barros, d. teoria semiotica do texto

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  • 6

    Srie Fundamentos

    72

    Diana Luz Pessoa de Barros Professora do Departamento de Letras

    Clssicas e Vernculas da FFLCH da Universidade de So Paulo

    TEORIA SEMITICA DO TEXTO

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  • 7

    Direo Benjamin Abclala Junior

    Samira Youssef Campedelli

    Preparao de texto lvany Picasso Batista

    Edio de arte (miolo) Milton Takeda

    Divina Rocha Corte

    Coordenao de composio (Composio/Paginao em vdeo) Neide Hiromi Toyota

    Dirce Ribeiro de Arajo

    Capa Paulo Csar Pereira

    4 edio 6 impressao

    Impresso nas oficinas da EDITORA PARMA LTDA.

    ISBN 85 08 03732 5

    2005

    Todos os direitos reservados pela Editora tica

    Rua Baxo de lguape, 110-CEP O15O7-900 Caixa Postal 2937 CEP 01065-970

    So Paulo SP

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  • 8

    Sumrio

    1. Teorias lingsticas do texto e teoria semitica ________________________________ 10

    A noo de texto _________________________________________________________________

    Percurso gerativo do sentido ________________________________________________________

    2. Sintaxe narrativa ___________________________________________________________ 20

    Enunciado elementar _____________________________________________________________

    Programa narrativo _______________________________________________________________

    Percurso narrativo _______________________________________________________________

    Esquema narrativo _______________________________________________________________

    3. Semntica narrativa ________________________________________________________ 44

    Modalizao do fazer _____________________________________________________________

    Modalizao do ser ______________________________________________________________

    4. Sintaxe discursiva __________________________________________________________ 53

    Projees da enunciao __________________________________________________________

    Efeito de proximidade ou de distanciamento da enunciao _______________________________

    Efeito de realidade ou de referente __________________________________________________

    Relaes argumentativas entre enunciador e enunciatrio __________________________________

    5. Semntica discursiva _______________________________________________________ 66

    Tematizao ____________________________________________________________________

    Figurativizao __________________________________________________________________

    Coerncia textual ________________________________________________________________

    Estruturas fundamentais ___________________________________________________________

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  • 9

    6. Alm do percurso gerativo do sentido ________________________________________ 74

    Semi-simbolismo ________________________________________________________________

    Discurso, enunciao e contexto scio-histrico ________________________________________

    7. Vocabulrio crtico __________________________________________________________ 80

    8. Textos analisados __________________________________________________________ 87

    9. Bibliografia comentada ______________________________________________________ 89

    5

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    Teorias lingsticas do texto e teoria semitica

    A inteno deste livro apresentar, de forma sucinta e simples, os fundamentos da teoria semitica. Por teoria semitica est-se entendendo a teoria desenvolvida por A. J. Greimas e pelo Grupo de Investigaes Smio-lingsticas da Escola de Altos Estudos em Cincias Sociais. Existem outras teorias semiticas, tambm bastante conhecidas, como a de Charles Peirce e a da Escola de Tartu. Por razes diversas, entre as quais a de exigidade de espao e a de tipo de publicao, no se faro comparaes entre as diferentes propostas e, muito menos, apreciaes do mrito e das vantagens indiscutveis de cada uma delas. A opo pela semitica greimasiana deve-se a motivos vrios, alguns mesmo de ordem pessoal, e merece referncia o carter de teoria do texto que assume a semitica escolhida para esta apresentao.

    A semitica insere-se, portanto, no quadro das teorias que se (pre)ocupam com o texto.

    A lingstica foi, durante muito tempo, uma teoria da lngua e da linguagem que no ia alm das dimenses da frase, seja por acreditarem alguns ser a frase a unidade lingstica por excelncia, seja por dificuldades prticas de outros que reconhecem unidades maiores que a frase. A essa delimitao da lingstica soma-se mais uma, a de ser lingstica da lngua, e de deixar, para outros campos do conhecimento, as questes de uso da lngua ou as implicaes do contexto social e histrico dos falantes. Os estudos lingsticos circunscrevem-se, assim, em um espao ao mesmo tempo vasto e restrito e tomam por objeto unidades da dimenso mxima da frase, concebidas fora de qualquer contexto de enunciao.

    Os limites impostos foram facilmente mantidos no perodo em que a lingstica se confundia com a fonologia e a morfologia, com menos facilidade durante o reinado da sintaxe, e tornaram-se insustentveis no ressurgimento dos estudos semnticos nos anos sessenta. A semntica, cujos princpios diacrnicos

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    foram formulados por M. Bral, em fins do sculo passado, foi, durante a primeira metade deste sculo, a parente pobre da lingstica, desenvolvida como semntica da palavra isolada ou semntica lexical e considerada incapaz de levar adiante o projeto de uma cincia lingstica em construo. A semntica estrutural desenvolveu-se por volta de 1960, paralelamente semntica lgica, e, apesar das crticas sofridas, teve o mrito inegvel de reintroduzir as preocupaes com o sentido no seio dos estudos lingsticos. A partir de L. Hjelmslev, que mostrou ser possvel examinar o plano do contedo em separado do plano da expresso, tal como a fonologia fizera com o plano da expresso, a semntica estrutural desenvolveu princpios e mtodo para estudar o sentido. As dificuldades foram muitas e no se conseguiu ir alm da descrio de uma fatia reduzida do contedo de uma lngua, tampouco ultrapassar os limites da frase. A preocupao com o sentido, no entanto, forou o lingista a rever sua concepo de lngua e de estudos da linguagem e a romper as barreiras estabelecidas entre a frase e o texto e entre o enunciado e a enunciao. Sem derrubar essas demarcaes, no se pode realizar nenhum estudo satisfatrio do sentido.

    A mudana de posicionamento frente aos fatos de linguagem levou ao aparecimento de propostas tericas diversas que concebem o texto, e no mais a frase, como unidade de sentido e que consideram, portanto, que o sentido da frase depende do sentido do texto. Ao lado dos estudos do texto, desenvolveram-se, tambm, diferentes teorias pragmticas ou da enunciao que tm em comum o ponto de vista adotado de exame das relaes entre a instncia da enunciao e o texto-enunciado e entre o enunciador do texto e o enunciatrio, para quem o texto fabricado.

    Houve, por conseguinte, mudana de perspectiva terica com o aparecimento de estudos da organizao do texto e das relaes entre enunciado e enunciao. As teorias desenvolvidas privilegiaram uma ou outra das abordagens. A lio da semntica, porm, que abriu o caminho duplo da busca do sentido no ter sido bem entendida se forem separadas as duas preocupaes, a que se volta para o texto, a que se dirige para a enunciao.

    A noo de texto A semitica tem por objeto o texto, ou melhor, procura descrever e explicar o que otexto diz e como ele faz para dizer o que diz.

    necessrio, portanto, para que se possa caracterizar, mesmo que grosseiramente, uma teoria semitica, determinar, em primeiro lugar, o que o texto, seu objeto de estudo.

    Um texto define-se de duas formas que se complementam: pela organizao ou estruturao que faz dele um todo de sentido, como objeto da comunicao que se estabelece entre um destinador e um destinatrio. A primeira concepo de texto, entendido como objeto de significao, faz que seu estudo se confunda com o exame dos procedimentos e mecanismos que o estruturam, que o tecem como um

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    todo de sentido. A esse tipo de descrio tem-se atribudo o nome de anlise interna ou estrutural do texto. Diferentes teorias voltam-se para essa anlise do texto, a partir de princpios e com mtodos e tcnicas diferentes. A semitica uma delas.

    A segunda caracterizao de texto no mais o toma como objeto de significao, mas como objeto de comunicao entre dois sujeitos. Assim concebido, o texto encontra seu lugar entre os objetos culturais, inserido numa sociedade (de classes) e determinado por formaes ideolgicas especficas. Nesse caso, o texto precisa ser examinado em relao ao contexto scio-histrico que o envolve e que, em ltima instncia, lhe atribui sentido. Teorias diversas tm tambm procurado examinar o texto desse ponto de vista, cumprindo o que se costuma denominar anlise externa do texto.

    Os que se dedicam ao exame interno do texto e aqueles que se devotam sua anlise externa se recriminam e se criticam uns aos outros: os primeiros so acusados de reducionismo, de empobrecimento e de desconhecimento da histria; os ltimos, de subjetividade e de confundirem a anlise do texto com outras anlises. No entanto, o texto s existe quando concebido na dualidade que o define objeto de significao e objeto de comunicao e, dessa forma, o estudo do texto com vistas construo de seu ou de seus sentidos s pode ser entrevisto como o exame tanto dos mecanismos internos quanto dos fatores contextuais ou scio-histricos de fabricao do sentido. Nos seus desenvolvimentos mais recentes, a semitica tem caminhado nessa direo e procurado conciliar, com o mesmo aparato terico-metodolgico, as anlises ditas interna e externa do texto. Para explicar o que o texto diz e como o diz, a semitica trata, assim, de examinar os procedimentos da organizao textual e, ao mesmo tempo, os mecanismos enunciativos de produo e de recepo do texto.

    Resta ainda um ponto a ser esclarecido nesta rpida exposio da noo de texto: o objeto de estudo da semitica apenas o texto verbal ou lingstico? O texto, acima definido por sua organizao interna e pelas determinaes contextuais, pode ser tanto um texto lingstico, indiferentemente oral ou escrito uma poesia, um romance, um editorial de jornal, uma orao, um discurso poltico, um sermo, uma aula, uma conversa de crianas quanto um texto visual ou gestual uma aquarela, uma gravura, uma dana ou, mais freqentemente, um texto sincrtico de mais de uma expresso uma histria em quadrinhos, um filme, uma cano popular. As diferentes possibilidades de manifestao textual dificultam, sem dvida, o trabalho de qualquer estudioso do texto, e as teorias tendem a se especializar em teorias do texto literrio, semiologia da imagem e assim por diante. Com isso, perdem-se, muitas vezes, as caractersticas comuns aos textos, que independem das expresses diferentes que os manifestam, e ficam impossibilitadas as comparaes entre textos diversos.

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    A semitica sabe da necessidade de uma teoria geral do texto e reconhece suas dificuldades. Por isso mesmo, na esteira de L. Hjelmslev, prope, como primeiro passo para a anlise, que se faa abstrao das diferentes manifestaes visuais, gestuais, verbais ou sincrticas e que se examine apenas seu plano do contedo. As especificidades da expresso, na sua relao com o contedo, sero estudadas posteriormente.

    A semitica deve ser assim entendida como a teoria que procura explicar o ou os sentidos do texto pelo exame, em primeiro lugar, de seu plano do contedo.

    Percurso gerativo do sentido Para construir o sentido do texto, a semitica concebe o seu plano do contedo sob a forma de um percurso gerativo. A noo de percurso gerativo do sentido fundamental para a teoria semitica e pode ser resumida como segue:

    a) o percurso gerativo do sentido vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto;

    b) so estabelecidas trs etapas no percurso, podendo cada uma delas ser descrita e explicada por uma gramtica autnoma, muito embora o sentido do texto dependa da relao entre os nveis;

    c) a primeira etapa do percurso, a mais simples e abstrata, recebe o nome de nvel fundamental ou das estruturas fundamentais e nele surge a significao como uma oposio semntica mnima;

    d) no segundo patamar, denominado nvel narrativo ou das estruturas narrativas, organiza-se a narrativa, do ponto de vista de um sujeito;

    e) o terceiro nvel o do discurso ou das estruturas discursivas em que a narrativa assumida pelo sujeito da enunciao.

    Para bem explicar o papel do percurso gerativo na construo semitica do sentido do texto e para uma primeira apresentao, bastante imprecisa, de cada nvel do percurso, sero examinados, em rpidas pinceladas, dois textos. So eles a letra da cano infantil Histria de uma gata, de Luiz Henriquez, Srgio Bardotti e Chico Buarque (1980, p. 40), e o poema Psicanlise do acar, de Joo Cabral de Melo Neto (1975, p. 27).

    Histria de uma gata Me alimentaram me acariciaram me aliciaram me acostumaram. O meu mundo era o apartamento. Detefon, almofada e trato

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    todo dia fil-mignon ou mesmo um bom fil... de gato me diziam, todo momento: Fique em casa, no tome vento. Mas duro ficar na sua quando luz da lua tantos gatos pela rua toda a noite vo cantando assim: Ns, gatos, j nascemos pobres porm, j nascemos livres. Senhor, senhora, senhorio. Felino, no reconhecers. De manh eu voltei pra casa

    fui barrada na portaria, sem fil e sem almofada por causa da cantoria. Mas agora o meu dia-a-dia no meio da gataria pela rua virando lata eu sou mais eu, mais gata numa louca serenata que de noite sai cantando assim: Ns, gatos, j nascemos pobres porm, j nascemos livres. Senhor, senhora ou senhorio. Felino, no reconhecers.

    A anlise do texto considerar cada nvel separadamente e procurar dar uma viso geral de como so concebidos o percurso e suas etapas.

    No nvel das estruturas fundamentais preciso determinar a oposio ou as oposies semnticas a partir das quais se constri o sentido do texto. Em Histria de uma gata a categoria semntica fundamental :

    liberdade vs. dominao (explorao, opresso)

    Essa oposio manifesta-se de formas diversas no texto: me aliciaram/me acostumaram, Fique em casa, no tome vento, Mas duro ficar na sua, j nascemos livres, Senhor, senhora, senhorio etc.

    As categorias fundamentais so determinadas como positivas ou eufricas e negativas ou disfricas. No texto, a liberdade eufrica, a opresso, disfrica.

    Alm das relaes mencionadas e de sua determinao axiolgica, estabelece-se no nvel das estruturas fundamentais um percurso entre os termos. Passa-se, no texto em exame, da dominao negativa liberdade positiva.

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    dominao ---------------------- no-dominao -------------------------liberdade (disforia) (no-disforia) (euforia)

    A no-dominao, ou melhor, a negao da dominao aparece sobretudo em Mas duro ficar na sua....

    Histria de uma gata tem, portanto, como contedo mnimo fundamental a negao da dominao ou da explorao, sentida como negativa, e a afirmao da liberdade eufrica.

    No segundo patamar, nvel das estruturas narrativas, os elementos das oposies semnticas fundamentais assumidos como valores por um sujeito e circulam entre sujeito graas ao tambm de sujeitos. Ou seja, no se trata mais de afirmar ou de negar contedos, de asseverar a liberdade e de recusar a dominao, mas de transformar, pela ao do sujeito, estados de liberdade ou de opresso. Histria de uma gata , assim, a histria de um sujeito (gata) manipulado por um outro sujeito (dono) por tentao boa casa, proteo, carinho, comida para que fique em casa, no se misture com os gatos de rua, seja fiel. O sujeito gata quer cumprir e realmente cumpre o acordo, para receber os valores que o tentam. reconhecido como bom gato e recompensado com fil-mignon, detefon e bons tratos. Surgem, porm, o gatos de rua, com outros valores, os da liberdade (sem fil e sem almofada), que tambm tentam o sujeito gata e fazem que ele v rua e ponha de lado, por conseguinte, o primeiro compromisso.

    A gata esfora-se por esconder o rompimento do primeiro contrato e volta para casa: ela procura no parecer uma gata de rua, ainda que o fosse, ela tenta parecer fiel, embora tivesse praticado a infidelidade. O segredo ou a mentira so desmascarados e ela perde o reconhecimento de bom gato e as recompensas. Assume, a partir da, os valores da liberdade.

    A narrativa, como se viu, sofreu desdobramento polmico. Opem-se valores e a gata sincretiza os papis de sujeito de fazeres contrrios.

    A ltima etapa do percurso gerativo o das estruturas discursivas. As estruturas discursivas devem ser examinadas do ponto de vista das relaes que se instauram entre a instncia da enunciao, responsvel pela produo e pela comunicao do discurso, e o texto-enunciado. Em Histria de uma gata, utilizam-se recursos discursivos variados para fabricar a iluso de verdade. Projeta-se um narrador em eu e obtm-se o efeito de subjetividade; indetermina-se o sujeito da primeira manipulao (me alimentaram me diziam, fui barrada) e cria-se o efeito de generalizao; delega-se a palavra aos manipuladores, dono e gatos de rua, e chega-se iluso de realidade.

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    Ainda no nvel discursivo, as oposies fundamentais, assumidas como valores narrativos, desenvolvem-se sob a forma de temas e, em muitos textos, concretizam-se por meio de figuras. No texto em exame, desenrolam-se vrias leituras temticas:

    a) tema da domesticidade ou da dominao e explorao do animal domstico pelo homem;

    b) tema da sexualidade da mulher-objeto ou de explorao da mulher comprada para o prazer;

    c) tema da passagem da adolescncia idade adulta ou da opresso da famlia sobre a criana e o jovem (Fique em casa, no tome vento);

    d) tema socioeconmico da marginalizao da boemia.

    As leituras abstratas temticas esto concretizadas em diferentes investimentos figurativos, todos eles caracterizados pela oposio de traos sensoriais, espaciais e temporais que separam, no texto, a liberdade da dominao.

    trao

    espacial

    espacial

    temporal

    ttil

    ttil

    olfativo

    gustativo

    auditivo

    visual

    dominao vs.

    fechado

    interno

    dia

    macio

    quente

    cheiroso

    gostoso

    silencioso

    claro

    liberdade

    aberto

    externo

    noite

    duro, spero

    frio (vento)

    malcheiroso (lixo)

    ruim, azedo

    ruidoso

    penumbra (luz da lua)

    Esses traos organizam figuras diferentes nas diferentes leituras temticas. O trao olfativo, por exemplo, manifesta-se sob a forma do detefon, na leitura do animal domstico, como perfumes e cosmticos, na da mulher-objeto, e como cuidados e limpeza (talcos, pomadas) na do adolescente.

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    A anlise do poema de Joo Cabral de Melo Neto, Psicanlise do acar (1975, p. 27), dever completar essa viso de conjunto do percurso gerativo do sentido, tal como o concebe a teoria semitica.

    O acar cristal, ou acar de usina, mostra a mais instvel das brancuras: quem do Recife sabe direito o quanto, e o pouco desse quanto, que ela dura. Sabe o mnimo do pouco que o cristal se estabiliza cristal sobre o acar, por cima do fundo antigo, de mascavo, do mascavo barrento que se incuba;

    e sabe que tudo pode romper o mnimo em que o cristal capaz de censura: pois o tal fundo mascavo logo aflora quer inverno ou vero mele o acar. S os bangos que ainda purgam ainda o acar bruto com barro, de mistura; a usina j no o purga: da infncia, no de depois de adulto, ela o educa; em enfermarias, com vcuos e turbinas, em mos de metal de gente indstria, a usina o leva a sublimar em cristal o pardo do xarope: no o purga, cura. Mas como a cana se cria ainda hoje, em mos de barro de gente agricultura, o barrento da pr-infncia logo aflora quer inverno ou vero mele o acar.

    No nvel das estruturas fundamentais, o poema parte da oposio entre:

    puro (branco, limpo, claro) vs. sujo (impuro, escuro, barrento)

    acar cristal da usina acar mascavo

    Dois percursos ocorrem no texto. Passa-se da pureza impureza, quando o mascavo barrento rompe o cristal, ou da sujeira do acar bruto brancura do cristal da usina:

    sujo -------------------------------------- no.sujo --------------------------------- puro (acar bruto) (cristal por cima do mascavo) (acar cristal de usina)

    puro --------------------------------------- impuro ---------------------------------- sujo (cristal) (fundo mascavo que aflora) (acar mascavo)

    A assero da pureza, no primeiro percurso, e a da sujeira, no segundo, fazem surgir, no texto de Cabral, uma terceira possibilidade, a da afirmao concomitante da pureza e da sujeira, no acar do bang. O acar do bang

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    tem caractersticas tanto do mascavo sujo quanto do cristal puro, purgado que com barro, de mistura.

    No nvel das estruturas narrativas, as operaes da etapa fundamental devem ser examinadas como transformaes operadas por sujeitos. Em Psicanlise do acar mudam-se as qualificaes do sujeito acar, ora puro ora sujo, transforma-se sua competncia, enfim, para a ao. Tanto a usina quanto o tempo ou o bang so responsveis pelas alteraes das qualificaes do sujeito. A usina manipula o sujeito sobretudo pela intimidao das mos de metal, para que ele aja de modo til, puro e racional, sem os impulsos ou os instintos sujos. A ela, ope-se o tempo, o inverno ou o vero que melam o acar, ou seja, que desqualificam o sujeito para a ao pretendida pela usina. O tempo, na verdade, desmascara o sujeito ao mostrar o carter passageiro e mentiroso de sua brancura. O acar de usina parece puro e competente para a ao, mas no o , pois o inverno ou o vero fazem aflorar seu fundo mascavo. A usina responde, portanto, por transformaes apenas aparentes do sujeito, ao mud-lo de sujo em puro cristal. O tempo faz saber que a pureza superficial e esconde o ser do sujeito moldado pelas mos de barro de gente agricultura. Faz-se o percurso inverso, da aparncia essncia.

    Finalmente, a essas transformaes opostas da competncia do sujeito vem somar-se a manipulao do bang. O bang qualifica o sujeito com a pureza e com a sujeira, faz dele um ser complexo, ao mistur-lo com barro, para purific-lo. O acar-mistura do bang define-se miticamente pela conciliao de opostos. S assim, duplamente competente, o sujeito est qualificado para agir til, pura e racionalmente e, ao mesmo tempo, impulsivamente. Est pronto para realizar o fazer de adoar.

    As estruturas discursivas, no ltimo patamar do percurso,. mostram um discurso em terceira pessoa, verdadeiro porque objetivo. Para a iluso de objetividade e de verdade contribuem o argumento de autoridade e o efeito de realidade obtidos com o emprego de um sujeito do saber: quem do Recife sabe direito.

    Vrios temas realizam os valores da pureza e da sujeira, no discurso:

    a) tema da purificao do acar, em que se opem os mtodos da usina e do bang, se apresentam as vantagens de cada um deles e se desmascara a excessiva pureza do acar cristal, que esconde sua sujeira;

    b) tema psicanaltico da censura, dos recalques, da sublimao e do aflorar constante dos instintos e dos desejos reprimidos (se sublimao, para a psicanlise, o processo inconsciente que consiste em desviar a energia da libido para novos objetos, de carter til (Novo dicionrio Aurlio), o texto de Cabral mostra que a educao

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  • 19

    na famlia, na escola, na sociedade pe o homem, desde a infncia, na boa direo, mas que os impulsos constantemente afloram, em atos falhos etc.);

    c) tema tnico do racismo, que se desenvolve na leitura do aniquilamento do negro, pondo em evidncia o branco, e na soluo apresentada da mestiagem;

    d) tema socioeconmico do desmantelamento da agricultura ou dos procedimentos pr-industriais, em favor da usina ou do grande complexo industrial (o meio-termo do bang seria o caminho visado);

    e) tema poltico, em que se fala da aparncia de pureza e de limpeza, de ordem de certos pases, sob a qual fervilham as doenas sociais da rebelio que, a qualquer momento, podem aflorar.

    As duas anlises esboadas quiseram apenas mostrar, no todo, como se articulam as etapas do percurso gerativo do sentido e como a semitica dele se serve para ler textos. Ser agora examinado detalhadamente cada nvel do percurso.

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    2 Sintaxe narrativa

    Nos captulos 2 e 3 sero apresentados os princpios semiticos de organizao da narrativa. Ainda que a separao seja difcil, sero distinguidos os mecanismos de estruturao sinttica da narrativa (captulo 2) e as questes semnticas de modalizao (captulo 3).

    A sintaxe narrativa deve ser pensada como um espetculo que simula o fazer do homem que transforma o mundo. Para entender a organizao narrativa de um texto, preciso, portanto, descrever o espetculo, determinar seus participantes e o papel que representam na historiazinha simulada.

    A semitica parte dessa viso espetacular da sintaxe e prope duas concepes complementares de narrativa: narrativa como mudana de estados, operada pelo fazer transformador de um sujeito que age no e sobre o mundo em busca dos valores investidos nos objetos; narrativa como sucesso de estabelecimentos e de rupturas de contratos entre um destinador e um destinatrio, de que decorrem a comunicao e os conflitos entre sujeitos e a circulao de objetos. As estruturas narrativas simulam, por conseguinte, tanto a histria do homem em busca de valores ou procura de sentido quanto a dos contratos e dos conflitos que marcam os relacionamentos humanos.

    Enunciado elementar O enunciado elementar da sintaxe narrativa caracteriza-se pela relao de transitividade entre dois actantes, o sujeito e o objeto. A relao define os actantes; a relao transitiva entre sujeito e objeto d-lhes existncia, ou seja, o sujeito o actante que se relaciona transitivamente com o objeto, o objeto aquele que mantm laos com o sujeito. H duas diferentes relaes ou funes transitivas, a juno e a transformao e, portanto, duas formas de

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  • 21

    enunciado elementar, que, no texto, estabelecem a distino entre estado e transformao:

    enunciado de estado: F juno (S,O)

    enunciado de fazer: F transformao (S,O)

    F = funo S = sujeito O = objeto

    No texto j citado Histria de uma gata encontram-se, entre outros, os seguintes enunciados de estado e de fazer:

    enunciados de estado: o sujeito gata mantm relao de juno com vrios objetos, nos versos O meu mundo era o apartamento./Detefon, almofada e trato/todo dia fil-mignon;

    enunciados de fazer: o sujeito dono transforma a relao de juno do sujeito gata com os objetos apartamento, almofada etc. H uma mudana de estado em fui barrada na portaria,/sem fil e sem almofada.

    Para exemplificar a organizao narrativa ser utilizada, alm dos textos j rapidamente analisados, no item sobre o percurso gerativo, uma fala de Joana, em Gota ddgua, de Chico Buarque e Paulo Pontes (1975). Joana fora abandonada pelo amante Jaso, aps o sucesso do samba Gota dgua. A fala proferida quando Joana fica sabendo que Jaso vai casar-se com a filha de Creonte, o explorador da Vila do Meio-Dia, onde mora Joana.

    Joana Pois bem, voc vai escutar as contas que eu vou lhe fazer: te conheci moleque, frouxo, perna bamba,

    barba rala, cala larga, bolso sem fundo No sabia nada de mulher nem de samba e tinha um puto dum medo de olhar pro mundo

    As marcas do homem, uma a uma, Jaso, tu tirou todas de mim. O primeiro prato, o primeiro aplauso, a primeira inspirao,

    a primeira gravata, o primeiro sapato de duas cores, lembra? O primeiro cigarro,

    a primeira bebedeira, o primeiro filho, o primeiro violo, o primeiro sarro, o primeiro refro e o primeiro estribilho Te dei cada sinal do teu temperamento Te dei matria-prima para o teu tutano E mesmo essa ambio que, neste momento se volta contra mim, eu te dei, por engano Fui eu, Jaso, voc no se encontrou na rua

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  • 22

    Voc andava tonto quando eu te encontrei Fabriquei energia que no era tua pra iluminar uma estrada que eu te apontei E foi assim, enfim, que eu vi nascer do nada uma alma ansiosa, faminta, buliosa, uma alma de homem. Enquanto eu, enciumada dessa exploso, ao mesmo tempo, eu vaidosa, orgulhosa de ti, Jaso, era feliz, eu era feliz, Jaso, feliz e iludida, porque o que eu no imaginava, quando fiz dos meus dez anos a mais uma sobre-vida pra completar a vida que voc no tinha, que estava desperdiando o meu alento, estava vestindo um boneco de farinha Assim que bateu o primeiro p-de-vento, assim que despontou um segundo horizonte, l se foi meu homem-orgulho, minha obra completa, l se foi pro acervo de Creonte.. Certo, o que eu no tenho, Creonte tem de sobra Prestgio, posio... Teu samba vai tocar em tudo quanto programa. Tenho certeza que a gota dgua no vai parar de pingar de boca em boca... Em troca pela gentileza vais engolir a filha, aquela mosca-morta como engoliu meus dez anos. Esse o teu preo, dez anos. At que aparea uma outra porta que te leve direto pro inferno. Conheo a vida rapaz. S de ambio, sem amor, tua alma vai ficar torta, desgrenhada, aleijada, pestilenta... Aproveitador! Aproveitador!

    Podem-se reconhecer enunciados de estado e enunciados de fazer:

    enunciados de estado: a relao de juno entre o sujeito Jaso e os objetos primeiro prato, gravata, sapato de duas cores, saber sobre as mulheres e samba etc., no incio do texto;

    enunciados de fazer: a transformao operada pelo sujeito Joana, na relao de Jaso com os objetos (Te dei cada sinal do teu temperamento.. . ).

    A juno, como indicam os dois exemplos acima, a relao que determina o estado, a situao do sujeito em relao a um objeto qualquer. O objeto, enquanto objeto sinttico, uma espcie de casa vazia, que recebe investimentos de projetos e de determinaes do sujeito. No exemplo de Jaso, os objetos com os quais mantm relao juntiva esto determinados pelas aspiraes e projetos de um sujeito em busca de dinheiro, fama e prestgio. Os investimentos fazem do objeto um objeto-valor e , assim, por meio do objeto que o sujeito tem acesso aos valores.

    H dois tipos de juno, ou seja, dois modos diferentes de relao do sujeito com os valores investidos nos objetos, a conjuno e a disjuno:

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  • 23

    enunciado de estado conjuntivo: S O

    Ex.: S (gata) O (apartamento, detefon, almofada, fil-mignon)

    S (Jaso) O (dinheiro, coragem, saber sobre mulheres e samba etc.)

    enunciado de estado disjuntivo: S U O

    Ex.: S (gata) U O (apartamento, detefon, almofada, fil-mignon)

    S (Jaso) U O (dinheiro, coragem, saber sobre mulheres e samba etc.)

    A disjuno no a ausncia de relao, mas um modo de ser da relao juntiva. O poema Sem, de Guilherme de Almeida (1982), fala, em linguagem potica, dessa forma de relao.

    Uma noite sem plpebras se estanha de um silncio sem margens. Sua veste tecida de teias sem aranha na cor sem cor de mrmore e cipreste. Dedo sem unha sobre os lbios, passa. Leva uma flor sem ptalas no seio. E sem um gesto do seu brao, abraa algum e vai sem nada, como veio.

    Quanto aos enunciados de fazer, percebe-se, nos exemplos, que eles operam a passagem de um estado a outro, ou seja, de um estado conjuntivo a um estado disjuntivo e vice-versa. O objeto de uma transformao sempre um enunciado de estado. Joana, ao dar a Jaso certas qualidades, transforma seu estado de disjuno dos objetos (Jaso no tinha coragem, dinheiro, ambio, conhecimentos, inspirao) em estado de conjuno (... vi nascer do nada/uma alma ansiosa, faminta, buliosa,/uma alma de homem.). A gata, em Histria de uma gata, estava em conjuno com objetos como apartamento, almofada e fil-mignon, ao ser barrada na portaria pelo dono, perde esses objetos-valor e passa a manter com eles relao de disjuno.

    A comunicao hierrquica de enunciado de fazer e enunciado de estado define o programa narrativo, a unidade operatria elementar da organizao narrativa de um texto. A primeira concepo de narrativa , como se viu, a de sucesso de estados e de transformaes. Os textos citados podem ser assim simplificados: em Histria de uma gata, a gata se relaciona ora por conjuno ora por disjuno com objetos-valor, sendo as mudanas de estado ocasionadas por transformaes como a gata sai para a rua, o dono barra a gata na portaria, a gata volta para a rua; em Gota dgua (no trecho citado), sucedem-se estados de conjuno e de disjuno do sujeito Jaso com os objetos-valor, graas s transformaes operadas pelos sujeitos Joana, Creonte e pelo prprio Jaso.

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  • 24

    Programa narrativo O programa narrativo ou sintagma elementar da sintaxe narrativa define-se como um enunciado de fazer que rege um enunciado de estado. Integra, portanto, estados e transformaes.

    Retomando alguns textos j referidos, pode-se represent-los como programas narrativos, segundo o modelo abaixo:

    PN = F[S1 (S2 Ov)] F = funo = transformao S1 = sujeito do fazer S2 = sujeito do estado = conjuno Ov = objeto-valor

    Histria de uma gata

    PN1: a gata recebe do dono os objetos-valor apartamento, detefon, comida, carinho etc. (o sujeito do fazer o dono da gata; a transformao a de acariciar, alimentar etc.; o sujeito de estado, que tem sua situao alterada, a gata).

    F (acariciar, alimentar) [S1 (dono) S2 (gata) Ov (comida, carinho etc.]

    PN2: o dono toma da gata os objetos-valor (o sujeito do fazer o dono; o fazer barrar na portaria; o sujeito de estado a gata). F (barrar na portaria) [S1 (dono) S2 (gata) Ov (comida, carinho etc.)]

    PN3: a gata sai de casa para a rua e com isso adquire os valores de liberdade e de ser mais eu, mais gata (o sujeito do fazer a gata; a transformao a de sair rua; o sujeito de estado a gata).

    F (sair de casa) [S1 (gata) S2 (gata) Ov (liberdade, identidade)]

    PN4: a gata, ao ficar em casa, perde os valores de liberdade e de identidade (o sujeito do fazer a gata; a transformao a de ficar em casa; o sujeito de estado a gata).

    F(ficar em casa) [S1 (gata) S2 (gata) Ov (liberdade, identidade)] Psicanlise do acar

    PN5: a usina educa, cura o acar, d-lhe a brancura do cristal (o sujeito do fazer a usina; a transformao a de purificar; o sujeito de estado o acar).

    F (purificar) [S1 (usina) S2 (acar) Ov (brancura, pureza)]

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  • 25

    PN6: o tempo mela o acar, tira-lhe a brancura e a pureza (o sujeito do fazer o tempo; a transformao a de melar ou desmascarar; o sujeito de estado o acar).

    F (melar) [S1 (tempo) S2 (acar) 0v (brancura, pureza)]

    PN7: o bang purga o acar pela mistura com o barro (o sujeito do fazer o bang; a transformao purificar; o sujeito de estado o acar).

    F (purificar) [S1 (bang) S2 (acar) Ov (brancura + escuro)]

    Os sete exemplos acima deixam antever diferentes tipos de programas narrativos, segundo critrios tambm diversos:

    a) natureza da funo: se a transformao resulta em conjunto do sujeito com o objeto, tem-se um programa de aquisio de objeto-valor; se termina em disjuno, fala-se em programa de privao (os PN1, PN3, PN5 e PN7 so programas de aquisio, pois, no PN1, a gata adquire comida e carinho; no PN3, ela obtm liberdade e identidade prpria; nos PN5 e PN7, o acar adquire pureza, segundo diferentes concepes de puro; j os PN2, PN4 e PN6 so programas de privao, pois no PN2 a gata privada de casa e comida; no PN4, de liberdade e de identidade; e no PN5, o acar perde a pureza);

    b) complexidade e hierarquia de programas: os programas podem ser simples ou complexos, isto , constitudos por mais de um programa hierarquizado (nesse caso diferencia-se o programa principal ou programa de base dos programas secundrios ou de uso, pressupostos pelo programa de base. Pode-se dizer, por exemplo, que a purificao do acar um programa de uso necessrio consecuo do programa de base de adoar ou ainda que, para Jona, os programas de Jaso so programas de uso que lhe permitio realizar o programa de base da obteno de poder numa sociedade capitalista);

    c) valor investido no objeto: os valores podem ser modais, como o dever, o querer, o poder e o saber, que modalizam ou modificam a relao do sujeito com os valores e os fazeres, ou descritivos (Os programas narrativos examinados foram apresentados como programas narrativos com valores descritivos, como casa, comida, liberdade ou pureza. Muitos deles, porm, quando analisados com maior preciso, mostraro seu carter modal: o dono da gata leva-a a dever- fazer, ou seja, a dever no se misturar com os gatos de rua para adquirir os valores descritivos de casa, comida e conforto; o bang e a usina alteram as qualidades modais do acar, ao modificarem seu poder de adoar. O exemplo mais claro, porm, de programa narrativo com valores modais, o de Joana, que transforma o querer e o saber de Jaso: Te dei cada sinal do teu temperamento/Te dei matria-prima para o teu tutano/E mesmo essa ambio que, neste momento/se volta contra mim, eu te dei, por engano/Fui eu, Jaso, voc no se encontrou na rua);

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  • 26

    d) relao entre os actantes narrativos (sujeito de estado e sujeito do fazer) e os atores que os manifestam no discurso: os dois sujeitos, do fazer (S1) e do estado (S2), podem ser assumidos por um nico ator ou por atores diferentes. (Os PN1, PN2, PN5, PN6 e PN7 tm atores diferentes para os dois sujeitos. So programas transitivos: nos PN1 e PN2, o sujeito do fazer o dono, e o de estado, a gata; nos PN5, PN6 e PN7, os sujeitos do fazer so, respectivamente, a usina, o tempo e o bang, e os sujeitos de estado, nos trs programas o acar. Os PN3 e PN4 so programas reflexivos, em os sujeitos do fazer (S1) e do estado (S2) so realizados por um mesmo ator, a gata.)

    Se forem combinados os critrios a (aquisio vs. privao) e d (transitivo vs. reflexivo), obtm-se o quadro abaixo:

    (a) natureza da funo

    (d) relao narrativa/discurso denominao exemplo

    aquisio transitiva Doao PN1: o dono doa objetos-valor para a gata

    aquisio reflexiva apropriao PN3: a gata adquire por si mesma a liberdade

    privao transitiva espoliao PN2 o dono tira da gata os objetos-valor

    privao reflexiva renncia PN4: a gata renuncia liberdade

    fcil perceber que os programas narrativos projetam sempre um programa correlato, isto , se um sujeito adquire um valor porque outro sujeito foi dele privado ou dele se privou. Os objetos circulam entre os sujeitos, graas s transformaes, e pem os sujeitos em relao. Dessa forma, o programa de doao corresponde, em outra perspectiva, ao programa de renncia, e o de apropriao, ao de espoliao. Na fala de Joana, em Gota dgua, a transformao operada ora descrita como uma doao de valores a Jaso (aquisio transitiva), ora como a renncia de Joana a esses valores (privao reflexiva).

    doao Te dei cada sinal do teu temperamento

    Te dei matria-prima para o teu tutano

    E mesmo essa ambio que, neste momento

    se volta contra mim, eu te dei, por engano

    renncia porque o que eu no imaginava, quando fiz

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  • 27

    dos meus dez anos a mais uma sobre-vida

    pra completar a vida que voc no tinha,

    que estava desperdiando o meu alento,

    estava vestindo um boneco de farinha

    Bons exemplos da correlao entre os programas de apropriao e de espoliao ocorrem na literatura popular, pois quando o sujeito prncipe se apropria do objeto princesa, o sujeito drago dele espoliado; quando o Pequeno Polegar adquire a bota-de-sete-lguas, priva dela o Ogro, quando Joozinho-do-p-de-feijo se apodera da galinha-dos-ovos-de-ouro, o Gigante perde esse objeto-valor.

    Nas narrativas em que h dois sujeitos em busca de um mesmo objeto-valor, como acontece com o prncipe e o drago, o Pequeno Polegar e o Ogro, Joozinho e o Gigante, a ao de um deles enfatizada e a do outro, ocultada. Opem-se, assim, o sujeito do programa salientado, o prncipe, o Pequeno Polegar ou Joozinho, e o anti-sujeito do programa encoberto, o drago, o Ogro ou o Gigante.

    Os critrios tipolgicos de caracterizao dos programas narrativos permitem definir dois tipos fundamentais de programas, a competncia e a perfrmance.

    critrios (a) (b) (c) (d)

    competncia aquisio programa de uso valor modal

    sujeito do fazer e sujeito do estado realizados por atores diferentes

    perfrmance aquisio programa de base valor descritivo

    sujeito do fazer e sujeito do estado realizados pelo mesmo ator

    A competncia , por conseguinte, uma doao de valores modais; a perfrmance, uma apropriao de valores descritivos. Os exemplos apresentados mostram bem a diferena entre competncia e perfrmance.

    Quando Jaso, sujeito de estado, recebe de Joana, sujeito do fazer, os valores modais do querer e do saber-compor, trata-se de um programa narrativo de competncia. Esse programa um programa de uso tendo em vista a realizao do programa de base de Jaso, sua perfrmance de aquisio de fama e fortuna. No programa de perfrmance, Jaso, como sujeito do fazer, compe e canta seu samba, para adquirir, enquanto sujeito de estado, os valores a que aspira. Os dois programas representam-se como segue:

    PN de competncia atores distintos aquisio valores modais

    F (dar marcas de homem) [S1 (Joana) S2 (Jaso) Ov (querer e saber compor)]

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  • 28

    PN de perfrmance mesmo ator aquisio valores descritivos

    F (compor sambas) [S1 (Jaso) S2 (Jaso) Ov (fama e fortuna)]

    A relao entre o programa de uso e o programa de base clara: as qualidades modais de querer e saber compor que Jaso recebe de Joana no programa de competncia so condio para a realizao do programa de perfrmance de Jaso, de compor sambas.

    A fbula de Millr, O gato e a barata (1975, p. 17), fornecer mais alguns exemplos de programas narrativos.

    A baratinha velha subiu pelo p do copo que, ainda com um pouco de vinho, tinha sido largado a um canto da cozinha, desceu pela parte de dentro e comeou a lambiscar o vinho. Dada a pequena distncia que nas baratas vai da boca ao crebro, o lcool lhe subiu logo a este. Bbada, a baratinha caiu dentro do copo. Debateu-se, bebeu mais vinho, ficou mais tonta, debateu-se mais, bebeu mais, tonteou mais e j quase morria quando deparou com o caro do gato domstico que sorria de sua aflio, do alto do copo. Gatinho, meu gatinho , pediu ela me salva, me salva. Me salva que assim que eu sair daqui eu deixo voc me engolir inteirinha, como voc gosta. Me salva. Voc deixa mesmo eu engolir voc? disse o gato. Me saaaalva! implorou a baratinha. Eu prometo. O gato ento virou o copo com uma pata, o liquido escorreu e com ele a baratinha que, assim que se viu no cho, saiu correndo para o buraco mais perto, onde caiu na gargalhada. Que isso? perguntou o gato. Voc no vai sair da e cumprir sua promessa? Voc disse que deixaria eu comer voc inteira. Ah, ah, ah riu ento a barata, sem poder se conter. E voc to imbecil a ponto de acreditar na promessa de uma barata velha e bbada? Moral: s vezes a autodepreciao nos livra do peloto.

    A barata prope ao gato um acordo: que ele a salve, em troca de comida (ela prpria). Com isso, ela leva o gato a querer salv-la, a querer tir-la do copo. Tem-se um programa de competncia:

    PN de competncia F (propor um acordo)

    atores distintos [S1 (barata) S2 (gato)

    aquisio

    0v

    valores modais (querer tirar a barata do copo)

    O gato realiza a ao de tirar a barata do copo, cumprindo dessa forma seu programa de perfrmance, com o que espera obter comida.

    PN de perfrmance F (virar o copo)

    mesmo ator [S1 (gato) S2 (gato)

    aquisio

    0v

    valor descritivo (comida)

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  • 29

    A competncia o programa de doao de valores modais ao sujeito de estado, que se torna, com essa aquisio, capacitado para agir. A perfrmance a representao sinttico-semntica desse ato, ou seja, da ao do sujeito com vistas apropriao dos valores desejados.

    H dois diferentes tipos de perfrmances: perfrmances de aquisio de valores investidos em objetos j existentes e em circulao entre sujeitos; perfrmances de produo de objetos para serem lugares de investimentos dos valores almejados. Os dois textos citados exemplificam as diferentes perfrmances. O gato, ao comer a barata, objeto j existente e em circulao, teria adquirido o valor de alimento, a que aspirava. Jaso, para obter os valores que deseja, constri um objeto-samba, como lugar de investimento desses valores. As receitas de cozinha so textos de produo de objetos: para conseguir o valor gustativo de bala de coco; pode-se, entre outras possibilidades, fabricar, na cozinha, o objeto por meio de que se ter acesso a tal valor. Os programas narrativos, simples ou complexos, organizam-se em percursos narrativos.

    Percurso narrativo Um percurso narrativo uma seqncia de programas narrativos relacionados por pressuposio.

    O encadeamento lgico de um programa de competncia com um programa de perfrmance constitui, por exemplo, um percurso narrativo, denominado percurso do sujeito. O programa de perfrmance pressupe o programa de competncia, no interior do percurso. Dessa forma, o programa de competncia, graas ao qual Jaso passa a querer e a saber-compor, forma, com o programa de perfrmance de fazer sambas, o percurso narrativo do sujeito Jaso, no texto Gota ddgua. Assim, tambm, os programas de aquisio de competncia do gato, que levado a querer salvar a barata, e a ao de salvamento compem o percurso narrativo do sujeito gato, na fbula O gato e a barata.

    O sujeito de estado, o sujeito do fazer e o objeto foram caracterizados como actantes sintticos, no momento da apresentao do enunciado elementar e do programa narrativo. Os actantes sintticos redefinem-se, no nvel do percurso narrativo, e tornam-se papis actanciais. Nos percursos narrativos do sujeito Jaso e do sujeito gato, acima descritos, determinam-se diferentes papis actanciais, uma vez que os papis no so fixos ou estabelecidos de uma vez por todas, em cada percurso, mas variam de acordo com o progresso narrativo. Dependem da posio que os actantes sintticos ocupam no percurso e da natureza dos objetos-valor com que se relacionam.

    No percurso do sujeito, em Gota ddgua, Jaso cumpre vrios papis actanciais: sujeito do no-querer e do no-saber-fazer (sujeito de estado em disjuno com o querer e o saber-fazer): No sabia nada de mulher nem de samba/e tinha um puto dum medo de olhar pro mundo); sujeito do querer-ser e do querer-fazer (E mesmo essa ambio que, neste momento se volta contra mim, eu te dei, por engano/... Fabriquei energia que no era tua...), sujeito do saber-fazer, sujeito

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  • 30

    competente para o fazer, sujeito operador ou do fazer (que compe), sujeito realizado pelo fazer e pela obteno dos valores desejados. Na fbula de Millr, o sujeito gato assume os papis actanciais de: sujeito do no-querer-fazer (quando deparou com o caro do gato domstico que sorria de sua aflio, do alto do copo), mas sujeito do saber e do poder-fazer; sujeito do querer-fazer (depois da proposta da barata), sujeito competente (quer, sabe e pode salvar a barata), sujeito operador (o gato ento virou o copo), sujeito no-realizado (no obtm, com a perfrmance, o valor comida, desejado).

    Se os percursos so definidos pelo encadeamento de programas narrativos, emprega-se, para denomin-los, a noo de actante funcional. Assim, o percurso caracterizado pela seqncia lgica dos programas de competncia e de perfrmance chama-se, como se viu, percurso do sujeito. Esse sujeito no mais o sujeito de estado ou o sujeito do fazer, e sim um actante funcional definido por um conjunto varivel de papis actanciais. H na caracterizao do sujeito algumas determinaes mnimas, entre as quais se encontram a de ser o sujeito de estado afetado, de alguma forma, pelo programa de competncia e a de ser o sujeito realizador da perfrmance ou, ao menos, competente para realiz-la. Os demais papis actanciais faro que o sujeito seja diferente em cada texto. Jaso e o gato no cumprem os mesmos papis actanciais, mas so ambos manifestaes do actante sujeito, em seus respectivos textos.

    O percurso do sujeito representa, sintaticamente, a aquisio, pelo sujeito, da competncia necessria ao e a execuo, por ele, dessa perfrmance. H diferentes espcies de programas de competncia e de perfrmance e maneiras diversas de se encadearem os programas, havendo, por conseguinte, percursos do sujeito diferenciados em cada texto.

    O percurso do sujeito no o nico tipo de percurso encontrado na organizao narrativa. Existem dois outros mais: o percurso do destinador-manipulador e o percurso do destinador-julgador.

    No percurso do destinador-manipulador, o programa de competncia examinado no na perspectiva do sujeito de estado que recebe os valores modais, mas do ponto de vista do sujeito doador ou destinador desses valores, O destinador-manipulador o actante funcional que engloba vrios papis actanciais, entre os quais se encontra necessariamente o de sujeito doador de valores modais. ele, na narrativa, a fonte de valores do sujeito, seu destinatrio: tanto determina que valores sero visados pelo sujeito quanto dota o sujeito dos valores modais necessrios execuo da ao.

    As aes do sujeito e do destinador diferenciam-se nitidamente: o sujeito transforma estados, faz-ser e simula a ao do homem sobre as coisas do mundo; o destinador modifica o sujeito, pela alterao de suas determinaes semnticas e modais, e faz-fazer, representando, assim, a ao do homem sobre o homem.

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  • 31

    O percurso do destinador-manipulador contm duas etapas hierarquizadas: a de atribuio de competncia semntica e a de doao de competncia modal. A atribuio de competncia semntica est sempre pressuposta na doao de competncia modal, pois preciso que o destinatrio-sujeito creia nos valores do destinador, ou por ele determinados, para que se deixe manipular. Na fbula O gato e a barata, o gato, que sorri da aflio da barata (e j quase morria quando deparou com o caro do gato domstico que sorria de sua aflio, do alto do copo), no estava pensando em comida nem parecia considerar baratas um alimento muito desejvel. Os gatos domsticos so, em geral, bem nutridos e no precisam correr atrs de baratinhas. Foi o destinador barata que se ofereceu como um valor para o gato. S ao acreditar que valia a pena comer a barata, que a barata era um valor alimentar, que o gato cedeu manipulao, isto , passou a querer salvar a baratinha para poder, ao com-la, adquirir o valor a que comeou a aspirar.

    A segunda etapa do percurso do destinador-manipulador a de atribuio de competncia modal. Essa fase constitui a manipulao propriamente dita, em que o destinador doa ao destinatrio-sujeito os valores modais do querer-fazer, do dever-fazer, do saber-fazer e do poder-fazer.

    Na manipulao, o destinador prope um contrato e exerce a persuaso para convencer o destinatrio a aceit-lo. O fazer-persuasivo ou fazer-crer do destinador tem como contrapartida o fazer-interpretativo ou o crer do destinatrio, de que decorre a aceitao ou a recusa do contrato.

    No texto O gato e a barata, a barata prope o acordo de salvamento e persuade o gato, fazendo-o acreditar no interesse do contrato (como voc gosta) e confiar nela para o bom cumprimento do compromisso. Quando o gato pergunta Voc deixa mesmo eu engolir voc? e a baratinha responde Me saaaalva! Eu prometo, est em jogo o contrato de f. O gato interpreta a persuaso da barata, nela cr e aceita o acordo.

    O gato ento...

    Uma tipologia bastante simples prev quatro grandes classes de manipulao: a provocao, a seduo, a tentao e a intimidao. A relao da me com o filho passa, em geral, por todas as formas de manipulao:

    Tentao: Se voc come tudo, a mame leva voc para ver o filme da Mnica.

    Intimidao: Coma tudo, seno voc apanha!

    Provocao: Duvido que voc seja capaz de comer todo o espinafre!

    Seduo: Voc um menino to bonito e que gosta tanto da mame, voc vai comer tudo, no ?

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  • 32

    A ordem na manipulao depender da relao entre manipulador e manipulado. H os que comeam com a tentao e acabam na intimidao e vice-versa.

    Em Histria de uma gata, encontram-se dois exemplos de manipulao por tentao. No primeiro, o destinador-manipulador dono estabelece um contrato com o destinatrio-sujeito gata, em que o dono oferece gata valores positivos, que ela deseja, tais como alimentos, carinho, luxo, em troca de um bom comportamento, isto , no sair de casa, ser fiel, no se misturar com os gatos de rua, enfeitar a casa. A gata se deixa persuadir, acredita nos valores e no poder do dono, aceita o contrato e passa a querer-fazer o que lhe solicitado, para assim receber os valores contratuais.

    Me alimentaram me acariciaram me aliciaram me acostumaram. O meu mundo era o apartamento. Detefon, almofada e trato todo dia fil-mignon ou mesmo um bom fil.., de gato me diziam, todo momento: Fique em casa, no tome vento.

    O segundo caso de tentao ocorre quando a gata manipulada pelos gatos de rua, que a tentam com os valores positivos de liberdade e de identidade prpria, a que ela tambm aspira:

    Mas duro ficar na sua quando luz da lua tantos gatos pela rua toda a noite vo cantando assim: Ns, gatos, j nascemos pobres porm, j nascemos livres. Senhor, senhora, senhorio. Felino, no reconhecers.

    A fbula de Millr, O leo, o burro e o rato (1978, p. 43-5), pode bem exemplificar os percursos de manipulao por seduo e por intimidao.

    Um leo, um burro e um rato voltaram, afinal, da caada que haviam empreendido juntos1 e colocaram numa clareira tudo que tinham caado: dois veados, algumas perdizes, trs tatus, uma paca e muita caa menor. O leo sentou-se num tronco e, com voz tonitruante que procurava inutilmente suavizar, berrou: Bem, agora que terminamos um magnfico dia de trabalho, descansemos aqui, camaradas, para a justa partilha do nosso esforo conjunto. Compadre burro, por favor, voc, que o mais sbio de ns trs (com licena do compadre rato), voc, compadre burro, vai fazer a partilha desta caa em trs partes absolutamente iguais. Vamos,

    1 A conjugao de esforos to heterogneos na destruio do meio ambiente coisa muito comum.

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  • 33

    compadre rato, at o rio, beber um pouco de gua, deixando nosso grande amigo burro em paz para deliberar.

    Os dois se afastaram, os dois foram ao rio, beberam gua2 e ficaram um tempo. Voltaram e verificaram que o burro tinha feito um trabalho extremamente meticuloso, dividindo a caa em trs partes absolutamente iguais. Assim que viu os dois voltando, o burro perguntou ao leo: Pronto, compadre leo, a est que acha da partilha? O leo no disse uma palavra. Deu uma violenta patada na nuca do burro, prostrando-o no cho, morto.

    Sorrindo, o leo voltou-se para o rato e disse: Compadre rato, lamento muito, mas tenho a impresso de que concorda em que no podamos suportar a presena de tamanha inaptido e burrice. Desculpe eu ter perdido a pacincia, mas no havia outra coisa a fazer. H muito que eu no suportava mais o compadre burro. Me faa um favor agora divida voc o bolo da caa, incluindo, por favor, o corpo do compadre burro. Vou at o rio, novamente, deixando-lhe calma para uma deliberao sensata.

    Mal o leo se afastou, o rato no teve a menor dvida. Dividiu o monte de caa em dois. De um lado toda a caa, inclusive o corpo do burro. Do outro apenas um ratinho cinza3 morto por acaso. O leo ainda no tinha chegado ao rio quando o rato o chamou: Compadre leo, est pronta a partilha! O leo, vendo a caa dividida de maneira to justa, no pde deixar de cumprimentar o rato: Maravilhoso, meu caro compadre, maravilhoso! Como voc chegou to depressa a uma partilha to certa? E o rato respondeu: Muito simples. Estabeleci uma relao matemtica entre seu tamanho e o meu claro que voc precisa comer muito mais. Tracei uma comparao entre a sua fora e a minha claro que voc precisa de muito maior volume de alimentao do que eu. Comparei, ponderadamente, sua posio na floresta com a minha e, evidentemente, a partilha s podia ser esta. Alm do que, sou um intelectual, sou todo esprito. Inacreditvel, inacreditvel! Que compreenso! Que argcia!, exclamou o leo, realmente admirado. Olha, juro que nunca tinha notado, em voc, essa cultura. Como voc escondeu isso o tempo todo, e quem lhe ensinou tanta sabedoria? Na verdade, leo, eu nunca soube nada. Se me perdoa um elogio fnebre, se no se ofende, acabei de aprender tudo agora mesmo, com o burro morto.

    Moral: S um burro tenta ficar com a parte do leo.

    No incio da fbula, o leo manipula o burro por seduo, ao apresentar uma imagem positiva da competncia, do saber do burro.

    Compadre burro, por favor, voc, que o mais sbio de ns trs (com licena do compadre rato), voc, compadre burro, vai fazer a partilha desta caa em trs partes absolutamente iguais.

    O burro deixa-se convencer pelo leo, nele acredita e aceita o contrato, procurando cumpri-lo de modo a confirmar as qualidades de sabedoria que lhe foram atribudas no processo de seduo.

    Voltaram e verificaram que o burro tinha feito um trabalho extremamente meticuloso, dividindo a caa em trs partes absolutamente iguais. Assim que viu os dois voltando, o burro perguntou ao leo: Pronto, compadre leo, ai est que acha da partilha?

    2 Enquanto estavam bebendo gua, o leo reparou que o rato estava sujando a gua que ele bebia. Mas isso outra fbula. 3 Os ratos devem aprender a se alimentar de ratos. Como diziam os latinos: Similia similibus jantantur.

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  • 34

    Se o leo no ficou satisfeito, seu descontentamento deveu-se ao fato de a seduo servir, na verdade, para encobrir um processo de manipulao por intimidao. A intimidao nem sempre faz bem imagem que os poderosos, como o leo, querem que deles se faa. Interessava ao leo matar o burro e ficar com a parte dele na caada, mas preferiu atribuir a culpa da morte burrice do burro e no sua prpria ambio e voracidade.

    O leo no disse uma palavra. Deu uma violenta patada na nuca do burro, prostrando-o no cho, morto. Sorrindo, o leo voltou-se para o rato e disse: Compadre rato, lamento muito, mas tenho a impresso de que concorda em que no podamos suportar a presena de tamanha inaptido e burrice. Desculpe eu ter perdido a pacincia, mas no havia outra coisa a fazer.

    O mesmo recurso utilizado para manipular o rato, que, no entanto, com base no exemplo do burro, l corretamente a intimidao, sob a aparncia de seduo. Quando o leo prope ao rato uma deliberao sensata, o rato no pensa em comprovar sua sabedoria na art da partilha, mas sim em fazer a diviso que o leo deseja. Interpreta bem a intimidao implcita: ou ele dava toda a caa ao leo ou o leo o matava, como fizera com o burro. O rato reconhece ser o leo capaz de cumprir ameaas e, para evitar os valores negativos que teme, v-se obrigado a atender s pretenses do leo. O final da fbula desmascara a intimidao:

    Na verdade, leo, eu nunca soube nada. Se me perdoa um elogio fnebre, se no se ofende, acabei de aprender tudo agora mesmo, com o burro morto.

    A fala de Joana, em Gota ddgua, ilustra a manipulao por provocao, ainda que malsucedida. Joana provoca Jaso, chama-o de boneco de farinha e de aproveitador, com o fito de conseguir que ele volte para ela e para os filhos, mostrando, dessa forma, no ser o mau-carter que ela diz. Jaso, porm, no aceita a manipulao, isto , no se preocupa em negar a imagem negativa que ela dele apresenta.

    Os exemplos examinados permitem organizar os tipos de manipulao segundo dois critrios: o da competncia do manipulador, ora sujeito do saber, ora sujeito do poder, e o da alterao modal, operada na competncia do sujeito manipulado.

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  • 35

    competncia do destinador-manipulador

    alterao na competncia do destinatrio

    PROVOCAO SABER (imagem negativa do destinatrio) DEVER-FAZER

    SEDUO SABER (imagem positiva do destinatrio) QUERER-FAZER

    INTIMIDAO PODER (valores negativos) DEVER-FAZER

    TENTAO PODER (valores positivos) QUERER-FAZER

    A manipulao s ser bem-sucedida quando o sistema de valores em que ela est assentada for compartilhado pelo manipulador e pelo manipulado, quando houver uma certa cumplicidade entre eles. No exemplo acima, Jaso pode escapar manipulao, porque no mais lhe importa o conceito que dele tinham Joana e seus amigos. Mudaram-se seus valores, interessam-lhe agora as opinies de Creonte.

    No se deixar manipular recusar-se a participar do jogo do destinador, pela proposio de um outro sistema de valores. S com valores diferentes o sujeito se safa da manipulao.

    Dos trs percursos narrativos propostos, examinaram-se dois, o do sujeito e o do destinador-manipulador. O terceiro percurso, o do destinador-julgador, responde pela sano do sujeito. A sano a ltima fase da organizao narrativa, necessria para encerrar o percurso do sujeito e correlata manipulao. Organiza-se pelo encadeamento lgico de programas narrativos de dois tipos: o de sano cognitiva ou interpretao e o de sano pragmtica ou retribuio.

    Na interpretao, o destinador julga o sujeito, pela verificao de suas aes e dos valores com que se relaciona. Essa operao cognitiva de leitura, ou melhor, de reconhecimento do sujeito, consiste na interpretao veridictria dos estados resultantes do fazer do sujeito. Os estados so, dessa forma, definidos como verdadeiros (que parecem e so) ou falsos (que no parecem e no so) ou mentirosos (que parecem, mas no so) ou secretos (que no parecem, mas so), e o destinador neles acredita ou deles duvida. Para assim interpretar, o destinador-julgador verifica a conformidade ou no da conduta do sujeito com o sistema de valores que representa e com os valores do contrato inicial estabelecido com o destinador-manipulador. Cabe ao destinador-julgador comprovar se o sujeito cumpriu o compromisso assumido na manipulao. A interpretao faz-se, assim, em nome de uma ideologia, de que depende o sentido do percurso narrativo realizado.

    Na fala de Joana, em Gota dgua, o reconhecimento do sujeito ocorre sob a forma do desmascaramento: Jaso parecia cumpridor dos compromissos assumidos com Joana, os filhos e os amigos, mas no o era. Joana o reconhece como um sujeito mentiroso, um boneco de farinha:

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  • 36

    porque o que eu no imaginava, quando fiz dos meus dez anos a mais uma sobre-vida pra completar a vida que voc no tinha, que estava desperdiando o meu alento, estava vestindo um boneco de farinha

    Em O gato e a barata, a barata mostra ao gato que ele interpretou mal, que no se deve acreditar em uma barata velha e bbada, mesmo que ela parea dizer a verdade.

    O poema de Guilherme de Almeida (1982), O bilhete perdido, constri-se a partir da questo da interpretao, isto , da determinao da verdade ou da falsidade e da crena nessa operao.

    Duas palavras s para dizer... o qu?

    Que no pude ir? Mas a senhora... mas... voc

    no pode acreditar numa histria como essa

    da gravata que a gente estraalhou na pressa

    da toilette; da dor de cabea qualquer;

    da visita de algum... que nunca uma mulher;

    da tentao do club; do amigo que se encontra

    na rua, e que casado e, portanto, bilontra,

    e que convida a gente e pe-se a recordar

    coisas do nosso tempo ante o zinco de um bar...

    No me desculpe. Eu penso assim: se ela inventasse,

    um dia, uma mentira e se eu acreditasse,

    que pensaria o mundo, e ela mesma, e mesmo eu

    deste meu pobre amor?...

    Um grande beijo.

    Seu

    Estraalhar a gravata, dor de cabea, visita ao club, amigo etc. so diferentes aparncias que o poeta desmascara, afirmando que no se pode acreditar nessas mentiras. Crer nelas significaria desculpar o sujeito que no cumpriu o contrato e falsear a sano. Nesse caso o compromisso de amor perder sentido.

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  • 37

    Na fbula O leo, o burro e o rato, o rato explica ao leo o que o levou a realizar partilha to justa. O leo reconhece seus valores e, assim sendo, sanciona positivamente o rato. O leo realizou as seguintes operaes de interpretao: num primeiro momento, diz que o rato no parecia arguto e sbio, embora o fosse (Olha, juro que nunca tinha notado, em voc, essa cultura. Como voc escondeu isso o tempo todo, e quem lhe ensinou tanta sabedoria?), em seguida, reconhece o rato como o heri verdadeiro, cumpridor do contrato de dar ao leo a parte do leo.

    O segundo programa narrativo no percurso do destinador-julgador o da sano pragmtica ou retribuio. O sujeito reconhecido como cumpridor dos compromissos assumidos julgado positivamente e recebe uma retribuio, sob a forma de recompensa. J o sujeito desmascarado, por no ter executado sua parte no contrato, sofre julgamento negativo e punio.

    A retribuio, como recompensa ou punio, faz parte da estrutura contratual inicial e restabelece o equilbrio narrativo, pois o momento de o destinador cumprir as obrigaes assumidas com o sujeito, na hora da manipulao.

    Os textos empregados para exemplificar a sintaxe narrativa oferecem diferentes casos de retribuio. Em Histria de uma gata, o sujeito no obedece ao contrato com o dono e, depois de julgamento negativo, recebe a punio de perder as mordomias.

    fui barrada na portaria, sem fil e sem almofada por causa da cantoria.

    A fala de Joana comea pela apresentao das contas, ou seja, pelo desmascaramento do sujeito, e termina com o castigo: S de ambio, sem amor,/tua alma vai ficar torta, desgrenhada,/aleijada, pestilenta... (p. 76).

    Em O gato e a barata, ao contrrio, no o sujeito que deixa de cumprir o compromisso, como nos exemplos anteriores, mas o destinador quem no assume sua parte do contrato. A barata, que afirmara ao gato deixar-se engolir, se ele a salvasse, quando livre no faz o prometido. O gato no recebe, assim, a recompensa esperada.

    A fbula O leo, o burro e o rato oferece um exemplo de retribuio positiva ou recompensa. O rato, interpretado como sujeito que realizou a partilha justa, tem como recompensa o direito de conservar a vida.

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  • 38

    Os trs percursos estudados do sujeito, do destinador-manipulador e do destinatrio-julgador organizam-se no esquema narrativo.

    Esquema narrativo As unidades sintticas da narrativa mantm relao hierrquica, que vai do programa ao esquema narrativo.

    Unidades sintaticas caracterizao actantes

    esquema narrativo

    encadeamento lgico de percursos narrativos

    actantes funcionais: sujeito, objeto, destinador, destinatrio

    percurso narrativo

    encadeamento lgico de programas narrativos

    papis actanciais: sujeito competente, sujeito operador, sujeito do querer, sujeito do saber etc.

    programa narrativo

    encadeamento lgico de enunciados

    actantes sintticos: sujeito de estado, sujeito do fazer, objeto

    A constituio de cada um dos nveis de organizao narrativa a que consta do quadro da pgina seguinte.

    O esquema narrativo cannico um modelo hipottico da estruturao geral da narrativa. Cumpre o papel de ser a organizao de referncia, a partir da qual so examinadas as expanses e variaes e estabelecidas as comparaes entre narrativas.

    O esquema narrativo retoma as contribuies de V. Propp. Os trs percursos componentes do esquema podem ser cotejados com as provas proppianas, qualificante, principal e glorificante. Para Greimas o esquema procura representar, formalmente, o sentido da vida, enquanto projeto, realizao e destino. No se pode ignorar, porm, que, embora se conserve o ponto de vista de Propp na definio do esquema, muitas mudanas ocorreram no estudo da narrativa. A principal delas parece ser o reconhecimento dos dispositivos modais da narrativa, que levam reinterpretao da sintaxe narrativa como uma sintaxe modal.

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  • 39

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  • 40

    O estudo da narrativa deixou de restringir-se ao exame da ao, para ocupar-se tambm da manipulao, da sano e da determinao da competncia do sujeito e de sua existncia passional.

    Para encerrar este longo captulo sobre a sintaxe narrativa, sero retomadas as duas definies de narrativa inicialmente propostas: sucesso de estados e de transformaes; sucesso de estabelecimentos e de rupturas de contratos. A primeira definio adota a perspectiva do sujeito e de sua ao; a segunda, a das relaes entre o destinador e o destinatrio-sujeito O esquema narrativo engloba os dois pontos de vista e simula a histria do homem. A partir de certos valores e de determinados contratos o homem age e transforma o mundo, procura desses valores. Ope-se, na busca, a sujeitos interessados nos mesmos valores e comprometidos com outros destinadores. Cumprido ou no o acordo, o sujeito, sua ao e os resultados dela s cobraro sentido quando reconhecidos e interpretados no quadro de um sistema de valores.

    Os esquemas narrativos, assim como as demais unidades sintticas, organizam-se hierarquicamente, podendo um texto contar com um esquema narrativo a que outros estejam subordinados.

    No texto de Jos Cndido de Carvalho, Toda honestidade tem sua fita mtrica (1972, p. 4-5), h esquemas hierarquizados e delimitam-se claramente os trs segmentos do esquema narrativo, embora a nfase no esteja no percurso do destinador-manipujador.

    CRAVINO DIAS, encharcado de gua de matar gato, subiu para o alto da torre da Igreja de Nossa Senhora do Parto e deu de gritar:

    Vou criar asa, minha gente! Vou virar aeroplano. Se morrer, meu bondoso primo Sicarino Dias, que mora em Morrinhos, est capacitado para mandar um relatrio de minha lavra ao pessoal do governo. Triste de Jacubais do Norte se meu relatrio abrir a boca. Fecha este ninho de sem-vergonhismo, de no abrir em derredor de cem anos. No fica uma reputao em p. Nem o sacristo Cravino Papa-Hstia escapa, que o maior beliscador de popa de moa que j vi. Meu relatrio, povo de Jacubais do Norte, pior que mordida de lobisomem em noite de sexta-feira. Pega todo mundo. pedir a Deus que meu relatrio no saia ventando pelos compartimentos do governo. E madeira de dar em doido!

    Diante de tamanha ameaa, Jacubais do Norte mobilizou os prstimos do Dr. Varjo Dourado, sujeito de muito respeito, de colarinho engomado, sempre de preto, do chapu s botinas. Nunca, em vinte anos, soltou uma risada. Quando esse boitat chegou na Praa da Matriz, recebeu de Cravino uma tijolada de desmontar os parafusos. Neste jeito empenado:

    Logo quem vem falar comigo! Varjo do cartrio! Esse, minha gente, no agenta meia sindicncia. Pega logo trinta anos de cadeia no abrir da primeira pgina. Com partezinha de lavrar escrituras, o maior dilapidador de vivas de Jacubais do Norte. No perde uma! Este boitat puxa o estandarte do meu relatrio. Para que esse avassalador papel no rolasse para as mos do governo, como uma cascavel de chocalho aceso, Jacubais do Norte fez uma subscrio de modo a limpar todas as dvidas de Cravino Dias, desde que mamou at que botou sapato no p. Cravino j desceu da torre da Igreja de Nossa Senhora do Parto com um cargo de bons

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  • 41

    dinheiros no cartrio do Dr. Varjo Dourado. Quando, tempos depois, o compadre Lulu Reis recordou o caso da torre, Cravino riu e explicou:

    Compadre, resolvi entrar para o relatrio, abaixo do escrivo Varjo Dourado e do Prefeito Santinho Gomes. Meu tempo de aeroplano j passou. Agora sou da caixa registradora.

    No percurso do destinador-manipulador, Cravino Dias manipula por intimidao o povo (aqueles que tm culpa no cartrio) de Jacubais do Norte, propondo-lhe, de forma implcita, um contrato: que lhe garantam uma boa vida, caso contrrio far chegar, com sua morte, s mos do governo, o relato de todas as falcatruas e sem-vergonheiras cometidas pelos do lugar.

    Cravino, na verdade, intimida o povo com a ameaa de um desmascaramento ou de uma sano negativa. A sano, utilizada como recurso de manipulao, mostra a hierarquia de esquemas.

    Esquema I

    Percurso do destinador-manipulador percurso do sujeito percurso do destinador-julgador contrato entre o governo e o povo de Jacubais do Norte, para que cada qual cumpra, honradamente suas obrigaes

    A ao do sujeito povo de Jacubais, na aparncia, d a impresso de bom cumprimento do contrato

    a sano positiva, pois as mentiras esto encobertas (o dono do cartrio e o sacristo so respeitados e recompensados, por exemplo)

    A ameaa de desmascaramento de Cravino conduziria ao julgamento negativo e punio aqueles que no cumpriram as obrigaes sociais e morais assumidas. A sano negativa empregada para a manipulao do povo de Jacubais do Norte e d incio a novo esquema narrativo. Nesse esquema, o papel de destinador cabe a Cravino.

    Esquema II

    percurso do destinador-manipulador

    percurso do sujeito percurso do destinador-julgador

    Cravino manipula o po- vo de Jacubais do Norte (os importantes do lugar) por intimidao

    o sujeito povo de Ja- cubais do Norte exe- cuta as aes de pagar as dvidas e de arrumar emprego para Cravino

    o sujeito povo de Jacubais do Norte sancionado positivamente e recebe a recompensa de evitar o desmascaramento e a perda das vantagens

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  • 42

    O texto mostra sobretudo os recursos utilizados pelo destinador Cravino para estabelecer o contrato de confiana e persuadir o destinatrio a aceitar o acordo. O destinatrio, para ser convencido, precisa acreditar em que:

    a) a ameaa o atinge em coisas que tm, para ele, valor (Triste de Jacubais do Norte se meu relatrio abrir a boca. Fecha este ninho de sem-vergonhismo, de no abrir em derredor de cem anos. No fica uma reputao em p);

    b) o destinador-manipulador pode (tem poder para) cumprir a ameaa. (Ele precisar, no caso, conhecer as falcatruas e sem-vergonhices que promete delatar. Mostra esse conhecimento ao mencionar alguns fatos: Nem o sacristo Cravino Papa-Hstia escapa, que o maior beliscador de popa de moa que j vi [...] Varjo do cartrio! Esse, minha gente, no agenta meia sindicncia. Pega logo trinta anos de cadeia no abrir da primeira pgina. Com partezinha de lavrar escrituras, o maior dilapidador de vivas de Jacubais do Norte. No perde uma! Este boitat puxa o estandarte do meu relatrio);

    c) o destinador-manipulador quer, realmente, cumprir a ameaa (o fato de ele subir no alto da torre da Igreja de Nossa Senhora do Parto e de deixar o relatrio com um primo, de nome e endereo citados, fazem crer em sua pretenso).

    Ao fazer persuasivo do destinador, acima descrito, segue-se o fazer interpretativo do destinatrio, que reconhece como seus os valores empregados na manipulao e acredita na capacidade do destinador em cumprir as ameaas. O destinatrio, assim persuadido, no tem escolha: ou se deixa manipular e fazo que o destinador deseja ou escapa da manipulao e sofre as conseqncias previstas na intimidao.

    O destinatrio aceita, portanto, a manipulao e o acordo proposto, para evitar os castigos e poder continuar a manter as aparncias e praticar impunemente as falcatruas sugeridas. Como sujeito, realiza, ento, a perfrmance exigida.

    Para que esse avassalador papel no rolasse para as mos do governo, como uma cascavel de chocalho aceso, Jacubais do Norte fez uma subscrio de modo a limpar todas as dvidas de Cravino Dias, desde que mamou at que botou sapato no p. Cravino j desceu da torre da Igreja de Nossa Senhora do Parto com um cargo de bons dinheiros no cartrio do Dr. Varjo Dourado.

    No percurso do sujeito, o sujeito povo de Jacubais do Norte executa a ao de pagar as dvidas de Cravino, garantir-lhe boa vida e compra, assim, o seu silncio. Consegue que Cravino desa da torre e aceite o emprego no cartrio. O desmascaramento, graas ao do sujeito, foi evitado e no se interrompeu, enfim, o reconhecimento positivo e o recebimento de recompensas, no percurso da sano.

    Cravino, por sua vez, muda de posio na narrativa. Em lugar de realizar o papel actancial de destinador-manipulador e julgador do povo de Jacubais do Norte, passa a ocupar a casa do sujeito das falcatruas e das sem-vergonhices

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  • 43

    encobertas e recompensadas: Meu tempo de aeroplano j passou. Agora sou da caixa registradora.

    Esto claros, nesta narrativa, os valores que a organizam e que permitem caracterizar a vida social pelas aparncias que ocultam fraudes e pela honestidade que o dinheiro compra. O desdobramento polmico aparece nos dois esquemas hierarquizados. Dessa forma a ao do sujeito importantes do lugar, com o fim de adquirir dinheiro e prazeres, priva desses valores o anti-sujeito vivas, moas etc. e impede, ao comprar Cravino, no s o desmascaramento do vilo, mas tambm o reconhecimento e a recompensa do verdadeiro heri.

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  • 44

    3 Semntica narrativa

    O captulo sobre a semntica narrativa examinar apenas e de modo bem superficial duas questes: a da modalizao e a das paixes dela decorrentes.

    No percurso gerativo, a semntica narrativa o momento em que os elementos semnticos so selecionados e relacionados com os sujeitos. Para isso, esses elementos inscrevem-se como valores, nos objetos, no interior dos enunciados de estado. Em Histria de uma gata, o sujeito gata est em relao de conjuno com os valores de alimento, abrigo, proteo e amor, inseridos nos objetos manifestados como fil-mignon, apartamento, carinhos.

    As relaes do sujeito com os valores podem ser modificadas por determinaes modais. A relao de juno existente entre o sujeito gata e o valor alimento est determinada, no texto, como uma relao desejvel a gata quer o valor alimento e possvel a gata pode ter a comida.

    Do mesmo modo, a relao do sujeito com seu fazer sofre qualificaes modais. A gata, ao ouvir os gatos de rua, passa a querer-fazer alguma coisa sair de casa para obter o valor de liberdade. A modalizao de enunciados de estado tambm denominada modalizao do ser e atribui existncia modal ao sujeito de estado.

    A modalizao de enunciados do fazer , por sua vez, responsvel pela competncia modal do sujeito do fazer, por sua qualificao para a ao, conforme se verificou nos itens sobre os programas narrativos de competncia e a manipulao.

    Tanto para a modalizao do ser quanto para a do fazer, a semitica prev essencialmente quatro modalidades: o querer, o dever, o poder e o saber.

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  • 45

    Modalizao do fazer Na modalizao do fazer preciso distinguir dois aspectos: o fazer-fazer, isto , o fazer do destinador que comunica valores modais ao destinatrio-sujeito, para que ele faa, e o ser-fazer, ou seja, a organizao modal da competncia do sujeito.

    Na organizao modal da competncia do sujeito operador, combinam-se dois tipos de modalidades, as virtualizantes, que instauram o sujeito, e as atualizantes, que o qualificam para a ao. O dever-fazer e o querer-fazer so modalidades virtualizantes, enquanto o saber-fazer e o poder-fazer so modalidades atualizantes. Joana, na fala citada, mostra que instaurou Jaso como sujeito, pela atribuio do querer-fazer (e tinha um puto dum medo de olhar pro mundo: E mesmo essa ambio que, neste momento/se volta contra mim, eu te dei, por engano), e qualificou-o para a ao de compor, graas ao saber-fazer (No sabia nada de mulher nem de samba). Joana deu-lhe, portanto, os dois tipos de modalidades necessrias realizao do fazer transformador.

    Em Psicanlise do acar, a usina e o bang modificam a competncia do acar quanto s modalidades atualizantes, pois o acar j queria e devia adoar, faltava-lhe o poder da purificao ou refinao.

    Na crnica Toda honestidade tem sua fita mtrica, o destinador Cravino altera a competncia do sujeito no que diz respeito virtualizao e leva-o a dever-fazer, para safar-se da ameaa de desmascaramento. O sujeito j se encontra dotado das modalidades atualizantes, pois sabe o que fazer para comprar o destinador e pode faz-lo.

    Resta mencionar que se estabelece um jogo de compatibilidades e de incompatibilidades de modalidades, na organizao da competncia. No texto acima citado, o sujeito importantes de Jacubais no quer pagar ou perdoar as dvidas de Cravino, tampouco arrumar- lhe emprego, no entanto deve faz-lo, devido intimidao. O dever- fazer dominou o no-querer-fazer nesse texto, embora em outros possa ocorrer o inverso.

    Testamento, de Manuel Bandeira (1961, p. 129), mostra muitas das relaes entre modalidades compatveis e incompatveis.

    O QUE no tenho e desejo que melhor me enriquece. Tive uns dinheiros perdi-os... Tive amores esqueci-os. Mas no maior desespero Rezei: ganhei essa prece. Vi terras da minha terra. Por outras terras andei. Mas o que ficou marcado No meu olhar fatigado, Foram terras que inventei. Gosto muito de crianas:

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  • 46

    No tive um filho de meu. Um filho!... No foi de jeito... Mas trago dentro do peito Meu filho que no nasceu. Criou-me, desde eu menino, Para arquiteto meu pai. Foi-se-me um dia a sade... Fiz-me arquiteto? No pude! Sou poeta menor, perdoai! No fao versos de guerra. No fao porque no sei. Mas num torpedo-suicida Darei de bom grado a vida Na luta em que no lutei!

    29 de janeiro de 1943.

    H no poema incompatibilidades entre o querer e o saber ou o poder, ou seja, o sujeito quer fazer, mas no o sabe ou pode. Faltam-lhe esses elementos de competncia, e, por conseguinte, o sujeito no se realiza pela ao, no obtm os valores almejados, ao mesmo tempo que se conserva como sujeito virtual, que quer. O poema mostra, porm, que pelo fato de no-saber-fazer (No fao versos de guerra./No fao porque no sei.) ou de no-poder-fazer (No tive um filho de meu./Um filho!... No foi de jeito.../[...] Criou-me, desde eu menino,/Para arquiteto meu pai./Foi-se-me um dia a sade.. ./Fiz-me arquiteto? No pude!), o sujeito virtual do querer desenvolveu um outro saber e um outro poder, qual seja o de fazer na fantasia e na imaginao, o de criar na poesia. Para isso, no lhe falta competncia.

    A determinao e a organizao da competncia modal do sujeito permitem substituir as casas vazias ou neutras da emisso e da recepo, na teoria da comunicao, por sujeitos dotados de competncia modal varivel (Greimas, 1983, p. 115) e abrem caminho para um melhor tratamento das relaes intersubjetivas.

    ModaIizao do ser A lingstica e a semitica temeram sempre o psicologismo e evitaram a recada nos estudos de caracteres e de temperamentos, que durante um certo tempo marcaram os estudos do texto. Com medo de incorrerem no mesmo erro, deixaram de lado certos aspectos imprescindveis do exame do texto. O amadurecimento e a segurana, atualmente alcanados nas anlises discursivas, permitiram semitica avanar na abordagem das paixes, sem temer um retrocesso no caminho duramente percorrido. Os resultados dos estudos da modalizao do ser foram, sem dvida nenhuma, fundamentais para esse avano.

    Dois ngulos devem ser examinados, na modalizao do ser: o da modalizao veridictria, que determina a relao do sujeito com o objeto, dizendo-a verdadeira ou falsa, mentirosa ou secreta, e o da modalizao pelo querer, dever,

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  • 47

    poder e saber, que incide especifica- mente sobre os valores investidos nos objetos. As modalidades veridictrias articulam-se como categoria modal, em /ser/ vs. /parecer/.

    (Greimas e Courts, s.d., p. 488)

    Com a modalizao veridictria substitui-se a questo da verdade pela da veridico ou do dizer verdadeiro: um estado considerado verdadeiro quando um sujeito, diferente do sujeito modalizado, o diz verdadeiro. Parte-se do parecer ou do no-parecer da manifestao e constri-se ou infere-se o ser ou o no-ser da imanncia. O rato da fbula O leo, o burro e o rato interpreta o leo e suas aes: ele parece leo, autoritrio e opressor, na voz tonitruante, ao dar as ordens, ao matar o burro, e o rato infere que ele leo. S o burro acredita na tentativa do leo de esconder sua ferocidade (coro voz tonitruante que procurava inutilmente suavizar, berrou:; Sorrindo, o leo voltou-se para o rato). O burro incorreu no mesmo erro de interpretao que o gato da fbula O gato e a barata. O gato, como bem lembrou a barata, apesar da aparncia pouco confivel de uma barata velha e bbada, concluiu que ela era sincera e nela acreditou. J em Toda honestidade tem sua fita mtrica, o