelcu q uetransmitem um ensinamento indireto. No século XVI, a expressão comporta aindaelementos medievais, mas sob a influência da Itália os elementos antlquadoa 110progressivamente substituídos. As novas fórmulas se impõem em França duranteo reinado de Henrique 11. Cada entrada real nas cidades associa a evocaçlomitológica a uma exaltação da monarquia e de sua missão; o jovem soberano 6apontado na dupla figura de um imperador romano e de um defenaor di

cristandade, do descendente dos Troianos e de rei da nação reconhecida comofilha mais velha da Igreja. De fato, forma-se um repertório comum a toda a Europaocidental. A transformação dos temas, dos símbolos e da linguagem aroatiCl, •acompanhada de uma focalização do poder. Tudo se mostra e se diz que tenhlrelação a ele: o poder imperial de Carlos V, as rivalidades, o antagonismo entre areligião romana e a reformada, a carta das cidades, as descobertas de um mundoaberto às conquistas e a propagação da fé.

A vitória de Carlos V em Bolonha, em 1530, marca o apogeu de seu poder,consagrando sua conquista da Itália. A ruas são um cenário que dá ao esplendorimperial seu antigo plano; de um lado, os arcos de triunfo, os troféus, as alegoria.lembrando as proezas dos heróis e imperadores da Antiguidade; de outro lado, utendas, estandartes e brasões evocando as vitórias do soberano, em meio ao .emblemas e insígnias do papado, pois os dois atores centrais da represen tação 110o imperador e o papa Clemente VII que o coroa e consagra. Uma ponte de madeiraconst ruída para a ocas ião permite a visão da cerimônia do espetáculo àmultídãe,Entretanto, o ensinamento principal é dado pelo cortejo triunfal que se segue. Adignidade imperial e a dignidade papal se mostram em grande aparato. tumalonga e suntuosa procissão onde figuram cardeais, bispos, principes seculartl,embaixadores, governadores, representantes de Bolonha com os estandarte.flutuantes da cidade, delegados de Roma, funcionários e gente de serviço,conselheiros e "doutores", um milhar de homens de armas "bem montado a etriunfalmente trajados". Enquanto isso, um arauto, ao longo do percurso atiramoedas de ouro e de prata ao povo - gritando "Liberalidade! Liberalidadel",sendo-lhe respondido: "Império! Império!". A cerimônia completa a feita!banquete dos poderosos , sendo as sobras ati radas àmultidão , regalo do povo querecebe carne, pão e v inho de dois leões e de uma águia bicéfala, t ransformados emfontes.

Esta representação total, de que é cena uma cidade intei ra, é uma ação pol lti cade múltiplos aspectos. Ela afirma a união necessária dos dois poderes, o espiriwaLa..o temporal. Ela expõe a potência espiritual em toda sua glória incitando-a 1-iralém, pela conquista dos infiéis e pela expansão da cristandade. Ela transportl tproduzindo o espetáculo enganador de uma Europa unificada pelo reconheci-mento do prestígio e da força de Carlos V. Ela subordina pelo fausto. Depoi.,dobra-se num engajamento político decisivo, para submeter a Itália, reduzindoseus príncipes à condição de governadores imperiais. Os súditos sentiram O

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1 0 Geor g es Ba la nd i er

poderoso efeito do espetáculo em que os dominadores desenvolveram suasestratégias.

As "entradas" i ta lianas i lustram a monarquia absoluta, asdo Norte (Flandres ),qualificadas de "alegres", fazem da cidade e do povo parceiros do príncipe naencenação e na representação. Enquanto as estátuas e as pinturas guarnecem ocenário na Itália, aqui os quadros vivos compostos pelos cidadãos apresentam a

cidade e sua história como montanhas legendárias e alegóricas. Estes últimospodem dar lugar ao nu feminino, como foi visto por Dürer em Antuérpia durante aentrada de Carlos V. Um duplo cortejo - o do soberano e o da cidade - permite aesta expor-se com o desf ile dos notáveis, dos diferentes corpos e categor ias sociais.A festa ofici al dá muit a margem à exuberância dos divert imentos populares e àespontaneidade, à quermesse. Se a cidade se "entrega", às vezes sob a formasimbólica de um coração ardente oferecido ao príncipe por uma donzela, ela não émenos áspera ao exprimir a vontade de manter suas l iberdades e seus privi légios.

Nestas circunstâncias, a própria cidade se faz pedagoga coletiva e ensina aosoberano, requerendo sua fidel idade. Por metáforas , a legorias ou espetáculos,Gand lembra, dez anos depois de uma rude repressão, que o dever do príncipe é ode assegurar a felicidade de seus súditos. Bruges apresenta um elogio damonarquia com duplo sentido, graças a uma alegoria liberando o trabalho dasruínas da guerra. Ypres faz um quadro de agradecimento ao príncipe pela paz queirá instaurar. Douai instala o Trabalho (sob a forma de um moço vigoroso) numtrono, ao lado da Munificência e da Justiça . Os temas inspiradores tomam-se maisofensivos quando o fausto e a quermesse não conseguem mais iludir sobre umas ituação tornada mais crí tica . A guerra, as desigualdades, o afrontamento social ; eo confl ito re ligioso ocupam então o proscênio.

A dramatização política não desaparece quando começam as revoluçõesmodernas na Europa. Os acontecimentos a rejuvenescem; ela consagra, elacomemora, ela difunde as "idéias" novas e procura adesões através do espetáculo;ela compõe a cerimônia trágica dos sacrifícios de fundação, mostrados pelas

execuções na guilhot ina e as jornadas de sangue da Revolução Francesa. Mirabeaupleiteou em favor da organização de festas públicas; as antigas alegorias deent radas rea is serão subst ituídas pelas que representem a libe rdade conquistada eas grandes ações realizadas. Danton - sabendo que todo poder tem uma cargasagrada - exigiu que as festas cívicas tivessem um conteúdo religioso, mas estarel igiosidade deve ser a da sociedade nova, a da própria Repúbli ca. O que se pedeclaramente é a instauração de uma religião pol ítica. Robespierre reconheceu nos is tema das fes tas nacionais o mais poderoso meio de regeneração da fratern idade.De fato, a sociedade é levada ao seu próprio culto e o povo, logo que decretadosoberano, se vê submetido a um Soberano metafórico de que o novo poder setoma necessar iamente vigár io .

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o Poder c om C e n a 21

Acolocação da teatral idade polit ica em evidência , sua consagração e seul r ltol ,não é uma maneira oblíqua de reduzi-Ios a aparências e jogos ilusórios. t umaresultante, tudo concorre para isto - desde as relações sociais definidas pelos is tema de produção até ascons ti tu ídas pelos valores e imaginário colet ivos. Se no.lembrarmos que toda sociedade está sempre em evolução, jamais acabada, q uesua unidade só é realizada pela imagem imposta justamente pelo poder domi-nante , que suas pretensões e prescrições nunca estão inteiramente de acordo com Ireal idade vivida, pode-se compreender melhor a necessidade de produzir efei tol

que tenham uma função de compensação. A sociedade não depende exclusl-vamente da coerção, das relações de força legit imadas, mas também do conjuntode transfigurações de que é, ao mesmo tempo, o objeto e a rea lizadora. Sua ordempermanece vulneráve l; ela é portadora de perturbações e de desordem, geradorctl

de ardis e dramatizações que mostram o poderem negativo.

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v

2A CONFUSÃO

A ordem das sociedades diferencia, classifica, hierarquiza e traça 05 limite.proibidos por interditos. Contém e condiciona os papéis e osmodelos de conduta,Ela pode ser "embaralhada", desprezada, simbolicamente invertida, se nloderrubada. A astúcia supremaé converter estas ameaças em vantagem, emmeio d.fortalecimento; é preciso fazer o papel do fogo, reconhecendo as leis de umaterrnodinâmica social que exprime a função da desordem no próprio selo daordem.

Esta tem a vantagem inicial, pois que subordinou as consciências. O delvloprovoca a vergonha a culpabilidades aos próprios olhos e a censura aos olhes de'outros, mesmo antes da lei manifestar seus rigores. Estes constrangimentos temsuficiente força própria para impor um estilo, uma maneira distinta a umacivilização ou a uma coletividade. O exemplo mais util izado, a ponto de elwgasto, é o doJapão, onde o ridículo é causa de ostracismo e a humilhação púbUcase transforma em vergonha suicida. Esta obsessão pelo julgamento exteriorequivale à do pecado (epois doJuízo Final) no Ocidente. A equivalência nlo 6,aliás, exclusiva. A perda de facenão assolou somente o Oriente. Madame de Stallconstatava em seu tempo que o ridículo setornara na França a "arma mais terrlvelque se pode empregar".

A opinião dos outros, àsvezes encenada, faz lei.Assim, osantigos esquimó. di

Groenlândia recorrem ao duelo cantado para regular um conflito entre doi.oponentes. Esses se enfrentam em face da assembléia tribal reunida para ojulgamento e para o espetáculo. Estão engajados em uma guerra de palavru, d.zombarias, de insultos e de obscenidades. A aposta é o ridículo; ele provoca.decisão com grande desvantagem para quem a sofre - pois, socialmentediminuído, a solidão ou o exílio são seu destino. Esta luta verbal, espetacular, podetomar a forma de umjogo de alto risco, como no sul da Itáliaonde éconhecídc so bo nome significativo de" A Lei". R.Vailland fez disso o tema dominante de um d.seus romances. Osjogadores escolhem um chefe para cada grupo e impõem IUU

regras e seu domínio; ele insinua, censura, insulta, atenta contra a honra de l eU.adversários. Sua arte de provocação depende do julgamento das testemunhal e

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r 24Georges Balandier

suas vit imas devem obedecer l\ le i sem se mover . É um jogo do poder, levado aoextremo do arbitrário, utilizando o r idículo como única arma.

É um dos meios dos poderosos conseguirem a conformidade. Um antro-pólogo, P. Radin, consta ta que preserva a ordem ti rânica, melhor do que poderiamfazê-lo as injunções mais coercit ivas. Os Índios da Planície, na América do Norte,recorriam à ameaça do ridículo para engajar seus guerreiros em empresas queexigissem uma bravura excepcional. Os Índios Tlingit do Alasca distinguiam osatos criminosos dos atos "vergonhosos". No caso destes, seus autores eram

ridicularizados por cantos e por efigies colocadas em lugares públicos; a sanção eratão pesada que freqüentem ente induzia os culpados a se deixarem morrer.Passava-se o mesmo com os Ashanti em Gana. A ridicularização garantia, mais doque qualquer outr a forma de repressão, o respeito da tradição. Era um ataque sutilque permitia despojar um homem de sua auto-estima e do respeito de seusassociados, e, do qual não havia escapatór ia senão pelo suicídio, admitido nestecaso, como na guerra, para evitar a captura e a servidão. Estes exemplos são"exóticos" , mas o fenômeno é geral e o temor do ridículo é imanente, seu ataquemata simbólica ou realmente e com tanto ou mais eficiência quanto maior aprojeção social da vítima.

Entretanto, os membros do poder são menos vulneráveis que os Outros. Sobreeste ponto, são ainda os Ashanti que nos dão lima lição. Quando um dentre eles é

ofendido pelo chefe, e deseja revidar, medindo todos os riscos, ele recor re a umaencenação que lhe dá uma compensação pública. Com a cumplicidade de um dosseus amigos ele encena uma briga violenta em presença do chefe, injuria-o e oridiculariza. É uma sutileza que não engana ninguém, o ofendido revidou, oamigo não foi at ingido, a autoridade recebeu indiretamente e , em seu detr imento,a critica. De fato o poder tem de dar espaço a esta, contê-Ia ou transformá-Ia. EmRoma as pasquinadas eram um exutório- mais ou menos bem aceito; quando opapa Adriano VI se zangou e quis mandar derrubar a estátua do Pasquim em queestavam afixados textos satír icos, observaram-lhe que assim a sát ira ser ia exacer-bada. Dos cartazes romanos aos jornais murais da China Sustenta -se e espalha-se atradição, desse modo de expressão crítica e de sua manipulação. Os satiristascole tivos (no anonimato das lit eraturas popula res) ou individuais (mais perigo-samente) tentam marcar os limites do poder pelo ridículo. O censor pode ocuparlima posição reconhecida em convenções e usos que contém os estragos de seua taque. Uma vez por ano, as f iguras públicas mais importantes dos Estados Unidossão submetidas a um jogo de zombaria que as torna risíveis, mas em ambientesemifechado. É no momento do banquete do Gridiron Club, organização quereúne cerca de cinqüenta correspondentes de imprensa' estabelecidos emWashing-ton. Algumas centenas de pol íti cos notávei s, inclus ive o Pres idente , sãoronvidados. Os par ticipantes, em trajes de noite, assistem duran te o banquete aot'spC'táculo em que os jornalistas fazem a caricatura e a ridicularização dosjlod('rosos. O assalto é polít ico, a obscenidade e as alusões sexuais não têm lugar,hC '1TI corno as indiscr ições, pois a informação transmi tida aos jornais é filtrada. A

o P od .r e m C en a 11

.itlra permanece connnadaao ellenclaJ no circulo do poder, como a do bobo dacorte outrora.

A ordem social parece ter todas as regalias, compreend ida a cumpllcídade da.ccnsciências, fora d08 períodos críticos. No entanto, ela ~ vulnerável: cletrb da(fichada das aparências, trabalha a desordem, o movimento transforma e a u.urldo tempo degrada. O jogo da verdade é muito perigoso i embora o bufão tenhalicença para dizê-Ia, é o modo da irrisão que a torna menos ofensiva. O s píntcres ,durante muito tempo tiveram como temas as "cenas de poder", introduzindogrotescos, doidos, bufões ou mascarados. Isto é, o reverso do aparato, do poderseguro de si mesmo e de sua grandeza. Entretanto, essas figuras não permanecemsomente como nascidas do artifício eda arte, elas restituem uma realidade que nlol' própria nem de uma época nem de uma civilização.

O imaginário coletivo lhes deu vida no interior de mitos, de que P. Radin podeafirmar se prenderem "aos mais antigos modos de expressão humana". Umpersonagem genérico age, engendra e se transforma, ora em Deus ou em her61,como em bufão, é °"Tricks te r" ( trapaceiro) , assim chamado pelos mi t610go.anglo-saxões em lembrança de uma velha palavra francesa da mesma origem:"triche". Ele vai embrulhar tudo e focalizar tudo; os limites se apagam, I'categorias se misturam, as regras e obr igações perdem sua força. Os empreendi-

mentos do herói podem fazer do mito o equivalente de uma sátira, de uma crltlclirônica da sociedade e do tipo de homem que ela modela. Entre ós IndíosWinnebago, o ciclo de Wakdjunkaga narra os incidentes e acontecimen tos que-sob a influência do herói - atingem as injunções sociais mais fundamentais. Ochefe não se comporta de maneira conveniente, não cumpre os interdito.(notadamente os de caráter sexual), saqueia os lugares sagrados, erige seu penl.como emblema da autoridade durante a festa anual onde lembra os "ideais" disociedade. Certos rituais são apresentados em modo de paródia: a cerimônia dacompetição, entre clãs , cujo a lvo é a chefia , os procedimentos e constrangimento.que marcam a vinda da puberdade, as práticas para atrair as bênçãos dos esplritcs,os usos impostos durante as operações de guerra. Em todas estas ocas iões , o herélperturbador provoca o incidente ou a transgressão e disso ri em completaimpunidade. Os mitos do "Trickster" ou trapaceiro tiveram ampla difusão nl

América do Norte; eles transportam ao tempo das origens ou do passado extremoo que desa tualiza a cr ít ica e torna a sát ira aparentemente inofensiva; eles relatam o.feitos e as culpas e, ges tos de um herói dif ici lmente identif icável , divino em certo.aspectos, sempre errante, ignorando os limites do bem e do mal, poderosamentesexuado, engajado ~m aventu ras caracterizadas pela astúcia e pelo dolo. É peloindefinido, o inesperado, o movimento que embaralha o discernimento que .,exprime imaginariamente este desrespeito da ordem, dando-lhe a aparência deuma figura capaz de transformação e de pilhéria sacrílega.

Jung propôs o comentá rio psicológico des tas observações antropológicas . Eleatribui ao mito do Trapaceiro uma eficácia terapêutica de outra natureza, a de!

'!!lI! FII, C, HumQlnaa U . F. M . ~a.aLIOT&;O/l

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26 Georges Balandier

evocar asfalhas das sociedades dos primeiros tempos e os aspectos "inferiores" de

caráter dos indivíduos. Não haveria dissolução da ordem pela zombaria, mas

produção de imagens negativas, incitando ao esquecimento destas inferioridades

originais - e, portanto, ao reconhecimento positivo do que os ulteriores desen-

volvimentos da sociedade trouxeram. Em uma perspectiva freudiana, os comen-

taristas contemporâneos põem em evidência a função de liberação dos impulsos

sexuais e agressivos que, normalmente reprimidos pela sociedade, não podem

formular-se a não ser de maneira indireta e sem risco de desintegração social. O

que se encontra em jogo são as "domesticações" iniciais pelas quais começou a

constituir-se a ordem social: a da sexualidade e a da violência, assim como as

instituições de parentesco e de autoridade que as efetuam sob a proteção deproibições imperativas.

Nos debates envolvendo o homem e a sociedade que lhe impõe uma ordem, a

personagem do Trapaceiro permite exprimir pelo mito das incertezas e recusas, a

introdução imaginária da turbulência em um mundo de códigos e constrangi-

mentos. Esta figura ocupa uma posição central tanto quanto os mitos popula-

rizados pelas literaturas orais e nos que regem o sagrado e as práticas rituais. As

"Legendas da Guatemala" de M. A. Asturias relatam as aventuras de Guacamayo,

"pássaro multicor como a mentira", falso deus e conseqüentemente enganador.

Ele engana pela palavra, ele"liga" com a sua língua, eleprocura.causar a ruína dos

deuses, dos quais, um dos mais antigos - Kukulkan, a Serpente de plumas. Ele criaa ilusão, mas ao mesmo tempo desilude, pois" ele vê as coisas como são" quando

está embriagado. As tradições africanas também falam numa entidade turbulenta;

assim, nos COntos de animais, onde a Lebre e a Aranha freqüentem ente o

apresentam, mantendo as aventuras nos quadros da vida cotidiana. As peripécias

resultam da astúcia, dos enganos, das ciladas armadas ao poder; elas introduzem,

diz D. Paulme, "o movimento ea vida" em um mundo que ficaria paralisado. Em

um nível superior, cenas mitologias africanas fazem surgir entre os deuses e oshomens um Perturbado r divino.

Assim é Legba, presente no universo religioso do Benin e no da deportação

negra para as Américas. No Daomé antigo ele aparece como o último nascido de

uma divindade primitiva andrógina. Ele não recebeu o encargo de nenhum setor

da criação, mas é capaz de dominar aslínguas, de ser o intérprete entre os deuses, eentre estes e os homens. Como ele é o deus da comunicação, ele tem o dom da

ubiqüidade e pode estar em ação em toda pane. Eletem lugar em todos os grupos

de culto e em todas as casas. Ele está associado aos pontos de encontro e de

passagem - às encruzilhadas, aos logradouros públicos e às portas das casas. Ele

está ligado à sexualidade, aos símbolos fálicos, à "potência". Ele está essencial-

mente aliado à adivinhação, à comunicação com o futuro, à palavra de Fa- senhordo destino.

O corpo de narrações organizado por H. Aguessy dá uma descrição

multiforme de Legba. Aliás, seus numerosos nomes mostram que se trata de uma

("

o Pod.r e m C .n a . ,fllfUracapu de tran.rormaçOe. condnua •. O espaço, 11 regra., 11CIU!IOrial nIolh e Impõem limitei; ele escapa Às obrigações e às empresas, U diltinçOe. entre O

bem e o mal, e sua liberdade total o faz, às vezes, comparável a um doido; f: o "I.r

bom-mau". Está associado ao movimento, aos desequillbrios e a05 acidente.; , I .opõe sua lndisciplina divina à "disciplina" da ordem social e universal. El e pode

distribuir a felicidade ou a desgraça, perturbar, construir ou destruir - o que

também lhe vale o nome de Destruidor. Ele age com astúcia, prega peça.,

embrulha; é um deus maligno, que não se pode assimilar ao Maligno cri.tlo, t

sujeito à cólera: os sacrifícios e os ritos servem para acalmá-lo. Ele pratica a ironiaque quebra as aparências e desfaz as ilusões.

Tendo a capacidade de intervir em toda pane, de ser por conhecimento ecálculo senhor de todas as situações, Legba tem a de lograr todos os conatran-

gimenros que definem a ordem do mundo e da sociedade. Ele provoca a açlo d.

uma liberdade parcial e introduz a possibilidade de não ser totalmente subjugado

pela necessidade do destino e pela força dos poderes. O mito, de que ele f: uma

representação importante, tem um significado político manifesto; numerOIU

histórias o apresentam em relação com um portador do poder, que pode ler opróprio rei. Ele é o único que ousa opor-se ao deus superior, agrupos de deuses, ao

soberano, à família real, e aos dignitários. Esta capacidade ofensiva se manifeua

sob três formas principais: a ironia que deprecia o poder e suas hierarqulas, 1rebelião que mostra que o poder não é intocável e o movimento que introduz 1

perturbação da mudança no seio da ordem.

Legba é poderoso. pelo movimento, enquanto o soberano que governa oantigo Daomé dispõe de um poder absoluto e controla um Estado, imobilizando

as posições sociais. Atribuem-lhe a capacidade de conceder a qualquer homem

meios para melhorar ou piorar o seu destino. Nem o rei escapa a esta injunção, e a

ela se submete, pois que o "seu" Legba é considerado mais fone. Covemantes esúditos seencontram debaixo do governo do deus, que subordina o poder polltico

e apresenta um ensinamento capital: sem o movimento, sem reconhecer e gerir I.

desordem que ele não pode deixar de engendrar, a ordem reduziria asociedade ao

estado de um astro frio.

As produções do imaginário tomam forma, materializam-se nas i n st it u iç õ e • •nas práticas; mas, ao mesmo tempo, elas são tratadas em proveito da ordem social

e do poder que a guarda. O arranjo das situações públicas inscreve-as em um

espetáculo onde o ritual mais rigoroso pode coexistir com a improvisação mal.

desenfreada. A ridicularização desempenhada transforma-se então em d rAml lsagrado e às vezes "selvagem" (ou regressivo) em certas de suas manifestações,

A ilustração perfeita é feita pelos antropólogos no estudo do personagem e da.

funções do Bufão (ou Palhaço) nas cerimônias dos Índios americanos. Ele ••

apresenta em muitas sociedades estabelecidas na América Central e naAm~ric. do

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Norte. A ironia, a paródia e a transgressão definem sua posição particular - e seuemprego. J. Steward recenseou os dominios e temas segundo os quais seorganizam em geral estes dramas da ruptu ra social. O primeiro acordo seprende aotratamen to burlesco do sagrado. O Bufão ritual não respei ta nada nem ninguém;sua licença é total, sua impunidade a mais completa e seu ataque é tanto mais fortequanto mais venerado o objeto que visa. Entre os Pueblo, ele introduz a p aródia eo cômico na cerimônia e faz o que é ordinariamente tabu. Entre os Zuni, elecomunica com os deuses com falta de respeito - por exemplo, imitando uma

conversação telefônica e utilizando uma linguagem vulgar. Na Califórnia, osBufões dos Maidu transferem o burlesco para o ritual, a fim de zombar dos padrese dos notávei s. Es ta i rreverência sacril ega se inscreve na cerimônia de que compõecom freqüência o contraponto. O segundo conjunto de temas é centrado nasexualidade e na obscenidade, com tal intensidade que certas sociedades foramquali ficadas como "fálicas". Os Palhaços sagrados dos Zuni (os Koyemsi) empre-gam simulacros de pên is, transgridem os interditos e encorajam a licença sexualdurante certas cerimônias; eles também provocam a repulsa e o .escândaloextremos, consumindo detritos, pedaços de pequenos animais vivos, urina eexcrementos, representando a selvageria e a bestialidade. Entre os Hopi, oburlesco sagrado introduz no curso da ação ritual cantos lascivos, ges tos equivocoscom travestis, exibições de imitações de pênis e de vulvas, cópulas simuladas atésobre os altares. Para os Índios das Planícies, a palhaçada se caracteriza pela

desobediência aos interditos sexuais, as simulações indecentes e os comporta-mentos obscenos. A liberação se toma grotesca pelo exagero , a rup tura da ordemcotidiana toma o aspecto de um espetáculo humoristico. Um terceiro grupo detemas prende-se ao infortúnio. O Palhaço da cerimônia se apresenta doente,decaído, miserável e maltrapilho. Ele joga com a imundície, a nudez, a desgraçafísica e a decrepitude da idade avançada até o absurdo. Ele faz das desgraçasindividuais um drama irrisório. Os três registros principais segundo os quais oBufão compõe seu papel e seu texto não são dissociáveis, embora a maior oumenor associação de um ou de outro d iferencie o tipo de sociedades e de culturasamerindias . Eles colocam cada homem, no momento do espe táculo da cerimônia ,diante dos sistemas de forças que compõem sua condição: o Sagrado que osubmete, o Sexo que nutre seus impulsos, a Fortuna que produz a incerteza e orisco.

o Bufão da cerimõnia dá imagem à ambigüidade - ele rompe a ordem e ele éseu fator. Ele entra no grande jogo dos poderes. Entre os Zuni, ele é parte da"hierarquia" que governa as cole tividades . Em razão de sua própria s ingular idadeseu nascimento é escandaloso, é tido como incestuoso; sua força resulta decapacidades sobrenaturais; seu personagem é o de um palhaço risível e ao mesmotempo de um herói. Também, em razão dos comportamentos que sua função lheimpõe - ele dispõe de uma licença absoluta e pode portanto violar todos osinterditos, mas está submetido a uma disciplina ev ive com um risco real durante otempo da sua função. A ambivalência está sempre presente, compreendidos os

"o Poder em Cenl Ii

. ln t lmentO, . que In.p1rai de um lado o respeito, a reverencia, a a felç l.oi de out ro, oódio e ()medo que levam 11 aplacá- lo com presentes . Entretanto, segundo Bunl. l,intérprete do cerlmonla ll smo Zuni , ele I .!respei tado e amado como pOUCOI chef ••o alo, o que lhe dá autoridade no debate dos negócios da comunidade. Ele b, 10mesmo tempo, () que libera por delegação, sem que a sociedade possa reprimir utrln8j(rcssões e o que contribui para a manutenção da ordem social. Ele 6 umtrlfllformador da desordem, por meio da teatralização ritual.

Como a sociedade nunca está segura de sua ordem, a função de Bufão sagrldo

.e encontra presente e assumida na maioria das formações sociais de podertradic iona l; na Ásia, na África , na Oceania, como nas Américas , e, àsvezes dentrode um complexo de práticas exprimindo uma civilização de simbolismo abun-dante. É o caso da Mongólia e do Tibet, universo de exuberantes imagens. Entre 01

mongói s , os bardos, recrutados em todos os meios sociais, exprimem louvores ecríticas em recitativo épico - suas narrações atacam e escarnecem os abuIOI epretensões dos dominantes, nobres e sacerdotes. No Tibet, são freqüentei U

cerimônias de proteção contra a ofensiva dos demônios ou de expulsão do mal e didesordem pelo processo da v itima emissária. A mais importante, nas festas de Inonovo em Lhasa, deve liberar o povo das influências nefastas e contrapor-se 10

poder devastador de uma "fraternidade" demoníaca, inimiga do Estado tibetano eda Igreja budis ta . Todas as forças negativas são canalizadas para dois homens, que

em seguida são expulsos cerimonialmente da capital. Esses personagens pardocipam de uma paródia demoníaca; são vestidos de peliças grosseiras, levamchapéus pontudos, têm a cara enlambuzada metade de branco, metade de pretojeles perambulam pelas ruas e se apossam dos objetos que lhes chamam a atençlo,Durante a primeira fase das cer imônias , e les gozam o privilégio de uma liberdadeIncontida, e fazem rir antes de se tornarem instrumentos de uma purificaçlocoletiva. No Tibet, a narrativa leva à relig ião pela interpretação e inspiração dobardo, e pelas práticas populares tanto quanto das cerimônias. O ritual, as festal eos jogos correspondem aos temas dominantes da narrativa e exprimem, emcon junto, um modo de represen tar o mundo ea sociedade, sua ordem e os agentelque a ameaçam. A gesta de Joru-Gesar, comentada por R. A. Stein, é uma durnai s'reveladoras . O herói é uma figura de t ransformações ; cr iança divina prestel ldesaparecer, é mantido sobre a terra e se torna o "vilão Joru", perseguido.

lançado em mútiplas aventuras. É condenado ao exílio e à f reqüentação dOIdemônios, dos quais toma a aparência monstruosa e captura o poderio depois d.ter eliminado alguns deles. Ele é comparado ao chefe dos mendigos ladrões d.moças. Ele se comporta como soberano , como demônio, como bufão, Ele se apó iana força da ilusão e em sua própria natureza - permanece divina - a fim d,triunfar de suas provações. Ele prega peças aos homens, ele corre com os deu.ea.ele conversa com os demônios e os desafia nos dados, enganando-os em leu.jogos. A magia, o dolo, a farsa desconcentram e desarmam. Finalmente o herói.aIvitorioso e se transforma glo riosamente em rei; as aven turas permitiram-lhedominar a "natureza demoníaca" em proveito da coletividade. De um certo modo~ um salvador; seu demonismo apresenta uma imagem inversa da do Meti.to d.

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Georges Balandier

Ooêthe; suas ações não destroem, elas revigoram. Isto explica porque sua epopéiaestá ligada a cerimônias e festas para o apaziguamento e a regeneração dasociedade.

A imagem do Bufão não ocupa somente as cenas das sociedades "exóticas" edas sociedades do passado. Ela se manteve em nossos jogos, nossas tradiçõespopulares, nossos textos . Ela volta com força. Entre as car tas de jogo utili zadas naEuropa, é usado o coringa, em hábitos de bobo da Corte. É nos jogos de "tarots"que apresenta seu s igni ficado mais r ico, doido, mendigo escandaloso, vagabundousando um cinto de ouro evocando o zodíaco, impelido para um. horizonte ondese perfila uma indicação do caos. Esta figura brinca com as aparências e com arealidade escondida, com a ordem e com a desordem; não se lhe pode fixar umaposição, pois onde quer que esteja, "erra", desordena e ordena o curso do jogo. Ocampo das constatações pode ser ampliado, pois o Bufão nunca abandonou acenafolclór ica, li terár ia e pictórica. Rei dos mendigos , rei do carnaval, rei respeitado edesprezado, ele é, segundo M. Szabolcsi, a "figura que vê a ordem em seu vigor eem sua caducidade". Do teatro de Shakespeare, com Falstaff e os personagensfazendo a mímica da loucura a fim de dizer a verdade, ao teatro de Musset e deVictor Hugo dando lugar à "malícia" do bobo da cone, da obra de MaxJacob eApollinaire à de Michaux, utilizando a provocação do palhaço; o destruidor de

aparências percorreu sua longa caminhada. Às vezes, até o ponto do escritor seidentificar com ele, como James Joyce se qualificando como "palhaço irlandês" e"grande farsista do universo". Na pintura, o percurso não é menos longo, pois queleva até às traduções contemporâ.neas do personagem por Picasso, Ensor , Chagall,ou por Miró, criando um povo de arlequins. Esta figura exprime uma rei-vindicação de liberdade, Contra os constrangimentos e a força da ordem e daverdade, contra as ilusões segundo as quais se organiza o grande jogo dassociedades.

Mas, deve-se enxergar mais longe - a função real do bufão é ambivalente _como o é o próprio personagem. Ele mostra que as classi fi cações impostas pelasociedade e pela cultura podem ser confusas ; ele parece des truir para reconstruirde modo diferente; ele cria na desordem; ele apresenta uma imagem adoidada e

heróica da aventura individual, conduzida fora das convenções sociais. Já foifreqüentemente notado que ele lidera por procuração. Seu espetáculo ironiza emtodas as suas manifestações, sendo uma força sacrílega por excelência, a queninguém ou nada resistem. Seus excessos derrubam as censuras mais constran-gedoras, por vezes até o extremo da obscenidade e da violência "selvagem". Elepode ser chamado de "grande sacerdote dos rituais psicológicos", atualizando econtrolando as energias individuais domesticadas pela sociedade. A t ransgressão élimitada pelo ritual, não se confundindo nunca com a orgia.

A função catár tica do Bufão é freqüentemente sublinhada _ ele é um liberadorde tensões, ele trabalha para a regularização das relações sociais. Embaralhador de

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C ' 'odll' 1m Cenad. .~.

CartAI, ele ~ t ambem fator de ordem. Ele suprime 11 disciplinas e contribui par.reltAur'-11I. Ele transforma, por meio do imaglné,rlo e do espetáculo, o. fatore.real . da ruptura em figuras dramát icas . Ele se torna portador do anti-soclal- o qUIpode aparentà- lo com a vitima e m iss ár ia - e ~ mensageiro das contestações e da.verdades incongruentes. No entanto, a vio lência a que se entrega ~uma paródia, •• h lp é rb o le a desarma. Ele mostra o que sucederia a uma sociedade em que unormas, interditos e os códigos sedissolvessem: uma regressão até a selvageria que

ele Imita em alguns dos seus exageros, um abandono aos "monstros" semelhante.lqueles com que o imaginário tibetano povoa a cena humana. Ele se encarrega didesordem, das turbulências inc'ividuais e coletivas, assim como o chefe e lac.r-dote ' cuidam da ordem e da conformidade; e não é sem motivo que os tr~. levamvestirnentas, simbolizando suas funções. Cabe-lhe a parte do fogo, mas a fim deexringui- lo, não sepode reconhecer nele a pre figuração do revolucionário ou me ••mo a do rebelde.

Com o bobo da corte, aparece o parceiro direto do poder. Sua filiação parlclremontar à Antiguidade; o hábito de manter Bobos ou Bufões doméstico. foiverificado na Pérsia, em Susa e em Ecbatana, no Egito, onde pinturas andl'"decorando túmulos, mostram ricos notáveis acompanhados de personag.n.contrafeitos e grotescos. Do Oriente, o emprego passa para a Grécia e depois pari

Roma. Mantém-se na casa de pessoas poderosas e de fortuna, a fim de "fazer rir"durante as refeições; é a princípio reconhecido como proveniente das arte. dadiversão. Na Idade Média, se torna a encontrar o bufão doméstico nos solares, comos barões, no convento e na igreja, ao lado dos abades e dos bispos. Depois, no.clrculos dos príncipes e dos reis, onde ele muda de natureza, ao ocupar umaposição dentro de uma instituição política. Na França, os Bobos da corte entramlogo na familiaridade dos soberanos. Hugo, o Grande, em meados do século X, 6acompanhado por um deles durante suas expedições; São Luís mantinha multo.em seu palác io, assim como Felipe-Augusto que acabou por expulsá-los por ClU'1

de seus excessos. No entanto, somente no século XIV é que o emprego de Bobo foioficializado e incluído no orçamento do rei; o primeiro a ocupá-Io parece ter .IdoGeoffroy, mantido por Felipe V. A partir de então, todos os reis tiveram Bobo.

titulares escolhidos ent re numerosos pretendentes . O últ imo a ocupar esta funçlofoi Angély, colocado ao lado de Luís XIII, e depois de Luis XlV. Ele praticava Iinsolência com tal vigor que seus danos na corte multiplicaram seus inimigo ••provocaram sua expulsão. Ele não foi substituído e o cargo, definitivamente, foisuprimido.

A sucessão dos Bobos da cone é conhec ida, de manei ra quase tão precisa comoa dos reis que os acolheram em sua companhia. Eles aparecem nas narrativas do.cronistas e na obra dos escritores do tempo. Bonaventure des Périers evoca o. diroda de Luís XII e relata muitas de suas expressões. Brantõrne, Guillaume Bouch,ce Noel du Fail relatam as proezas e mistificações de um deles que ficou célebre lobHenrique II e no curso dos dois reinados seguintes. Outros foram celebrado. por

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. . Ceorgel Balandler

Ronsard e Marot. Rabelais qualificou estes personagens de "marósofos" ou Bobos- sábios. Depois sãoabandonados pela curiosidade literária, e sósão relembradosno século XIX. Triboulet, que manteve seu emprego junto de vários reis enotadamente de Francisco I, tomou-se a figura central do drama deVictor Hugo,O Rei se Diverte. Chicor, i lust re debaixo de Henrique lU, reaparece em doisromances de Alexandre Dumas, A Dama de Monsoreu e Os Q.uarenta e Cinco. OBobo e o Príncipe servem para mostrar o poder sob o duplo aspecto da força e da

zombaria, da fortuna e do infortúnio; eles formam um par dramático.

O Bobo da Corte não seassinala somente pelas desgraças físicas mas tambémpor uma roupagem e atributos que simbolizam certos aspectos do seu emprego;ele é a cópia irrisória do rei manifestando seu poderio pelo aparato e o seu poderpelas "regalias". A descrição padronizada de suas vestesjá foi feita freqüente-mente, embora cada um dos titulares do cargo tenham imprimido sua marcadistintiva. Ele levaumajaqueta de cores confusas onde predominam o amarelo eoverde, recortada em ângulos agudos, com um calção no mesmo estilo. Seu cintopermite levar uma espada de madeira dourada ou uma argola, às vezes presa àextremidade de uma vara. Ele secobre com um capuz pontudo com duas grandesorelhas ("orelhas de asno") a que estão presos guizos. "Ele tem namão um bastãocom um boné idêntico, insígnia principal de seu cargo, o seu cetro. Ele é rei, mas

na paródia, até o detalhe das delicadezas que lhe permitem tratar o soberano como"seu primo". Emface do poder namajestade ele figura opoder nogrotesco eassimelimina a possibilidade de conceder uma alternativa aceitável.

Para ser Bobo da Corte, é necessár ia uma formação especial. É precisoeducação física, ter conhecimentos de música e dos inst rumentos (rebeca ousanfona, trompa ou gaita de foles), saber compor peças em verso e canções, adquirira arte do desafio e da palavra pronta e memorizar um bom repertório de históriaspara contar. Aos que não tinham esta educação dava-se um professor qualificado.O ilustre Triboulet tevepor orientador Michel LeVernoy, encarregado de prepará-10 para desempenhar seu papel com talento e brilho. Educação rude, recorrendoaos golpes eàs chicotadas pela qual o Bobo recebia todos os elementos de sua arte,inclusive a capacidade de apresentar -se bem nos corte jos reais. Tribouletparticipou na "entrada" de Luís XII em Ruão, "montando um lindo cavaloajaezado com suas cores e levando o seu bastão das boas festas"; ele tambémacompanhou seu soberano até a Itália, por ocasião da expedição COntraVeneza.:Toda a formação do Bobo é concebida, tendo em vista oscontrastes. Sua naturezao situa do lado da feiúra, dos animais e dos monstros, mas ele adquire astécnicasfísicas- seu corpo toma expressão; sua aparência o faz parecer um insensato, masele chega a um certo domínio das palavras _ a fala é seu instrumento.

A biografia mais completa, se não a mais autêntica, é a de Tribouler, nascidonos arredores de Blois e ingressando muito jovem na COrtedos Valois. O pai deClernenr Marot , Jean, valete e historiógrafo de Luis XII fez um retrato poucolisonjeiro deste Bobo: fronte est reita, olhos grandes, nariz grande, dorso leve-

.: ;, ;:> .

mente encurvado, "bebo decabeça mlddal t io I 'bio aol ainta anOI,como nol.em que nasceu". Afama de Triboulet ~devida principalmente 'lua car re l ra jUMIde Francisco I de quem ele foi o bufão, o sãbío pelo bom-senso, o censor ••,.vezes, o conselheiro. Sua posição na cone era brilhante; ele afirmava nlo qull'll'troct- Ia por uma coroa duca l ou por uma mirra episcopal; ele se dizia " Imhorseberano detodos aqueles dequem zombava". Suaspeças esuu piadu - alaumu

provavelmente apócrifas - sãocontadas em grande número. Mostram-no jopnMojogo daverdade edo desrespeito em grande impunidade; ele quebra 01c6c:Uto•u conveniências, abate momentaneamente as fronteiras entre as concUçOttsocíais, ele tem o privilégio de tudo dizer e de tudo fazer na capa da fadela • e la

farsa. Ele zomba do dero como da nobreza.; sua "loucura" o toma incapu c It

crime e portanto imune à sanção, senão àscacetadas. No entanto, é espantolo qUIeste Bobo possa ser um conselheiro politico escutado e assistente de certas IIIJ6tIdo Conselho real. Quando Francisco I preparou a campanha do MUane. qUIterminou com o desastre de Pavia,diz-se que Triboulet havia-o aconselhado d, lipreocupar menos com os meios de entrar na Itá lia e mais com os dela laIr .

li

Victor Hugo lançou o Bobo ilustre no grande debate político depois de 1"1,pela "pequena frase sediciosa" dando um tí tulo ao seu drama histórico: O lei.

Diverte. A peça é suspensa e depois proibida por ultraje aos bons costumes, :& Iocasião de denunciar este "pequeno golpe de Estado literãrio", de ridiculari.ar O"medo singular de tudo o que marcha, de tudo que semove, de tudo que fala, ditudo que pensa", e de seexplicar. O Bobo apresentado pela exposição dramitica6como os das cones reais quanto ao movimento, à transgressão, b ao escândalo, muVictor Hugo o mostra primeiramente sob o aspecto de uma figura maldita, de umparceiro no jogo do vicio e da vinude. Ele definiu o personagem de Triboulet n oprefácio redigido imediatamente depois da proibição. Éum s~rdisforme, dom.mau; ele odeia seu soberano, os senhores, todos os homens; ele passa o tempOatacando-os e destruindo-os; ele deprava o rei, corrompe-o, impele-o à tirania e.vicio - ele o reduz ao estado de "fantoche todo poderoso"; ele espalha na cidade.ocontágio do deboche. Ele é amaldiçoado devido a um insulto grave e será adnpdo"na única coisa que ama no mundo", em sua filhaque ele criou "para a vinudi".

, . .O melodrama requer que o mau seja abatido - o que é uma idéia mo••

Entretanto o bufão que desempenha o papel de Mefistófeles, além de não ter.capacidade, o que é uma inversão da função histórica, ele setransforma em ••••mau", o "demônio negro que aconselha o patrão". Como caracterlsdcu .,.emprego subsistem: a deformidade que discrimina o Bobo, a liberdade depalaWa(a Hngua afiada) que lhe permite dizer verdades sem receio de castigo; ojop e la

guerra contra os poderosos, permanecendo fortemente "encouraçado"; a dcpro-ciação do papel e a atenção constante que devem prestar ao personagem aqu_que seencontram sob seus ataques; o bobo dacone marca osl imi tes dopoder e.categoria nos mesmos lugares em que aquele seexerce e esta semostra. Ele ~também, de modo permanente, que o poder, que não é exercido segundo· ia

S4

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Oeorgel Balandier

convenções e o aparato prescrito, descamba para o ridículo. Ele fornece, pelaprova contrária, a demonstração de que a força das aparências é uma parte da forçados governantes.

o Bufão popular se apresenta sob uma outra figura, embora as respectivasfunções se possam repetir. Tem também uma longa histó ria. Já era encon trado emAtenas, membro de uma confraria que se reunia no templo de Hércules. EmRoma, ele se diversifica em tipos como o "Manducos", monstro horrível edis forme, de boca pavorosa, evocado por Rabelai s no quarto l ivro do Pantagruel. Em

companhia de dois Bufões-mulheres, ele se juntava ao cortejo dos generaisvencedores , par ti cipando com cantos de zombaria, levados às vezes até ao insultodo t riunfador . Entrementes , os dois comparsas introduziam temas de embriaguêse obscenidade; o triunfo e o fausto eram assim acompanhados pelo espetáculo desua inversão. Na Idade Média , o Bobo "do povo" entra nas fes tas , nas pantomimassacras, abatendo o decoro pela farsa, quebrando a rotina do cotidiano pelocômico, confundindo tudo, até no interior das catedrais. Mas o Pelotiqueiro e oBufão também vão se tornar "atores". Desde os últimos anos do século XVI, umtrio Célebre ocupou os tablados do Hote l de Borgonha - Turlupin, Gros Guil laumee Gautier-Garguille; ele atraía os espectadores com gesticulações grotescas,gracejos picarescos e também por "conversas" onde s imulava a inocência polí ti ca.No cenário do teatro o personagem perde sua vulgaridade, adquire refinamento esedução com asmáscaras e legantes da Comédia i tal iana da Renascença. Arlequim,Scaramouche, Pantalon , Scapin ou Marinette e Co 'lombina são os descendentespolidos dos críticos impuníveis e dos quebradores de aparência; eles têm umemprego; só lhes resta o folguedo, a irreverên tia e a burla. Em França, as cenas debulevar apresentam no século XIX novos tipos burlescos e a charge política seexprime por outros meios, pela imprensa e pela caricatura. Os excessos dopassado sobrevivem nas artes e literaturas populares; o poderoso não está maissujeito à ironia corrosiva dos Bufões profissionais, e é somente o Guignol que tocano gendarme, escarnecendo assim da lei e da ordem.

O Doido reconhecido, instituído, livre até a licença total, se opõe ao doidoencerrado, rejeitado, insensato; ele é distinto e agente de dissolução, diferente emarcado até no corpo, fora do comum, mas não da sociedade que lhe atribui um

papel e função. Ambos se definem pela distância em que se estabelecem emrelação àsnormas , às conveniências , às regras do jogo social , à conformidade; masum constrói o seu isolamento e aí se mantém, e o outro não está à p arte, senão paraefetuar um "trabalho" dentro da sociedade. Entre os dois se situam todos os grausde não-conformismo, diferentemente tolerados , segundo as formações soc iai s e ostipos de regimes políticos. Ora o indivíduo em apreço é reduzido ao estado deBufão desempregado, publicamente depreciado , o ra é afastado como alienado esubmetido a tratamento. Neste caso a réplica social se efetua por meiosdramatizados - uma reapropriação ritual de caráter iniciático, ou quase. Nassociedades tradicionais, esta "terapia" teatral opera, às vezes, vigorosamente.

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o Poder em Cena 15

Basta uma s ó ilust ração rela tiva aos jâ mencionados Moba do Toga setentr iona l:quando uma mulher man ifestava excesso de au tonomia, era considerada inluA·cientemente disciplinada e lhe era imposta uma reclusão de três meses em umacasa privada de 1uz, ' e seu serviço fei to por uma pessoa do exter ior; uma medlcaç loprovocava a sua passividade, durante a qua l ela tinha de aprender disc iplinas navale receber s inais corpora is dis tintivos de seu novo es tado; no momento de sua salda,ela se revelava cortada de seu passado, atacada de uma espécie de amnésia e dócilàs injunções de sua posição social redefinida. Para ela era um outro nascimento nasociedade e para a comunidade uma reapropriação. Nas sociedades modernasde poder totalitário, a normalidade e o conformismo são antes de tudo deordem política. O afastamento por desvio também o é. Nas formas extre-mas, seu tratamento leva à anu lação fisica ou social, ao encerramento ímpos-to pela ordem de concentração, à equivalência estabelecida entre o dissiden-te e o louco, fundando a psiquiatria política. No entanto, a dramatizaçlonão é excluída. A crítica pública pode ser apresentada em cenas populares,expressa na animação dos corte jos que escoltam os dissidentes ou osvencidos. quefazem então papel de Bufões humilhados, maltratados, e de bodes expíatóríos,Cativos do poder ou dele excluídos , e les são abatidos pelo r idículo e a humilhaçãotanto como pelas sevícias. A réplica social pode também efetuar-se de maneiradramática e iniciática nos chamados centros de reabilitação, onde as personali-dades são desmontadas e reconstruídas e os corpos submetidos a "discip linas" e I

marcas novas. Em todas estas circunstâncias sobressai um modo com que ai

sociedades e seu poder tratam o repelido, expressão individual da desordemnutr ida pela sua ordem. Quanto menos lhe dão lugar, sob formas reconhecidas oudomesticadas , mais e las recorrem à violência tota lit ár ia.

A questão da repulsa é indissociável da da verdade, que repele tudo o que aiaparências sociais escondem. Neste particular, nenhuma verdade pode ser dita.Ela pode ser proferida na solidão ou recor rendo a rodeios e ard is. As aparênclasprovindo do imaginário coletivo podem quebrar as que a sociedade produz,convertendo assim as ilusões que mascaram a realidade em verdades mostradas demodo ilusório, por metáforas , f iguras , a legorias e fantasmagorias. Certas fes tas daa

antigas cidades do Norte exprimem este duplo jogo das aparências. As deOmmegang em Antuérpia com freqüência tomaram o aspecto de um teatro daiverdades populares. Assim, em 1561, é revelada a ligação entre a deflagração duguerras e as novas condições econômicas. O ciclo, alternando a guerra e a paz, apobreza e a riqueza, dá o esquema de um espetáculo alegórico que é uma sátira dacupidez e do furor guerreiro e ensina menos a resignação do que a necessidade deuma regeneração. Estas fes tas do Norte ajudaram a deci frar o enigma (apresentadopela sociedade e pelo "mundo") até ao ponto em que se torna interpretação dairepresentações insólitas, grotescas, absurdas da ordem das coisas . Foram vistos a i"elementos bruegelianos" que incitam a pesquisar o sentido latente, além da faltade sentido aparente.

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Geo rRe l ! B a l a n dl e r

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No espetáculo de rua, a verdade se torna pública debaixo de uma máscara; nocírculo do Príncipe, ela parece "desmascarada", liberada e solícírada. O Doido ou

o Bufão da COrteparece estar lápara dizê-Ia ou fazê-Ia ver aos poderosos; mas ele é

contido pelo papel que seu personagem lhe impõe; sóa sua palavra é que é livre. A

lição antropológica esclarece, ou completa, a da história neste particular.

Nos antigos reinos Wolof do Senegal, uma das quatro principais condições

sociais é a das pessoas de casta inferior, mas não obstante ordenada segun-

do uma hierarquia interna rigorosa. Na parte ínfima desta situação inferior,

seencontram os que desempenham as funções de serviço, e entre eles os Bufões.Eles não recebem título nem denominação particular, mas estão ligados aos

soberanos com a obrigação de "dizer a verdade". Eles podem formulá-Ia, pois que

adquiriram o domínio da palavra; eles têm o dever de dizê-Ia ao rei. A arte das

palavras é a da comunicação, das ligações estabelecidas entre as coisas e os homens

e entre estes. Praticando-a, o Bufào das CortesWolof é também um "especialista de

relações sociais". Ele desempenha o papel de intermediário entre as pessoas e os

grupos e intervém para ajudar a resolver as questões dificeis. Suas funções

contrastam com sua condição social depreciada, segregada, encerrada nas

fronteiras da casta. Éjustamente porque ele seencontra de um certo modo fora do

jogo, que tem a possibilidade de contribuir para arbitrar e regular os negócios da

coletividade, e de fazer brotar as verdades que não podem depender de seus

interesses, ainda mais aceitáveis, pois que mostradas com a arte do mestre da

linguagem e do divertimento. .!li

', i

O Doido da Corte ensina ao príncipe. Ele lhe revela os limites eos artificios do

poder. É por meio dele que os palácios seabrem às informações ocultadas pelo

círculo, que as deficiências do soberano são despojadas da hipocrisia que as vela,

que a ironia e a farsa temperam a certeza dos poderosos. É também por seu

intermédio que a decoração e o aparato são apresentados tanto em sua necessidade

como em sua fragilidade. Basta deixar aparecer o grotesco para que sejam

confundidos, mas ao mesmo tempo desejados por causa do ridículo que o

substitui. Assim como basta - processo utilizado pela literatura satírica _ tornar

manifestas a fraqueza do herói, a vaidade e orgulho de suas pretensões para que se

torne um herói de fancaria, um "doido" cujas atitudes não dão medida dos seus

desempenhos. O Doido da Corte mostra ao príncipe as ciladas dos encargos dopoder. As das palavras, com as quais brinca, zomba, critica e desilude. As das

relações sociais, sujeitas ao jogo dos cálculos e das manipulações que ele

desmascara pelo efeito de suas próprias mascaradas. As do encerramento do

poderoso, que podem levá-Io ao exercício de um poder alienado ou à fuga para a

loucura, de que o repertório shakespeariano fez um movimento essencialmente

dramático, ou ainda o ridículo supremo, encarnado pelo Augusto do circo,

vestindo o "Augustus", senhor do mundo, com os atributos da estupidez.

Nas sociedades que chegaram à modernidade, ou conduzindo seu progresso,

o lugar do Bufão ou do Doido pode parecer vago; o último refúgio seencontraria

ai2S__ , e U a . Jua, ,XLM t4A$Z( L~ i!pI! !$ .Ií>1> """ ·; "< '< \'("r" · · =. .. ,;" -"""'-"""~""""f,J}' c-

o POdtr .m C .na ••

entlo no conaervat6rl0 das culturu populares. tprecise observar que 01meia.'"

expreulo, difundindo-se e multiplicando-se, abrem novos espaçol aol jOlOlU

liberdade devastadora da ordem e do conformismo. A principio com 11m•••latlriea, a caricatura, cujo progresso no fim do século passado resulta da crlaçlo e l agrande imprensa e do reconhecimento da liberdade de opin ião, não obltant. 01

azares de que foram vitimas os satiristas pollticos depois de Daumier eGrandivU1"

Na França, depois do nascimento explosivo da" chocarrice" gráfica, em prlnclpiol

da Monarquia de Julho até aos renascimentos de 1968 e dos anos recentel, •caricatura política pode conservar sua eficácia corrosiva, sua carga de Ironia

violenta e, às vezes, desabrida, chegando até a agressividade sexual. Durante o

curso destes períodos históricos reaparecem temas e tipos dominantes, O

anticlericalismo e o antimilitarismo vêm de longe, pois a caricatura medieval j'

mostra monges indecentes e cavaleiros insólitos; o anticolonialismo, a denúncia d.violências policiais, a emancipação feminina, o racismo, avida política e aa.perell

do cotidiano aparecem com a caricatura moderna. Estes temas são exprellol por

figuras típicas, já clássicas (o militar, o padre, o burguês) ou mais recentemente

concebidas (o simplório, o esnobe, o frustrado, etc.), por transposições IUbld·

tuindo asfiguras humanas pelas de animais, segundo um processo empregado por

Grandiville, por personagens reduzidos, elementares, embutidos no universo daicidades, das máquinas, dos poderes burocratizados. E depois a caricatura - na

linguagem comum - é também, sobretudo, o retrato-charge que ridiculariza 01membros do poder ê os transforma em Bufões do povo, como o-fez André G I l l ,

metamorfoseando Thiers em "filha de Madame Angot". O imaginário satírico I'introduz, à sua maneira, no conhecimento do grande jogo da ordem e d.

desordem, da conformidade e da contestação. Como no cerimonial bufão , .1.

recorre à inversão das situações, à irreverência e a todas as espécies de licenÇU. 11.passa à ofensiva, utilizando as forças do cômico e do ridículo, com a melma

ambigüidade, pois libera uma crítica que é desarmada pelo riso.

O circo, o teatro, as telas também apresentam personagens que perturbam

toda a lógica social, contradizem asconvenções e a moral comum, revelam OqUI

está oculto, pelo exagero e pela farsa; são palhaços ou comediantes buríesccs, 01

primeiros constituem o fim da linhagem dos palhaços sagrados, mascaradOI,fantasiados. Eles estão em via de extinção, deixando de vez em quando um

vestígio ilustre (Grock) ou provocando a ascensão de uma figura inesperada. como

recentemente, a de Marc Favreau, o palhaço Sol, que encanta com o Jogo e l .

palavras. Ele as desfaz, separa-as, associa-as contraindo-as, desvia-as de I'U

sentido e tira deste trabalho espantoso proposições dissonantes, mas verdadeiru.

Os comediantes burlescos descendem dos Bufões populares; eles criam um

"tipo", um personagem; eles recorrem a todos os recursos da arte do espeticul0

primitivo; eles criam efeitos com toda liberdade, sem nenhuma preocupaçlo d.progressão dramática. O cinema lhes deu técnicas suplementares e uma Flnd.audiência; o jogo das ilusões desmitificantes se reforça e atinge maior alcance, Al iberdade de Carlitos e de Keaton se manifesta sob o aspecto de um perp6tuo

_H.dmgWi }Z~~~'''c'fi'''''''''''''''~' ,••••.'''~... f 'l ' . , ; , ~ 3 l \ ! + _ ,t . ; -

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r ' " SI Georgea 8alandler

afrontamento do fraco (do "pequeno") e das forças que impõem a ordem domundo e da sociedade ; ambos revelam os constrangimentos da lei, f ís ica ou social ,girando-a; eles opõem a figura da irredutibilidade insensata à do adaptadosubmisso. No correr dos anos da década de trinta, a sátira se torna mais precisa, elavisa o acontecimento e seus atores, ela faz a caricatura e deforma a fim de mostraros monstros dos novos "tempos modernos": o trabalho acorrentado, a crise, ofascismo, o desprezo da vida humana. Mais recentemente, com os filmes de Lewis

e de Tati, mostram as transformações de uma sociedade enlouquecida pelaprodução e pelo consumo que levam ao desaparecimento do personagem por trásdas decorações da modernidade. Neste último estágio, o cinema burlesco nãoagride mais somente osvalores enganadores da sociedade (assim, a." santa" famíliaamericana nos filmes dos irmãos Marx ou de W. C. Fields) ou o poder louco(Carlitos - Hitler), mas também um homem qualquer mostrado em suainexistência consentida. O Doido não está mais nas cortes, ele está na rua.

Convém agora indagar quem está ao lado do príncipe, quem lhe faz conheceras verdades que os administradores, os tecnocratas, os homens das cifras e dassondagens de opinião não lhe transmitem. O problema não teria alcance seadmitíssemos como Benda que o Estado Moderno, monstro frio, "dotado de

ordem" não tem o que fazer da verdade. Este dom não nos parece tão certo e n em afunção da irreverência tão vã. Cada partido, inclusive o do poder, conta comquebradores de aparências - eles em baralham as cartas, desvendam parte do queestá oculto e, em outras palavras, dramatizam; se eles perturbam muito, sãochamados de avatares dos Turlupins e dos Bufões de outrora. Estes músicosdissonantes não deixam, porém, de participar plenamente do jogo político. Asituação dos criadores, dos "intelectuais", cuja atividade gera o movimento etambém a desordem, é mais ambígua. Associados ao poder, nele só ocupam umpequeno lugar, o de preposto, de acordo com as fórmulas eo estilo do regime; elescontribuem mais para a manutenção das aparências do que para o seu desven-damento, Solicit adores do poder , eles não guardam a dis tância suficiente que lhespermiti ria t ransmiti r as verdades inconvenientes . Separados , eles arriscam de semarginalizarem cada vez mais - pregadores no deserto - pois que a publicidade de

suas obras depende principalmente de circunstâncias externas, ou de seremlevados à dissidência, ao exílio interno, depois ao. afrontamento que os quebraráou expulsará se pertencem a uma sociedade totalitária. Já se disse que "entre obufão e o opositor" não há lugar para eles. Em um caso, sua turbulência só toca aordem superficialmente, no outro ela trabalha em profundidade, sustentandouma componente de liberdade escondida no interior do sistema. A divisão não étão simples, pois as sociedades mais desenvolvidas provocam a tecnificação dacultura e os próprios poderes tecnocráticos já ingressaram em uma produçãocultural, ideológica, conforme sua linguagem, a das cifras e dos códigos. O espaçoreservado ao movimento livre, à "desordem'.', às contestações regeneradoras sereduz; a sociedade parece não ter mais do que uma só dimensão - a daconformidade -, o estar achatada sem aquelas profundidades, onde trabalham as

I 'poder em Cenl

forC;1Iper turbadoras, () inesperado, a experi~ncia inovadora . De fato, nlo exll tl.i~lema sem contra-sistema. As tendências de normalização mais completare~pondem, em relações de exclus:\o reciproca, às que exprimem a negac; lo mal lradical izada. São as reivindicações e experimentações marginalizadas cuja mul·tiplicação foi provocada pelo Maio francês de 1968. Elas tentam derrubar todlll lbarreiras de domesticação social, liberar tudo, levar aos extremos os direltol lindividualidade. Elas estabelecem uma inversão social permanente mais do que

uma revolução permanente.O jogo da ordem e da desordem, do conformismo (exigindo a adesão vislvel.

formal às suas regras) e da mudança (dando lugar à novidade e ao inesperado), lidesenrola em todas as sociedades. Nenhuma consegue um controle integral; nllsituações de crise grave e durável , cada um dos dois termos visa o desaparecimentodo outro, em um afrontamento tendendo para a guerra santa. Todas as sociedadel_ até estes tempos de modernidade avançada - reconheceram e temeram noimaginár io e na real idade a liberação dos processos explosivos. Elas ins talar lmdispositivos que permitem transformá-Ios, derivá-Ios, expulsá-Ios, com sucellOIdiferentes segundo os casos e as conjunturas, mas sempre parciais.

O perturbador, ator dos mitos e dos contos, o Bufão da cerimônia do padrepara a cura da desordem, o Doido das cortes e das ruas se inscrevem neste rol. tl ••são encarregados da verdade: debaixo da ordem social, a desordem; debaixo duinstituições, a violência; debaixo do poder investido da função de manter Iestabilidade, o movimento; debaixo da unidade, as fraturas irreduúveis. Entre-tanto, toda verdade que não pode ser manifestada deve ser tratada. Ela -elrãencerrada, confinada; alguns avêem, a mostram, af ixam no inter ior das es trat~IUe dos círculos do poder; o Doido do rei, como também sua roda, contribui a pari Imanifestação e uti lização desta verdade cativa. Quando ela não podia ser reduzidl,era l iberada condicionalmente e lançada nas dramatizações do ridículo, opostal lldramatizações solenes, cerimoniais, do poder. O Bufão sagrado regulava •animava estas teatralizações. Foi ainda o desarmamento pelo ridículo que,tratou,de outras maneiras, as verdades escapadas . Elas se tornavam então em sonhol d epoeta (ou de "jogador de bolas"), proposições deslocadas e fora das realidadel,

proposições que fogem ao governo da razão ou do mero bom senso. Cldasociedade, a seu modo, defme as verdades que tolera, os limites que ela impOe 10

que não está em sua estrita conformidade, o espaço que ela concede à liberdademodificadora e à mudança. Ela não cessa jamais de restabelecer demarcaçOel, d.reavivar os interditos, de reproduzir os códigos e as convenções.

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. . _ . . . . . -.

3

o INVERSO

A ordem e a desordem da sociedade são como o verso e o anverso de umamoeda, indissociáveis. Dois aspectos ligados, dos quais um, à vista do senlocomum, aparece como a figura invertida do outro. Estainversão da ordem nlo 6sua derrubada,.dela é constitutiva, ela pode ser utilizada para reforçá-Ia. Ela faz aordem com a desordem, assim como o sacrifíciofaza vida com a morte, a "lei"com a violência apaziguada pela operação simbólica.

A informação antropológica mostra o amplo espaçoconcedido aoprocesso da

inversão. Ele intervém na definição....as categorias sociais, em sua repartição emsuperiores e inferiores, em "boas" e "más". O dominado, o dependente, ocupamdessemodo, no sistemadasrepresentações coletivastradicionais, a posição inverla(edesvalorizada) da do dominante e do senhor. Éo caso freqüente najustificaçloda partilha desigual, instaurada segundo o critério de sexo.J.Middleton apresen-tou debaixo desta forma a "teoria" dos Lugbara de Uganda. Ela situa a mulherdo lado da natureza. selvagem e não da paisagem humanizada, do tempo e doespaço, diante dos homens, das coisas, e, não das pessoas, das alianças, mais doque das relações reguladas pelo parentesco e pela descendência, da agreuloinsidiosa, e, não, da conivência estabelecida com os ancestrais. A lista daicaracterísticas femininas parece tanto mais significativa,porquanto todos os .eulelementos sãoconcebidos "em termos de inversão" em relação a seushom6logo.da sériemasculina. O recurso a este precedimento serve para designar tudo que.

mau, tudo que contribui para enfraquecer, modificar ou destruir as base. diordem Lugbara. Segundo este modo de legitimação da desigualdade dos sexo.,"as mulheres são o mal": "elas causam aperturbação entre oshomens". Elu .10,portanto, mantidas à distância dos negócios importantes, salvoas mais idos•••irmãs de notáveis - aquelas cujo estatuto social é mais elevado e cujo estatutobiológico, sobretudo, as aproxima dos homens.

A inversão da inversão pode, porém, ser provocada para fins políticos e/ourituais. Em muitas das realezas tradicionais da Africados grandes lagos, figurufemininas - qualificadas como rainhas pelos primeiros observadores - e.tIoassociadasao soberano. Elassobem aopoder, porque, decerto modo assexuada.,

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I" !' G eo r R 'e l l B a l an di e r

constrangidas a permanecer castas, ou a não procriar, são assemelhadas aos

grandes chefes, cujos COstumes respeitam. Sua feminilidade é amputada, elas se

estabelecem na ambivalência: mulheres representando a metade feminina (e

perigosa) da sociedade e chefes identificados aos homens detentores do poder e da

autoridade. Certas práticas cerimoniais, determinando a fecundidade e a fertili-

dade são amplamente difundidas na África Negra, até o Marrocos. Elas têm porcaracterística comum apagar a presença masculina durante a sua realizaçã;); as

mulheres OCupam o cenário social e todas se conduzem ao inverso das regras queregem Sua conduta habitual; algumas desempenham o papel dos homens

apoderando-se dos signos e símbolos da masculinidade, da virilidade. Assim, asmulheres mostram ao mesmo tempo sua figura posi tiva _ elas se encarregam da

reprodução -, e sua figura negativa - elas quebram os COstumes prescritos e

derrubam uma ordem que asfaz menores e subordinadas, ritualmente perigosas,associadas à impureza, ao mal, à feitiçaria. Sua rebelião simbólica pela inversão

. dos papéis impõe o reconhecimento que elas assumem no seio da sociedade. Sua

desordem, conduzida "segundo o rito", inscreve~se na ordem estabeleci da peloshomens, ainda que desfavorável para elas.

O processo de inversão também intervém, ainda que menos aparente, nocampo das relações de desigualdade, não-regidas pela discriminação sexual.

Voltemos ao mundo Lugbara. A ordem das gerações aí prevalece Com vantagem

para os "primogênitos", "homens importantes", guardiões do COstume e inter-cessores exclusivos junto aos ancestrais. Eles têm a autoridade ea capacidade ritual

de intervir em proveito de toda a comunidade. Deve-se manifestar-Ihes

temor e respeito. É a definição ideal da relação; de fato, uma hostilidade velada,mas perfeitamente reconhecida se manifesta, tão bem como duas imagens sociaisinvertidas representam o "primogênito". De um lado ele é o que dispõe de

poderes que lhe permitem agir em nome e a serviço de todos. De outro lado ele é

o que utiliza uma feitiçaria, desviando estes poderes, a fim deatingir finspessoais e

egoístas. A guerra insidiosa entre as gerações situa-se, assim, e, principalmente,

sobre o terreno do sagrado e sobre aquele em que o feiticeiro arma suas ciladas. Os

antigos ameaçam invocar os espíritos ancestrais para castigar a desobediência, o .não-conformismo dos jovens. Ao COntrário, estes recorrem à ameaça de uma

acusação de feitiçaria, abrangendo tudo que é considerado abuso de poder. Dois

códigos, duas l inguagens são util izados: os da religião para ditar e provocar aconformidade e os da feitiçaria para exprimir a contestação e manter o poderdentro de seus próprios limites.

O Bufào desaloja o que está oculto e a desordem embrulha as categorias;porém ele sai da ordem na passagem de seus empreendimentos. O feiticeiro ocupa

o universo do escondido, manipula a desordem, inverte ascondutas e convençõessociais; seu trabalho é negativo do ponto de vista da comunidade. Aliás, é o que

permite suspeitar dele ou identificá-Io, de lhe dar uma existência ao mesmo tempo

real e imaginária. Ele é o agente de inversão da sociedade; ele provoca asações em

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o Poder em C ena 4 1

desacordo com o costumei ele arruína as pessoas, "devorando-as" por dentro, urelações sociais, perturbando-as, a natureza, esterilizando-ai el e sacrifica o.

mandamentos sociais à satisfação dos apetites e das ambições do indivíduo, ele

empresta sua figura a tudo o que ameaça a comunidade insidiosamente - ao quenela sevolta contra ela; ele éo inimigo Intimo mascarado. O imaginário o define,.,

crendices lhe dão corpo, as práticas o armam de técnicas.

Ao apontar o feiticeiro, ascoletividades tradicionais localizam seu mal. ~ nelte

momento que intervém o processo de inversão que faz do positivo com o negativo,as forças de coesão social com as de desagregação. Isto se efetua de dois modo.

principais. Pelo temor, o medo, inspirados pelo risco de ser suspeitado de

feitiçaria. Esta autocensura contém as tentações de derrogação, corrige ai

condutas, retifica os desvios que poderiam recolocar em causa a definição dllrelações sociais. Outra maneira é a da dramatização do sacrifício que seorganiza

quando da procura e do castigo do feiticeiro. A suspeita lhe impõe "provas", entre

as quais, a do veneno é, freqüentem ente, utilizada; a sanção o condena •

eliminação. É o momento intenso do drama, que faz do feiticeiro um bodeexpiatório, papel que lhe é sempre conferido em extrema intensidade, enquanto

que o Bufão só excepcionalmente o sofre, a menos que levado até a morte.

Designando publicamente, e, depois, eliminando o autor da crise - o que ~ tido

como "estrangeiro" e agente do "mal", segundo as normas - a comunidade .e

refaz e a autoridade se reforça. A culpabilidade do feiticeiro inocenta todos 01

outros e, principalmente, os membros do poder. Seu sacrifício contribui para uma

volta à ordem dramatizada pelo ritual da execução, a uma restauração dll

instituições e dos pensamentos que as legitimam. Durante algum tempo, a

eliminação do culpado restabelece uma espécie de sociedade purifícada, A

operação do sacrifício transformou uma comunidade enfraqueci da, minada pela

desordem engendrada, em uma comunidade regenerada. O poder se nutriu com

suas próprias fraquezas ou com seus próprios excessos.

Um passeio pelo Ocidente europeu em fins da Idade Média revela uma

uti lização mais ampla e mais trágica da acusação e da depuração social. Entlo,

relata R. Mandrou, "as angústias ... puderam acender centenas de fogueiral,

dizimar as aldeias e as províncias". O primeiro manual geral especializado naperseguição da "heresia da feitiçaria e da magia diabólica" , o guia dos tribunais da

inquisição: o "Martelo das Feiticeiras", foi publicado nesta época, no século X V I

tornou-se um sucesso de livraria, reeditado a cada vez que retomavam ascaças aOI

demoníacos. Ele comporta uma teoria do malefício, uma ilustração dos casos, um

código criminal abreviado para uso dos inquisidores. Ele permite focalizar um

sistema de representações e uma mentalidade coletiva, as práticas consideradas

criminosas e sua repressão pela autoridade eclesiástica.

O universo social de que trata o manual é um mundo de transição em que o

redator reconhece o trabalho da desordem e do mal. Ele o descreve com mai.

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Oeorp;ea BaJandler

freqüência em termos de inversão. A natureza é a presa das calamidades, seusbeneficias, segundo a ordem normal, se tornam maleficios sob a ação das "más"intenções. As relações sociais fundadas na solidariedade hierarquizada dasfunções se abrem às influências nefastas , transformando-se : a classe mercantil emascensão é perigosa, porque comporta os amuletos; os bandos armados nãosomente pilham, como também são sacrílegos e cúmplices das feiticeiras; ospobres mais miseráveis juntam Suas revoltas à agressão feiti cei ra. O lugar dos bonsCOstumes por excelência - a casa e sua grande família - não é poupado. Tudo sepõe de cabeça para baixo: a mulher, perigosa, se não é mais recatada, assume

importância; os homens se abandonam à loucura do amor e à fornicação; adesordem sexual se estabelece; os ritos do nascimento são ocasião para práticassacri legas e aparecem crianças com monstruosidades. As reuniões e as festividadescoletivas asseguram o triunfo do pecado e se transformam em orgias. A própriamorte se espalha de maneira desordenada, tornando-se má; ela é a sanção dasfaltas cometidas pelos agressores da ordem, uma violência louca e injusta. Estemundo, às avessas, é o das catástrofes. Ele é assim, porque a "lei" não é maisrespeitada, nem mesmo no seio da Igreja.

De acordo com o guia dos inquisidores, a obra nefasta resulta do trabalho dosmembros de uma con tra-Igreja. Eles realizam assembléias selvagens, imitam(invertem) os ritos ~ as práticas prescritas e insultam a cruz. Eles revi vem o

paganismo nos dias mais santos do ano. Eles confiam Suasaúde física à terapia doscurandeiros. É a teoria da conspiração diabólica. O redator não leva em Conta ascondições do tempo. Ele coloca todo um imaginário sobre a realidade, drama-tizando-a, a fim de justificar a solução dramática dada ao restabelecimento dai'ordem - a supressão dos agentes da perversão pelo fogo. Tudo é tomado segundoas categorias do positivo: a ordem e o conformismo, e, do negativo: a desordem e odesvio. A inversão, que troca um dos registros pelo Outro, é uma subversão dasociedade, da civilização e, mais do que isso, da natureza. A análise léxica domanual é significativa neste particular, pois mostra que aspalavras mais freqüentes(presentes até trinta vezes em uma mesma página) são as associadas à palavra"mal": mal, desgraça, malefício, maléfico, ete. Estabelece-se com certeza que adesordem do mundo é maléfica, diabólica, que o homem que para ela contribuiou a ela se abandona, está fora de si, possuído pelos demônios, atirado da

sociedade para o povo das trevas . O duplo regis tro (bom/mau) é a balança que jogade um para outro, é ilustrado por gravuras da época.

Portanto, trata-se de compreender o movimento, a dinâmica política, queprod uz e designa os desviados, a fim de servir à causa da ordem. A mulher, mulhert raiçoeira e mulher diabólica, ocupa entre eles o principal lugar, pois que ollegat.Ívo faz parte de sua natureza. São requeridas feiticeiras para que o mal sejalocalizado e impedido de alastrar-se; é preciso que elas sejam destru ídas, nãosomente para que o mal seja eliminado com elas, mas também para que haja umsacriflcio de reparação em face de Deus, de purificação, à vista da coletividade. Este

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ú lt imo aspecto, não é o menor, pois a feitiçaria está inscrit.a em um sistema decorrespondências associando-a ao mal e à impureza, à obscenidade, à sexuall·dade, liberada de sua codificação social- e, de um certo modo, à liberdade louca, Ido "asno selvagem" ou do monstro se entregando aos ajuntamentos deme -

níacos. O desviado é exibido, condenado, para mostrar que sua perversão ~ totalJnenhum desvio é possível sem engajar todo o resto ea sociedade em seu séquito. A

reparação do mundo invertido resultante do trabalho feit ice iro revela uma opçlo:a de uma sociedade fechada e estável, e não a de uma sociedade aberta 10

movimento e ao inesperado. A recolocação em mãos religiosas é tota l, e, portanto,polí ti ca, em um 'sentido tota lit ár io, uti lizando com aviolência todos os recursos doimaginário para reabsorver sempre os espaços da não-conformidade, da liberdadee da mudança.

A modernidade não eliminou completamente estes recursos, porquanto. Isociedade e seu poder não podem evitar a confrontação da ordem e da desordem,da conformidade passiva e da liberdade modificadora e, tanto menos quanto 01

tempos presentes se carac ter izam pela transição, as incertezas e a ansiedade, comoos do século xv europeu, embora em outro nível de desenvolvimento. As formalmudam, mas o processo de designação e de neutral ização do culpado permanece .Os irreduóveis, por condição ou por opção, são considerados agentes nefas tos ou

inimigos internos, como o eram os feiticeiros de outrora. Se sobrevém uma crl,egrave, eles são apontados, "sacrificados", 'a fim de que o poder seja reconhecidocomo não culpado e que a própria coletividade, inocentada, reforce sua co esãe .São os regimes totalitários que recorrem mais constantemente a esta dramatizaçâo dosacrifício; sua ordem é extremamente sacralizada; seus fracassos são obra de"criminosos" inte rnos ou externos; '-seus súditos são obrigados à conformidademili tante ou resignada. A inquis ição polí ti ca substitui a religiosa , sem a exal taç lomística alimentada pela convicção de estar a serviço de Deus. Nas sociedade.modernas mais avançadas, chamadas permissivas em virtude de suas caracrerís ti -

cas, os marginais e os dissidentes podem se exprimir de maneira aparente ou 11vezes oculta ou subterrãnea; eles t ranstornam as relações estabelec idas pelà ordem"normal" com a natureza, o sexo, o trabalho, a economia, o poder, os valores; elelrecorrem ao esoterismo, aderem às novas religiosidades, provocam o reapare-

cimento de práticas desaparecidas - até a volta ofensiva do "satanismo" no caioamericano. O i rracional e suas "feiti çar ias", a espontaneidade e suas experirnen-rações, minam a ordem da sociedade tecnológica e burocrática; mas, provocamtambém, e mais fortemente, reações de rejeição que contribuem para a manuten-ção da conformidade.

O poder tem a capacidade de manipular diretamente e em proveito próprio O

processo da inversão. A antropologia pol íti ca tem apresentado, sob es te aspecto,análises que infletiram as interpretações teóricas atuais e reavivaram a curiosidadehis tórica pelas insti tuições do passado que reforçavam a norma e a lei pela prát icade "atos ao contrário" - rituais da inversão ou da rebelião dramatizada. A w

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4 tJCC'or,l (C'HBaluncliC'r

soci(~dadcs da Antiguidade revelam uma utili zação bem ant iga destes mecanis-mos. As Kronia gregas como as Saturnais romanas provocam uma inversão dasrelações de autoridade, convertida em regeneradora da ordem social. ComoRoma, a Babilônia recorre a um rei de zombaria e dramatiza a volta das posiçõesde relevo por ocas ião da festa das Saceas. Nesta ocasião, enforca-se ou crucifica-seum escravo, o que desempenhou o papel de soberano, dando ordens, usando asconcubinas da casa real , abandonando-se à orgia e à luxúria. Este poderdesencadeado é um falso poder; ele é mostrado teatralmente como um fator de

desordem; ele impõe a necessidade de restaurar o reinado regular, e é a este últimoque é oferecido o sacrifício do falso rei.

o poder está sujeito a ameaças constantes: a da verdade que quebra o quadrode suas aparências; a da suspeita que o obriga a manifestar sua inocência; a dodesgaste que o obriga a revigorar-se per iodicamente. A parada é a dramatizaçãoque atinge seu mais alto grau de intensidade durante os períodos de vacância dopoder, durante os interregnos nas realezas tradicionais, estudadas pelos antro-pólogos. A morte do rei parece restabelecer a desordem inicial , l iberando as forçasperigosas no centro do universo e no seio da sociedade; ela faz surgi r as violências,as cóleras e os medos. Nas i lhas Sandwich, logo que o desaparecimento dosoberano se torna público, o povo se entrega a uma espécie de furor e cometedepredações. Nas mesmas circunstãncias, nas ilhas Fidji, as tribos invadem acapital e aí promovem a desordem. Na Áfr ica Negra, estas práticas, provocandouma explosão de li cença - como se todos os súditos se encontrassem provisoria-mente fora da lei - são muito difundidas.

Nos reinos do Benín, na África Ocidental, a notícia da morte do rei (da"partida do pai") inicia um período de turbulência e de luto. Desaparecido ohomem-deus que controla a ordem, parece que nada pode impedir a obra dedestruição; uma fórmula convencional diz: "é noite" no país. Os primeirosobservadores estrangeiros constataram nestas circunstãnc ias o desregramento deCostumes, a multiplicação de roubos e assaltos de toda espécie, em plenaimpunidade provisóri a, as epidemias de vingança e de assassínio; um destescronistas observa que tudo se passa "como se a justiça t ivesse morrido com o rei".

Ela reaparece mais forte, mais pesada, com a posse do novo soberano, e, em certoscasos, depois de uma últ ima inversão dos papéis, regulada , cerimonial mente , nodia da entronização. Entre os Yoruba, em Oyo, a multidão tinha, então, aliberdade de bater e insultar o rei novo conduzido ao seu palácio. Manifestaçãosimbólica de um último acesso da liberdade desenfreada, pois que, freqüente-mente, se formavam dois cor tejos, a f im de desviar para um personagem subs ti tu toas sevicias dirigidas Contra o soberano.

Na Costa do Marfim, os Agni da região ocidental formaram reinos de pequenaextensão onde a capacidade dos reis depende da manutenção e da gestão de umaforça de efeitos favoráveis ou desfavoráveis, segundo o uso que dela é feito; uma

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f o rça e.•pecíf lca adquirida pelo ritual da e nr ro n iz aç ão , a m ea ça da de esgotamento e<.juedeve ser mantida pela cerimônia. É o obje tivo das grandes festas poli ti calperiódicas. Esta força da ordem é "retirada" do soberano morto a fim de .ert ransmitida a seu sucessor. Entrementes, é a desordem, expressa de maneiradramática em uma primeira fase. Os camponeses representados por seus chefe.têm um direito particular de perturbar a capital. Os "grandes" representam ofuror, e tornam os súditos responsávei s pelo desaparecimento do rei, exe rcendo

represá lias nas aldeias; eles matam o gado e agridem as pessoas. As hierarquia s 110misturadas e o reinado dos abusos violentos parece aberto.

A desordem se manifesta mais cerimonial mente em uma segunda fale.Recorrendo a uma inversão total, a ordem dos homens livres é subst ituída pe lesdescendentes de "cativos". Apenas morto o rei, antes mesmo que a notícia sejapublicada, est e poder invertido se organiza, tomando posse das moradas reais. todecalque do outro; ele comporta um "rei", que afirma: "hoje, sou eu que dominoo mundo", uma "rainha", seus "digni tários e notáveis". Este soberano do mundo,ao contrário, imita em tudo o rei desaparecido; ele se apodera das veste s, das jóia. edas insígnias do morto; ele respeit a seus interditos e seu código de conduta; ele tebeneficia do cerimonial real; ele comanda e sanciona - enquanto a vida poll tlcacorrente é atribuição de um regente ocul to; ele tem acesso aos celeiros, mas não ao.

bens e aos tesouros reais. Ele é a dublagem paródica do verdadeiro rei. O queimporta mais, pois que mais significativo é o exercício do poder sobre I

transgressão e o excesso. Os falsos potentados são sacrílegos; eles zombam dosoberano defunto depois de se terem apoderado, no leito mortuário, do.paramentos da realeza; então, el es se empanzinam, quando a austeridade do luto ~de regra; eles vio lam os interdi tos impostos aos súditos pelas circuns tâncias. Ele .pra ticam a irreverência às pessoas mais veneradas e às instit ui ções ma is conside-radas. Eles exercem um poder arbit rário, animado por espír ito revanchista; d izemque seu poder é "malvado". Juntam-se a irrisão, o mal e a desordem. O fim de .eureinado coincide com o dos funerais reais. Então, o poder "malvado" é eliminadoe o novo rei é acolhido pelos aldeões com um desejo de ordem. C. H. Perrot, querelatou estas práticas, aí vê, na realidade, "um jogo em que nenhum do.

participantes é enganado" - é uma paródia. Mas é, necessitamos dize·lonovamente, o grande jogo do poder. Ele mostra, pela dramatização ritual, que nlohá outra alternativa para a ordem estabelecida pela lei do rei do que o ridículo, O

arbit rário e a ameaça de caos. A inversão de papéis leva a uma realeza de zombaria,a um sistema de regras falsas e a uma sociedade que é a sua própria caricatura.

No reino de Loango, vizinho e em certa época parte do império Kongo, amorte do rei provoca o temor da volta da desordem inicial, depois o rejuvene ••cimento da realeza em benefício do novo reinado. Quando dos funeral.simbólicos - o cadáver do soberano tendo sido previamente enterrado - dollpartidos em armas se afrontam em uma guerra ritual que não exclui a v io lê nc la ereiteram as lutas que fundaram a dinastia. O partido do rei é necessariamente

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41 Cr o rg t 'N B l lh U1d l ~ l'

vitorioso: pensadas as feridas e enterrados os mortos, a sucessão pode serpreparada. A inversão aparece também em uma seqüência do cerimonial,prinripalmenrc no momento de uma dança sagrada, quando homens e mulherespraticam a transgressão dos usos e interditos, impostos à sexualidade. Ospa rceiros arregaçam suas tangas, entregam-se a uma pantomima sexual e cantamcanções obscenas. A vara ("grande como umatocha de resina ... , c omo a tromba deum elefante") , a vagina ("sulco" onde "semear" , lugar das "secreções"), o clitóris("!(rande como o de uma e lefanta"), tornam-se as figuras deste drama cantado e

interpretado. Entrementes cada um "vê Bwali (o reino) ir-se (morrer)".

A desordem, de onde a ordem extrai as forças que a revigoram, é aquiinterpretada em dois cenários: o da guerra que se relac iona ao tempo da violênc iaíuudadora, e a da sexualidade devolvida ao estado "se lvagem". São os dois temasprincipai s pelos quai s a sociedade exprime sua organização; são as duas fontes deonde ela recebe a energia que a constitui, transformando-se que são assimrcativadas ritua lmente . No começo, a violênc ia e a sexualidade eram livres; fazê -Ias reaparecer com a cerimônia do drama é reatualizar este período primitivo, é.permiti r à sociedade - portanto, a seu poder - de se reavivar, interpretando aprópria gênese. É conduzir o processo da inversão do tempo, até seu pontoextremo, até ao momento em que nasce a ordem social, a fim de captar o vigorprimitivo.

Estas ritualizações, pelas quais se representa o drama do poder vacante, sãotodas reguladas pelas le is da inversão e da hipérbole, do excesso. Os inte rdi tos e ascensuras são substituídos pela licença desenfreada ou orgíaca; ao direito, aviolência, ao decoro e aos códigos das conveniência s a pa ródia e a i rreverência , aopoder conservador o arbitrário e perturbador. Sob estes aspectos os atorescolet ivos do espetáculo ritual desempenham seus papéis à moda dos Bufõessagrados; mas, eles engajam mais a sociedade e seu sistema de autoridade, elestomam parte em uma dramatização nacional. A vacância do poder engendra umdrama desta espécie em todas as sociedades e sob todos os regimes. Nesteparticular, a l ição ant ropológica é um eco profundo de nossa atual idade. A épocada sucessão é um tempo de suspense dramático nos países totalitários, em virtude

das incertezas e dos temores que provoca. A crise governamental, ou a simplesameaça de uma partida, gera uma dramatização política nos países multiparti-dários. Um acontecimento que provoque o desarranjo dos aparelhos do poder eda autoridade - como aconteceu durante o Maio francês - acarreta mani fe st açõescomparáveis às organizadas pelos rituais de inversão; com esta diferença denatureza que Ihes advém do inesperado e não da programação social, é que seuresultado é incerto. Estas épocas são per íodos de efervescência; não há nada f irme,()movimento se propaga por toda parte, embrulhando os códigos e as convenções,a sexualidade rompe seus entraves, a palavra se libera e instaura o reinado da"tagarelice", a violência se ritualiza e a irreverência é a forma de agressão não-violenta. A imaginação, a criação espontânea abarrotam o vazio do poder.

,

o Poder em C e n a 41

Entretanto, esta inversão festiva não pode sustentar-se, ela se gasta. O poderreaparece e toma o controle da drarnatização, onde tem a oportunidade de IUIrestauração, a ocasião de proceder a uma "limpeza" de uma sociedade comaspectos vestustos, assim como o novo rei das sociedades tradicionais tira didesordem insti tuída, durante o interregno, meios pa ra reavivar a força da realezl.

O poder dispõe de um meio regular de se "pôr à p rova", e de mostrar seu vigor

por ocasião do término dos grandes r ituais periódicos. No domínio antropol6glco,a primeira referência é o "Incwala" dos Swazi (África Oriental do Sul), grandecerimônia nacional anua l, descrita por H. Kuper , ins ti tuição complexa para a qual

d iversos comentaristas propuseram interpretações concorrentes. Entretanto, O

dado dominante não está suje ito a est as variações: trata-se de um drama político ecósmico, em que o soberano tem o papel central, submetendo-se a uma agreSlloritual que lhe permite definir-se e reforçar-se efetivamente. A cerimônia dadramatização come0rta duas fases . A primeira abre a capital à pilhagem s imból ica

dos padres e expõe o re i a manifestações de host ili dade ; os cantos sacros falam no"ódio" do povo; o jogo político é apresentado so b o ponto de vista das oposiçõej edas coalizões - o rei e o Estado cont ra os súditos, e ste s l evantados cont ra aque les, orei al iado ao povo cont ra os príncipes rivai s, e estes associados à plebe contra o rel,

Destas provas, o soberano sai vencedor; ele t riunfa e se encontra reforçado; el e ~de

novo o Touro, o Leão. A segunda fase do ritual marca o desaparecimento dipolít ica em proveito do cosmos. Ela assoc ia o rei às forças e aos ciclos naturai s, t.práticas provocadoras de vida e de fertilidade, à cerimônia do consumo dOIprimeiros frutos. Ela é conduzida pelo soberano em uma espécie de prévia quemanifesta solenemente os diversos estatutos sociais e as hierarquias por eles

regidas . A ordem social é exposta nesta ci rcunstânc ia, exibida e recolocada no seuestado no mesmo momento em que se consolidam os laços com o cosmos e Inatureza. No entanto, a ambigüidade da pessoa real persiste. O rei permaneceobjeto de veneração e, ao mesmo tempo, de temor ou de medo. Ele é mostradoem sua singularidade, separado, detentor de um poderio temível que o liga 1ordem do mundo e à ordem dos homens. Ele é o bastião erguido contra o perigode uma volta ao caos; o sent ido úl timo do ri tual é afirmar e revital izar esta funçlotemível e necessária.

No Tibet, esta mesma ligação dos ciclos naturais com os ciclos social. ~expressa durante a cerimônia de celebração do Ano Novo. Ela se insere em umcomplexo de manifestações públicas que recorrem aos processos de inve rsão e deridicularização, de expulsão (do ano velho e de seus males e perigos) e do bodeexpiatório ou "Resgate" do mundo demoníaco. R. A. Stein relata romn f-regulada esta prática. O Rei do Resgate - às vezes, representado por do hpersonagens - é provisoriamente investido de todos os poderes, até ao ponto deprovocar o Dalai Lama e de se entregar a ações arbitrárias nas ruas da capital. Elerecebe das mãos dos mendigos e dos representantes da casta vil dos coveiro. IIoferendas das autor idades. Tudo fazendo ao contrário, ele atrai os males di

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~o GeorRes Balandler

colet ividade e deles seencarrega s imbolicamente. Ele os transporta por ocas ião deuma "viagem", que começa por uma breve cerimônia em honra da divindadeprotetora da cidade, seguida de uma procissão. O cortejo é conduzido por ummendigo, que leva uma figurinha de massa que representa o Dalai Lama e apontaos perigos que os ameaçam. Seguem-se o Rei do Resgate, escoltado por mendigose delegados da cas ta reprovada, sacerdotes mascarados, portadores de cruzes deAbra, às quais foram transferidas parcialmente as ameaças ao povo e seusgovernantes, monges, membros das principais escolas tântricas da capital, umsacerdote de um poderoso oráculo, cercado por seus assistentes e mantido em

estado de transe; enfim, para fechar o cortejo, um dos mais elevados dignitários doclero budista tibetano.

Esta procissão inverte de algum modo a ordem das posições sociais; afigurinha do Dalai Lama não é mais do que um simulacro, permitindo os malesque poderiam atingir o. soberano, é uma armadilha das forças maléficas edemoníacas; o Rei do Resgate não pode ser senão um falso rei, irrisório, um bodeexpiatório, levando para a morte ou para o exílio seu fardo de influências nefastas ede pecados; os reprovados compõem o seu círculo. Eles, juntamente, expulsam omal para fora dos muros da capital e, de um modo mais geral, para fora dasociedade - purificada e renovada ao abrir-se o ano novo. Participando da guerracontra os "demônios", mostrando a ordem invertida ligada ao reino do mal, daimpureza e da 'irrisão, o poder ainda se inocenta e reaviva. Cada ano ele apaga

ritualmente os vestígios da desordem, que são também os das mudançasnascentes. Ele contém a desordem, reconhecendo-a ao pagar-lhe um resgate.

A breve substituição do verdadeiro poder por um falso pode ser o meio paracomunicar àquele as reclamações e aspirações que não o alcançam no cursoordinário da vida polít ica. Uma tradição marroquina mantida a té uma data recenteo revela claramente: cada ano, em Fez, ao termo do trabalho universitário emQ1trawiyne um Sultão dos "tolba" (es tudantes de c iências religiosas) é escolhido.Ele tem o encargo do "governo" durante uma semana inteira. Ele recebe umares idência e móveis, ves timentas , al imentos, cavalos e servidores. Na ocas ião, ele éacompanhado por um cortejo pela cidade, aparecendo a cavalo, protegido peloseu círculo, acompanhado de arautos, de dançarinos e bajuladores. Ele éreconhecido pelo clero e "aceito" pelo próprio soberano. Ele conduz os negócios,exceto os que dizem respeito à política geral do país; ele nomeia para diversoscargos, exceto para os do Makhzen, o que lhe permite conferir vantagens a suaprópria linhagem; ele efetua visitas de inspeção, regula conflitos, recompensa,castiga ou agracia. Sua autoridade não é paródica, é uma censura, rompendo aordem do poder, uma abertura provisória concedida à iniciativa. Seu brevereinado é uma ocasião para fazer indiretamente sugestões ao verdadeiro Sultão epreparar es tratégias propíc ias à real ização de suas próprias aspirações.

Sua rea leza precária tem incontes tavelmente um sentido polí tico; o processode designação o mostra: ela é complexa e requer o suporte de relações pessoais,

,

o P oder c om Cf'nl 5 1

uma posição no campo das forças pollticas e sociais. Sobretudo, ela nlo ••compreende senão por referência à própria definição do soberano marroquíne,Ele é o Comandante dos crentes, chefe espiritual da nação (Umrná), Chefesupremo que dispõe da bênção (Baraká), donde a veneração de que é objeto. E le ~

o oficiante (Irnã) que recebe respeito e submissão. Ele é o "Alim", "bloencarregado de supervisionar a aplicação da lei muçulmana. Esta últ ima qualidadeé partilhada com os doutores da Qarawiyne, de quem recebe uma legitirnação, eque ele consulta. Os "Alims", constituindo um corpo de teólogos e de letradol,

par ticipam dos poderes e s ímbolos de prest ígio, têm acesso às r iquezas e dispOemde capacidade para cont rolar e contes tar as dec isões do rei . Éjustamente a eles quese assemelha o Sultão dos" tolba", que se inicia no saber guardado por eles. Ele Ilofigurante do seu poder durante um curto período, com o apoio popular provocadopela festa de sua designação. Em um sistema de domínio total, ele introduzmovimento sem risco de ameaçá-Ia. A alternativa ao poder estabelecido perma-nece um simulacro, mas de incapacidade limitada, pois que. este exprime .1sugestões e propõe as iniciativas de um governo efêmero por meio indireto.

A inversão pode ser desviada, tornar-se permanente, enquanto meio d.contestação absoluta, porém, com freqüência o é por uma transposição imlll.nária, introduzida por uma iniciação. No Rwanda antigo, na África Oriental, O

regime de monarquia autocrática, estabelecido sobre uma desigualdade funda-mental e sobre cortes hierárquicos, provocou esta espécie de reação, e tanto mal.quanto a dureza da vida cotidiana aí também é interpretada como expressão daagressividade de ancestrais perseguidores. Tudo o que participa do poder, aqui eno além, tem a possibilidade de contribuir para a manutenção deste estado deinsegurança. Surge então do imaginário cole tivo um herói mí tico, Ryangornbê, dequem C. Vidal diz em seus estudos rwandeses, que ele aparece no decurso de"todas as operações s imból icas". Ele é efetivamente a figura cent ral de um ritual deinversão, ao qual terão acesso, mediante conselho de um adivinho, todos os queforam iniciados, exceto o rei. O soberano real não pode reconhecer, nem •potência, nem a supremacia do herói saído do mito e reinando sobre os espír lteechamados Imandwa, seus companheiros. Tudo é t ransformado por Ryangombêi asociedade desigual em fraternidade iniciática, a ordem em desordem, a submissão em

superpotência. Seu culto apaga as relações autoritárias e a censura. Produz-se aiuma negação teatral do poder real e de sua ordem, das desigualdades fundamen-tais, dos domínios segundo critérios de sexo e idade, das preeminências regidupelo parentesco, das regras que governam a sexualidade e a decência. A práticaritual abole tudo o que faz a sociedade rwandesa e sua civilização; é umaultrapassagem pela qual os adeptos se identificam com os companheiros deRyangombê e se imaginam capazes de vencer os poderes e os domínios mal.solidamente estabelecidos. Eles são "outros", a ponto de falarem uma outralíngua, iniciática. É a l iberação absoluta no imaginário; os iniciados pretendem"comportar-se como cães" - eles opõem a ordem rude das hierarquias e d.1desigualdades rea is , a desordem mística que afas ta as f tonteiras do imposs ível. No

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Georgt's Balandler

entanto sua insubmissão ritualizada não parece afetar o jogo dos poderes; eladesarma a rebelião, enfrentando-a com as cerimônias.

o personagem do Perturbador e os atores da inversão sacrílega, orgíaca,também OCuparam a cena social da Europa medieval. Eles praticam uma liturgiaao contrário, introduzem fraturas no tempo e nelas inserem as "estações" dalicença e da bufonaria. A hierarquia eclesiástica vê nestas manifestaçõesexplosivas, liberadoras, uma herança do paganismo e a ocasião de realizar umverdadeiro "sabbat de feiticeiras". Os papas , notadamente Inocêncio 111 , denun-ciam estas "pantomimas e loucuras que ridicularizam o clero", e a Faculdade deTeologia de Paris fulmina em diversas ocasiões essas fes tas às quais seassocia umaparte do clero. Duran te muitos séculos - até meados do século XV, todos os bisposfranceses são regularmente prevenidos - estas prá ticas introduzem a subversão nascerimônias, o ridículo, o desregramento dos costumes até nos lugares sagrados, aolado dos altares. Invertendo a ordem da Igreja, conseqüentemente, tudo sejustifica; introduzindo a festa, a dança, a mascarada no interior das catedrais, estasliLurgias invertidas tornam a sociedade, seus códigos e limitações precár ios. Adesordem fest iva substitui a ordem das condições soc iai s, das posições "determi-nadas" e das condutas prescritas.

"

No curso da primeira Idade Média, manifes ta -se es ta vol ta das Saturnais

quando se retalham nas origens o ciclo litúrgico (a natividade) e o ciclo do tempo"natural" (o Ano Novo). A princípio com discreção, uma celebração do nasc i-mente do Cristo, os princípios, a renovação e ajuventude. A igreja se abre entãoaos cantos e à dança associando os padres - o baixo clero e seus diáconos _ e asrrianças. Um "Bispo das crianças" (episcopus puerorum) é eleito, vestido deparamentos semelhantes aos do Pontífice. No tumulto dos festejos, um cortejo oleva ao palácio episcopal, onde ele distribui sua benção de uma das janelas, àmaneira pontiflcía, A mesma manifestação se organiza com os subdiáconos,favorecidos pelas danças realizadas para os outros dignitários da hierarquiaedesiãsríca, Sob esta primei ra forma, a inversão é contida em seu estado mínimo;da dá lugar ao poder dos "inocentes", ela libera as forças novas, elas substituem asolenidade da cerimônia pela turbulência da fes ta . No entanto, trata-se, menos de

urna perturbação provisória da ordem social, do que um recurso, de uma voltasi rnbólica à juventude da sociedade e de sua Igreja, ajustada à abertura de um novociclo anual.

Em fins do século XII, es tas práticas se transformam em uma l icença sacrílega:a Iesta ou missa dos Doidos realizada nas cidades com catedral, dando lugar à1 '1(' içãode um Bispo, Papa ou Rei dos Doidos. Dá-se então uma inversão total dasmaneiras habituais, e certos relatórios eclesiásticos mencionam "abominações eíl~'("')(~S vergonhosas em número tão grande" que dessacral izam os lugares santos,"não somente pelas zombarias nojentas, como pelo sangue derramado". O al tod(~ro é despojado de suas funções em proveito do clero de irrisão, que Ocupa os

~ ~ i '

o Poder em C ena 5 1

u~cntoMda catedral. A partir deste momento, subverte-se aordem da cerirnõnla, O

ollcio é conduzido de maneira burlesca, aberto ao sacrilégio c aos c om por ta rnen-

tos orgíacos, Máscaras de faces grotescas, vest idos W!110 mulheres, personagen.buíõcs ou animais, dançam, cantam e se entregam a pantomimas indecente. nocoro; eles comem seus alimentos engordurados, espalhados sobre o altar, CIl 'lUilUO() padre celebra a missa; eles queimam cordões de couro de sapatos velho. emlugar dos bastonetesde incenso; eles jogam aos dados; eles correm e saltam emtodos os sentidos . A catedral é entregue à agressão da festa popular e a profanaçâa

se torna uma l iberação absoluta , uma l icença selvagem. Um "doutor" de Auxerrejustifica esta explosão liberadora pela parábola dos tonéis que devem lerperiod icamente abertos: o clero não é senão um amontoado de barricas de vinhovelho que, certamente, explodiriam se o vinho da sabedoria tivesse de trabalharsem alívio ao Serviço Divino.

No decurso de século XVI tudo se apaga len tamente, mas an tes, uma terceiratransformação se efetuou com a festa do Asno - comemorando inic ialmente a fUlade Maria para o Egito e ce lebrada principalmente na França. Em Beauvais , O Amoéconduzido em procissão até o interior da igreja, onde ocupa simbolicamente umlugar central no serviço da missa; todas as partes do oficio são concluídas comzurros das congregações e da assistência; o A sno é celebrado por cantos em latim eem francês; o próprio padre substitui o Ite mi ssa es t por três zurros, c i\

assistência dá graças a Deus da mesma maneira. Esta insistência provoca o maiorentusiasmo. Em muitas cidades, o Asno é tratado como um príncipe da Igrejaldurante a procissão ele é l evado debaixo de um pálio com dourados, carregado porveneráveis cônegos e escoltado por pessoas ves tidas com hábitos de fes ta como porocas ião do Nata l. Um escorregão simbólico, mais ou menos disfarçado, associa oAsno ao próprio Cristo, tanto mais facilmente quanto uma conhecida tradiçloestabelece a mesma relação para o Deus dos Judeus eos poderes recebidos por suadelegação, uma tradição que se encontra novamente nas pinturas que ridícula-

rizam a crucificação. A inversão da ordem ritual é levada aos limites da blasfêmia ,

Nietzsche passou estas fronteiras - fazendo esta alusão explícita - quando eletratou da festa do Asno como paródia da missa, escandalosa e blasfemat6ria IlIl

quarta parte do "Assim falou Zaratustra".

Estas prá ticas provocaram interpretações concorrentes, que não somente a .

dos historiadores da Idade Média, como se o de que se tratasse fosse responder.este enigma: porque a Igreja, apesar das defesas da hierarquia, esteve emconivência at iva com os atores de sua própria zombaria? A solução mais freqüentefaz alarde de uma memória cultu ral que conservou traços dos antigos costume.que, como as Saturnais, transformam a subversão da cerimônia em uma forma derelação ao sagrado e à "lei". Uma segunda proposição leva a considerar a ordemproveniente da ins tituição ecles iást ica em sua relação de tensão com dois pólen O

que o Sagrado define por sua exigência e rigor vividos, em parte, como excesso: O

que o poder par6dico e festivo cria provisoriamente e que, pode-se dizer, é falho,

! 4

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Ge(}rK(~~Balandier

Entre estes dois extremos - um que ela venera, o outro que ela tolera na

ambigüidade - a Igreja estabeleceria uma ordem medida, a sua, equilibrada por

efeito destas solicitações contrárias. As interpretações mais recentes vêem nestas

práticas associadas ao catolicismo medieval a forma particular de fenômenos de

caráter geral, sejam fatos de funcionamento psicológico, sejam fatos de funcio-

namento social. No primeiro caso, tratar-se-ia de afrouxamento regular das

tensões, do abrandamento provisório das censuras às quais a Lei que define a

sociedade constrange o indivíduo. No segundo caso, o que se encontraria em

causa, é a acomodação da relação entre as forças de conservação e as forças de

movimento, poder e contestação, ordem e desordem. Na Europa da Idade Média,

a Igreja era um lugar privilegiado, onde tudo seexprime, se funda e sevalida; não-

é, pois, surpreendente que ela tenha se tornado também num cenário onde se

manifeste uma contestaçào popular dramatizada. É uma subversão cíclica,codificada, ritualizada e ao mesmo tempo festiva. Ela libera no jogo de cena, ela

não solapa asinstituições. Aliás, é significativo que, a partir do século XVI, quando

asgrandes transformações afetam o Ocidente e seus sistemas de-poder, seproduza

um deslizamento do religioso para o político. As festas do príncipe ilustram opoder e as "folias" se tornam principalmente assunto da Corte.

No Carnaval se tornam a encontrar alguns dos componentes que acabam de

ser considerados, mas associados a outros, em fórmulas complexas e variáveis, de

acordo com as províncias ou ospaíses. A época carnavalesca é aquela em que umasociedade inteira semostra, selibera pela imitação e pelo divertimento, seabre aos

ataques e às crít icas por meio de transposições toleráveis, e se entrega parodica-

mente ao movimento a fim de com ele alimentar sua ordem. Tudo se diz no

disfarce, tudo se valida pela união estreita do sagrado e do bufão, A inversão é o

processo que permite virar o tempo no avesso, metamorfosear a escassez em

abundância, o acabamento em consumo, romper ascensuras e as conveniências,

em proveito da festa, dar lugar às contestações, dissolvendo-as na irrisão e na

diversão coletiva. O desfile é o modo pelo qual a sociedade urbana se mostra, se

expõe ao espetáculo. Jean Bodin, em sua" República", evoca no fim do século XVI

esta sociologia das cidades, proposta em vista dos basbaques, durante uma

procissão. A frente do cortejo, o "rei", separado, fora do mundo comum que se

segue: o clero, os representantes do poder municipal, os membros da ordem

militar, os titulares do fórum, os médicos e os farmacêuticos, o "povo soberanodos criados", os negociantes, todos os encarregados do Sustento material da

cidade, e depois, os representantes das artes e diversões. Esta sociologia exibida emseu lugar no Carnaval pode tornar-se uma arma política, voltando-se contra osquea manipulam.

E. Le Roy Ladurie, em seu estudo sobre o Carnaval de Romans em 1580,

manifestou as implicações políticas desta prática e revelou os antagonismos que aí

se exprimem, até a explosão trágica, então provocada pelo grande medo das

autoridades. Nestas circustâncias, aparódia não desarma mais astensões sociais e a

o Poder e m Cena "festa se torna Iiberadora de violências. O período carnavalesco começa pelo

convite "às armas e equipagens", a fim de organizar os desfiles. Formam·11

"reisados" ou reinos debaixo da autoridade de um "rei" - cuja figura ~associada a

toda uma simbólica popular, e que dispõe de "of1ciais", de uma "guarda", de um

séquito. Estas imitações da realeza exprimem os componentes sociais da cidade.

regulam a participação nos cortejos, nos ritos, nas festas e banquetes do penodo

do Carnaval. Tudo deveria concorrer para a liberação festiva e expulsão simbólica

dos males da cidade- cujo processo e a eliminação do manequim carnavalesce 110

a última realização. No entanto, o furor dos camponeses seespalha na campanharomanesa e o descontentamento dos artesãos agita a cidade; os jogos de inverno,

depois o Carnaval de fevereiro de 1580, setransformam em fronda, em seguida em

revolta e em ofensiva repressiva. A terapia festiva falhou - plebeus e burgueses seafrontam.

Os reinados paródicos se multiplicam e se opõem segundo esta clivagem. A I

danças e osfolclores populares tomam uma significação política; a irreverência e a

inversão exprimem uma exigência de redistribuição das riquezas em pro\ eito dOI

jovens e dos pobres. Os rumores mais fantásticos correm em Rornans; nutrido.

pelo medo surgido do imaginário coletivo, eles apregoam o massacre di' elite, a

repartição dos bens e a partilha das mulheres. Os notáveis, por meio de leu

próprio "reisado", respondem e tentam manter a função do Carnaval: revelar o

absurdo e o ridículo na inversão da sociedade, apagar as subversões pelos ritol e

manifestações festivas. Mas nada sepassa como de costume, pois que o resultado"

trágico. Na Segunda-Feira Gorda, a dança degenera em combate e, o capitão da.

Ligas, chefe popular, desaparece de morte violenta. A Terça-Feira Gorda é rubra,

provocando uma quase guerra civil; os conflitos encenados, as expuls~el

purificadoras e os assassínios simbólicos se transformam em realidade, em ajulte

de contas. A ordem reforçada resulta. não da festa, mas da violência; a inverllo

fracassada degenerou em subversão, e, depois, em reação brutal: nas semanu

seguintes a estes acontecimentos, os notáveis relembram seu medo e seocupam da

repressão.

O imaginário coletivo e aspráticas ritualizadas que governa têm, não somente,

uma eficácia simbólica, como também um alcance polít ico. Elas produzem umarepresentação da sociedade que é, ao mesmo tempo, uma ilustração e uma

contestação. Elas se apresentam para serem vistas e criticadas; quando muito, o

manequim do Carnaval evocará de modo paródico a classe dominante questíe-

nada ou será vestido ridiculamente "àsemelhança do inimigo do momento"; na

pior hipótese, osatores do drama carnavalesco levarão seu papel a sério e não lerlo

mais opostos metaforicamente, mas realmente, como aconteceu em Romana em

1580.

O Carnaval permanece sempre um meio de liberação e de expressão popular,

No Brasil, é um dos grandes rituais nacionais; ele se opõe, em sua liberdade, IUI

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Oeorges 8alandi('r

espontaneidade, seus excessos, suas manifestações, à cerimônia polí tica da

Semana da Pátria e às ritualizações constrangedoras da Semana Santa. Ele se

reporta a um tempo que não é nem o da história e nem o do ciclo litúrgico, ao

tempo indefinido do sagrado difuso, do sobrenatural, do imaginário. Ele procedepor inversão: substituindo o dia pela noite, o domínio privado pela rua, a medíocre

condição real pelo papel desempenhado na identificação de grandes personagens.

Ele metamorfoseia o universo social das cidades, abertas as procissões das Escolas

de Samba e as danças. Por meio de disfarces, o Carnaval dá vida a figuras

marginais ou imaginadas, estranhas à sociedade brasileira atual. Ele transtorna as

classificações sociais ao azar dos encontros e da insóli ta conjunção dos perso-nagens imitados. Ele cria uma ampla comunidade temporária, onde tudo setorna

possível, onde as hierarquias e as convenções da vida ordinária se dissolvem. Ele

libera na brincadeira e na farsa, indo até a licença; ele dá lugar à improvisação, à

invenção desenfreada. O Carnaval brasileiro dá a impressão de uma sociedade

onde os cortes sociais, as desigualdades, os poderes estão temporariamente expul-

sos. Ele mostra uma sociedade fraterna e festiva debaixo da que regula rigorosa-

mente a vida cotidiana, e através desta ilusão contribui para a aceitação destaúltima. Ele a revigora periodicamente, pelo reinado da "fantasia" em desempenho

às vezes levado até ao transe, pelo movimento resultante de todas as liberaçõesindividuais. Como constata R. da Marta, o Carnaval "fala" de uma mesma

estrutura social , ilustrada pelos grandes ri tuais nacionais, engrandecendo a

ordem, seus valores, seus códigos, suas hierarquias; mas ao contrário: ele inverte osistema de papéis e de posições que classificam os indivíduos, para melhorconsol idá-Ios em seu lugar "depois do fim do ri to".

Durante o século XIX, certos observadores das festas antilhanas qualificaram-nas de Férias dos escravos; elassuspendem o trabalho e a rude lei da plantação. M.

G. Lewis, inventor do terror gót ico na li teratura, autor do Célebre romance "O

Monge", foi um deles. Ele acabava de herdar duas propriedades açucareiras na

Jamaica; aídesembarcou, na Costameridional, em 19dejaneiro de 1816; ele assiste

a celebrações do fim e do começo do ano, que obedecem aos mesmos princípios

em todas as Índias Ocidentais. A cidade pertence então aos escravos de todas as

categorias, a rotina cotidiana é quebrada e os senhores estão entregues ao

abandono doméstico. A mecânica da inversão também funciona lá: a rua

normalmente controlada é entregue aos ajuntamentos, a noite interdita àsmanifestações de escravos, lhes é franqueada, os ritos ancestrais reprimidos são

praticados em todos lugares e os modelos culturais da África perdida reaparecem,

a parada e a rivalidade no fausto dos Costumes e na produção dos espetáculos

substituem o desnudamento cotidiano e a disciplina dos plantadores. Estes, paraatender seus próprios interesses, são obrigados a part icipar _ eles devem dar,

repartir, contribuir para o desperdício, auxiliar o grande consumo de alimentos e

as diversões. Durante alguns dias, a subversão festiva afrouxa as tensões sociais,

apagando osconstrangimentos e mascarando a miséria servil. Diz-se que ela operacomo uma válvula de segurança.

o Poder em Cena 5 7

Entretanto, osque fracassam no funcionarnente não são jamais e x c lu í de s, e o.patrões o sabem. Certas figurações ilustram este risco. Os "Actors-boya" da

J amaiea, mascarados e fantasiados, armados de chicotes, desempenham a cena de

combate e de assassínio ou comandam o coro dos "estômagos faminto.".

Enquanto os " John Canoes" conduzem uma outra mascarada, aterrorizante,

ameaçadora pela agitação das espadas de pacotilha e a exaltação alimentada aálcool. Os grupos femininos entram na competição a fim de afirmar lua

"superior idade na beleza, na graça, no costume e na canção"; eles rival izam e le

afrontam; introduzem uma pequena luta na festa que se pode tornar em uma

guerra na sociedade, em um motim. Esta liberação ameaça, tanto mais tornar- ••

geradora de violência, quanto introduz a abundância (muito passageira) e a licença

depois de um período de trabalho rude e quase de penúria; ela dá a ocasião de

converter a festa orgíaca em revolta. De fato, um estudo recente das rebeliões e

complôs nas Antilhas Britânicas mostrou que 35%entre eles sesituam nos último.

dez dias de dezembro. No entanto, a supressão das "Saturnais de escravo.",

quando tentada, teve conseqüências mais trágicas e imediatas. A função de terapia

social- servir àordem, revigorando-a - é, incontestavelmente, mais importante do

que o risco da ruptura.

Desaparecidas durante algum tempo, estas festas e o Carnaval anti lhano

reaparecem ou tentam reviver adaptadas às novas condições e não somente ••

exigências da economia de turismo. Uma pesquisa conduzida na pequena ilha deAntígua mostra como o Carnaval, renascido em 1957, setornou uma manifestaçlo

nacional oficial . Ele reencontra suas funções permanentes - fazer prevalecer I

fusão igualitária sobre as separações hierárquicas, a espontaneidade sobre a rotinl,

a liberdade sobre o constrangimento, a comunidade sobre o encerramento nal

estruturas. Para o essencial , ele recorre aos mesmos meios, à parada e à licençl

sexual, à ostentação e à pândega, à dança, ao jogo e ao teatro de rua, 1

extravagância na fantasia e à sofist icação provocante. Porém, esse Carnaval

reaparecido comporta algo a mais. Ele contribui para definir, na teatralizaçlo,

uma sociedade e uma cultura em formação, uma especificidade da ilha no

conjunto caraíba, uma identidade negra em face da ocidentalização do modo de

vida cotidiano, uma certa integridade cultural contra a importação de modeles

estrangeiros. Os heróis das jogadas carnavalescas são, na desordem festiva, oequivalente profano dos inovadores religiosos que dirigem os ritos de "revitall·

zação". Eles canalizam forças necessárias para o estabelecimento de uma nOVI

ordem; eles as liberam para tomá-Ias mais utilizáveis para isto.

Os" sacerdócios" e os ritos, que realizam esta tranformação da desordem em

ordem, operam sempre dentro de limites, variáveis segundo ostipos de sociedade.

Fora destas fronteiras, está o espaço das resistências, das rebeliões e, além, O da.

revoluções no porvir. Estas visam o estabelecimento de uma outra ordem. Aquela.

desafiam com o espetáculo a que existe - seu primeiro objetivo é a provocaçlo e a

demonstração da vulnerabilidade dos poderes existentes, da impotência relativa

~8Geo rges BaJandier

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dos poderosos . A desordem latente semanifesta parcia lmente por seus efei tos: elaé mostrada, não por ser invertida, mas por ser mantida e explorada. Atores muitodiferentes contr ibuem para is to, desde o herói popular - o "Trickste r", trapace iro- agindo pelo desrespeito às regras e interditos, até o fo ra-da-Iei que cria e impõeum poder rude. Todos são geradores de representações imaginárias, de mitos, e dedramat izações pelas quais seus empreendimentos têm ressonância.

O exemplo americano, a partir dos anos que se seguem à Guerra Civil, é umaespécie de revelador com grande aumento. Face a uma sociedade nova, suportada

por um grande espaço ainda não dominado, formada na diversidade e desigual-dade competitiva, lançada na conquista de suas fronteiras, na realização de suamodernização e no estabelecimento de uma ordem que substitui a da "escravo-cracia". Em tudo, os limites são imprecisos . Em toda parte, o movimento provocaa instabilidade das regras e dos códigos sociais; o indivíduo é exaltado em seusdesempenhos e em sua força de realização, que não excluem a violência. Esteconjunto de condições provoca o desenvolvimento de uma mitologia moderna epopular. Certas figuras tomam forma e força simbólica: o hérói perdido do Sul, oladrão nobre, o reparador de injustiças, o homem armado, tomando-se indiferen-temente fora-da-Iei, bandido social ou xerife. Estas epopéias violentas alimen-tarão, depois, as imagens cinematográficas.

O revoltado, consagrado herói popular, é produzido segundo convençõesbem estabelecidas do imaginário. Sua carreira não tem por origem o crime, mas ainjustiça. É para lutar contra esta que ele entra em rebelião. Sua violência é repa-radora, ele corrige os abusos, ele pilha os ricos a fim de assistir os pobres. Seuempreendimento só recorre ao assass inato em circunstâncias de legítima defesa oude justa vingança. Ele nunca prejudica a seu povo, é respeitado, admirado,encorajado e auxiliado. Ele é considerado invulnerável e sua morte só poder.esultar da traição. Portanto, e le desaparece, lançado em empresas longínquas; elenão morre, ele entra em uma Outra legenda. Jesse James não foi morto, ele seencont ra algures, na Califómia; Bi1Jythe Kid não foi massacrado, ele vive entre osmexicanos; assim também Butch Cassidy e o Sundance Kid escaparam a todas asarmadilhas - eles gozam de um retiro pacífico.

Estes "inimigos da sociedade", de seus constrangimentos e sobretudo de suaordem proprie tár ia, tomam-se heróis posi tivos por efeito da imaginação popular .Eles realizam e dramat izam por suas ações a revanche dos fracos, dos desprovidos ,dos humilhados, dos refratários às mudanças. O que eles são e fazem importamenos do que a possibilidade de se identificar a eles e de lhes atribuir uma virtudecompensadora de sua conduta Eles devem possuir ou adquirir caracteresfavoráveis a es ta verdadeira transf iguração. Foram notados traços f ísicos comunsaos rebeldes americanos mais legendários, notadamente a Cor dos cabelos ( louros)e dos olhos (azuis ou cinzentos), observando que a simbólica popular os associa àjuventude, à pureza, ao prestígio e ao senso de honra. Seu andar, sua distinção,

o Podcr e m Cena 5 .

levam a desculpar suas fal tas e a glorif icar suas proezas ; eles são assemelhado. i.

llguras das legendas ou das mitologias - Q,uantrill, impiedoso em seu. rei d e.mortíferos, místico da violência, guerrilheiro de uma guerra civil perdida, foiconhecido sob o nome de "Apolo louro das planicies". As vestes são escolhld •• deacordo com a encenação, marcando-o como uma personalidade fora do comum; •o costume de fino tecido negro, o chapéu negro, a gravata de lacinho negro e acamisa branca, que os western depois popularizaram; é também a roupade dand) ',às vezes, enfeitada com uma flor, em que Billy the Kid se tomou ilustre. A roupa

não basta. Insígnias afirmam a soberania destes rebeldes - a bengala de metalfolheado com que Bat Masterson impunha sua disciplina, o arreiamento damontaria e, sobretudo, as armas raras e sugestivas da personalidade. Todos e.te.elementos propícios ao trabalho do imaginário são reforçados pelas circunnln·cias ; a epopéia violenta é de curta duração, pois os heróis da revolta morrem joven.- sua imagem, portanto, não é alterada pela passagem dos anos e a lenta corro.1odas rotinas; o espaço aberto à suas empresas é o da" selvageria" , onde a rebel ilo .econverte em dessocialização voluntária e se funda sobre a fraternidade viril do.insubmissos à lei e à ordem. Na prá tica, eles vão ao extremo na críti ca se lvagem d asociedade, embora sob constante risco de morte. Eles fazem disto uma ac;1odramática que a tradição popular oral relata como uma Saga, uma epopéia daresistência.

Os rebeldes primitivos, os bandidos sociais aparecem em todos os tempo. eem todas as sociedades; E-=-,Hobsbawn abriu a galeria de seus retratos. Eles .10perturbadores da ordem e, por este motivo, se beneficiam da conivência dos que arecusam ou sofrem por causa dela. Eles introduzem um movimento, a inversão devalores , apropriações , hierarquias , em sociedades em que as posições individual.estão estagnadas; eles devastam os códigos e as conveniências. É o caso da Europadas ordens ou estados, onde Farroupilhas insubmissos se tornam heróis do povo.têm acesso ao conservatório da memória coletiva. É também o caso da América duplantações e dos grandes domínios. No Brasil, ao domínio inexorável do.proprietários fundiários, que fixam seus limites territoriais pela negoclaçloarmada, replica a violência dos bandos conduzidos por revoltados, convertido.em justiceiros, em defensores ou salvadores dos oprimidos. Um deles, Lampilo,

bandido serni-honrado, conquistou a celebridade no Nordeste, terra das securecorrentes e da fome; a literatura de cordel exalta suas proezas, as canções O

louvam, as gravuras populares o mostram em seu estranho traje. Esta tranlfor-mação do personagem real, violento e rús tico, em herói quase sacralizado é devidaà hagiografia popular. Ela estabeleceu um parentesco de aparências entre obandido social e o condutor de revoltas rnessiânicas - numerosas no Brasil- quetraduz as cóleras camponesas em guerra santa. Porém, a realidade profunda"diferente. Um se l imi ta à agressão dramatizada, à provocação predatória, que oressentimento dos desprovidos metamorfose ia em epopéia reparadora; ele nlotem outro projeto, senão a violência dirigida contra os poderosos e os rico •. Ooutro espalha as devastações do fogo místico, subverte, anunciando uma

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r ! I

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60 Oeorges Balandier

sociedade mais justa e mais santa, cuja vinda épreciso acelerar. Ele mobiliza forças

sociais por meio do imaginário, ele dá à revolta um conteúdo simultaneamente

religioso e político.

A passagem das indústr ias e das cidades ao estado de sociedade não aboliu

estas reações; modificou-Ihes asformas e diversificou seus meios de expressão. O

motim urbano, na Europa do século XIX, provocou intermitências do poder,

revolveu tudo, durante breves períodos , fez aparecerem governos efêmeros darua. Isto contribuiu à reaf irmação da ordem; mas, desta vez, a dramatização não

permaneceu metafórica, ela se tornou uma tragédia com vítimas reais. O motim

tem uma função política; ele fracassa sempre e morre com a repressão, mas fixa

limites às dominações; na Inglaterra, durante o longo governo dos conservadores,

ele produziu este efei to - e o regime se definiu então como o ~e uma oligarquia,

cujo poder é por ele temperado. O motim tem mentores, nascidos das circuns-

tâncias . De modo independente, surgem figuras mais solitárias e com melhor

determinação política, como asdos revoltados com teses: os insurretos que Valles

transformou em modernos heróis do povo, os anarquistas que estabelecem o

espetáculo de uma relação destruidora com a sociedade. A cidade é sua matriz,

como o é para os marginais e para os agentes da criminal idade politica organizada;

mas, estes entram no funcionamento da grande máquina do poder, como mostra

na Itál ia a participação da "honrada sociedade" no jogo das competições -"e lesservem à ordem, ao mesmo tempo em que se servem de suas fraquezas.

A ofensiva total do terror ismo é uma outra manifestação urbana, atual, do

afrontamento ritualizado da ordem e da desordem. De certo modo a Itália

contemporânea a banalizou, tanto pelo número de assaltos, como por uma

capacidade particular de seacomodar. Seus terroristas são, com mais freqüência,

jovens, herdeiros de uma violência individual e coletiva que tem uma longa

histór ia. Eles a põem a serviço de uma destruição do Estado e de seus tribunais.

Eles têm uma concepção elit ista de sua função; têm uma tal certeza que se traduz

em uma organização de seita militar; eles dramatizam o contraste entre a

clandestinidade e asações violentas conduzidas como um espetáculo ou, em certas

circunstâncias, como um sacrifício. Sua estratégia é reveladora: alimentar o caos na

sociedade, manter a insegurança pela agressão física,jogar com a desordem a fimde forçar o Estado à ordem extrema, totalitária, a fim de provocar sua rejeição e de

poderem colocar-se "à frente das massas". Isto vale dizer - quebrar os meca-

nismos corretores, sem os quais uma ordem chega a se encontrar ameaçada por

seus próprios excessos. Morávia, em diversas ocasiões, tentou chegar "àverdade

do terrorismo". Ele acredita atingi-Ia mais na profundidade, refugiada debaixo

das conjunturas e dos acontecimentos: os terroristas" começam lá, onde osoutros

políticos acabam, isto é, pela morte, porque sentem necessidade de sacralizar

suas idéias". Assim, o curso da história não seteria mudado fundamentalmente; o

grande debate da ordem e da desordem se relacionaria sempre ao sagrado e aos

sacrifícios que lhe dão existência e força.

,

4ATEIA

Atualmente, os técnicos participam dos negócios, os tomadores de dec\IOel

(como se diz) racionalizam as escolhas, os planejadores orientam, os dados ale)

guardados em bancos e oscomputadores calculam, a política setorna explicatlva a

fim de mostrar os limites do razoável; e no entanto a representação continua, Omistério pelo qual um poder se constitui e subordina permanece intactOI

"operadores" o formam, efeitos o mantêm e sustentam, práticas rituais marcam oseu lugar _ à parte - e o tornam espetacular. Como no tempo das sociedadel

arcaicas ou tradicionais. A entrada na era do desencantamento parece não haver

abalado nada a afirmação de Valéry de que o domínio do político éaquele em que

"tudo se sustenta apenas por magia" conserva sua força. A reivindicaçao deracionalidade, a tecnização dos meios do poder não modificam este campo de aCiloem que a razão e a ciência têm pouco a ver e a fazer. Porque a relação polldca

permanece de uma outra natureza, que ela se estabelece sobre outra coisa: 01

dispositivos simbólicos, as práticas fortemente codificadas conduzidas segundo ai

regras do ri tual, o imaginário e suas projeções dramatizadas. É através dell ••

artifícios que se efetua o domínio da sociedade, enquanto que o da natureza le

realiza segundo convenções e procedimentos diferentes: produzem asimagens de

uma supra-realidade que não coincidem com aquelas que a realidade social

poderia impor - se isso fosse possível .

Fellini, modernizando uma velha verdade, projeta a sua obra afim de exaltar ogigantesco espetáculo que o homem seauto proporciona. Disso, o poder atual tem

sua parte, herdeiro de costumes bastante antigos, usuário e inventor de noVOIinstrumentos resultantes de desenvolvimentos acumulados da técnica e da

organizaçãO. Permanece si tuado em outra cena: , separada de todas as que a vida

cotidiana compõe, ocupada por atores que sua luminosidade transf igura, Ai ,

despontam palácios, símbolos são expostos, rituais são cumpridos, realizam"'1

paradas; como no passado próximo e longínquO. Com efeitos aumentadOI em

determinadas circunstâncias, tornadas mobilizadoras pelo fato das Comemo"

rações ou dos acontecimentos, pois as massas podem agora ser assoeiadal t

dramaturgia polit ica. Os regimes totali tár ios dispõem de regentes que fazem omelhor e mais constante emprego desse ator colet ivo, maciço.

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Gcorgcs Balalldier

A demonstração de poder recorre sempre à manifestação de poderio. Mas estaúltima tornou-se mais impressionante. Ela resulta de aparelhos , de dispos it ivoscomplexos, do comando de forças à ação temível ou terrificante. Ela afetasobretudo a existência de cada um dos indivíduos, na medida em que o Estadomultiplicou as suas intervenções e funções. A função política está mais aparen-temente ligada ao poder de vida, ao poder de morte; e apenas ela, já que nãodepende mais do decreto dos deuses ou do consentimento de seus ancestrais. Osgovernados se reconhecem menos como representantes do que responsávei s pelascondições, boas ou más, que regem o Curso de sua vida. Sob esse aspecto, eles se

colocam numa relação semelhante àquela que' estabeleciam os poderes tradi-cionais, mas a justificam pelos meios racionais e técnicos à disposição dosgovernantes , não mais at ravés dos meios r ituais recebidos com a ocupação pol ítica.I

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As figuras atuais do poder implicam a afirmação da competência. Esta podenão bastar; ela é mantida no interior de estreitos limites em razão da multipli-cidade crescente de assuntos; ela não cria sozinha a adesão e a confiança daspessoas - e la contr ibui para isso. Suas aparências são mais de ordem técnica do quede ordem simbólica, diferentemente das que revestia nas sociedades do passado.Ela requer sobretudo Q recurso a processos de fabricação dos responsáveis, aoperações que efetuam a pass,agem da cena social para a cena política e tornandomanifes ta a mudança de papel . A eleição e ainda menos a designação, ratif icada ounão nos casos dos regimes totali tár ios, não chegam a provocar essa t ransformação;elas a confirmam ou a tornam possível a fim de que se façam e se imponham àspersonagens políticas do primeiro escalão e notadamente àquela dentre aquelasque simboliza o poder supremo. Devem ser mais competentes do que apenasmandatários, devem servir de apoio aos anseios e às representações coletivas.Continuam a se beneficiar do capital simbólico produzido pela sociedade econtribuem para a sua formação. Para alguns dentre eles, amorte não suprime essafunção; ela faz do "grande homem" morto um Símbolo político puro. Nos paísescomunistas, esta prática é institucionalizada; os funerais de dignitários sãocaracterizados pela glorificação dos desaparecidos, marcam o seu acesso a umaOutra vida, à imortalidade cívica, uma vez que os heróis não morrem. O morto

como indivíduo desaparece por trás da significação política de sua vida; ele setransforma numa imagem, a de um modelo de inspiração para as gerações futuras.

O político alimenta, assim, a mitologia que lhe dá sentido e força.

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A multiplicação e a difusão dos meios de comunicação modernos modifi-caram profundamente o modo de produção das imagens POlíticas. Elas podem serfabricadas em grande quantidade, por ocasião de acontecimento ou decircunstãncias que não têm necessariamente um caráter excepcional. Elasadquirem, graças aos meios audiovisuais e à imprensa escrita, uma força deirradiação e uma presença que não se encontram em nenhuma das sociedades dopassado. Elas se tornam quotidianas; isto quer dizer que elas se tornam banais e sedesgastam, o que exige renovações freqüentes ou a criação de aparências de

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- - .novidade. ENta primeira e l um i rl a enumeraçlo de no VII condlçOel d. f u n c i o ·namenro da imaglst ica pollt lca bal l l l l para ma r e a r as diferença. com li I ltua;t • •anteriores. O universo político parece mais aberto ao ver dOI /itovernadol, ti,perde urna parte do mistério que se ligava a sua natureza de mundo oculto.secreto, mas ele continua assim, o que acontece é que suas apartmdal cada diamanifestadas provocam uma queda de curiosidade e um certo desencantamentO,As técnicas audiovisuais de que dispõe o poder permitem uma dramatlllçlopermanente , ou quase , e, assim, menos dependênc ia do cic lo anual do cerimonial

político. Melhores equipados para produzir imagens, os governantes le encon.tram, entretanto, na s ituação paradoxal de ver essa capacidade enfraquecer-se porseu próprio uso. Eles têm que aprender a dominar uma nova tecnololll dosimbólico e do imaginário, uma nova forma de dramaturgia polftica. Exprell&l. ,fórmulas foram lançadas para qualif icá-Ias (ou desqual if icá -las): "médlapel l t l -que", "art op", indústria do espetáculo político.

R. G. Schwartzenberg propôs essa enunciação e dirige a denúncia do que e1.designa. Segundo ele, as idéias foram substituídas por personagens que captlm •atenção e sacodem a imaginação; eles têm empregos em um repertório em querepresentam o herói, o homem comum (identif icável com o governado "médle"),o líder de "charme", o pai, a mãe (chamada de "mulher política''). A.circunstâncias fazem e desfazem esses personagens, provocam a suceulo depapéis , condicionam asfiguras diferentes da autoridade. Apassagem sedá.de um.arte política mais teatral e melhor ajustada ao tipo de poder ilustrado pelo heróipara uma arte política moldada pelo cinema e pela televisão. Para um modo derepresentação que se organiza à maneira do "star system" e encontra na impren ••,um agente de reforço. Segundo Schwartzenberg, a dramaturgia politica contem-porânea se diferencia cada vez menos do espetáculo de imagens; o poder estA "emevidência" .

Convém reiterar que qualquer universo político é um cenário ou mal.genericamente um lugar dramático em que são produzidos efeitos. O que mudousubstancialmente, há algumas décadas , foram as técnicas que podem ser uti lizada.para tal f ina lidade , cujo emprego se modif ica segundo os tipos de soc iedades, O.

regimes tota litá rios a elas recorrem, mantendo uma forte sacramentação do podlr ,um aparato cerimonia l, uma teatralização das grandes manifes tações colet lvlI l 01meios de comunicação permitem sobretudo provocar a imitação, suscitar e exalcara conformidade. Os regimes que permanecem, em graus variados, baseado. nopluralismo e na compet ição fazem um uso mais complexo e mais diversif icado d.nova tecnologia pol íti ca. Foi principalmente a seu respei to que Schwartzenbe l' lelaborou a sua teoria do Estado-espetáculo. Eles têm a obrigação comraditOril dimostrar a cena política, mantendo à distância os efeitos de perspectiva. a.dramatizações sem as quais o poder se auto-aboliria. A civilização dos meio. d.comunicação perrnite-lhes dar a ver mais do que a pensar, conduzir uma poUtiaada imagem que se toma necessariamente emprestado à arte do espettculo. O

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poder não émais associado a uma figura longínqua, moldada pelo mito inici al, oimaginário coletivo e a tradição, mas a uma elaboração que dá aos responsáveisuma presença e um renome, fazendo-os personagens capazes de provocar a maisampla adesão. A cena parlamentar não é mais um universo quase fechado, ela éproposta aos olhos dos telespectadores que setornam efetivamente espectadores à

distância do drama montado para eles - o mais freqüentem ente sob a forma deuma breve confrontação das "estrelas" políticas. As eleições, além do efeito de"suspense" que produzem, são ocasião de manifestações festivas , de campanhasorquest radas por managers, de dramatizações programadas. Os debates têm aaparência agnóstica dos desafios instituídos nas sociedades tradicionais; assondagens repetidas ampliam a competição e fazem da incerteza uma forçadramática; as previsões difundidas a partir da comunicação dos primeirosresultados levam o drama a seu ponto máximo de intensidade, 'em seguida a suaqueda. Sem a televisão, o rádio , a imprensa de grande circulação, esta teatral izaçãoda democracia perderia sua força e seu alcance nacional; ela seria sobretudoconduzida nas múltiplas cenas locais. No entanto, é preciso lembrar a constataçãojá repetida: as possibilidades de multiplicar as imagens políticas introduzem ohábito e o desapreço dos indivíduos-espectadores.

Para limitar esse debílitamento, o poder e seus adversários devem recorrer a

todos os recursos atuai s da dramaturgia polí ti ca, provocar a renovação (e tambéma inflação) das imagens. Nos períodos turbulentos, o acontecimento cria asocasiões e força a atenção pelo que contém de inesperado ou de inquietante. Nosperíodos mais calmos, os pseudo-acontecimentos fabricados servirão para sebuscar os mesmos result ados: operações (ou "golpes") que recorrem ao efeito desurpresa, confrontações de líderes, sondagens que exprimem a variação daspopularidades , personagens polí ticas que exageram o seu papel e que exibem suasemoções, conferências de imprensa que compor tam revelações reais ou aparentes,ete. Na sociedade dos meios de comunicação, a empresa política se alimenta doacontecimento, é o motor das dramatizações que a constituem e mantêm. Nassociedades anteriores era o contrário; o poder dramatizava a longa duração, amanutenção da tradição, a perenidade de seus próprios sucessos e os aconteci-mentos se achavam de qualquer modo ocul tados pelo art ifi cio dessa encenação.

A modernidade secaract eriza não apenas pela irrupção do acontecimento e doefêmero, mas também pela consideração do futuro, das tendências provocadorasde grandes mudanças; as simulações e os cenários do futuro introduzem umatensão dramática no exercício da vida política presente; aí, eles incorporamtécnicas t ranqüi lizadoras (por exemplo, traçando o horizonte para o ano 2000) e oaleatório. Sob este aspecto também as sociedades anteriores manifestam suadiferença; elas se apoiavam no passado, reiteravam certos acontecimentos,comemoravam e celebravam. Nos dois casos , o efei to pretendido é o mesmo: trata-se de apaziguar o presente e de tranqüilizar, quer acentuando-se a continui-dade, quer tornando-se o futuro menos temível dando-lhe uma forma definida eaceitável. O poder conserva a sua função de desativar as angústias e os medos.

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Ap61 haver marcado ai dlllemelhançal. cabe indicar o que ~e •• enclalmtnWmantido no uníverso polltl co e as contradições que disso result am, A cenolrafllpolltica, a produção de imagens e de efeitos, os processos que alleluram Ipassagem ao estado de detentor de poder continuam sendo necel.ldadet. Âocupação simbólica da função soberana deve ser conservada. ainda que liaparências técnicas sejam multiplicadas. Ela pode ser atribulda a uma figura quereina, mas não governa ou não conduz a polltica corrente; o que ~ a tualmente ocaso dos regimes de monarquia mantida e, num grau menor, das "repóbllclI

monárquicas". Uma di ssociação separa então. pode-se dizer, o poder supremo,guardião dos s imbolos, recurso extremo e/ou responsável por domlniol re.erv ••dos, pelo poder de gestão quotidiano. Es te es tá sujeito diretamente ao aI.alto ducrit icas e às reações da opinião; ope ra à maneira de uma tela protetora, Em .uuformas modernas, essa partilha é semelhante àquela que indica as delcrlç6'1antropológicas de ce rtas sociedades tradicionais. O soberano ou o chefe é. entla,um personagem definido pelo simbolismo poderoso de que ele é o sustenttcula •uma f igura essencia lmente posit iva; e le enfrenta sozinho os per igos do poder, e l••o fiador do bem coletivo, ele está situado fora dos conflitos que poderiamcomprometê-Io e enfraquecer sua imagem. Um digni tário, que éde alguma formaseu sósia acessível e vulnerável, intervém na gestão dos negócios e assegura ••regulamentação dos conflit os ; preserva a figura aparente do poder de tudo O que

poderia alterá-Io na condição de símbolo de ordem e de unidade.

Os poderes modernos não eliminaram os investimentos mít icos necessàrlola

seu funcionamento; e les mudam as formas e setornam sobretudo reivindicadorelnos períodos de crise em que a "magia" política sofre uma crise de e f icácia . Doinício do século XIX ao fim do século atual, os mi tos políticos proliferaram, .1

colocaram em campos opos tos e depois se apagaram uns aos outros . Eles nascemprincipalmente das revoluções , exaltam o cort e que levou os "antigos regime,.",abolem o simbolismo e as figuras imaginárias àqueles. Mostram os novos ator ••históricos _ a nação, as classes, o Estado moderno - e os transformam ementidades geradoras de rel igiões políticas . Eles fazem surgi r do novo univerlOindustrial e urbano as figuras da mudança, quer para exaltar o progresso e lia legorias que compõem o seu cortejo (Ciência , Tecnologia, Indústr ia , Com~rcio),

quer para anunciar o advento de uma outra sociedade provocado pela força elosocia lismo. Eles associam ao triunfal ismo dos burgueses conquistadores o tema ell"missão civilizadora", do exemplo dado para ter acesso ao caminho da hlltôrllprogressiva, de onde nascerão por reação e por rejeição as imagens da libert ac;lo,Uma imagística tão ativa que terminará por alcançar o próprio cerne dusociedades dominadoras contra as quais se dirigia, por operar em seu pr6prlOseio estimulando as diversas reivindicações de descolonização anterior, AIdes ilusões e as crises da modernidade fazem surgir ou ressurgir outras figura. domito: a raça, o povo, as massa s, o império, a missão his tóri ca. Elas dramat izam 10extremo, mobilizam, lançam na aventura de uma nova história a ser constru lda, Aexpansão econômica das últimas décadas provoca o retorno das imaKen. el.

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sucesso e de desempenho, de superação constante do impossível. A ciência, por

suas aplicações cumulativas e contínuas, a racionalidade das técnicas e das

organizações, as conquistas do futuro tornam-se as formas constitutivas desse

imaginário otimista. A chegada daquilo que foi rotulado de sociedade de consumo

fez da vida quotidiana a cena em que semultiplicam osefeitos dessa imagística, em

que se exerce a sua fascinação; tudo parece tornar-se acessível e consumível: as

coisas, osserviços, ossímbolos, o tempo (sob a aparência de lazer), o espaço (graças

aos novos meios de mobilidade) e até mesmo a vida (pelo recuo das fronteiras da

morte e,de uma certa maneira, a escamoteação desta última). O consumidor apaga

o cidadão; o que produz, segundo as interpretações que somente são contradi-tórias nas aparências, uma despolitização progressiva ou uma politização do

quotidiano, portanto, generalizada. Ascontestações dos anos sessenta, em seguida

às freadas de crescimento econômico no curso da última década, dissipam essa

imagem. O debilitamento das ilusões ainda não deu lugar a novas figuras

imaginárias; ele sobretudo despertou os temores e osmedos e reorientou a atençãopara os lugares do poder.

O investimento mítico permanece sendo uma necessidade política, mas as

transformações rápidas das situações nacionais e internacionais o tornam cada vez

mais difícil e incertos os seus resultados. A sucessão dos mitos capazes de

"sustentar" os governados, de provocar seu consentimento ou sua conivência, se

acelera. O tema da mudança se torna, ele próprio, um componente maior queserve ou contesta o poder, eIY!versões concorrentes ou opostas: as de uma

modernidade sem ruptura, de uma "desconstrução" revolucionária, de uma

criação contínua de um novo tipo de sociedade. Nenhum dos atores políticos

confrontados pode ignorar que a mudança gera imagens que desempenham um

papel decisivo nas estratégias de poder. Esta acentuação, que impõe aos

responsáveis encarregados e aos pretendentes, que apareçam na figura do melhor

condutor da mudança, não exclui a manutenção de imagens mais permanentes,

como as que afirmam a unidade (da nação, do povo), o agrupamento, a

rcpresentatividade, a detenção do mandato majoritário.

Exigências contraditórias - e portanto papéis e figurações sem grandes

ligações - seimpõem aos atores políticos do mundo presente. Nas sociedades em

que a técnica, a economia e a organização prevalecem ou estão em vias disso, eles

devem parecer capazes de comandá-Ias. Eles estão submetidos à racionalidade da

competência; é em nome desta que eles fixam o limite do possível e do razoável,

que eles determinam os objetivos, que eles escolhem e tomam as decisões.

Entretanto, eles só podem dar a impressão de poder recorrendo ao imaginário, ao

irracional, ao simbólico, às armadilhas das esperanças dos governados. É a lei dopoder, constante, mas, mais pesada nas circunstâncias atuais. Nos países mais

desenvolvidos, a sociedade se transforma em uma "grande sociedade anônima"

onde as relações se despersonalizam: o realce da autoridade só pode ser obtido

pela personalização dos que a detêm. Os tempos de crise ou de dificuldades pouco

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I

1 :

"solúveis como 11 cmf'rentadal pelol paliei em desenvolvimento, requerem

também (eem grau superior) urna personalização e uma dramatizaçlo do podll',

A gestão técnica não basta para produzir estas imagens, tanto quanto nl.o chllal

dar a ilusão de um domínio com pleto. Ela tenta programar o futuro, mas a direçlo

do presente lhe escapa em grande parte. Pela primeira vez no curso da hilt6rla,

tudo está em transformação, no interior e no exterior de cada nação. O movimento

assalta as estruturas e as organizações em toda parte. É sobretudo do exterior que

vem o inesperado, que pode tomar o aspecto incompreensível ou irracional. A I

nações desenvolvidas dominantes, que impuseram seus interesses, seus c6digo.,

sua racionalidade, até uma data recente, seespantam (no sentido etimo16gico) com

a erupção de acontecimentos indecifráveis segundo suas categorias. Elas delco·

bremo imprevisível (assim como a crise petrolífera duradoura) e o inexplictvel

(assim como a força de uma religião - o Islã - capaz de transtornar as scc íedadese de abater ou ameaçar os poderes constituídos). O aparecimento do incontroltvel

enfraquece a imagem do poder técnico, e o conduz a serevestir de aspectos mal.

geradores de confiança, a recorrer a meios que contradizem sua racionalidacle.

Estes meios são dados pelas mídia modernas que lhe impõem sua pr6prla

lógica. Nas sociedades tradicionais, sociedades vocais, as dramatizações sociai. e

políticas são, de algum modo, da natureza das coisas; elas são feitas de

funcionamento e manifestações quase cotidianas. A generalização do escrito, do

impresso, modifica profundamente esta situação; é o recurso a um meio que lipode chamar de "frio", parodiando as categorias de Mac Luhan. A demonstraçlo

substitui a argumentação e, a tomada global, imediata e emocional substitui O

abstrato, o analítico. A idéia prevalece sobre a imagem, a ideologia sobre o.

dispositivos simbólicos e as práticas que fazem ver. A revoluçao eletrônica criauma nova ruptura e provoca a volta parcial de antigos hábitos. O rádio estabelece a

onipresença da palavra, permite a dramatização sonora, torna possível a domina"

çã o de audiências numerosas e o estabelecimento de uma espécie de radiocracia. A

televisão provoca a invasão progressiva pela imagem que suplanta a palavra; a tela

torna-se o lugar onde tudo pode ser mostrado sob um aspecto dramático para que

seformule um julgamento, de acordo com o conselho de Maquiavel, a partir do

que é "visto". A persuasão política depende menos da argumentação do que

daquilo que é manifestado espetacularmente com o auxílio da arte da t el ev is ão , Apolítica se faz pela difusão cotidiana de imagens e "o meio é a mensagem". O

poder dispõe assim de uma verdadeira tecnologia das aparências, que lhe permitI

produzir ao mesmo tempo a impressão de uma certa transparência; de suscitar a

conivência passiva ou ativa de numerosos governados-espectadores com osentimento de uma liberdade de determinação - em face da imagem introduzlda

no universo privado - e de uma possibilidade de participação - graçu •.•

intervenções que lhes são propostas. Os espetáculos da tela impõem também um

novo tipo de ator político (o "telepolítico") nas sociedades de regime plurali.ta ••

uma nova apresentação da figura da autoridade suprema, no caso dos reglm ••

totalitários. Eles permitem uma dramatização permanente, adaptável às circun ••

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f'l' 'Ir88

Georges Balandier

tâncias e aos objetivos. Eles trazem para a dramaturgia política uma unidade delugar, sendo visíveis no mesmo momento em um sem-número de lares. O poder

deve se manter onde está a imagem, e, ele é tentado a apossar-se do seu con trole senão do monopól io.

Ás "rep resen tações" pelas quais os governan tes atuais procu ram a adesão ou a

submissão dos governados, replicam as que introduzem a desordem na ordemestabelecida, o movimento nas instituições conservadoras, a dissidência noconformismo . As mídia dão a capacidade de politizar toda ativ idade, e paralela-mente , a cOntes tação poderá uti liza r tudo que époss ível dramat izar nos espaços dasociedade que lhes são acessíveis. Os regimes totalitários tendem à eliminação

completa destas zonas aber tas; e les const rangem - como já mostrava Dostoievski-à ação subterrânea, à marginalização e à dissidência; tan to maio r a in tens idadedramática e o valor exemplar do que se torna visível. Os regimes pluralistas, demodo desigual, em função do grau de liberdade que instauram, ligam asdramatizações da opos ição instituída às do poder. As co'nfrontações organizadaspelas mídia, debates, sondagens, manifestações espetaculares dos partidos,reuniões, campanhas eleito rais, debates parlamentares, e os efeito s de surp resa eas palavras inesperadas revelam como esta ligação é estreita, impossível de

romper-s e, pois que resulta da própria natu reza do s istema político. A princípio,os adversários se en fren tam num mesmo terreno, recorrendo aos mesmos meios.

Seguem-se dramatizações particulares, às vezes in frações demons trativas , querefo rçam a ação normal da oposição - multip licação das cadeias de transmissãopor rv, implantação de emissoras - "rádios l ivres", publicações c ircunstanciais,iniciat ivas cultura is propícias a uma encenação pol ítica , e tc, A contrapolí tica devetambém fazer-se política da imagem e do imaginário, produzir efeitos e serprovocadora de emoções .

Sob este aspecto , o novo radicalismo italiano é a ilustração mais notável; s eualcance ultrapassa de muito a importância estatística definida por seus efetivos epelo número de seus represen tantes eleito s. Deste grupo , diz-se que em poucosanos se tornou o "empecilho das viravoltas " do mundo po lítico, embora se mostre

defensor dos direitos CÍvicose do estado de direito. Ele também seapresenta de outrosmodos, e em múltiplos lugares de reivindicações, entre os que, os partidos bemestabelecidos classificam como secundários e onde se encontram em causa asexualidade, a eco logia, e a engenharia nuclear, a in stituição militar, e a práticaparlamentar bilíngüe. Ele inventa uma dramaturgia po!f tica est ranha à tradiçãoitaliana, ele faz da imaginação e da surpresa os principais instrumentos de suaação. Os procedimentos do movimento radica l foram denunciados por es ta razão;eles recorrem ao exagero a fim de chamar a atenção; eles levam à prática doespetácu lo de provocação; eles criam acontecimentos que, considerados pelasmfdia, têm uma ressonância e uma publicidade às quais um pequeno partidoraramente, ousa pretender. Rompendo as boas maneiras, não se submetendo àsconvenções , o radical ismo i tal iano recorre à t ransgressão do quadro da legal idade

,-~~:. "

• recul. O enclauluramento Id.o16 lico • partldtrlo. Seu l CrltiCOI conl lderam ~\l le le n ão m an tém m a l. do q ue u m I:!u nta me nto d e b uf O es . O q u a li fi ca t iv o 1 6 IlrIaaceítável secompreendido na acepção técnicajá precisada. Aplica-se, POIIIIOI qU I

ltom pOl ' função reve lar espetacula rmente o que esconde a fachada das loc ledl4l' ,mostrar a desordem mascarada pela ordem, fazer surgir dramaticamente Omovimento que escapa à dornesticação pelas est ruturas, inst i tuições e cOltuml.,

Neste sentido, o radicalismo italiano proporia menos uma alternativa do qUIprovocaria a volta do Perturbador, agen te da liberdade, na cena polítlca contem.porãnea,

A dramatização generalizada, ultrapassando, portan to, os limites do campopo lltico estritamente definido, é uma característica das sociedades eletr6n lcUIonde quer que nasça, as mídia podem garantir sua difusão, e, seja qu a l for IUIorigem, ela pode receber uma sign ificação política. Das formas da vida co tld lan laos produtos e eventos culturais, tudo pode contribuir, fornecendo um pretextoou um suporte. Certas in iciativas de ritmo desconcertan te marcam claramente Ivontade de util izar todas estas possibi lidades. O tea tro moderno, que ampl lol.l lUIaudiência com o auxílio das mídia, recorre entre outros processos ao. di

provocação e da zombar ia; ele faz prevalecer a imagem, a sensação, a inten.idad.dramática sobre a idéia e a demonstração. De acordo com Adamov, a autoridade"de cima" está ligada ao jogo de forças obscuras e imprecisas, à animaçlo d.personagens singulares, de seres-limites. O teatro de zombaria choca, joga com Irevolta, opõe a liberação pelo on irismo à acomodação imposta pelo "real". ComArraba l, o tea tro-pânico restabeleceu o re inado do barroco; e le uti liza a profulloe a confusão, o excesso e a falta de medida, o grotesco; libera as forças cauvu,destrói os interditos e as inibições, procura o choque selvagem. A violenélasimbólica torna-se de novo o meio de exprimir a repulsa. Nestas novas verl&"do drama, afirma-se a vontade de uma volta às formas primitivas do teatro; Iimprov is ação (o "happening") e o irracional aliam-se ao cerimonial, ao rituall Oefêrnero e o dionisíaco encontram-se exa ltados. Assim reaparece , pelo art iftclo·dt.cena e pela arte do comediante, a função de que se encarregava o Buflo rhu l I

nas sociedades tradicionais. É sempre o jogo da desordem oposto a todos os f aCOrl.de ordem e conformidade. Derivado da prática do teatro (e, no tadamente d a dtBrech t), a "arte socio lógica" conceb ida por F. Forest , H. Fischer eJ. P. Th6venoctenta inserir a dramatização critica nos quadros da vida cotidiana. Deaejammergulhar de novo a arte na realidade social, "até o pescoço", tirá-Ia da situaç&oque a fez imagem de uma "boa consciência da sociedade política". Seu .procedimentos são a criação artificial de acontecimentos, a provocação, 00inesperado cuja erupção se dá nos lugares mais diferentes e freqüen ternente mal.comuns. Trata-se de desbanalizar, de romper a passividade em face de reaç&l.determinadas pela sociedade, de fazer su rgir as pergun tas desconcertantes, Ocampo fechado da arte éu ltrapassado e freqüenternente perdido de vis ta . to papeldo "Trickster" que reaparece através dessas experiências, desses drama. p rovo-cados. A teatralização do co tid iano destroça a magia dos poderes, anu la o ef.lto

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Georges Balandler

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"

das aparências, perturba as conivências geradoras de conformidade. O fim:

transformar a sociedade passiva em uma sociedade questionada.

I

i

NÇ>entanto, todas essas dramatizações permanecem produtos da arte ou de

artifícios. Há outras que nascem mais espontaneamente. Uma campanha eleitoral

pode tornar-se Oportuna para introduzir a zombaria na vida política ou para

formular perguntas consideradas incongruentes. A reivindicação ecológica

também soube utilizar essa possibilidade, entre outras, tanto por ocasião da última

eleição presidencial na França, como durante as primeiras eleições européias. Asformas de ação, que se querem diferentes das consagradas pelos usos políticos,

são, de um certo modo, ritualizadas e o laço com a natureza é sacralizado. Quando

R. Dumont foi candidato à Presidência, ele fez menos a solicitação de um cargo do

que aproveitou a ocasião para uma demonstração por atos simbólicos; ele não

conduziu uma candidatura, ele exerceu um sacerdócio. A terra, a água, o fruto

tornam-se asespécies sob as quais serealiza então a relação de comunhão. O que é

posto em movimento, dramatizado, mostrado, é uma nova mitologia natural

oposta às construções produzidas pela Razão dos técnicos e organizadores. Esta

contestação "mitecnologisa", a fim de fazer renascer o sentido da empresa

coletiva por um novo casamento do homem e da natureza. Estas imagens não

teriam tido força sem a difusão pelas mídia, tanto quanto por uma espécie de

paradoxo elas adquirem uma existência parcial por meio do que elas rejeitam.

o acontecimento, as circunstâncias e as conjunturas permitem e provocam as

reivindicações, as contestações radicalizadas expressas de maneira espetacular e

dramática. As incertezas e as inquietações do mundo rural se dizem e se

manifestam pelas demonstrações camponesas - colunas de homens e de máqui-

nas, aJuntamentos para fins desorganizadores -, que relembram o protesto global,

atravessando os séculos desde asprimeiras insurreições dos miseráveis. No Larzac,

o solo despojado, rude e belo em sua pobreza, foi a cena onde se afrontaram em

um drama de feitura antiga os homens e suas ovelhas, guardas de uma terra e de

um modo de vida, e,homens de armas simbolizando uma civilização geradora de

destroços; os jovens do povo, que tinham vindo auxiliar, compunham o coro,

aprendendo a lição com um acompanhamento de música pop. O tempo gastou o

efeito dramático, mas o último ato não foi desempenhado. Sem a "retransmissão"

que as midia asseguraram, a eficiência simbólica desta resistência teria sido

rapidamente enfraquecida. Não somente o camponês, mas também o operário

reencontra o uso de processos que a ação sindical organizada tinha tornado

acessórios. Os "paroquianos de Palente" - os trabalhadores da empresa Lip _

mantiveram a atividade e demonstraram a possibilidade de modificar a ge-

rência; na invenção, na dramatização, eles se tornam símbolos, embora seu

sucesso seja parcial e frágil. A grave crise da siderurgia francesa provocou o recurso

a meios excepcionais de exprimir a recusa, entre os quais aqueles que implicam

em dramatização e simbolização. Assim, quando os operários de Longwy

-~--'--- .~--.". ..".--------

ocuparam o primeiro andu diT om 11 ft'I I,ele. pu.eram .ullçlo 1vl'rI . m .h.lllr elperacullr e Ilrn!flcltlvo de IOU r r aba lhe , PC)!.que 01 materIal. daqUI'. '

edlftclo ~feito foram em parte ua!naclOAem SUa8 adarias. Assim tamb~m, a hWl, 'marcha de Lyon a Paris dos assalarlados da Alsrhorn Atlantique para trll.r um lprtiç!o a sua direção foi uma prova C " um percurso demonstratlvo'l 1 \ 1 1 1

reivindicações safam do âmbito fechado das negociações, para se tornarem

públicas e não mais reduzidas ao estado de mera informação.

/ O evento encerra urna carga dramática extrema quando alia a de.ordem do.homens à desordem da natureza. O acidente sério ocorrido nos Estado. Unido ••

na Pensilvânia, nos dispositivos de uma central nuclear, o demonstrou. Durant.

vários dias, perdeu-se o controle técnico e o desastre tinha aspecto de deltlno ratal,

O poder se encontrava mais ameaçado por esta erupção de forças originada. da

matéria do que por subversões originadas pela confrontação das forçu .oelal ••

políticas. Ele se encontrava de novo, e repentinamente na situação dOI podlr ••

tradicionais responsáveis tanto pelo que atinge a ordem das coisas como pelo qu eafeta a ordem da sociedade. Nossa época, portadora de ameaças, é , alérn dtl'lo.

propícia à politização das catástrofes. A civilização das imagens li torna

imediatamente e em toda parte presentes; elas se tornam a demonstração de um.

desordem levada ao paroxismo; elas podem atuar contra os governo Ique nl O

provarem sua capacidade de dominá-Ias. Elas tomam o caráter de signos e IlIlm ••

transformam em aposta no afrontamento dos poderes.

A cena urbana está cada vez mais aberta às manifestações pollticl'. Nusociedades totalitárias, ela é vigorosamente controlada; ela ~ reservada licomemorações e aos festejos pelos quais o regime regula o seu próprio culto. Nusociedades pluralistas, é antes a situação inversa que se estabelece. AI, 01poder ••

têm um acesso privilegiado àsmídia, às telas sobre asquais seprojetam asImlJln.

políticas. A cidade e a rua permanecem nas cenas em que o protesto desdobra'UII

dramatizações; quando estas têm suficiente arnplidão, forçam a entrada du mldia.

Toda capital de longa história tem lugares, monumentos, obras e traços que.1O 10

mesmo tempo "memórias" e suportes de poderosos simbolismos. A sucelllO'.'

regimes, como a das revoluções e dos movimentos sociais osfizeram. No pr•••••

eles balizam os itinerários pelos quais o poder conduz suas comemorações a o , , "a contestação" expõe", em marcha, as rejeições e as reivindicações. Em Pari. ,O

Arco do Triunfo e os Campos Elíseos, de um lado, a Bastilha, a RepObllca '. I

Nação de outro, revelam de modo particular esta apropriação antagonl.ta, do.

espaços simbólicos da cidade.

O motim urbano era uma explosão. Nas sociedades de liberdade Imanlt, ••tação de rua era um meio instituído ou quase, codificado e rituall:ndo de mo••

espetacularmente a oposição a certas decisões dos governantes, ou de rlvlll' p'.lIrecurso a uma dramatização a não aceitação de uma sltuaçlo econ{)mlc:a"oolà1,' Oobjetivo é definido por temas simples, dizeres levado. em bandelrola ••rolh••• ",

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1 2 Georgt's Balandier

evocações por f igurações e insígnias. O percurso escolhido não é neutro, ele compor-ta necessariamente etapas significativas ejoga com a simbólica dos lugares. O cortejoé uma sociedade de protes to, em movimento, mos trado na cena da rua. Ele lembraos desfiles urbanos de outrora, em cuja ocasião a sociedade se mostrava. Ele éregulado segundo convenções precisas; à frente se encontram, debaixo dabandeirola principal, as figuras sindicais e políticas de mais nomeada, depois,segundo as circunstâncias, os eleitos, com as insígnias dos seus cargos e as"celebridades"; vem em seguida as delegações representativas das profissões e das

regiões e ,às vezes, grupos de animação e os membros de movimentos minor itár iosou marginais. O cortejo manifesta os poderes da contestação, mas não deixa deobedecer a uma ordem estrita; tudo é regido pelos organizadores a fim de que oimprevisto não possa alterar o sentido da demonstração, nem provocar suadegene ração em motim. Mant ida a sua ordem e o seu número, cujas divergênciasde avaliação marcam a importãncia, tem-se uma medida do sucesso. Esta peçapol itica desenrolada na rua, cujos re sponsáveis dizem que de início ela os colocana" situação do ator" que espera o levantar da cortina, é montada para ser vista nolugar, transmitida pelas mídia e comentada. Ela informa e ens ina; ela tem a formade um drama político exprimindo de modo diferente do fato o discurso políticoprofissional, as crí ticas e as reivindicações; e la tem uma função l iberadora, emboraficando nos limites da ordem. A subversão não é sua finalidade normal; elainforma o poder, mas não o ameaça imediatamente; ela põe em cena umaconte stação controlada, impedida de volt ar ao est ado selvagem.

Em circunstâncias ordinárias, a manifestação é uma das peças da máquinapolí tica, Quando es te funcionamento rotinei ro é ent ravado, durante os períodosde crise e de tensão crescente, a dramatização pública se torna menos mimética eseu resultado é mais incerto. A fronteira que dá para a rebelião pode serfranqueada a qualquer momento, ao azar de um incidente, de um desarranjo dojogo antagonista das forças de contra-ordem, de um lado, e da ordem do outro. Aviolência simbólica e a violência real coexi stem. A França de 1979, na Lorena e noNorte, que foram mais duramente a ssolados pela inatividade, conheceu es ta frágilligação do drama vivido - gerador de reações que não dependem mais do jogopolltico - e da dramatização que exprime a rejeição. Os desfiles mobi lizam toda

uma população, inclusive as crianças. Em cer ta época as cidades se transformamem cidades mortas, toda vida dobrada por detrás das fachadas cerradas. Ouniverso revol tado se iso la simbolicamente, rompe as comunicações, b loqueandoa circulação por estrada de ferro e por via rodoviária, fechando os postos dasf ronteiras. Ele cria, em par te na i legalidade, seus próprios meios de informação; elefalseia as mídia estabelecidas, difundindo sua versão dos acontecimentos, e asreinvindicações que jus tific am a ação empreendida. A crise local é mos trada sob oaspecto de um drama com personagens e decorações reais; ela é oferecida à visãodo resto do país; ela se torna provocadora de emoções e de solidariedade. Adinâmica das forças postas em movimento não é inteiramente controlável; emcertos momentos, os parceiros afrontados não têm mais o seu domínio, e a

Implol lo le produl , De repent l, por allunl mornentos, a demonat raçlo revtltl O

alpecto ele um motim urbano, e 1 1 manult 'nçl lo da ordem, ( )de uma reprell lo , Ol imiar t '1té. tran lpOIW, wIl8trangendo a tomar o r isco de ir mais longe ou encontr t.r

()caminho das cOllciliações e da dt'sdrarnaliz,ação.

A rua das cidades atuais volta a ser um cenário onde se produzem(\C"rnolls trações , não mais submet idas às regras e convenções das innitulç&l .polít icas e s indicais . Elas exprimem uma recusa ma is global e por iS80mesme mal.

imprecisa . Parecem a expressão da marginalidade, da transgressão provocadoraou de pura violência. Suas formas são múltiplas e seus efeitos desigualmentesubvers ivos. A animação dos espaços públicos admite uma c ri tica espontlnea efigurada, que zomba e ridiculariza, como no tempo em que os saltimbanco.ocupavam os tablados de cer tos locais par isienses. Às vezes. e la torna a encontrar O

t'sp[rito dos "jogos" dramáticos da Idade Média, sacraliza e ritualiza. não mal.para alimentar o fervor, mas para contestar pela alegoria e pela cerimônia asociedade do poder e sua civilização. O mesmo que fez o "Open Theatre" nas rUIIde Nova lorque, nos mesmos locais onde as seitas expõem as provas de luadis sidência e da outra vida que pretendem ins taurar. A praça públ ica é tambêrn O

espaço das provocações, dos "dramas" construídos sobre a ruptura dos código.,das normas, das conveniências, e sobre a agressão, simbólica ou efetiva . t aexploração espetacular de uma subversão radical onde tudo serve paraexpriml.la:

o corpo, os enfeites, as vestes, as condutas e os símbolos incongruentes ouchocantes. Os Provos de Amsterdam e os Punks de Londres fizeram, de certolbairros, o teatro desta demonstração que põe tudo de cabeça para baixo e tenta,com a provocação dramática desacredi tar ou arruinar a cultura es tabelecida.

O ponto extremo da dramatização da rejeição é atingido com a vioi~nclaurbana, que não se insere mais em uma ordem, pois dela é a negação absoluta. Elapretende arruiná-Ia, atacando seus tribunais materiais, suas instituições, lua.personal idades representativas , seus di sposit ivos simbólicos ; e la opera de mo c io

difuso, inesperado, espetacular, a fim de manter o efeito da insegurança; eladestroça, produz a erupção da desordem, para engendrar a insurreição decisiva o uo milagre dos novos começos. A sociedade rejeitada é posta na "berlinda". O.agentes desta destruição apresentam-se sob formas bem diferentes, criando

comunidades de rebeldes, ou pequenos grupos de ação revolucionária espont1nca,ou organizações clandestinas de efetivos reduzidos mas muito bem estruturaóa ••A atualidade, pelas mídia que a reportam, associa certas imagens a cada umadessas ve rsões. O bando - dos quais o mais conhecido foi o Baader na Alemanha-desenvolve um te rrorismo que al ia a violência criminosa à viol ência poHtica. El tlindeterminação explica como grandes vedetes do crime, como Mesrinc na Françíl ,possam apresentar uma teoria de suas agressões que Ihes dá uma figura d,revoltado social. Os grupos Autônomos ilustram a segunda das três formas, E1alnão têm nem laços com os par tidos revolucionários. nem fidelidade ideológica. O

imprevisto é sua regra de ação, eles operam à margem de manifestaçt)l.

1 4 G eo rR e s B a Ja n d ie r

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organizadas, eles surgem em um bairro muito freqüentado e ai praticam

destruições à maneira de um comando. A critica radical da sociedade é produzida

espetacularmente, por urna violência que destroça suas "vitrines", suas merca-

dorias, seus signos e seus símbolos. Com o terrorismo das Brigadas Vermelhas

italianas, o ataque visa sobretudo as pessoas, o bloqueio dos mecanismos

econômicos, sociais e políticos, a generalização da desordem e da insegurança. A

referência ideológica é a da integração revolucionária; a organização muito

avançada é a de uma resistência de forma militar. Tudo contribui para a

dramatização, inclusive os processos dos Brigadistas aprisionados. A ação fere de

maneira trágica, sacrificial, atingindo figuras representativas da sociedade sub-vertida: policiais, magistrados, responsáveis pela indústria e pelos negócios,

personalidades políticas. O drama está na rua, à mostra, por vezes alimentado pela

incerteza criada com o seqüestro de reféns. A execução de Aldo Moro levou a

dramatização à violência insustentável e ao sacrifício final da vítima, ao grau

extremo de intensidade. Ela atingiu o pais em seu todo, transtornou seus frágeis

equilíbrios políticos, e teve uma ressonância internacional. Ela ocasionou uma

reprovação geral, a rejeição total da violência como meio político; a recusa de

sacramentar pelo sangue Umeventual curso novo para a história. Ojogo da morte,

pelo qual uma forma de sociedade seria afinal condenada ao desaparecimento,

não libera senão uma desordem selvagem e seu custo é muito mais odioso.

As sociedades da modernidade avançada, de regime pluralista, também

parecem ter perdido o uso de um certo número de mecanismos capazes de realizar

a domesticação da desordem - no sentido técnico do termo, e não no policial. Elas

são, no curso de um desenvolvimento rápido e desordenado, geradoras de danos,

embaraços, disfunções e desajustamentos. Nelas, parece em via de se realizar uma

dupla polarização: num dos extremos, a submissão à ordem das coisas, animada

tão-somente pela competição pelos bens e pelos signos; no outro extremo, a re-

cusa radical, podendo levar à exaltação e à prática da violência "pura". Entre estes

pólos, a reforma e a revolução procuram respectivamente sua definição Contem-

porânea, atual, não inspirada pela repetição de um passado abolido, e o que recusa

globalmente se exprime em registros bem diferentes. O de uma nostalgia de

outrora, dos gestos e comunidades perdidas; o de uma nova aliança a estabelecer

com a natureza; o das religiosidades reavivadas ou tergiversantes; o do cotidiano a

mudar; e enfim o do novo niilismo tentando sacar o inédito dos destroços dasconvenções sociais, dos códigos, das formas, das linguagens e esperanças

carregadas pelas tradições religiosas ou revolucionárias. Para alguns dos que

preferem as primeiras dessas opções, a solução é o retraimento; seria necessário

fugir às fascinações que brotam das telas da atualidade, renunciar a ocupar os

grandes cenários da vida coletiva moderna, não mais jogar ojogo. Ao contrário, o

que Consente revela sobretudo a força crescente dos condicionamentos sociais: a

sedução do consumo, a permuta do consentimento pela segurança, a progressão

ele uma passividade, tendo em vista que a dominação das mídia e a evolução dast é cn ica s e das organizações transformam os indivíduos em receptores e emlransmissores.

N

Neu& .Ituaçlo, Opoder AUI.ndo .!frande figura cn ípre s en te , a rlr.rlnela

geral. Ele parece lovernar tudo de acordo com a sua racionalidade, expullaro

inesperado, perder a capacidade de tomar qualquer distância em facI d. II

mesmo. Sua ordem não seria mais aberta, nem às agressões do imaglnArlo, n.m

mesmo às manifestações liberadoras que o contestam sem efetivamente am.aç"

Ia. É neste sentido que a preocupação da festa, afirmada durante os último. ano I,

tem valor revelador. H. Cox evocou com nostalgia a Festa dos Doidos da Idade

Média européia, isto é, a capacidade que tem uma sociedade de rir de simelmlt d.

imaginar, ao menos uma vez, de tempo em tempo "uma espéc ie de mundointeiramente diferente", de tolerar a crítica da "fantasia" e de com ela serevivlf1car,

A festa, que é o meio de transgressão essencial, aceitada ou suportada, in.ere· ••

daqui em diante sob todas as suas formas no curso da vida polí t ica, Ela ••~

associada, nos bastidores, às grandes dramatizações totalitárias. Ela faz parte da

maquinaria a que recorrem ospartidos afrontados nas sociedades pluralisw. Cada

ano, na mesma época, ou durante ascampanhas eleitorais, ela promove reunIO•••

se permite transmitir a mensagem política. Ela une nos divertimentos, na

participação do espetáculo animado por vedetes, em uma alegre Iiberaçlo que

aumenta a receptividade e pode incitar à adesão.

Porém, existe a tradição. A festa abre espaços livres no interior da sociedade;

ela pode armar suas cenas provisórias em face da cena permanente do poder; ela

faz aparecerem figuras efêmeras da liberdade e da irreverência. Pelo menos, e e.tlsua função principal. Todas as interrogações são dirigidas ao que ainda pode

existir desta efervescência e deste crescimento simbólico. À primeira vista poderiaparecer que a imagem da festa - a que é produzida pelos textos e filmes - tenha

mais importância que a própria realidade. Ela serve de revelado r corrosivo, como

na obra de L.Bufiuel (Viridiana, O Anjo Exterminador), ou de recurso, mostrando.

necessidade e a possibilidade de mudar a vida cotidiana, como faz F. Felllnl,

notadamente em "Oito e Meio". Ela ilustra, dando-lhe uma forte carga emocional,

a crítica da lei e da racionalidade do trabalho e da produção que prevalecem em

tudo e se universalizam.

A realidade parece menos vigorosa do que a imagem: segundo a apreciaçlo

comum, a festa é mal colocada nas sociedades de consumo e de lazer, AI

manifestações comemorativas e festivas ai se estioIam, a participação diminui na

proporção do tamanho das cidades em que se efetuam. Nestas últimas, o tempo

livre é, cada vez mais, gasto fora das cidades; a mudança é procurada alhures, .em

que tenha portanto uma função liberadora, pois depende da modelagem do.

mercadores de ilusões. A civilização dos meios de comunicação de massa e dOI

espetáculos produz de maneira banal, cotidiana, sucedâneos parciais da festa; ela

entrega o divertimento a domicílio pelo rádio, a televisão e asmáquinas de estoclr

sons e imagens; ela alimenta a impressão de uma participação no fausto dOI

poderosos e na vida de "festivalidade" das vedetes do momento, dando a e.tll

eventos mundanos uma ampla publicidade; ela dá acesso mais fácil aos clnemal •

~76Georges Balandier

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7/12/2019 BALANDIER Georges. O Poder Em Cena

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aos teatros. O progresso deste consumo torna menos notado o contraste entre a

economia cotidiana e a prodigalidade, o desperdício festivos. Esta constatação reve-

la a festa sob um aspecto brilhante, misturada ao cotidiano e não mais separado a fim

de marcar o corte que ela produz no curso banal das vidas. Ela se privatiza,

despojando-se dos códigos, das ritualizações bem como das emoções coletivas e

das improvisações espetaculares que a caracterizavam. Ela se cria do nada, com

pouca coisa; ela é a ocasião de se sentir existir de outro modo, mas de modo

privado e na dificuldade de desbanalizar assim a existência. O movimento que

produz sua explosão é semelhante ao que faz com que a política, agora, também

pareça" explodida", segundo a fórmula de L.Sfez. Esta correlação, que não resultado azar, mostra a ligação ainda não rompida entre o poder (guardião de uma

ordem) e a festa (geradora de uma ordem invertida, mas precária).

Para uns, a festa se torna uma obsessão, para outros é o começo do seu

renascimento. Aqueles a consideram segundo as cidades, estes segundo as regiões

onde as tradições conservaram as culturas. Seos ritos festivos não estão perdidos,

eles mudaram de sentido e de força. Eles não estão mais solidários com o conjunto

das atividades coletivas, a movimentação dos grupos, das classes e das sociedades,

por uma energia diferente da que lhes assegura o funcionamento cotidiano. Eles

constituem um espetáculo, freqüentemente produzido sobre essas cenas das

aldeias acessíveis das grandes cidades e dos locais turísticos. Eles voltam ao estágio

de divertimento alimentado artificialmente pela antiga cultura camponesa,

mesmo nas regiões onde esta baseia a manifestação em uma diferença, a

reivindicação de uma identidade. As Fest-Noz - festas bretãs noturnas _

consistem em se alegrar e dançar ao som das "árias da Bretanha"; entretanto, os

censores locais mais exigentes denunciam a "pilhagem" já feita sobre esta

tradição remendada. No Languedoc, o Carnaval, nome sob o qual seconhecem to-

das as grandes demonstrações festivas, retoma vida sob formas múltiplas. Édesenfreado, paródico, explosivo. Seu ressurgimento acompanha uma afirmação

de particularidade cultural. É sua expressão imagificada, dramatizada, ao mesmo

tempo que o é da insubmissão simbólica de certas categorias sociais, notadamente

dos viticultores. Ele inspira o teatro militante regional pelas suas imagens e, episo-

dicamenre, sua chama ilumina as manifestações de revolta. O grande desen-

freamento reencontra a política.

A festa vegeta, a festa repele; é uma questão de apreciação e de circunstâncias.

Mas num ponto todos estão de acordo: não é mais como antigamente. A ruptura

festiva com suas pompas, com suas transgressões e seusjogos de inversão social,

regride; ela não mais provoca aquela liturgia da desordem onde as violências se

liberam e depois sedomesticam na dramatização coletiva; ela não abre mais a crise

mimética - máscara das crises reais - ao termo da qual a ordenação social seacha

reforçada. A festa presta seus serviços; nas sociedades de mercadoria, ela está à

venda Iféerie, cedida de chaves na mão, como o Carnaval de Nice) ou ela

promove a venda; em toda parte, ela tem emprego na teatralização política,

.--" .. _---_~~ . . . • . . • • . . . . . . . . . - - - - . . . . . . . . • . ._---------

"adm ln lmnc l a por t6cnlcoI mi l . do qu e r e l id a pe los I Ib er ad or e l d o lmlllnul"En t r e t an to , aqui ou leu'., I (altA tt'ntA Ilhu, ti ra nd o de seu pauado 01meio. pll'le x p r e s s ã o : ela M e torna portadora de urna palavra mais livre, de v.rdu ••desmascaradas, de reivindicações figuradas mas n ã o am b íg u a s, Ela tenta t & m b t mser o corretivo espetacular do que mostram os poderes e os poderosos de tod • •• ,ordens; ela produz um contra-imaginário, oposto ao que é transmitido pela. mldt.

i n s r i r u íd a s,

A festa alimenta a nostalgia atual como a natureza preservada, a aldeia e ••

solidariedades comunitárias, as habilidades e os oficias antigos. Empreltam·lh.

muitas virtudes. A ilusão é quebrada por trabalhos recentes dos historiadores, !1••mostram que a liberação festiva foi sempre mantida sob vigilância e que a pr6prl l

revolução - segundo a afirmação de Ozouf - não gosta da desordem encerrada n l

festa. Eles também lembram que o enfraquecimento festivo não secoaduna co m Imodernidade contemporânea; antes do fim do Velho Regime, já a maioria di'festas tradicionais se degradam em "mecanismos" que giram no vazio. Dent ro d.seus limites e em suas crises, o espetáculo festivo revela como toda sociedade tentl

responder às solicitações contrárias de uma ordem que a ameaça de imobllllmo

(e portanto de morte) e de um movimento que, nascido dela, transborda.

arrebate-a na sua transformação. A festa das celebrações políticas e religiosa. e a

das transgressões e violências paródicas ou simbólicas são as duas figuras qu e

definiram este jogo de forças antagônicas, ritualizando-o.

No decurso de sua longa história, a manifestação festiva abriu periodicamente

o espaço fechado das comunidades e das cidades, e o desbanalizou, ne l e

introduzindo as criações do imaginário. Na sociedade das mídia, nada mais parece

fazer obstáculo à irrupção contínua das imagens do exterior. Elas dito uma vlua

sobre o universo, sobre o mundo em suas diversidades, sobre as sociedades c : I'civilizações, sobre o próximo e o longínquo, sobre osacontecimentos. A salda para

fora do cotidiano não se efetua mais necessariamente quando as manifestac;Oea

coletivas abrem asportas do maravilhoso. Não émais necessário passar por t rA i d o

espelho que só devolve a imagem da vida ordinária, mas, instalar-se diante dll

telas onde a técnica moderna tudo inscreve. O mundo sereduz cada vez mall ao

seu próprio espetáculo que a telemática começa a transmitir. É a entregaI

domicílio, em via de generalização. O poder dispõe assim de meios permanen·

tes, e de uma força jamais atingida anteriormente, de elaborar sua pr6prla

representação e sua apresentação dos negócios tratados e das "situações". Nointerior, a política, no exterior, a diplomacia, recorrem a dramatizaçõea e 110

geradoras de efeitos extensos pois que alimentam imediatamente as míd i a com

imagens eficazes. A capacidade de produzir e difundir essas imagens dá a medida

do poder.

O homem deste fim de século está preso no casulo invisível formado por todl .

as redes que lhe transmitem, à distância, imagens e ruídos do mundo. Emboraa •

~ ;. . . . • . .".

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18 Georges Ba l and i e r

aparências sejam contrárias, ele está encerrado; ele acredita ver muito e cada vez

mais. Ele apreende, sobretudo os seres, as coisas e acontecimentos por um

conjunto complexo de mediações; ele tem menos acesso à realidade do que a uma

telerrealidade, a um universo construído pelas mídia, onde se chocam e se

embaraçam as imagens concorrentes. Entretanto, este encerramento sofre ar-

ranhões. A passividade deslumbrada não exclui momentos de desenganos e de

dúvida. A vida cotidiana concreta, direta, rude, pesa sobre a tela das aparências e

de vez em quando a rompe. A separação pelo retraimento - a dos dissidentes da

modernidade atual - corta o contato; ela tenta uma volta ao mundo estreito dasrelações imediatas e ao das coisas materiais e primitivas. A contestação aceita ou

tolerada produz fora, nas ruas e nos espaços simbolicamente marcados, suas

contradramatizações; ela manifesta sua realidade e a opõe assim às imagens que as

mascaram. A subversão radical, não podendo.irnplodir as máquinas e os sistemas

que modelam e difundem as "falsas" representações do mundo e da sociedade,

provoca explosões de violência e impõe sua verdade por tragédias repetidas.

Prossegue a luta da ordem e da desordem de que falavam asmitologias eos ritos do

passado; elas mudam de natureza universalizando-se e dispondo de tecnologias

modernas de dramatização; ela comporta "prêmios" cujo valor não cessa de

crescer. É preciso encontrar novas terapias capazes de tirar os homens do efeito das

fascinações e reensinar a eles a governar as imagens e a não suportar que elas

sirvam à captura de sua liberdade.

E S C O P O 1 1 ] E D ITO R A