barba - carta ao ator d

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Disponvel em:http://www.caleidoscopio.art.br/cultural/artescenicas/teacontemp/eugeniobarba08.html

Acesso em 10 set 2009

Eugenio Barba e o Teatro Antropolgico

TEATRO E SENTIDO - TEXTOS DE BARBA

Abaixo seguem trs textos de Barba, que podero nos fazer re-encontrar o sentido profundo do teatro como um ofcio apaixonante de conhecer a ns mesmos, o outro e o mundo e sem o qual o teatro ser apenas um entretenimento fugaz e descartvel:

A PRIMEIRA AO

"Katsuko Azuma uma de minhas colaboradoras no ISTA, Escola Internacional de Antropologia Teatral. mestra de Buyo, uma dana clssica japonesa. Uma vez por semana, em Tquio, vai casa de sua mestra - de quem herdou o nome artstico - para danar e ouvir seus conselhos. Ao chegar, a primeira coisa que faz lavar o cho, apesar de ele j estar perfeitamente limpo.

Eu olho Katsuko, uma mestra de 45 anos, internacionalmente reconhecida , que j tem sua prpria escola e alunos. Vejo-a executar a primeira ao que efetuou no primeiro dia de sua aprendizagem. o eterno retorno, a confrontao com a origem do longo caminho que a levou to longe, at chegar a ser uma mestra que no esqueceu a primeira ao, e a repete sempre, sem falsa modstia, nem vaidade ferida, como expresso de uma lealdade para com determinados valores. Ser mestre permanecer congruente e leal aos valores, dos quais s se depositrio se quer conservar em vida e transmitir. Olho Katsuko e penso: o ator deve afirmar com o hemisfrio direito do crebro que ele o todo, e sentir com o hemisfrio esquerdo que no nada, e fazer vibrar esta tenso em cada ao - fsica ou vocal - sobre a cena.

No tem mesmo que esquecer a origem: nem mesmo de criana. Talvez se compreender melhor o que quero dizer quando falar do motor pessoal, da temperatura interior. Meyerhold afirmava que s contratava um ator quando reconhecia no adulto o adolescente que tinha sido. Perder a adolescncia significa perder os sonhos e a rebeldia. Os adultos j no tm sonhos e rebeldias. Por isso colaboram, sabendo ou no, com os generais de culos escuros, com os primeiros-secretrios.

O que importa o motor. s vezes, tem-se boa vontade, mas se carece de fora motriz. Esse motor sempre est em nosso interior, nunca em nosso exterior. No uma idia ou uma pessoa. Se temos sorte, podemos encontrar algum com maior experincia, que nos anime a descobrir e que faa andar nosso motor pessoal. Muitas vezes encontro-me com atores de culturas muito longnquas, dos quais me sinto muito perto. Seu comportamento, a maneira de expressar-se em seu ofcio, mesmo o que se cala, me faz pensar que passou por uma experincia semelhante minha: que as origens, seu primeiro dia, foram marcadas por uma relao".

CARTA AO ATOR D

(Esta carta foi escrita por Eugnio Barba a um dos seus atores em 1967. publicada frequentemente em livros e revistas, para ilustrar a viso teatral de seu autor e sua atitude para com um "novo ator". Foi publicada pela primeira vez no livro Synspunkter om Kunst - Pontos de vista sobre a arte, Copenhaque:1968).

"Frequentemente me surpreende a ausncia de seriedade em seu trabalho. No devido falta de concentrao ou de boa vontade. a expresso de duas atitudes.

Antes de tudo, tem-se a impresso de que suas aes no so ditadas por uma convico interior ou por uma necessidade que deixa sua marca no exerccio, na improvisao, na cena que voc executa. Voc pode estar concentrado no seu trabalho, no estar se poupando, seus gestos podem, tecnicamente, ser precisos e, no entanto, suas aes continuam sendo vazias. No acredito no que voc est fazendo. O seu corpo s diz uma coisa: obedeo a uma ordem dada de fora. Seus nervos, seu crebro, sua coluna no esto comprometidos, e, com uma atitude epidrmica, quer me fazer crer que cada ao vital para voc. Voc mesmo no percebe a importncia do que quer fazer partcipe os espectadores.

Ento, como pode esperar que o espectador fique preso por suas aes?Como voc poderia, assim, afirmar e fazer compreender que o teatro o lugar onde as convenes e os obstculos sociais devem desaparecer, para deixar lugar a uma comunicao sincera e absoluta? Voc neste lugar representa a coletividade, com as humilhaes que passou, com seu cinismo que autodefesa, e seu otimismo, que a prpria irresponsabilidade, com seu sentimento de culpa e sua necessidade de amar, a saudade do paraso perdido, escondido no passado, na infncia, no calor de um ser que lhe fazia esquecer a angstia.

Todas as pessoas presentes nesta sala ficariam sacudidas se voc efetuasse, durante a representao, um retorno a estas fontes, a este terreno comum da experincia individual, a esta ptria que se esconde. Este o lao que o une aos outros, o tesouro sepultado no mais profundo do nosso ser, jamais descoberto, porque nosso conforto, porque di ao toc-lo.

A segunda tendncia que vejo em voc o temor de levar em considerao a seriedade deste trabalho: sente uma espcie de necessidade de rir, de distrair-se, de comentar humoristicamente o que voc e seus companheiros fazem. como se quisesse fugir da responsabilidade que sente, inerente sua profisso, e que consiste em estabelecer uma relao e em assumir a responsabilidade do que revela. Voc tem medo da seriedade deste trabalho, da conscincia de estar no limite do que permitido. Tem medo de que tudo aquilo que faz seja sinnimo de fanatismo, de aborrecimento, de isolamento profissional. Porm, num mundo em que os homens que nos rodeiam j no acreditam em mais nada ou pretendem acreditar para ficarem tranqilos, aquele que se afunda em si mesmo para enfrentar a sua condio, a sua falta de certezas, a sua necessidade de vida espiritual, tomado por um fantico e por um ingnuo. Num mundo, cuja norma o enganar, aquele que procura "sua" verdade tomado por hipcrita.

Deve aceitar que tudo no que voc acredita, no que voc d liberdade e forma no seu trabalho, pertence vida e merece respeito e proteo. Suas aes, na presena da coletividade dos espectadores, devem estar carregadas da mesma fora que a chama oculta na tenaz incandescente, ou na voz da sara ardente. Somente ento, suas aes podero continuar a viver no esprito e na memria do espectador, podero fermentar conseqncias imprevisveis.

Enquanto Dullin jazia em seu leito de morte, seu rosto se retorcia assumindo as mscaras dos grandes papis que viveu: Smerdiakov, Volpone, Ricardo III. No era s o homem Dullin que morria, mas tambm o ator e todas as etapas de sua vida.

Se lhe pergunto por que escolheu ser ator, me responder: para expressar-me e realizar-me. Mas que significa realizar-se? Quem se realiza? O gerente Hansen que vive uma existncia respeitvel, sem inquietudes, nunca atormentado por estas perguntas que ficam sem respostas? Ou o romntico Gauguim que, depois de romper com as normas sociais, terminou sua existncia na misria e nas privaes de uma pobre aldeia polinsia, Noa-Noa, onde acreditava ter encontrado a liberdade perdida? Numa poca em que a f religiosa considerada como neurose, nos falta a medida para julgar o xito ou o fracasso de nossa vida.

Sejam quais foram as motivaes pessoais que o trouxeram ao teatro, agora que voc exerce esta profisso, voc deve encontrar um sentido que v alm de sua pessoa, que o confronte socialmente com os outros.

Somente nas catacumbas pode-se preparar uma vida nova. Esse o lugar de quem, em nossa poca, procura um compromisso espiritual se arriscando com as eternas perguntas sem respostas. Isto pressupe coragem: a maioria das pessoas no tem necessidade de ns. Seu trabalho uma forma de meditao sobre si mesmo, sobre sua condio humana numa sociedade e sobre os acontecimentos de nosso tempo que tocam o mais profundo de si mesmo.

Cada representao neste teatro precrio, que se choca contra o pragmatismo cotidiano, pode ser a ltima. E voc deve consider-la como tal, como sua possibilidade de reencontrar-se, dirigindo aos outros a prestao de contas de seus atos, seu testamento.

Se o fato de ser ator significa tudo isto para voc, ento surgir um outro teatro; uma outra tradio, uma outra tcnica. Uma nova relao se estabelecer entre voc e os espectadores que noite vm v-lo, porque necessitam de voc."