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Bem-vindo ao futuro do pretérito

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André Carlos Moraes

Bem-vindo ao futuro do pretérito

Editora Ponto da Cultura

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Esta obra está licenciada pelo Creative Commons Atribuição 3.0 Brasil (CC BY 3.0)

Você tem a liberdade de:Compartilhar — copiar, distribuir e transmitir a obra.Remixar — criar obras derivadas.Sob as seguintes condições:Atribuição — Você deve creditar a obra da forma especificada pelo autor ou licenciante (mas não de maneira que sugira que estes concedem qualquer aval a você ou ao seu uso da obra).Ficando claro que:Outros Direitos — Os seguintes direitos não são, de maneira alguma, afetados pela licença:

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Aviso — Para qualquer reutilização ou distribuição, você deve deixar claro a terceiros os termos da licença a que se encontra submetida esta obra. Contrato em formato jurídico no site http://creativecommons.org/licenses/by/3.0/br/

A reprodução do conteúdo deste volume está autorizada no todo ou em parte, desde que mantida referência ao nome do autor e nos termos da licença reproduzida acima.

Versões eletrônicas do texto podem ser obtidas gratuitamente em http://andrecmoraes.sites.uol.com.br.

Contato com o autor pode ser feito pelo e-mail [email protected]

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Apresentação

STA É UMA COLETÂNEA de crônicas publicadas entre abril de 2010 e abril de 2011 no Jornal NH, de Novo Hamburgo, RS. Elas estão longe de

oferecer alguma coerência ou propósito, mas têm uma temática tênue em comum. Falam de modernidades e da forma de conviver com elas, anacronismos, utopias ultrapassadas e bobagens em geral. Muitas bobagens.

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Como acontece muitas vezes com crônicas, estas têm uma ligação muito forte com o momento em que foram escritas. São, portanto, produtos perecíveis. Algumas já começavam a cheirar mal no momento em que foram incluídas no livro. Quando chegarem ao leitor é provável que já estejam em decomposição ou mesmo totalmente ressequidas. Podres mesmo.

Para que, então, reunir e publicar este tipo de matéria morta? Além da vaidade que alimenta a indústria da chamada vanity press, este livro tem dois grandes propósitos. O primeiro deles é oferecer, a quaisquer leitores que tenham ignorado as crônicas na primeira vez que foram impressas, o prazer de voltar a ignorá-las na segunda, com a satisfação adicional de que agora podem ser ignoradas em formato de livro, o que é sempre mais chique. O segundo propósito é incomodar os poucos leitores que as tenham lido no jornal, e possivelmente não gostado. Tendo tido a satisfação de amassá-las e jogá-las

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no lixo junto com o resto da edição do dia, se veem agora novamente incomodados pelo seu retorno em livro, o que exige nova decisão de visitar a lixeira.

Claro que seria excesso de falsa modéstia assumir que este volume só tenha aplicações negativas. Também há coisas boas que podem advir dele. Haverá, sem dúvida, alguns proprietários do livro que tenham mesas ou armários com desnível e que darão as boas-vindas a um calço no tamanho certo. A esses, com toda a admiração e humildade, estas crônicas são dedicadas.

E desculpe pelas árvores mortas.

André Carlos Moraesabril de 2011

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Sumário

Hello world / 11Bem-vindo ao futuro do pretérito / 13 Lady Gaga e os Borg / 15Da importância dos trilobitas / 17A volta das figurinhas / 19A síndrome de Júlio César / 21 A verdade sobre o pão de queijo / 23A IBM no Show do Milhão / 25Tudo que é sólido / 27A globalização e os pães / 29 A vanguarda são as apólices / 31 O ruim e o pior do Oscar / 33Sopa de letrinhas tech / 35Inteligência emocional artificial / 37O Facebook, a Boeing e o boteco / 39A vingança de Montezuma / 41 Ver tevê dá muito trabalho / 43A “magia” de 2010 / 45My little article / 47Para ler o WikiLeaks / 49

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A nova frigidaire / 51Deus ex machina / 53O velho Quincas / 55Susan Boyle, mito da era digital / 57Encarar a música / 59Autoria desconhecida / 61Imprimindo em papel higiênico / 63Em caso de ingestão acidental / 65Ode ao lagarto atômico / 67A última não-sessão de cinema / 69Anubis e o horário político / 71Você e o diabo-da-tasmânia / 73A credibilidade irracional / 75Destrezas obsoletas / 77Sobre dirigir de madrugada / 79Não dá para matar livros / 81O retorno de Space Ghost / 83Os hermanos e o amigo Wilson / 85O último afiador de facas / 87Tecnologia para cefalópodes / 89O computador e o salamito / 91O trânsito e os não-lugares / 93As tecnologias sociais / 95Guitar Hero é o novo karaokê! / 97A bolha da guitarra virtual / 99Teste de destruição / 101No século 21 se aprende com os jovens / 103Vamos passar a sacolinha /105O iPad e o Altair 8800 / 107O novo faz de conta / 109A morte do urso multimídia / 111Lições erradas / 113Andy Warhol e o Twitter / 115A Última flor do Lácio / 117

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Precatório

Tem cinco pessoas na fila para dedicatória, mas por enquanto nenhum livro. Este, claro, não conta.

Segurem as pontas um pouco mais.

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Hello World

LÔ, MUNDO. DIZER isso, tradicionalmente em inglês, é um antigo costume para marcar a estreia

de um programador de computador iniciante (aliás, usar “antigo” e “computador” na mesma frase parece contradição, mas tudo bem). Ao longo dos anos, a expressão virou, para a tribo do mundo virtual, metáfora para o ato de começar algo ou inaugurar espaços. Vem a calhar, talvez, no início de uma coletânea de crônicas.

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Mas, voltando ao assunto principal, Hello World está se tornando uma arte perdida. Nas profundezas da década de 70, antes ainda da revolução dos computadores pessoais capitaneada por Steve Jobs, programação era uma trabalheira dos infernos. Era preciso decorar centenas de comandos e digitar dezenas de linhas de código só para fazer com que as máquinas volumosas e desajeitadas da época desempenhassem tarefas tão simples quanto imprimir um letreiro na tela. Daí a ideia da primeira missão entregue para os neófitos pelos professores e autores de manuais: executar a série de comandos para fazer a máquina dizer aquela frase que o pintinho da piada diz ao sair da casca do ovo. Hello, World!

Aqui no Brasil, com a reserva de mercado da informática nos anos 80, muitos viveram este período de

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forma anacrônica. Nos anos 90 ainda tinha gente se batendo com telas bruxuleantes de fósforo verde. Como por aqui alguns daqueles dinossauros binários levaram um pouco mais de tempo até a extinção, a gente acabou presenciando de forma mais abrupta o contraste das eras digitais no advento da sociedade da informação.

Daí caímos no século 21, onde felizmente a tecnologia não é tão crua e é, para usar uma palavra chique, ubíqua – está em toda parte. Programação ainda é uma trabalheira dos infernos, mas a grande maioria dos usuários não precisa encará-la. Nossos softwares humanizados (user friendly é o jargão do ramo) falam sozinhos. Você pode postar na Internet sem se dar ao trabalho de dizer antes Hello World.

Mas vale refletir se não perdemos algo no caminho. Se você tem que ficar horas se preparando para dizer só duas palavras, vai escolher duas que valham a pena. Talvez seja por isso, porque agora é tão fácil falar para o mundo inteiro sem ter que pensar um pouco antes, que a gente esteja se afogando num mar de bobagens. Alô, glub, glub, mundo.

(abril de 2010)

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A LÍNGUA PORTUGUESA o tempo verbal que alguns idiomas chamam de Condicional leva o

nome de Futuro do Pretérito, expressão que tem um certo ar paradoxal. Afinal, ou a gente está no futuro ou no passado, né? Pelo menos essa é a briga quando se tenta explicar o conceito para estudantes do primário. Mas um conflito temporal muito parecido vem à cabeça cada vez que lançam no mercado algum produto que a gente se acostumou a pensar como futurista.

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Um exemplo é o Kinect da Microsoft, antigamente conhecido como Projeto Natal. É um acessório que dispensa o joystick no console de videogame Xbox 360. Você interage com o aparelho só fazendo gestos ou até falando. Não dá para saber se vai pegar ou não, ou se vai funcionar bem ou não. O que vale comentar é que mais um pedaço do nosso futuro acabou de ir para o pretérito.

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É que máquinas operadas por gestos ou comandos vocais sempre foram província da ficção científica. Para conversar com R2D2 ou C3PO não era preciso apertar botões. HAL 9000 chegou a ter um ataque psicótico só de enxergar dois sujeitos fazendo fofoca sobre ele. No seriado Star Trek, o Capitão Kirk e o Senhor Spock, quando trocavam de sala, só chegavam perto e a porta deslizava sozinha. O viajante espaço-temporal Doutor Who, do cultuado seriado inglês, maravilhava sua assistente, lá nos anos 60, com um dispositivo que abria a porta de sua garagem sem que ele precisasse usar fechadura.

Se você for nerd o suficiente, pode conhecer os exemplos do parágrafo acima. A questão é que todos eles, que já foram delírios de ficção científica, ficaram datados. A porta de Spock e Kirk está em quase todos os supermercados e ninguém dá a menor bola. O videogame do seu filho agora reconhece voz e gestos, como os robozinhos e os supercomputadores dos filmes. E todo mundo usa o dispositivo do Doutor Who: chama-se portão eletrônico – ou, simplesmente, portão, porque já não há mais portões de outro tipo.

A sensação, sempre que algum sonho da ficção vira realidade, é que a coisa não é tão legal na prática. Que a porta do supermercado abra sozinha não quer dizer que você vá encontrar um Klingon lá dentro, ou que possa se teleportar da seção de frios para a sua cozinha. E mesmo que um dia dê para fazer isso, a sua cozinha vai continuar tão chata como sempre foi.

Os alienígenas Klingons, famosos pelos maus bofes, devem detestar videogame. E nerds.

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(novembro de 2010)

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Lady Gaga e os Borg

M BOM PASSATEMPO é de vez em quando dar uma checada nos clipes musicais que a gurizada assiste

no YouTube. Isso serve tanto para não ficar totalmente por fora do hit parade quanto para se atualizar com as “trends”, palavra chique que os consultores de tecnologia e administração gostam de usar para se referir às tendências em geral.

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Então, se você quer tudo isso, nada melhor que um vídeo da Lady Gaga. Comece com Poker Face. E, meu velho, ali tem trends para organizar um congresso de futurologia. Dá para fazer uma jornada de debates sobre o rumo da humanidade e do mercado consumidor só a partir da maquiagem da guria. Muito interessante, por sinal. Até virou moda entre a garotada o visual de Gaga no vídeo (tem vários tutoriais para reproduzir o look na Internet). Ela usa no lado esquerdo do rosto o que parece ser uma peça metalizada, na qual dá até para identificar uma cabeça de parafuso. É uma presença discreta, parcialmente coberta pelo cabelo, mas lembra vagamente um detalhe dos elmos usados pelos guerreiros gregos que se vê nos filmes 300 e Fúria de

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Titãs. Intencionalmente ou não, lembra também a personagem Seven of Nine, da série Star Trek. Aí vem um papo de nerd. No seriado de tevê e cinema Star Trek, há uma raça futurista chamada Borg. Os caras são ciborgues, mistura de máquinas com seres humanos. Têm metade da cabeça cheia de câmeras, sensores e outras tralhas. O corpo deles é repleto de acessórios mecânicos e eletrônicos, como aquele sujeito da propaganda de tevê que tem um canivete suíço nos dedos. Só que são vilões, justamente porque são inumanos. Seven of Nine é uma personagem que foi reconvertida em humana. Tiraram a parafernália da mulher, mas ficou um pedaço de metal na cara. Pensadores como Marshall McLuhan e Michel Foucault analisaram, no passado, como os meios de comunicação e a própria estrutura social acabam deixando marcas até físicas nos indivíduos. Isso vai desde a aliança no dedo e o fone de ouvido até, nos casos mais extremos, algo como aquela imagem do Prisioneiro da Máscara de Ferro do livro de Alexandre Dumas. A visão dos Borg, na ficção científica, seria esse fenômeno levado às últimas consequências. A gente (ainda) não chegou ao ponto de andar por aí com próteses tecnológicas na cara. Mas, como indica Lady Gaga, a ideia de fazer isso está começando a parecer fashion. Não estranhe se sua filha pedir para usar um parafuso como piercing.

(maio de 2010)

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Da importância dos trilobitas

ÚMERO 23. TRILOBITAS. Esta era a figurinha difícil do único álbum que colecionei até o fim, ainda na

infância, nos anos 70. O tema era zoologia – incluindo dinossauros, a grande motivação. Ficaram para o fim um casuar, que lá pelas tantas veio num pacote, e os trilobitas. Entre os dois anos que demorou para achar o último cromo, eventualmente trocado com um colega de aula, fiquei sabendo tudo sobre os malditos bichos. Trilobitas foram animais semelhantes a cascudos que chegaram a ser a espécie dominante no planeta. Sumiram numa extinção em massa um tempão antes dos dinossauros. Os motivos permanecem misteriosos. O que interessa no episódio é a paixão por buscar informações que a gente pode aprender a cultivar desde a infância, por assuntos tão banais quanto um álbum de figurinhas. Esta é uma experiência pessoal, mas para educadores e pais tem a ver com a necessidade de fornecer este tipo de motivação para as novas gerações. E aí vem uma dúvida. Como fazer a busca pela informação ser um desafio nesta época em que, justamente, a informação é tão abundante que parece perder o valor?

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O autor norte-americano David Weinberger, um dos criadores do Yahoo, analisa em seu livro A Nova Desordem Digital justamente o novo estado de coisas proporcionado pela superabundância de dados na qual vive a geração da Web 2.0. Ele comenta que está se evidenciando um lado social da informação, no qual os significados das coisas são construídos pelos usuários, que se tornam referência na busca e indexação. O Google, por exemplo, não só fornece relatórios das pesquisas. Ele os ordena pela quantidade de acessos ao site. A Wikipedia tem os seus verbetes ditados pelo interesse de usuários, não pela relevância histórica, como era feito na Enciclopédia Britânica. Este é um bom caminho, e de fato esta geração já foi chamada tanto de geração Google quanto de geração Wikipedia. Mas isto ainda não responde àquela pergunta lá do início. Onde se escondem as figurinhas difíceis? Em certos casos, a própria busca pelo conhecimento só é deflagrada pela dificuldade. É de se pensar se a organização da Web 2.0 baseada nos usuários não ajuda a ocultar a informação que ninguém busca ou que pouca gente sabe que existe. Neste sentido, paradoxalmente, a dificuldade de acesso à informação da época pré-Internet acabou treinando gerações no esforço crítico e saudável de correr atrás do próprio aprendizado. O que terá acontecido com os trilobitas?

(junho de 2010)

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A volta das figurinhas

Á SÃO QUASE 30 anos desde a Copa do Mundo de 82, quando a gente comprava um chiclete só para

colecionar a figurinha de jogador que vinha dentro do pacote. Até quem não gostava de goma de mascar economizava o dinheiro da mesada só para completar a coleção ou “bater” na escola. Era uma época não tão distante daquela de que falavam nossos pais, quando os “cromos” eram disputados a tapa. Afinal, mesmo ali, nos anos 80, o acesso à informação ainda era analógico, difícil. Havia revistas e havia televisão. Mas era isso. Para os guris interessados em futebol, figurinhas valiam muita coisa. E aí seria de se pensar que esta descrição toda fosse apenas digna de legenda de museu após quase três décadas de inovações, muitas delas atingindo especialmente a gurizada. Videogames, impressoras coloridas com qualidade fotográfica, celulares que tiram fotos de alta resolução, pesquisa na Internet, e-mail de celular com imagem anexada... Um ano atrás daria para apostar que figurinha era algo que não interessaria à nova geração. Coisa de velho. Purfa.

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Tá. Daí você lê no jornal que um caminhão foi assaltado e teve roubada uma carga de figurinhas da Copa. Depois ouve na tevê sobre outro roubo a uma tabacaria em que foram carregadas as tais figurinhas. Discretamente, ao passear pelo shopping, você vê com o rabo do olho uma garotada segurando álbuns e abrindo envelopinhos. Aí, um dia, escuta uma série de batidas com a palma da mão na mesa, acompanhadas de interjeições simultâneas de vitória e xingamento. Os guris estão batendo figurinha de novo! Admita: em pleno século 21, que você achou que não comportava mais este tipo de coisa, o negócio está bombando. Tudo bem, alguém vai falar que as tais figurinhas não vieram do nada. Durante os anos 90, a garotada continuou colecionando cromos, os famosos cards. Só que eram impressões especiais, com designs diferenciados e às vezes até recursos tecnológicos avançados de impressão, como relevos e reflexos de holografia. Era mais moderninho, entende? Mesmo as figurinhas mais convencionais tinham alguma multimídia por trás, de Yu-Gi-Oh a Sakura Card Captors. Mas o ressurgimento das figurinhas de futebol, em clássica policromia de off-set, é digno de fazer qualquer analista de tecnologia cair da cadeira. Talvez o amor brasileiro pelo futebol seja eterno. Talvez haja muito marketing atrás. Ou, talvez, guris ainda sejam guris. Que bom.

(maio de 2010)

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A síndrome de Júlio César

MA DAS PERSONALIDADES da Copa do Mundo não joga futebol, pelo menos não profissionalmente: é

a Shakira. E você não precisa ter visto a mulher cantando ou dançando na cerimônia de abertura para compreender isso. Basta raciocinar, por exemplo, que qualquer figura feminina que seja capaz de deixar o austero Joseph Blatter entusiasmado tem que realmente ser um furacão.

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Mas este artigo não era para falar da musa colombiana, por mais que seja um assunto, digamos, quente. Uma das músicas do show de abertura, o hit Hips don’t lie (“os quadris não mentem”, título bem a propósito), é um dos exemplos de uma coisa que parece estar ocupando a mídia nos últimos tempos: a síndrome de Júlio César. Coitadinho do romano César, que foi uma das maiores figuras da História e não teria nada que ver com a Shakira. Mas ele escreveu um livro, Sobre a Guerra da Gália, em que contava sua vitoriosa campanha na terra dos gauleses (vitoriosa, claro, do ponto de vista dos romanos, não dos gauleses). O livro era narrado na terceira pessoa. Tipo assim, César fez isso, César fez aquilo. Por este motivo brinca-se que Júlio César falava

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de si mesmo na terceira pessoa. As HQs do gaulês Asterix usam isso como piada. Pois o engraçado é que boa parte das cantoras pop de sucesso nos últimos tempos costuma fazer exatamente isso nas suas músicas. Rihanna, Lady Gaga, Shakira e outras têm vários hits cujos estribilhos ou introduções são a repetição exaustiva do nome delas próprias. A Xuxa também fazia isso. “A Xuxa vai dar um presente para os baixinhos.” O Chacrinha tinha esse mesmo papo. E o Pelé. Existe, talvez, um padrão aí, porque todos são figuras daquilo que se chamava um pouco impropriamente de cultura de massas. Pode ser que isso tenha a ver com algum tipo de marketing muito básico, com raízes meio antropológicas ou psicanalíticas. Seria um nível reconfortante e íntimo de tratamento quando alguém, para facilitar a vida da gente, suspende provisoriamente o “eu” e fala dele mesmo da maneira como a gente o chama. “Deixa isso para o pai.” “A mãe tá aqui.” Claro que as celebridades não são nossos pais, só fazem de conta que são. Assim, se alçam àquela autoridade “paterna”. E este é o ponto importante de a gente estar consciente desta síndrome de Júlio César. Tanto para evitar ser um consumidor acrítico quanto para manjar a conversa dos políticos, inalterada desde o César original. Lembra da frase? “De Cabral a Maluf, o melhor foi Maluf.” Isso dito pelo próprio.

(julho de 2010)

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A verdade sobre o pão de queijo

EMPRE ACHEI CURIOSO que, não importa a espelunca onde você encomende algum salgado para comer,

eles sempre aquecem antes de lhe entregar, mesmo sem pedir. Uma vez comentei isso com a pessoa com a qual estava tomando café. Tínhamos pedido pão de queijo, que, como sempre, veio aquecido. Mencionei que por mim aquela cortesia do estabelecimento era desnecessária. A pessoa me olhou sardonicamente e me iniciou na Verdade Sobre o Pão de Queijo: – Você está sendo ingênuo. Eles aquecem porque o pão era velho e estava duro. Os fornos de micro-ondas têm esta característica curiosa. Não importa de quantos dias o pão esteja dormido. Se você der uma aquecida nele, vai sair fofinho de novo. Portanto, a cortesia compulsória de muitos bares não é só excesso de gentileza. É um jeito de atochar pão velho no freguês. A moral da história não é que você deva parar de comer pães de queijo, mas sim que o capitalismo é uma coisa tão poderosa que chega a esquentar o seu pãozinho. Deve ser isso que os economistas querem dizer quando falam que o mercado está aquecido.

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E falando nisso, o papo sobre mercado aquecido esteve em alta nos últimos dias. Com a visita do presidente norte-americano ao Brasil, foram dias de longas discussões na mídia sobre parcerias comerciais. Basicamente, Barack Obama veio nos trazer um prato cheio de pães de queijo quentinhos. O truque é saber quais deles são recém-assados e quais saíram do micro-ondas. Não há dúvida que os EUA sempre foram e serão fortes parceiros comerciais, inclusive para a região. Só que a realidade internacional mudou bastante nos últimos tempos, com novas potências econômicas no mapa – incluindo o Brasil. Embora a terra do Tio Sam ainda tenha inquestionável supremacia militar, já não tem o peso político e financeiro de antigamente. Que o simpático e bem-intencionado presidente Palmer, quer dizer, Obama tenha vindo nos prestigiar não é uma gentileza assim tão desinteressada. Obviamente, nem as lideranças daqui nem as de lá precisam aprender o truque do micro-ondas. Tem bodegueiros espertos dos dois lados. Mas como cidadãos ainda temos que aprender a não idolatrar aquilo que vem de fora. Isso a gente nota até quando vê as entrevistas com populares que foram assistir a Obama no centro do País. Temos ainda resquícios daquela mentalidade que, antigamente, se chamava de “colonizada”. Claro que podemos gostar do pão de queijo do café. Mas não custa apalpar antes.

(março de 2011)

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A IBM no Show do Milhão

ESMO QUEM NÃO se liga em tecnologia lembra de quando pela primeira vez um computador derrotou

um campeão mundial de xadrez. Em 1997 o Deep Blue da IBM levou a melhor em uma série de partidas contra o multicampeão russo Garry Kasparov. Mas agora em 2011 uma proeza tão ou mais importante acabou de acontecer e teve visibilidade bem menor. É que outra máquina da IBM, o sistema Watson, ganhou uma rodada de Jeopardy nos EUA. É uma espécie de Show do Milhão do Tio Sam. Candidatos competem para ver quem responde mais rápido a perguntas do apresentador. Depois do Deep Blue, a IBM passou dez anos aperfeiçoando uma máquina especificamente para participar do jogo televisivo líder de audiência. Você pode pensar que não quer dizer grande coisa um computador vencer um quiz. Afinal, são informações. Mas aí vem a sutileza. O Watson entende linguagem humana, embora só em forma de texto. No Jeopardy, ele recebia digitada a pergunta da mesma forma que os adversários de carne e osso. As perguntas do show incluem enigmas, piadas e frases de duplo sentido. O

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desafio era fazer o computador entendê-las. E não valia acessar a Internet. Watson se saiu bem no conhecimento enciclopédico. Dentro do seu banco de dados havia, entre outras bagatelas, a íntegra da Wikipedia. Ele acertou nomes de escritores e localidades mesmo que descritos em forma de enigma ou a partir de detalhes esdrúxulos. Também entendeu algumas associações livres. Mas se deu mal com questões em que era preciso ter senso de humor ou fazer ilações emocionais. Errou, quem diria, qual é a tecla de computador que corresponde a “Aonde está o coração”. A resposta era Home, da expressão em inglês “Home is where the heart is”. Também deu uma mancada ao tentar adivinhar uma cidade norte-americana e chutar Toronto – que fica no Canadá. Sempre fez parte da imaginação popular o pensamento de que os computadores respondem perguntas. Só que não acontece nada se você digitar uma pergunta no seu PC. No caso do Watson, ele já tem alguma capacidade de oferecer resposta. Que o colosso da IBM tenha derrotado dois campeões veteranos do Jeopardy é uma grande façanha, embora menos vistosa que a vitória sobre Kasparov. Um dos adversários do computador, num lance desesperado, fez uma aposta de tudo ou nada. “A não ser que eu puxe a tomada do Watson vou perder se não fizer isso”, justificou. Aliás, dá o que pensar a frase ominosa com que o mesmo jogador, já derrotado, encerrou sua participação: – Dou boas-vindas a nossos novos mestres computadores.

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(março de 2011)

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Tudo que é sólido

CIDADE DE SÃO Leopoldo está começando a discutir um projeto de revitalização do Centro que,

entre outras coisas, limita as mesas de calçada dos barzinhos da Independência e troca todas as árvores da rua principal. A proposta recém entrou em apreciação popular e, certamente, vai ser modificada e aprimorada no todo ou em parte. Mas, de qualquer jeito, ela faz parte de um fenômeno mais amplo que é observável na região, o das cidades que se reinventam. Nos anos 80 fez um tremendo sucesso o livro do ensaísta Marshall Berman chamado Tudo Que é Sólido Desmancha no Ar. O título era emprestado de uma expressão de Karl Marx e o texto se propunha a discutir, justamente, como a chamada modernidade consiste em, de forma paradoxal, oferecer permanentemente tanto a aventura do novo quanto o terror de perder as coisas que se conhece e está acostumado. Um dos temas do livro

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eram as renovações arquitetônicas contemporâneas, que continuamente apagam e reescrevem o passado. Tudo isso parecia muito bonito e confortavelmente abstrato no livro. É o tipo de coisa que você lê, acha legal, discute em aula e depois esquece. Isso até ameaçarem demolir o lugar onde você cresceu. Parte do processo de amadurecer (ou, para quem quiser abolir o eufemismo, envelhecer) consiste em perceber o quanto se está enraizado nas coisas. Não interessa o quanto você se considere “moderno”, para usar o termo de Berman. Alguma coisa do passado sempre tem que estar por perto, caso contrário você vai se sentir tão vazio quanto uma calçada sem barzinhos. Claro que, ao mesmo tempo, é preciso efetivamente se modernizar. Afinal, você não vê mais carruagens andando por aí, nem dinossauros. Há uma evolução salutar e natural em todas as coisas. Isso inclui melhorias urbanas. Mas a tensão entre conservar e renovar é antiga e sempre tem alguém puxando para um lado. Nero queimou ou deixou Roma queimar só para poder reconstruir a cidade com base no seu próprio projeto. Parte do esforço dos institutos de patrimônio histórico consiste em continuamente renegociar até que ponto dá para refazer a paisagem em nome do novo. É uma coisa para a gente pensar. No desenho animado Tá Chovendo Hambúrguer, o mocinho morava em uma casa toda feita de gelatina. Talvez esta seja a imagem última da modernidade, habitar algo que está se desmanchando o tempo todo. As gelatinas têm sabor, assim como a nostalgia. O truque é acertar a proporção do conservante.

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(março de 2011)

A globalização e os pães

ASSOU PELA REGIÃO um padeiro alemão promovendo cursos com receitas típicas. Ele se surpreendeu por

encontrar algumas tradições culinárias ainda vivas entre os descendentes de imigrantes. Esse exemplo positivo poderia motivar uma reflexão. Se alguém quiser compreender como a globalização afetou profundamente a vida de todo mundo, não precisa grandes teorizações. Basta pensar no que aconteceu com os pães. Até os anos 70, havia uma curiosidade sobre pães em geral. Cada pão era único. Como o processo todo era artesanal, cada padaria e, mais, cada padeiro tinha uma receita diferente. A variedade de ingredientes e técnicas também mudava muito de um local para o outro. Aí acontecia, por exemplo, de você ter que atravessar uma cidade para comprar o pão do qual gostava, que só se

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achava em uma padaria. Mais ainda: se o estabelecimento fechasse, ou mudasse de padeiro, perdia-se aquele pão, às vezes para sempre. Uns tempos depois você achava uma outra padaria, lá longe, com um produto parecido. Foi a era dos pães lendários. Por isso havia clientes fixos e fiéis. Claro que sempre houve o pão francês, que era o mesmo em toda parte. Mas de resto havia muita variedade. A partir dos anos 80 começaram a se proliferar as redes supermercadistas, que tinham receitas padronizadas. Veio uma lenta e inexorável onda de fechamento de pequenas padarias. Como forma de se adaptar aos novos tempos econômicos, algumas delas, pasme, terceirizaram a panificação. Passaram a revender o pão que vinha de outro lugar. Esse processo, de uma forma ou outra, segue hoje em dia. E agora as redes hipermercadistas chegam a ter atuação continental. Tudo isso limitou as variedades de pão. Esse fenômeno parece ter atingido o auge nos anos 90. E aí começou a reação. A vingança dos padeiros. Começaram a ressurgir algumas confeitarias, agora oferecendo pães artesanais quase como um produto de luxo. Em pontos turísticos, como a Rota Romântica, muitos estabelecimentos redescobriram o atrativo de produzir pães “à antiga”. E as festas municipais em toda a região estimularam as receitas locais. Hoje dá para reencontrar alguns pães perdidos. Você só tem que pagar pelo preço que cobram as padarias de grife ou então gastar algum combustível percorrendo a Serra atrás daquele pão de milho que nenhum supermercado tem.

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Quer uma definição de capitalismo globalizado? Se quer uma fatia de pão melhor, vai ter que pagar. Ou então comer o pão que o Sistema amassou.

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A vanguarda são as apólices

MUNDO REALMENTE DEVERIA ser administrado pelos caras que redigem aqueles contratos de seguro. São

as únicas pessoas que pensam em tudo e têm visão de longo prazo. Veja, por exemplo, a situação do Egito. Todo mundo não para de comentar a confusão que a demora do presidente Mubarak em desocupar a moita causou no país. Destruição, protestos, caos nas ruas. No meio desta balbúrdia, só quem estava preparado devem

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ter sido as companhias de seguros. Toda apólice tem em letra miúda que a seguradora não se responsabiliza por danos causados por insurreições, guerras e agitações civis. Pode não parecer a melhor solução do ponto de vista dos pobres usuários, mas como precaução administrativa é nota dez. Se você ainda não fez isso, leia por inteiro o seguro do seu carro, da sua casa ou do seu plano de saúde. É uma coisa de vanguarda. Todo contrato tem aquelas cláusulas que listam as circunstâncias excepcionais nas quais o seguro não vale. Mas a maioria dos mortais não tem a menor ideia de quão variadas são as tais circunstâncias excepcionais. Só para se ter uma noção, quase todo contrato tem uma seção inteira esclarecendo que a seguradora não é obrigada a pagar em caso de consequências funestas do uso de energia nuclear. Você pode até pensar que eles estão querendo dizer que não cobrem acidentes com aparelhos de raio X, equipamentos de hospitais ou mesmo de laboratórios de pesquisa. Mas não é só isso. Às vezes há uma cláusula mencionando especificamente o uso de armas atômicas. Se uma bomba nuclear explodir na sua garagem, não tente acionar o seguro. Um contrato desses é inclusive boa ficção científica. Só duas bombas nucleares atingiram civis em toda a História. Mas se acontecer de novo, os caras estão preparados. Tudo bem, os leitores que forem corretores ou advogados vão dizer, com razão, que essas coisas são uma característica de qualquer contrato, inclusive com bases jurídicas e técnicas bem estabelecidas. Afinal, uma salutar cautela seria aplicável até ao que a gente

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chama de contrato de leitura, que é o acerto tácito entre quem escreve e quem lê um texto. No caso deste texto aqui, devemos estar todos de acordo que seguros e contratos são algo benéfico. Ainda que, às vezes, regidos por dispositivos que suplantam a capacidade imaginativa dos leigos. Na próxima eleição, você já sabe. Confira se o seu candidato tem experiência em redigir apólices. A essas alturas, é a melhor credencial.

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O ruim e o pior do Oscar

GORA NESTA ÉPOCA quem gosta de cinema não consegue fugir do assunto Oscar, mesmo que não

seja um fã de Hollywood. Como sempre, há vários maus filmes concorrendo a melhor filme. Mas também há boas produções disputando. E aí, justamente, é que vem a pegadinha. Porque só há uma coisa pior do que um filme ruim que ganhou Oscar: é um filme bom que ganhou Oscar. Pior ainda, então, é uma obra-prima que tenha ganho Oscar. Não, não é prevenção contra as premiações da Academia nem contra o marketing que inevitavelmente abocanha os vencedores. É um problema muito mais insidioso: o risco de tomar as estatuetas como parâmetro de qualidade. Não em termos absolutos, tipo avaliar o quanto algo seja bom pela quantidade de prêmios. Ninguém mais cai nessa. Mas ainda há quem só tome conhecimento de algo que efetivamente tenha qualidade a partir do momento em que houver algum tipo de premiação, mesmo tão contraditória quanto o Oscar. Esse princípio inclusive extrapola o mundinho do cinema. Muita gente seleciona os bons livros que vai ler pela lista dos best sellers. As relações dos mais vendidos

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têm muitas obras duvidosas mas, também, muita coisa boa. Umberto Eco e Luis Fernando Verissimo já pontearam os best sellers e ninguém em sã consciência vai dizer que são escritores ruins. O problema é a tentação de pensar que só vale a pena ler quem está na lista. Alguém talvez diga que listagens e premiações têm a vantagem de auxiliar o espectador ou leitor a fazer uma triagem básica no meio do caos cultural. Pode até ser, mas o perigo, justamente, é criar gerações de pessoas acostumadas a apreciar algo só depois de ter recebido alguma sanção oficial. As bibliotecas e locadoras estão cheias de bons livros e filmes de temporadas anteriores ou mesmo séculos passados. A diferença é que destes não se fala mais, e pouca gente tem a paciência de descobrir por si mesma o que é bom. Para não dizer que o papo está muito abstrato, essa síndrome do Oscar tem efeitos locais. Como saber se um filme daqui é bom, ou um livro? Aguardar um Oscar, um Nobel? Se você riu por achar remota a possibilidade de alguma obra da região ganhar prêmios dessa envergadura, isso já prova o quanto está involuntariamente contaminado pelas classificações de tipo hollywoodiano. Além do mais, se você se orientar só pelo Oscar, vai perder pequenos clássicos. Tipo Planeta dos Vampiros ou King Kong VS Godzilla. Puxa vida.

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Sopa de letrinhas tech

S COISAS IMPORTANTES – positivas ou negativas – quase sempre têm vários nomes. Deus, o diabo, os

órgãos genitais dos dois sexos e juiz de Gre-Nal têm, cada um, várias denominações. E mesmo o mais benigno dos chefes, como todo mundo sabe, tem numerosos apelidos. É ou não é? De uma maneira até bem prática, dá para avaliar pela quantidade de denominações o grau de importância que a gente dá às coisas. E aí vem o nosso problema dos últimos tempos, que é justamente derivado da importância que as máquinas ganharam nas nossas vidas. Tem muita gente perdida na poeira da pluralidade de nomes do mundo tecnológico. Só para computadores portáteis, são mais ou menos sinônimos os termos laptop, notebook e até “note” e “lépi”, conforme o grau de carinho do proprietário. Somando-se aí a marca ou o processador a coisa se complica ainda mais, porque o usuário pode se referir ao seu MacBook, Vaio, Pavillion e/ou combinações de processador e número do modelo – e aí ninguém mais se entende. O nome do bicho, para usar uma expressão bíblica, é legião.

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Parece ter ainda outra regra, que quanto mais portátil o troço mais nomes ele tem. Tem muitos proprietários que nem sabem mais o nome do aparelho que usam, entre MP4, MP5 (a numeração vai longe), iPod, Nano, mídia player e afins. E os aparelhinhos mais robustos podem se chamar handheld, palmtop, computador de mão ou então uma conjugação de todas as siglas acima e mais, com alguma sorte ou azar, alguma coisa telefônica misturada, originando pesadelos linguístico-tecnológicos como “meu smartphone touchscreen multimídia 3G com bluetooth e wifi”. E só para ajudar mais ainda quem estava tentando acompanhar as coisas, nesta faixa dos super-tudo-em-um-minúsculos-que-são-o-máximo tem iPhone, BlackBerry e uma meia dúzia de modelos numerados da Nokia e Motorola (cujos proprietários às vezes só os nomeiam pelos dois últimos algarismos, para complicar mais). E nem se fala nos mais exóticos e modernos iPad, Sony Reader, Kindle, Nook e aparentados. Depois de tudo isso, você ainda tem que rezar para o seu Wireless G não dar problema de DNS ou o seu AVI do Tube não ter enguiço no codec DivX ou Xvid. Sim, a sopinha de letras é um problema à parte, como bem sabem os usuários de PC (aliás, outra sigla). Mesmo os fãs de tecnologia podem ter alguma nostalgia do tempo das cavernas.

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Inteligência emocional artificial

OS ANOS 90 o norte-americano Daniel Goleman virou best-seller com seu conceito da Inteligência

Emocional. Ele se tornou guru da área de administração ao defender uma coisa que muita gente sabe intuitivamente: que inteligência, aquela coisa medida pelos testes de QI, não é garantia de coisa alguma. Como os testes só medem a destreza mental, dizia Goleman, eles não servem para avaliar o equilíbrio emocional, que é básico para definir quem é fácil de trabalhar, quem se sai bem nas mais diversas situações e, em última análise, quem é uma boa pessoa. Pois a minha sugestão é que alguém enfie nos computadores a tal inteligência emocional. Outro dia estava trabalhando em casa, cheio de diversas janelas de relatórios e consultas bibliográficas, e o Windows 7

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avisou que devido a uma atualização importante iria se reinicializar sozinho em 30 segundos. Durante este meio minuto eu deveria salvar qualquer trabalho que porventura não quisesse perder. Aparentemente, o antivírus e o sistema operacional se mancomunaram e decidiriam que não precisavam de mim por um tempo, por isso me mandaram sumir da frente deles. Estes recursos de autoupdate, autodiagnóstico e afins são rudimentos de inteligência artificial, criados para facilitar a vida do usuário. Mas este usuário aqui não esperava que sua máquina fosse tão esperta a ponto de lhe puxar o tapete e derrubá-lo na própria casa. Está certo, foi uma falha não ter desabilitado antes esta função. Só que, puxa vida, conheci o avô do Windows, trabalhei com o MS-DOS 3.30. É uma falta de respeito com os mais velhos. Outro exemplo. Uma vez estava consultando a empresa de cartão de crédito e o operador teve que pedir que eu esperasse. “Apareceu uma janela dizendo que o sistema está trabalhando. Temos que esperar para ver o que ele vai fazer.” Ou seja, ficamos nós dois, o operador e eu, aguardando o computador se manifestar. Parecia um conto de fadas que li uma vez, sobre um sujeito que vivia em uma pedra do lado de um dragão. Antes de fazer qualquer coisa, tinha que esperar o dragão parar de se mexer. Para alguns computadores (ou “sistemas”, que é a mesma coisa em outro jargão) não falta inteligência artificial. Falta inteligência emocional. Não adianta efetuar milhões de operações por segundo, possuir um núcleo com dois processadores e softwares altamente avançados se a interface em frente ao usuário se

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comporta como um homem das cavernas. É indispensável um mínimo de bons modos. Precisamos de inteligência emocional artificial.

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O Facebook, a Boeing e o boteco

OI NOTÍCIA HÁ alguns dias o recorde atingido pelo Facebook, que graças a uma injeção de capital

alcançou 50 bilhões de dólares em valor de mercado. Com isso, passou em valor bruto empresas mais tradicionais como a Boeing e até companhias virtuais da geração anterior como o Yahoo. A notícia, por si só, envolve duas realidades. Uma é que se consolida o fato de que as redes sociais, de fato, são uma revolução dentro da revolução. No meio da renovação geral trazida pelas tecnologias digitais e, dentro delas, da inovação nas comunicações representada pela Internet, as redes sociais são um capítulo à parte. Elas extrapolaram o mundinho dos técnicos e fanáticos por informática e viraram outra coisa. Estão ajudando a erguer um mundo novo que muita gente ainda nem sabe como é. Mas este é só o aspecto mais evidente do negócio. Na divulgação do recorde mercadológico do Facebook tem, sem que a gente se dê conta, uma lógica de valoração absoluta das coisas. Ao dizer que o site de relacionamento está valendo mais que a Boeing a gente, sem querer, aplica uma comparação entre coisas diferentes. Como se fazer aviões fosse menos

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importante do que fazer comunicação digital. As duas são atividades essenciais nesse século 21, mas no embalo do noticiário a gente pode ler a coisa do jeito errado. Alguém pode dizer que esse é um mal do capitalismo em geral, atribuir valor numérico às coisas. Que uma rede internacional de restaurantes tenha mais valor de mercado que um pequeno boteco familiar não quer dizer que a comida do segundo seja menos saborosa ou nutritiva. Até pelo contrário. O mesmo se aplica em outras instâncias nas quais a gente aplica valorações baseadas em “moedas” de tipo diferente. Um filme que ganhou Oscar não é necessariamente melhor do que um outro que não ganhou nenhum. Um cantor que está vendendo muito não é, apenas por isso, melhor que outros. Os melhores livros não são, em geral, os que vendem mais. E isso nos traz de volta ao calcanhar de aquiles da própria Web 2.0. Porque a lógica social da nova Internet é, justamente, baseada na valoração dada pelos usuários. Então, o Facebook vale muito porque é acessado e usado por milhões. No caso, o capital dele são as relações das pessoas. Uma causa nobre. Mas o capitalismo é cruel justamente porque tende a sufocar os que não estiverem capitalizados. Lembre-se disso como usuário. Não deixe de valorizar o que for “menor”. Precisamos do Yahoo e até da Boeing. Isso sem falar no boteco da esquina.

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A vingança de Montezuma

EM COMECE A ler esta crônica se você for adulto demais para falar de videogame.N

Montezuma’s Revenge era um jogo de 1984 em que você fugia das armadilhas da tumba do último imperador asteca. Mas Montezuma acabou levando a melhor: hoje o próprio game, obsoleto, é uma tumba quase inalcançável. Agora, na era do YouTube e outros relicários digitais, as recordações de todo mundo estão sendo recuperadas. Não importa se o cara tem saudades do Ultraman, do Vigilante Rodoviário ou das propagandas do Guaspari, tudo se acha na rede ou em mídia digital. Está tudo voltando para você, dizia o antigo slogan do canal saudosista Boomerang. Só com os games isso não acontece. Os jogos eletrônicos, logo eles que nasceram de olho no futuro, envelhecem mais rapidamente que o

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resto. Pior ainda, eles são inapelavelmente enterrados pela obsolescência. Atari 2600, Super NES, Commodore 64, MS-DOS, Windows 3.1. Se o jogo da sua infância ou adolescência rodava nestas plataformas, você corre o risco de nunca mais escutar a musiquinha dele ou ver aqueles gráficos toscos que aprendeu a amar. Parece piada, mas tem toda uma geração que passou tanto tempo jogando videogame na infância quanto outros passaram em frente à tevê ou na pracinha. E não poder recuperar essas memórias parece anacrônico neste século 21 em que a Internet e a indústria cultural regurgitam tudo. Tudo bem, tem gente tentando. Muitas plataformas emulam – isto é, reproduzem – consoles e sistemas operacionais antigos. Tem softwares para que o seu computador faça de conta que é uma máquina de 20 ou 30 anos atrás, podendo rodar as velharias. Tem telefones celulares e outros gadgets que oferecem videogames das plataformas clássicas. Também há relançamentos, aqui e ali, de consoles antigos ou de coletâneas de jogos velhos para novas mídias. Mas são quinquilharias e, pior, funcionam pouco tempo. Uma coletânea destas lançada para Windows 98 ou mesmo XP pode já não rodar no Windows 7. Mesmo os emuladores têm vida curta. Ninguém ainda decidiu como salvar esta parte da cultura pop. Talvez seja preciso fazer o que os egípcios fizeram, desenhar o Pac Man e o Sonic em alguma parede de pedra para as gerações futuras ao menos saberem que foram importantes para alguém. Bem feito, dirá alguém. Ioiôs e piões de madeira nunca param de funcionar, nem tabuleiros de futebol de botão.

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Tudo bem, vocês têm razão. Agora nos ajudem a recuperar nossa infância.

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Ver tevê dá muito trabalho

EM UMA GERAÇÃO inteira que cresceu ouvindo os pais chamarem de teleburrinho quem via televisão

demais. A tevê brasileira tinha pouco mais de duas décadas quando começou a aparecer aquele consenso de que a programação era ruim e que não ajudava ninguém a ficar mais esperto. E isso que os caras não tinham vivido a era do Big Brother. Então, ficar em casa assistindo tevê era coisa de quem não tinha cabeça (embora todo mundo fizesse justamente isso). Só que agora, meu filho, a tevê anda tão complicada que Einstein teria dificuldade com ela.

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Nem se fala na programação. O pepino começa antes de você ligar o aparelho. Vamos supor que você não tenha uma tevê em casa ou queira comprar uma nova. Vai ter que decidir entre quatro tecnologias: CRT (o velho tubo de imagem), LCD, plasma ou LED. Sobrepostas a isso estão as resoluções, como Standard e full HD. Além disso, cada aparelho, independentemente, pode ou não ser HDTV ready, ou seja, compatível com o novo sistema digital brasileiro – que, por sua vez, pouca gente sabe o que é e, de qualquer jeito, só funciona em alguns lugares. Só para complicar um pouco mais, nem o formato é um só. Tem widescreen,

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flat, 4:3, uma série de nomes e números que indicam se o negócio é fininho ou compridinho. Isso aí tudo tem que estar decidido antes de você se esparramar na poltrona. Mas não pense que vai conseguir relaxar com os pés para cima, porque aí começa outra encrenca. Ninguém mais se entende sobre o padrão que está transmitindo ou recebendo. Nessa história de implantação progressiva do novo sinal digital, cada canal está de um jeito. Na tevê aberta, alguns mudaram de número: para assistir à transmissão digital, você precisa localizar o canal em outra frequência, bem acima daquela dúzia de opções dos seletores clássicos. Mesmo na tevê por assinatura, tem canais que estão transmitindo widescreen para todo mundo, de forma que se a sua tevê for das antigas vai mostrar tudo espichado. Outros dão opção, mas você tem que configurar no aparelho (em algum dos aparelhos, na verdade, que pode ser a própria tevê, o receiver de cabo ou a set up box da HDTV, não pergunte qual). Se você desistir de assistir aos canais e resolver olhar um filme locado, a complicação não diminui. Tem DVD, Blu-Ray, Blu-Ray 3D e, cada um, com todos aqueles formatos de tela. Para assistir com tarja ou não, você precisa, de novo, descobrir onde ativar isso no seu aparelho. No fim, os velhos tinham razão. Jogue fora o controle remoto e leia um bom livro.

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A “magia” de 2010

Á SE COMENTOU que este ano coincidiu em pouca coisa com a previsão do livro 2010: Odissey Two,

escrito por Arthur C. Clarke em 1982 como continuação do filme/livro 2001. Da parte de ficção, é claro, nada rolou, de monolitos gigantes a naves espaciais. Mesmo outras coisas mencionadas ali não se confirmaram, como a comunicação com os golfinhos. Nenhum demérito para o autor, afinal o que vale mesmo no gênero é a imaginação, não a acuidade profética.

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Mas tem outra coisa pela qual o autor de 2010 é conhecido que se aplica à nossa realidade. Ele, que também escreveu ensaios “sérios”, é o sujeito que criou as chamadas Leis de Clarke, que são corolários a respeito de ciência em geral. Os dois primeiros se aplicam principalmente ao mundo da pesquisa. 1. A maneira de testar os limites do possível é se aventurar um pouco dentro do impossível. 2. Quando um cientista velho e respeitado diz que algo pode ser feito, está provavelmente certo; quando um cientista velho e respeitado diz que algo não pode ser feito, está provavelmente errado. A terceira lei de Clarke é aquela que dá para identificar na nossa vida. Diz o seguinte:

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toda tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia. Recentemente, num daqueles “paus” periódicos do sistema, os colegas no trabalho começaram a perguntar se era preciso reza braba para que o servidor funcionasse. Em outra ocasião, alguém comentou que Steve Jobs tinha posto feitiçaria dentro do iPad para ele ser tão rápido. E todos nós costumamos dizer, quando um sujeito é bom em informática, que ele é um mago dos computadores. Como a arquitetura interna dos equipamentos eletrônicos está em um nível de sofisticação que passou há muito da compreensão dos leigos, a gente tem uma certa tendência de se referir a esta tecnologia em termos mágicos. Claro, nenhum de nós acredita realmente em feitiçaria. Mas, do nosso ponto de vista de usuários, tanto faz, quando estragar o laptop, se quem consertar o negócio for um técnico ou um pajé. Talvez o pajé até cobrasse menos. Claro que Clarke queria dizer que é para as culturas menos familiarizadas que a tecnologia pode parecer mágica. Se alguém aparecesse com um celular na Idade Média seria certamente chamado de bruxo, com alguma possibilidade de ser queimado na fogueira junto com seu Motorola 3G. Não é o nosso caso. Se bem que, quando aquele celular novo que a gente ganhou de Natal não funciona, a gente também tem vontade de jogar o troço na fogueira. Talvez até junto com quem inventou.

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My little article

GORA NA ÉPOCA dos presentes de fim de ano dá para notar nas lojas um dos efeitos colaterais da

globalização. Na verdade, nem precisa ir ao comércio, basta ligar a televisão. As marcas pararam de ser traduzidas. Conforme se esteja falando com o pessoal de TI ou de marketing, “traduzir” o nome de uma marca ou produto leva nomes diferentes, desde “localizar”, aplicado para software, até “regionalizar” para outras áreas. Seja como for, não estão mais fazendo isso, principalmente para brinquedos.

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Caso mais emblemático é a fadinha que acompanha Peter Pan. A personagem da animação da Disney, licenciada para uma porção de produtos infantis, se chamava por aqui Sininho. Isso lá nos anos 70. Pois agora, nesta época em que as marcas perpassam todo o globo, ela é vendida no Brasil como Tinker Bell, seu nome original em inglês. Isso tem a ver com marca registrada e também com economia de material

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promocional e industrial. Você não precisa ficar imprimindo letreiros diferentes, só toca o inglês para todo mundo. A Sininho a gente nota porque já teve outro nome. Mas o que não dizer das marcas que entram direto em inglês na vida das criancinhas? Você deve ter visto dezenas nas prateleiras, isso se os seus filhos não forem fãs de alguma delas. My Little Pony, por exemplo, é uma coleção de cavalinhos baseados nos desenhos animados. Cada personagem tem um longo nome em inglês. Para os guris a coisa é igual, com o agravante que os termos ficam parecendo algo saído do History Channel. Hot Wheels Octo Battle, Ben Ten Watch e por aí vai. Não é só com as crianças. Muitos programas de tevê e séries têm mantido os nomes originais. Desperate Housewives, Law and Order Special Victims Unit, The Event, Lost. Tudo isso mais parece exercício de aulinha de inglês, mas são as coisas que a gente assiste. Não se trata de preguiça das emissoras para fazer a tradução nem tentativa deliberada de sabotar nossa língua pátria. O fenômeno da comunicação planetária faz com que o marketing seja também global. Se o seriado é conhecido em todo o mundo como The Walking Dead, não vale a pena, por questão mercadológica, mudar o nome só aqui. Esse é um fenômeno que vale reconhecer e analisar, só que é meio inevitável. Seria até reacionarismo querer mudá-lo. Não dá para querer parar as engrenagens da História. Mas dá saudades do Homem de Seis Milhões de Dólares. Hoje seria The Six Million Dollar Man. Duro

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ia ser entender o seu filho na hora em que ele tentasse pedir o bonequinho.

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Para ler o WikiLeaks

MA DAS NOTÍCIAS em dezembro foi o site WikiLeaks, com seus milhares de documentos

diplomáticos “confidenciais” “vazados”. É uma grande fonte de informação tanto para curiosos quanto historiadores, e é compreensível que vários internautas e hackers do bem tenham se posicionado contra qualquer censura. Mesmo assim, é preciso colocar entre aspas as palavras “confidenciais” e “vazados”.

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Não há dúvida de que muita da correspondência diplomática divulgada pelo site foi publicada à revelia dos Estados Unidos e dos outros governos e trouxe

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dores de cabeça para eles, principalmente pela exposição na mídia. Então, isso seria, em termos, uma coisa positiva, porque aumenta o nível geral de informação. Essa é a visão bem-intencionada de parte da comunidade da Web, pelo menos. Mas diplomacia, é preciso lembrar, é uma arte de sutilezas. Boa parte dos documentos que o WikiLeaks divulga pertence àquela categoria que eventualmente teria divulgação pública em espaços como o Relatório Global Anual do Departamento de Estado norte-americano, os anais das comissões regionais da ONU ou mesmo os relatórios abertos da CIA. Todos esses têm montes de documentos na Internet que estão lá para consulta. Vários deles trazem informações interessantíssimas sobre a visão que as nações têm umas das outras e a geopolítica por trás disso. São só parcialmente confidenciais. Mesmo os que são qualificados como “restritos” são, digamos, vazáveis. Os papéis secretos de verdade nunca vêm a público. Você não vai encontrar um diplomata confidenciando que acha que George W. Bush cometeu crimes de guerra, por exemplo. Nem planos para invadir o Irã ou depor Hugo Chávez. Para entender o WikiLeaks é preciso levar em consideração que o “segredo vazado”, em diplomacia, pode ser apenas uma forma não oficial de anunciar algo ou fazer pressão. Um documento do site, por exemplo, revela a leitura que a diplomacia norte-americana fazia em 2009 da política ambiental brasileira. Dizia que o Brasil afastou a ministra Marina por ser muito inflexível em relação à Amazônia e que o País não queria admitir sanções contra países poluidores porque teria que

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controlar o desmatamento, o que poderia ser contrário ao crescimento econômico. Lendo isso, até parece que os EUA seriam os paladinos da ecologia, com o Brasil como vilão. Mas é preciso avaliar vários outros níveis para essa verdade, inclusive o interesse comercial norte-americano de longo prazo. Leia o WikiLeaks, mas dê uma temperada com sal.

(dezembro de 2010)

A nova frigidaire

UEM É DO século passado (Arrá! Do século 20, não do 19) certamente teve contato com aquela

geração que chamava a geladeira ou refrigerador de frigidaire. É que a popularização destes eletrodomésticos no País, entre os anos 30 e o pós-guerra, se deu principalmente através da marca Frigidaire. Como acontece muitas vezes com máquinas em geral, o primeiro modelo ou fabricante termina virando sinônimo daquela tecnologia para o grande

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público. A pronúncia variava, de “frigidér” até a literal mais tosca “frigidáire”. Quem era das novas gerações ria. Com o tempo, falar em “frigidaire” virou coisa de velho. É muito fácil, neste século da Web e do Twitter, fazer piada com a desinformação tecnológica dos nossos avós. Mas nós, os autointitulados cidadãos da Sociedade da Informação, não nos flagramos que estamos fazendo a mesma coisa. Há várias frigidaires em nosso cotidiano. Duvidou? Pense um minuto. Acabou de ser lançado no Brasil o iPad da Apple, aquele aparelhinho que este ano chegou a ser saudado como a própria personificação do futuro. Aliás, tem gente para quem o iPad era para ser uma espécie de Biotônico Fontoura: serviria para tudo. Para ler, trabalhar, escutar música, surfar, twittar, jogar e o que mais desse na telha. Nos Estados Unidos, uns caras estavam até usando o troço como skate, só de sarro. Mas voltando ao assunto, o iPad não é tão único na história da Humanidade quanto possa parecer. Ele faz parte, na verdade, de uma categoria inteira de aparelhos: os tablets. Analistas de tecnologia até concedem que ele inaugurou uma nova subcategoria, os tablets touchscreen. Só que nada disso parece fazer a menor diferença para a maioria de nós, que continuamos pensando no negócio como iPad. Os outros modelos da mesma classe por outros fabricantes, como o Galaxy Tab da Samsung, invariavelmente recebem o qualificativo de iPad “genérico”. Vai ser assim com os aparelhos da Nokia que vêm aí, ou com os inevitáveis modelos mais baratinhos de marcas menores da Ásia.

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O caso da Apple é o mais novo, mas a mesma confusão de marca com tecnologia está rolando em outras coisas. Tem gente que confunde Kindle com leitor de e-book. Tipo assim, “bonito esse seu Kindle da Sony”. E mesmo antes, você deve ter encontrado aqueles tipinhos que chamam o MP3 Player deles, por mais vagabundo que seja, de iPod. O iPad é a nova frigidaire. E você é igual ao seu avô. Com um discreto upgrade.

(dezembro de 2010)

Deus ex machina

EM UMA EXPRESSÃO que os críticos de teatro gostam, “deus ex machina”, “o deus saído da

máquina”, que é usada desde a Antiguidade. É uma tradução em latim a partir do grego equivalente, empregado por Aristóteles e outros pensadores nos comentários das peças clássicas. É que alguns teatrólogos gregos populares tinham o hábito de solucionar os problemas de seus protagonistas com recursos de última hora. Muitas vezes, um deus aparecia

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para o herói no último momento e sanava seus males. O ator que personificava a divindade era suspenso por uma grua ou máquina primitiva, que é a origem da expressão. Na crítica moderna a expressão deus ex machina identifica algo que é visto como um indício de narração ruim. A herança inesperada que resolve a vida do herói. O galã de novela que entra no capítulo final só para casar com a mocinha que tinha ficado sem ninguém. Nos filmes de aventura, então, isso é quase a regra. A cavalaria aparece na última hora, o herói acha uma bazuca no meio da ferragem para atirar no vilão, alguém inventa em segundos uma superbomba nuclear para acabar com o monstro. Mesmo os fãs de folhetins e filmes de ação reconhecem a artificialidade destas viradas na trama. Elas não tiram o divertimento do negócio, até pelo contrário. Mas, justamente por ser um recurso narrativo tão disseminado, o curioso é como a gente acaba se acostumando a esperar que o deus saído da máquina apareça no mundo real. Esperamos que o técnico consiga revolucionar o esquema de jogo na última hora e dar para a gente a vaga ou o título. Aguardamos que o governante eleito tire um coelho da cartola e resolva todos os males. Queremos ser salvos da falta de grana ganhando na mega-sena. A gente se acostumou a encarar a vida como se fosse teatro ruim. Ignoramos, às vezes inconscientemente, que não fazemos parte de uma narração, mas de um sistema caótico. Shakespeare, que é o contrário do teatro ruim, tem aquele famoso verso da peça Macbeth dizendo que a vida é uma história contada por um idiota, repleta de

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som e fúria sem qualquer significado. A frase ainda motiva o título de um famoso livro de William Faulkner. Talvez você seja um otimista e defenda que ficar no aguardo de boas surpresas faz bem para o espírito. Pode ser, inclusive, que esteja pensando que a única coisa contada por um idiota é esta crônica. Tudo bem. Talvez uma troca de atacante realmente salve o nosso time nos descontos. Mas imagine o Galvão Bueno gritando “Gol ex machina”.

(dezembro de 2010)

O velho Quincas

EU PAI COSTUMA contar uma história sobre um rato que viu em um restaurante de beira de

estrada, muitos anos atrás. Passou todo o almoço sendo atentamente observado por uma ratazana daquelas de esgoto, quase um ratão de banhado. No caixa, depois de

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ter pago, ele achou por bem avisar. O atendente sorriu e disse: – Ah, sim. Aquele é o Quincas. Ou seja, não só o ratão costumava aparecer frequentemente no restaurante, mas já tinha até nome. Era praticamente um funcionário. Desnecessário dizer que ninguém da família jamais voltou a comer ali. Lembro desta história cada vez que penso naquele tipo de problema crônico que nunca se consegue verdadeiramente resolver. A gente acaba se acostumando, a ponto de quase se afeiçoar. Tem um buraco em minha rua que é exatamente do tamanho da roda do carro, sob medida para fazer um baita estrago. Batizei-o de Tenório, em homenagem ao Homem da Capa Preta. É que de vez em quando alguém o cobre com asfalto e fica um remendo que dura por uns tempos. Depois o buraco volta. Provavelmente a única maneira de resolver seria reasfaltar a rua toda. Mas isso não vai acontecer no futuro próximo, então a vizinhança se acostumou. É quase um morador. A gente acabou de ver vários Tenórios agora nos debates eleitorais. Sempre que assisto a entrevistas de governantes que estão tentando reeleição, presto atenção nas caras que os candidatos fazem quando são questionados em relação àquelas mazelas que eles tentaram resolver mas que persistem. Confira nas próximas eleições. Perguntados sobre problemas crônicos, os candidatos que já passaram pelo Executivo reagem todos de forma parecida. Ficam um instante quietos, dão um suspiro ou mexem os ombros, concordam com a cabeça e começam pacientemente a explicar o que deu para fazer e o que ainda não deu.

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Fico esperando que um dia algum deles diga “Sim, é o Quincas”. Claro que ainda é nosso direito e até obrigação cívica cobrar permanentemente soluções para problemas graves, assim como temos o direito de não comer no restaurante do Quincas. Mas uma parte que podemos desempenhar nas soluções em geral é, também, avaliar prioridades e reconhecer que às vezes não dá para fazer mágica. De vez em quando, infelizmente, é preciso aprender a contornar alguns problemas. Desviar do Tenório. Nunca descobrimos por que o rato se chamava Quincas. Talvez fosse fã de Machado de Assis. Ou de Jorge Amado.

(novembro de 2010)

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Susan Boyle, mito da era digital

CANTORA ESCOCESA Susan Boyle acaba de lançar seu segundo álbum. Após o sucesso de vendas do

primeiro, aguarda-se um resultado razoável. É um talento vocal incontestável, ao contrário de algumas das divas pop dos últimos tempos. Claro que sempre vale refletir sobre a forma como ela ficou famosa. Sua notoriedade tem a ver um pouco com o estágio atual de tecnologia da mídia, mas tem também uma pitada de outra coisa, um aspecto que diz muito sobre nossa maneira de pensar.

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Não há quem pense em Susan Boyle sem lembrar do famoso vídeo que ainda percorre o YouTube mostrando sua surpreendente apresentação inicial em um show de calouros. E, na época, se você fosse conversar com as pessoas sobre o filminho, era inevitável algum comentário do tipo “ninguém dava nada por ela, e ela espantou todo mundo”. Tem um ingrediente aí que é, claro, o potencial da Internet para fazer a fama de alguém. No passado houve outras cibercelebridades instantâneas. O Tourist Guy é aquele sujeito que aparecia na falsa foto turística no atentado de 11/9. O Star Wars Kid é um gordinho que pagou mico mundial depois que coleguinhas colocaram

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na Web um vídeo dele imitando um guerreiro Jedi. A diferença é que para Susan Boyle a coisa funcionou a favor. É aquilo que o pessoal da publicidade gosta de chamar de marketing viral. Mas é preciso ter outra coisa para começar a propagação viral, algo mais básico. Afinal, vídeos de calouros existem milhares, mas só um deles criou uma Susan Boyle. É que este despertou o mito nas pessoas. O autor norte-americano Joseph Campbell, de O Poder do Mito, defendia que os mitos são nossa forma preferencial de compreensão do mundo. Os mitos são explicações que já vêm prontas, na forma de histórias com efeito moral. Valem para as tribos da selva e para as megalópoles, alcançam religiosos e ateus, letrados e iletrados. São de natureza mítica, ou seja, eternas, as histórias de superação como a de Susan, assim como as jornadas de aprendizado e as lutas do bem contra o mal. Tudo isso poderia servir para refletir sobre o quanto a gente encaixa as coisas em moldes psicológicos já prontos sem sequer notar. Às vezes não pensamos ou avaliamos as coisas pelo que são, mas pelos mitos nos quais as inserimos. Fazemos isso com celebridades, com candidatos, com os amores em geral. Tá. O papo todo quer dizer que você deve comprar o CD ou não? Sei lá. Como diria Joseph Campbell, siga seu mito.

(novembro de 2010)

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Encarar a música

M MINHA FORMATURA, duas décadas atrás, já estava na moda que cada formando escolhesse um

trecho de música para receber o diploma. Ainda hoje esta é uma das diversões que restam a quem está na plateia em cerimônias longas: conferir a música de cada um. Na época, estava mais preocupado com outras coisas e pedi que alguém sorteasse um trecho neutro de Paco de Lucia. Só que passei muitos anos tentando decidir, depois disso, qual música deveria ter escolhido para me representar. Após todo esse tempo, cheguei definitivamente à conclusão de que não é possível resumir em uma seleção de 40 segundos o gosto musical de alguém, muito menos sua personalidade. A música de formatura não serve, claro, para que avaliem a gente, mas a maioria das pessoas no salão de atos nunca mais vai ver a nossa cara, fora naqueles poucos segundos. E a impressão que terá de nós para sempre é aquela. Profundamente injusto. Mas é preciso encarar a música.

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Todo esse papo não é para reclamar das músicas de formatura em geral, mas das simplificações impossíveis. Como quando a gente vota. Que você tenha escolhido um candidato entre dois não diz tanta coisa assim sobre sua personalidade. Isso não faz de você bom ou mau,

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certo ou errado, um comunista cruel ou um capitalista pérfido. Só quer dizer que você fez uma opção entre aquelas que havia no momento. Mas acontece no Brasil um fenômeno curioso. Como muitos de nós passaram anos sob um regime militar, o País acabou se acostumando com um raciocínio do tipo nós-e-eles. Como se de um lado estivessem os bons, do outro os maus. De um os oprimidos, do outro os opressores. Vem embutida aí a falácia de que nosso futuro é feito de escolhas pétreas, que vamos abraçar ou o Lado Escuro da Força, como Darth Vader, ou o nobre caminho dos Jedis como Obi Wan. A coisa não é mais assim, se é que algum dia realmente foi. O impressionante é que o raciocínio mágico maniqueísta ainda é o modo básico de pensar de muita gente inteligente. Como se o destino de um país democrático não fosse a soma de pequenas escolhas ao longo de decênios. A última ou a próxima gestão não é o final feliz ou infeliz do livro, é apenas mais um capítulo de uma obra interminável, um livro infinito como aqueles que o escritor Jorge Luis Borges gostava de inventar. E há, ainda, que se preservar a biodiversidade político-cultural. Somos o país de Machado de Assis tanto quanto o de Paulo Coelho, de Padre Cícero tanto quanto do Capitão Nascimento. Solo de percussão em Just Like You Imagined, de Nine Inch Nails. Minha melhor tentativa de 40 segundos, 20 anos depois da formatura.

(novembro de 2010)

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Autoria desconhecida

AZ ALGUNS MESES, uma figura respeitada apresentou em um evento universitário um trabalho

que trazia como epígrafe um pensamento de Fernando Pessoa. Mas os conhecedores da obra do poeta português logo desconfiaram que o poema não parecia dele. De fato, pertencia a um outro Fernando mais obscuro, um professor paulista, que nas citações e reproduções da Internet acabou confundido com o homônimo mais famoso.

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Este fenômeno de creditar erradamente a autoria dos textos está se multiplicando neste século 21 com auxílio do meio digital. Claro que já vinha de um pouco antes. Uma das primeiras vítimas foi o argentino Jorge Luis Borges, que até agora alguns pensam ser quem escreveu aquele textinho do “se eu vivesse a vida novamente, não carregaria guarda-chuva”. Gabriel García Márquez, Mario Quintana e Luis Fernando Verissimo são outras vítimas frequentes. Coitadinhos, viraram compulsoriamente autores de textos com os quais não têm nada a ver. Um dos eixos da disseminação deste gênero de equívoco são as correntes de Power Point que chegam por e-mail. Aquelas com imagens e mensagens

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bonitinhas. Aparentemente, alguns dos que as criam, quando querem realçar a importância de algum texto, resolvem atribuí-lo a algum autor famoso. Claro que também há erros de reprodução. Alguém esquece ou perde o nome do autor original do texto. Aí, lasca aquele “Autor desconhecido”, que na verdade quer dizer outra coisa, “Não sei o autor”. Mais adiante, alguém na corrente acrescenta, talvez aleatoriamente, um nome famoso. É meio que uma glória agridoce, para um autor menos conhecido, ter um texto atribuído a algum escritor famoso. Pelo menos alguém que leu ficou suficientemente entusiasmado para passar adiante, ainda que tenha decidido rebatizar o negócio com outra marca de maior prestígio. O lado ruim é que os conhecedores do autor cujo nome foi indevidamente emprestado sempre vão dizer algo do gênero “Ele jamais escreveria esta bobagem”. Por essas e outras, não custa reforçar um conselho óbvio mas importante. Jamais cite um autor sem ter visto o livro e o trecho que está citando. Afinal, é até uma questão de legislação. Um último pedido. Se receber este texto por e-mail, faça um favor a todo mundo. Delete da caixa postal, independente do nome ao qual esteja creditado. Se porventura ele estiver atribuído a um autor conhecido, é estelionato involuntário. Isso nunca. É preferível a dignidade do oblívio.

(outubro de 2010)

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Imprimindo em papel higiênico

ARA QUEM SE liga em informática, sempre há novidades interessantes no chamado mundo do

código aberto, aquela comunidade que se dedica a criar coisas em conjunto e muitas vezes não cobra por elas. Entre os softwares disponíveis para os mortais comuns que não dominam o esoterismo da programação avançada está o Gimp, um editor de imagem semelhante ao Photoshop, porém gratuito. Mas o artigo não era para fazer propaganda do programa, embora ele seja uma boa dica de qualquer jeito. O curioso é que o Gimp tem uma função bem bizarra. Há os templates, que são formatos para a folha que o usuário usa, certo? A4, A3, ofício etc. Pois o Gimp tem uma opção de formato de papel higiênico. Toilet paper, no original em inglês.

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Há inclusive vários fóruns na Internet debatendo qual motivo teria levado os desenvolvedores do Gimp a julgarem necessário oferecer aos usuários a opção de

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imprimir em papel higiênico. Mas este é só o thread principal dos fóruns. Porque há subfóruns discutindo qual tipo de impressora mais adequado e qual tinta usar para, afinal, imprimir no toilet paper. Outras linhas de discussão buscam sugestões para o que printar para uso no banheiro. Os posts sugerem desde o rosto do seu guru/vilão digital preferido, de Steve Jobs a Bill Gates ou Larry Ellison, até coisas mais panfletárias, como a RIAA, a associação de gravadoras que vive perseguindo quem faz download ilegal. Independente do uso que os usuários queiram sugerir para o negócio, tem aplicações ainda mais curiosas para toaletes. Uma companhia de Taipei lançou um aparelho que imprime feeds de RSS (trocando em miúdos, notícias) no papel higiênico via conexão sem fio. Você pode configurar a sua própria fonte de notícias. E mais: um opcional do dispositivo é uma tampa de vaso sanitário, que registra o peso do usuário e o identifica a partir daí. Para a sua sogra, que é mais gorda do que você, o aparelho imprime um noticiário diferente do seu, ou dos seus filhos. Obviamente, o template de papel higiênico do Gimp não é a única coisa estranha no mundo dos softwares. Mesmo programas mais sisudos têm bizarrices. No Corel Draw, há a possibilidade de adotar o sistema de medidas da Roma Antiga ou da Grécia do período clássico. É o tipo de função que ninguém jamais usou, mas que os desenvolvedores acrescentam como curtição. É o lado nonsense da tecnologia.

(outubro de 2010)

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Em caso de ingestão acidental

OUVE UM TEMPO em que os fabricantes em geral quase não davam bola para o consumidor, desde

que ele consumisse. Felizmente isso diminuiu, em parte por causa da legislação. Agora há descrição pormenorizada de ingredientes, valor alimentício, composição, origem do material, SAC e por aí vai. Ainda há coisas a melhorar, mas é bem melhor do que naquela época em que as coisas simplesmente vinham num saco com o nome da marca.

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É até divertido, nesses novos tempos de fabricantes mais conscientes, ler nas embalagens as indicações sobre o procedimento a adotar em caso de ingestão acidental. Naturalmente, para pais e para quem realmente se encontrar nesta situação, é uma indicação preciosa que pode salvar vidas. Só que não deixa de ser engraçado você pegar, por exemplo, uma caixa de

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palitos de fósforo e ver instruções de como agir caso seu filhinho engula o negócio. Tem destes avisos nas coisas mais inesperadas, de escovas de pia a carvão vegetal. É um lado meio tragicômico da prevenção, mas pelo qual devemos ficar gratos. Outra coisa interessante são as instruções, que pertencem a três grandes categorias. Provoque vômitos e chame um médico; não provoque vômitos e chame um médico; e, simplesmente, chame um médico. Bons conselhos. Toda essa introdução servia para sugerir que alguém também colocasse avisos assim na propaganda eleitoral. Este ano algumas novidades já foram introduzidas, como a obrigação de imprimir o custo nas peças de campanha. Talvez na próxima eleição a Justiça também tenha a ideia de mandar estampar em algum lugar uma salutar precaução para o eleitor. O que fazer se alguém engolir a proposta do(a) candidato(a). Porque, vamos combinar, quase todos os políticos não deixam de ter uma ou outra proposta bem difícil de engolir mas que alguns, por desatenção ou apetite estranho, engolem assim mesmo. E o terrificante é que em certos momentos da campanha algumas destas coisas difíceis de digerir, venenosas mesmo, se tornam temas centrais. Às vezes, acompanhando o noticiário eleitoral, você se sente um bebê sozinho no supermercado em frente a um pote aberto de desinfetante sanitário. Colorido e com cheiro de frutas, pronto para ser engolido. O pior é o seguinte. Se depois percebermos que engolimos o que não devíamos, não saberemos quem chamar. Candidatos podem ser produtos bem

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ruinzinhos. Não vêm com instruções, não adianta vomitar e nem chamar o médico. E não interessa o quanto você reclame, ninguém devolve o seu dinheiro.

(outubro de 2010)]

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Ode ao lagarto atômico

OLLYWOOD ANUNCIOU QUE vai tentar fazer outro filme de Godzilla. Os norte-americanos tomaram

um prejuízo danado nos anos 90 com uma produção medíocre que tentava ser a versão Made in USA do clássico personagem dos estúdios Toho do Japão. Provavelmente esta nova tentativa também vá ser frustrante. Os EUA não entendem que Godzilla é um monstro nipônico. Não porque o estúdio que o criou é de lá, mas porque é um mito moderno da Terra do Sol Nascente.

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Quem não for nerd mas fizer questão de ler a crônica precisa se informar. Godzilla é um lagarto gigante radioativo que de vez em quando sai do mar e arrasa cidades japonesas. No filme original de 1956 dirigido por Ishiro Honda, chamado Gojira no Japão, ele era um monstro acordado por testes de armas. Era, sobretudo, uma metáfora para o terror nuclear do ponto de vista dos japoneses, que são o único povo na História que foi vítima de ataques com armas atômicas. Godzilla (nome ocidental do bicho) virou ícone e estrelou uma série de filmes. Na terra do Tio Sam eles têm seus próprios monstros. O escritor uruguaio Eduardo Galeano comentou uma

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vez que os “monstros desatados” do cinema fantástico norte-americano dos anos 30, como King Kong, eram analogias para a Grande Depressão. Outros, nos anos 50, poderiam ser entendidos como expressões de xenofobia ou anticomunismo, desde A Bolha com Steve McQueen até as formigas gigantes de O Mundo em Perigo (Them!, de 1954). Todos estes são parte de uma mitologia moderna dos EUA, expressando todo um misto de medos e preconceitos próprio do país do Pentágono. E no Brasil, temos monstros nacionais? Nosso País não é afeito à produção de cinema de fantasia, mas no período da ditadura militar alguns escritores usaram o realismo fantástico para exorcizar os fantasmas do regime, às vezes invocando figuras do folclore. É o caso de O Coronel e o Lobisomem, de José Cândido de Carvalho, uma metáfora do poder das oligarquias nordestinas. E no tempo da economia em polvorosa a Inflação era sempre representada como um dragão. Talvez, como país desencanado, a gente até possa se gabar de ter monstros menores. Mas que os gringos não se enganem, porque eles não são mais mansos por causa disso, nem causam menos medo. Apenas, a natureza do terror que inspiram varia conforme quem estiver em frente. Para alguns o Boitatá, para outros o Leão do Imposto de Renda. E nem se fala no variado bestiário de nossa política.

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A última não-sessão de cinema

ECENTEMENTE FUI ASSISTIR a um filme em Porto Alegre cuja sessão foi cancelada na última hora.

Na bilheteria, fui informado de que se tratava de uma cópia digital que vinha por disco rígido e que o download não tinha terminado ainda. Com o filme suspenso no limbo do ciberespaço, fui para casa junto com um pequeno grupo de espectadores frustrados.

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Ao longo dos anos, já tive essa experiência de dar com o nariz na porta da sala de exibição várias vezes. Na maioria dos casos, foi porque ou a programação mudou sem aviso ou o horário estava errado. Algumas vezes deixei de ver os filmes por falta de luz, outras por motivos mais curiosos, como ter derretido a película no projetor. Já vi sessões serem canceladas por falta de público, por falta de projetista e até por falta de filme, cuja cópia atrasou em viagem. Mas só agora, no final da primeira década do século 21, tive a grata surpresa de presenciar uma sessão sendo cancelada por atraso no download. Dá para fazer duas reflexões a respeito desta não-sessão de cinema. Uma delas é que os termos do mundo dos micreiros estão se imiscuindo na vida cotidiana mesmo do cidadão mais refratário à tecnologia. Fico

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pensando se o bilheteiro do cinema daria a mesma justificativa técnica de HDs e downloads lentos para algum titio que tivesse cara de não manjar coisa alguma de informática. Mas o titio que se prepare, porque o jargão informatiquês está se propagando. Os receptores digitais de tevê dão “pau” como os computadores e é preciso “resetar” ou “reinicializar” (leia-se, tirar o troço da tomada). Os celulares também. Os cartões de ônibus e até do metrô frequentemente dão “erro de leitura”, circunstância que tem de ser explicada e resolvida na corrida pelo cobrador, transformado numa espécie de suporte técnico de emergência. A outra reflexão é de cunho nostálgico/irracional. Estamos em plena fase de mudança, e começa o lento processo de abandono do rolo de filme, migração que não trará perda de qualidade (na verdade, em alguns aspectos a qualidade até melhora). Vai levar muitos anos ainda, e talvez nem todos os cinemas virem digitais. Mas a característica tripinha de celuloide que para nós é ícone da sétima arte pode estar com os dias contados, e com ela se vai um pouco de glamour. Nos festivais, o Oscar e o Kikito costumam ser representados envoltos em longos negativos. Qualquer dia, vão desenhar as estatuetas sentadas em uma pilha de HDs e chips. E provavelmente estarão com cara irritada porque a coisa deu pau.

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Anubis e o horário político

MAIORIA, COMPREENSIVELMENTE, não gosta de propaganda política na tevê. Mas além do dever

cívico de se informar, vale a pena assistir pelo menos uma vez. É muito divertido. Faça uma refeição leve, para não vomitar, e encare o horário eleitoral.

A

Um detalhe é que os principais candidatos de todos os cargos dedicam boa parte do seu tempo dizendo não o que vão fazer, mas o que não vão fazer. É o oposto de construir uma proposta. Talvez como forma de capitalizar a insatisfação ou o medo das pessoas, os caras só se definem pelas coisas que prometem evitar. E se promessa de político já é uma coisa raramente efetivada, imagine então uma promessa negativa. Esse negócio de declarações negativas lembra uma anedota histórica. Uma das obras mais antigas da Humanidade é o Livro dos Mortos do Antigo Egito, reunião de instruções sagradas para quem estivesse entrando no reino do Além. Os egípcios acreditavam que o morto renascia após a morte e era recepcionado por um deus com cara de cachorro, Anubis, que conduzia o recém-chegado até Osíris, o ser divino que era o soberano do além-túmulo. Havia todo um protocolo a cumprir, detalhado no texto sagrado.

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Uma das passagens mais interessantes do Livro dos Mortos é a que explica ao leitor uma declaração negativa que ele precisa pronunciar em frente aos deuses. É mais ou menos como a nossa certidão de bons antecedentes ou a negativa de débito. A diferença era que se você não tivesse o documento em ordem não ia parar no SPC ou Serasa mas no equivalente egípcio do Inferno. Justamente esta declaração negativa, que de certa maneira lembra os nossos políticos prometendo não fazer as coisas, é um negócio incrível. O roteiro de ações que o sujeito precisava dizer que não fez na vida era de arrepiar. Tem coisas que você jamais imaginaria que precisasse se lembrar de dizer que não fez. É de ruborizar até uma múmia. O problema é que negar, em certos casos, equivale a dar aviso prévio. Lembra quando aumenta a gasolina? Algumas semanas antes, o governo sempre anuncia que os combustíveis não vão subir. Aí você prepara a carteira. Uma vez um líder religioso radical japonês disse que ninguém devia fabricar gás sarin em casa. Todo mundo concordou. Poucas semanas depois, a seita dele promoveu uma chacina com sarin no metrô de Tóquio. Então, fique de olho nas negativas. Especialmente no caso de políticos ou de deuses egípcios com cara de cachorro. Se eles disserem que não vão morder você, fuja.

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Você e o diabo-da-tasmânia

M PASSATEMPO BEM moderninho é de vez em quando conferir os tópicos de discussão que estão

bombando no serviço de estatísticas do Twitter ou, melhor ainda, no Buzz do Yahoo, que é uma espécie de central noticiosa de blogs. É a modernidade, ou pós-modernidade, no seu momento de glória. Só para entender o que isso quer dizer, reflita sobre um dos tópicos que abafaram mundialmente na rede agora em setembro: a ameaça de extinção do diabo-da-tasmânia. E uma revelação incrível: mesmo que esteja lendo este artigo no alto de uma coxilha nos confins do Rio Grande, o destino do bicho tem a ver com você.

U

OK. Diabo-da-tasmânia é um marsupial (grupo dos gambás e cangurus) nativo da ilha australiana da Tasmânia (dã). O animal é classificado como espécie ameaçada porque só ocorre no local e não tem grande população selvagem. Só que há uns dez anos apareceu um câncer contagioso que ataca a criaturinha. Estima-se

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que entre 20% a 50% da fauna de diabos-da-tasmânia tenha sido dizimada. Até aí, não haveria motivo palpável para você se preocupar mais com o diabo-da-tasmânia do que com o sofrimento dos refugiados afegãos, das populações curdas ou das emas. Mas o tópico que bombou mesmo na Internet é que tem gente achando que os bichinhos estão sendo contaminados por poluição industrial. E pior ainda: bem no meio do mato, longe de qualquer fábrica ou algo que o valha. Para complicar, não é qualquer poluente. Os diabos-da-tasmânia estão sendo pesadamente saturados por um produto que os fabricantes usam nos computadores e nos carpetes para impedir que eles peguem fogo. Um agente químico tão onipresente no planeta que foi parar até na terra natal dos tasmanian devils. Ainda não é certo se foi ele que causou o câncer, mas de qualquer jeito os bichos estão envenenados. Bem é que o troço não faz. Dá para imaginar que o falatório nos blogs em torno da notícia esteja ligado ao papel que cada um de nós, usuários de PCs, inadvertidamente tem nessa e noutras catástrofes ecológicas. Aqui perto, mesmo, talvez as capivaras e preás já estejam sentindo o drama. Por esse e um milhão de outros motivos, seria, talvez, o caso de passarem a colocar nos computadores aquelas etiquetas de impacto ambiental que já vêm em alguns eletrodomésticos. Quanto ao diabo-da-tasmânia, talvez a empresa proprietária do personagem Taz (o mais famoso representante da espécie) possa financiar estudos para

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salvá-lo. Ninguém quer um mascote que acaba de ficar extinto.

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A credibilidade irracional

OR ALGUNS ANOS trabalhei em uma editora de livros de não-ficção. Publicar livros pode ser tão

interessante quanto lê-los ou mesmo escrevê-los. E é um daqueles trabalhos nos quais há muita gente disposta a honrar a profissão. Claro que de vez em quando ninguém escapa de publicar um livro ou outro meio duvidoso. Mas de uns tempos para cá venho acompanhando com tristeza o aumento de uma tendência oportunista de certos setores da indústria mundial do ramo. Especificamente, há uma coisa que daria para chamar de credibilidade irracional.

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Normalmente, no caso das obras de não-ficção (caso dos manuais, livros técnicos, biografias e afins), as editoras selecionam ou acolhem os autores com critérios parecidos com aqueles que os jornalistas usam para as fontes. Alguém tem credibilidade para determinado assunto quando tem ou a autoridade para falar sobre ele ou experiência no assunto. Ou ambas. Estes são os bons autores. Às vezes uma fonte que ganhou projeção em uma área acaba sendo ouvida também em outra. Mas este caso, que geralmente é o das pessoas famosas, é a exceção. É como perguntar para um jogador de futebol o que ele achou de um filme, ou o que pensa de política.

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Bom, justamente essa exceção sempre foi aproveitada editorialmente e isso não chega a ser um problema. Tem livro de receitas de George Foreman, guia de vinhos de David Niven e por aí vai. Compreensivelmente, são maneiras que as editoras encontraram de utilizar a fama de alguém para vender alguns livros. Ah, esqueci do guia de posições sexuais de Kim Cattrall, a atriz que faz a assanhada Samantha da série Sex & the City. Tudo isso sempre houve.

Só que recentemente a coisa começou a adquirir contornos meio estranhos. Imagine se você acharia adequados, por exemplo, um livro chamado Como Aprender Inglês Sem Mestre em 10 Lições de Joel Santana ou, ainda, um de George W. Bush com o título Diálogo Multilateral como Solução para a Paz Mundial. Nenhum destes livros existe nem está nos planos de qualquer editora (espero), mas estes casos hipotéticos servem para ilustrar a tal credibilidade irracional. É quando, no afã de explorar o oportunismo da notoriedade, o marketing aposta justamente naquele sujeito cuja fama negativa na área vai chocar as pessoas, na esperança de que o escândalo impulsione as vendas. Passeie pelas livrarias e você vai encontrar vários títulos nessa linha. É uma tristeza.

Confesso que compraria o livro do Joel.

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Destrezas obsoletas

AZ POUCO TEMPO foi aposentada a última impressora matricial nos arredores de minha mesa

no trabalho. A relíquia barulhenta da pré-história digital não deixou saudades. Mas com sua partida perdeu definitivamente a serventia uma das destrezas pessoais das quais eu mais me orgulhava: o segredo de desatolar formulário contínuo antes que o alarme irritante da printer começasse a tocar.

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Este é um exemplo das habilidades tecnológicas que a gente desenvolve ao longo da vida e que depois ficam obsoletas junto com o equipamento. Tem muitas outras, e o curioso é que, por exigirem aprendizado, algumas envolvem até um pouco de autoestima ou mesmo status. Não sei se o leitor pegou o tempo do vinil, mas era um feito digno de exibição em festas a capacidade de acertar com precisão a agulha do toca-discos no espaço branco entre as faixas para tocar só a música que se queria. Hoje basta pressionar uma tecla. Todos aqueles anos de treino se perderam. Esse fenômeno não é exclusivo do século 21. Lembro que uma vez estava brincando com o velho rádio da casa dos avós, conjugado com vitrola de 78 rotações, e não conseguia sintonizar direito. Meu avô se aproximou

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e explicou que era preciso ajustar o seletor principal e depois acertar com outro botão, de sintonia fina. “Mas o rádio do teu pai já faz isso sozinho”, explicou. Lembro que quando se organizou um museu com equipamentos desativados, um colega de serviço do setor industrial foi até a máquina com a qual anos antes trabalhava diariamente e acionou uma sequência de controles, executando a operação que havia decorado. A cena evoca aquela de Tempos Modernos, em que Chaplin saía da fábrica fazendo o mesmo gesto da linha de montagem. Fico pensando se não estaremos trapaceando a evolução. A raça humana incorporou ao longo de milhares de anos habilidades que não têm mais serventia, como matar leões e caçar mamutes. Mas esses instintos ainda ajudam em termos gerais. Os cursos de executivos gostam de despertar essas memórias atávicas como forma de estimular competitividade. Só que a tecnologia muda tão rápido que não vamos incorporar na memória da espécie as habilidades eletrônicas. Os bebês do futuro vão ter que vir com DVD de instalação. Manual em PDF já faz falta agora. Pena que não há como liberar os muitos megabytes ocupados com essas bobagens na nossa memória cerebral. Aliás, taí outra habilidade tecnológica defasada: liberar memória baixa no MS-DOS. E desconfio que só funcionava em monitores verdes.

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Sobre dirigir de madrugada

UEM DIRIGE BASTANTE de madrugada acaba inadvertidamente aprendendo verdades profundas

sobre os seres humanos e o universo em geral. Por exemplo, todos os bêbados dirigem com luz alta. Você vai dizer que não devia ter gente bêbaba dirigindo e tem razão. Mas tem horários em que nem mesmo a lei da gravidade as pessoas cumprem – tanto que alguns caras podres de borrachos nem caem sobre a direção. Se você vê um carro em ziguezague pela BR lá pelas duas, pode ter certeza de que quando criar coragem para ultrapassá-lo vai ficar com um holofote no espelhinho.

Q

Mas nem todo sujeito com farol alto é um gambá. Na verdade, luz alta à noite é uma filosofia de vida para muita gente. Há aqueles que ao ultrapassar carros no sentido contrário imediatamente aumentam a luz, não diminuem. É uma tática de segurança, para prevenir assaltos. E aí, quem diria, sua retina é vítima de fótons perdidos no meio da violência urbana. Aliás, o medo de assaltos é um impulso tão primordial e poderoso que se sobrepõe até ao instinto de sobrevivência. Na madruga você cansa de ver sujeitos que simplesmente atravessam sinal vermelho sem desacelerar. Para não dar sopa na sinaleira, o que até é

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compreensível, o cidadão se joga às cegas contra algum motorista desavisado que tenha pensado que o sinal verde significava que ele podia passar. Mas talvez aquele princípio de que dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo seja apenas outra lei que não se observa à noite. Há interessantes fenômenos astronômicos, em especial meteoros. Assaltantes tiroteando em alta velocidade, ricaços testando a aceleração de seus carros... Tem, contudo, coisa mais surpreendente. Porque romper as leis dos homens e até da Física ainda é, digamos, algo deste mundo. Pior é o mundo dos espíritos. Sim, dá para vislumbrá-lo de madrugada. Sabe a história da Mula sem Cabeça? Você pode ver motoqueiros fazendo corrida sem as mãos, às vezes até sem as mãos e os pés. E de vez em quando, nas noites mais sombrias de sexta-feira, depois que um condutor com uma cerveja na mão o ultrapassa no viaduto, você fica se perguntando onde é que estava a cabeça dele. Há quem trabalhe à noite e tenha medo de dirigir de madrugada. Outros ficam ranzinzas com qualquer barbeiragem que os atinja. Mas eles não sabem o que estão perdendo. Esqueça a psicanálise, a sociologia, a teoria do Direito. Quer conhecer os mistérios da alma humana? Acorde de madrugada e vá dirigir.

(agosto de 2010)

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Não dá para matar livros

ÁRIAS CIDADES DA região estão promovendo suas feiras do livro, tradição que inclui o megaevento

de Porto Alegre, realizado mais para o final do ano. E está acontecendo a Bienal do Livro em São Paulo, onde uma das atrações é o lançamento de um leitor nacional de livros eletrônicos. O Mix Leitor-D é um dispositivo desenvolvido no Brasil e semelhante ao Kindle da Amazon, um dos e-book readers de maior sucesso internacional até agora. O preço está meio salgado: o aparelhinho made in Brazil vai chegar às prateleiras na faixa dos 900 reais, mesmo preço dos leitores importados.

V

Talvez ainda seja cedo para avaliar se o mercado já está maduro o suficiente para o livro eletrônico em larga escala, embora seja um processo inevitável a longo prazo. Esta mudança pode acontecer num ritmo mais alongado, numa perspectiva histórica. Os livros são como os tijolos da nossa civilização, e as outras renovações dele, como a passagem dos rolos para o códex e a dos manuscritos para os impressos, aconteceram ao longo de séculos. A entrada dos e-books pode seguir padrão semelhante.

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Mas não era esse o assunto. Sempre que se fala em livro eletrônico muita gente reage, porque teme a morte dos amados livros. Isso pode advir da confusão que se faz entre duas coisas que na nossa cultura têm o mesmo nome. Uma delas é o calhamaço de papel colado. A outra é a reunião de informações gráficas em forma de texto e/ou ilustração. As duas se chamam livro, mas só a segunda é permanente. A primeira já mudou ao longo da História e vai mudar de novo – talvez não agora, mas eventualmente sim. É preciso sobretudo lembrar que o grande livro, aquele que nos segue desde o início da civilização, não morre. Pelo contrário, quem tentou matar livros não conseguiu. O historiador da Roma antiga Suetônio, autor da Vida dos Doze Césares, relata um episódio a respeito. O imperador Calígula, aquele que era mais louco que os outros, lá pelas tantas enfiou na cabeça que dois autores clássicos latinos, Virgílio e Tito Lívio, não prestavam. Ele dizia que eram cópias baratas dos poetas e dos historiadores gregos. Até eram, mas Calígula decidiu que precisava liquidar com todas as cópias de todos os livros deles, a fim de apagá-los da História. Não conseguiu. Muito tempo depois, durante o stalinismo, o Estado soviético também não conseguiu suprimir o livro Doutor Jivago, que circulava até em cópias datilografadas. Então, fique tranquilo. Nem um imperador romano, um dos sujeitos mais truculentos e poderosos que já existiram, conseguiu acabar com os livros. Já quando os patrícios decidiram acabar com o próprio Calígula, daí foi bem mais fácil.

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O retorno de Space Ghost

M AMIGO ENVIA um daqueles arquivos de Power Point (que, aliás, devem ser a terceira coisa mais

popular na Internet, logo depois do spam e dos sites pornôs). Só que no lugar das tradicionais mensagens bonitinhas este tem imagens de cartoons de antigamente. Capitão Caverna e afins. Depois, ao encontrar a turma, outro sujeito está curtindo a abertura do Elo Perdido que achou no YouTube. E em casa alguém, maravilhado, diz que começou uma reprise de Os Pioneiros no TCM. Ou então alguém liga extasiado com uma retrospectiva de Roxette anunciada no rádio.

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Se você passou dos vinte anos já arrisca ter encontrado pelo menos uma vez alguma destas situações. Quanto mais velho, claro, maior o risco, já que tradicionalmente a nostalgia é uma espécie de poço sem fundo onde nós os veteranos mergulhamos sem querer, sob grandes riscos de afogamento. Mas a turma atual, da fase pós-Internet, está atravessando um momento que,

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parafraseando o presidente da República, nunca houve antes na história deste país – ou deste planeta. Esta é a primeira geração que está conseguindo acessar boa parte das suas memórias de infância eletronicamente. A geração dos “teleburrinhos” como diziam os nossos avós, aquelas crianças que cresceram com a babá eletrônica televisiva a partir de meados dos anos 60, hoje está na meia-idade. E o peculiar é que já faz algum tempo que a indústria cultural começou a regurgitar justamente as memórias afetivas desta faixa etária. Nos anos 90 já tinham lançado uma caixa em VHS do National Kid. Tem canais de tevê por assinatura dedicados só aos “clássicos” da telinha, tanto animações quanto enlatados em geral. Claro que as companhias de mídia estão curtindo o bom negócio de reciclar velharias. Tem até uma teoria sobre isso: Chris Anderson, editor da revista Wired, escreveu um livro sobre o conceito da Cauda Longa, que é a vida útil estendida dos produtos culturais nesta era eletrônica. Vale estar atento sobre esta nostalgia eletrônica, tanto para não virar presa fácil do marketing quanto para conferir o que o fenômeno vai fazer com a turminha que vem por aí. Tem um filme de Wim Wenders, Até o Fim do Mundo, feito em 1991, no início da revolução digital, em que um grupo de pessoas caía em uma narcose coletiva depois de descobrir uma máquina que gravava e reprisava sonhos. Claro que o cenário descrito no filme pode só expressar a inquietude de uma geração ultrapassada pelos fatos. Vamos ver. Tomara que lancem logo o box do Space Ghost. E o dos Herculoides.

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Os hermanos e o amigo Wilson

AZ ALGUNS DIAS, dois chilenos que estavam detidos em uma prisão argentina fugiram durante a

noite. O vigia de plantão na guarita não tomou qualquer atitude porque era um boneco chamado Wilson. Como aqui, as penitenciárias da Argentina estão com séria deficiência de pessoal e os caras daquele presídio em particular resolveram armar um espantalho. Foi batizado com o nome da bola que fazia companhia a Tom Hanks no filme O Náufrago. Mas o Wilson argentino não se mostrou muito competente.

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Esta é uma daquelas notícias bizarras, aqueles acontecimentos que, embora às vezes trágicos, não deixam de ter um certo humor. Coincidentemente, há uma outra bizarria prisional famosa que até originou toda uma teoria sociopolítica. Trata-se do Panopticon, projeto de prisão criado no século 18 pelo inglês Jeremy Bentham. Era um presídio construído em forma cilíndrica. Nas paredes internas, viradas para o centro,

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ficariam as celas. No meio do círculo havia uma torre com janelas obscurecidas onde ficavam os guardas. De dentro da torre dava para ver todas as celas, mas os presos não tinham como ver os guardas dentro. Só sabiam que a vigilância vinha dali. O francês Michel Foucault discutiu o princípio por trás do Panopticon em Vigiar e Punir, sua famosa obra sobre as prisões. Ele partiu deste exemplo para ilustrar sua tese de que as sociedades em geral usam mecanismos de vigilância e intimidação para controlar os indivíduos, não só os criminosos. Não deixa de ser curioso que uma prisão que nunca foi construída tenha originado uma teoria aceita até hoje. O que tudo isso tem a ver com a trapalhada no presídio argentino? O princípio esboçado por Foucault seria aplicável para diversos dispositivos que se tornaram comuns na sociedade atual. Desde as câmeras de vigilância até o sistema automático que dispara um aviso para o setor de informática da empresa onde você trabalha cada vez que você tentar acessar um site pornográfico. O Panopticon, disse o pensador francês, é o pai dos modernos sistemas de vigilância remota nas prisões do primeiro mundo e precursor de diversas outras coisas. Até do boneco argentino que estava cochilando quando os chilenos chisparam. Tem panópticos mais discretos, como a fiscalização à paisana. Aliás, a fiscalização de direitos autorais talvez já esteja vigiando os vigias da Argentina. O Wilson original, aquele do filme de Tom Hanks, devia processar os hermanos por danos morais. E Foucault, se estivesse vivo, cobraria uma grana de royalties.

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O último afiador de facas

M DIA DESSES estávamos em casa e minha esposa perguntou que som era aquele vindo da rua. Um

longo acorde de flauta composto por duas notas, seguido por um floreio terminando em crescente. Repetia-se após um pequeno intervalo de silêncio. Um afiador de facas! Há pelo menos dez anos não escutava a tradicional assinatura sonora que entre 30 e 40 anos atrás era um ruído tão cotidiano quanto hoje as sirenes e os misturadores de cimento. Não cheguei a ir até a calçada, mas imagino que o afiador estivesse a bordo da característica bicicleta adaptada de sua profissão, com um esmeril no guidão e os badulaques do ofício pendurados.

U

O momento nostalgia inicial consistiu em recapitular aqueles avisos acústicos de antigamente. Os vendedores de picolé ainda usam suas cornetas, mas outros profissionais ambulantes foram desaparecendo até a quase extinção. A peculiar matraca de percussão dos vendedores de waffle, por exemplo, sumiu em algum lugar no passado. Talvez algum portal do tempo materialize um deles de vez em quando, da mesma forma que o afiador.

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Também fiquei pensando o que aconteceu com todas aquelas facas e tesouras sem fio. As pessoas continuam usando, mas aparentemente não precisam mais afiá-las. O aço inox e as microsserrilhas são menos propensos a perder o gume. Talvez, também, o capitalismo industrial tenha finalmente adestrado os consumidores no hábito de comprar novos objetos no lugar de fazer a manutenção dos antigos. Ou, ainda, é concebível que nesta época de refeições prontas e bufê a quilo ninguém mais tenha tanta necessidade de usar facas de cozinha em primeiro lugar. Enquanto o afiador de facas ia se distanciando e o som de sua flauta desaparecia no ruído de fundo urbano, refleti que provavelmente a escassez de clientes obriga os poucos profissionais do ramo a rondas cada vez mais amplas e espaçadas, até mesmo abarcando mais de uma cidade. Talvez leve anos até se escutar um deles de novo em minha rua. É de se pensar, finalmente, nas profissões menos “sonoras” que desaparecem aos poucos em silêncio. Entregadores de pão, leiteiros, ferreiros... Especialistas dizem que em 50 anos quase todas as ocupações atuais serão anacronismos e mesmo as profissões que permanecerem estarão muito diferentes. Pode ser que próximo de nossas aposentadorias, ou mesmo agora, alguns de nós também sejam representantes de categorias em extinção. Os afiadores de facas, ao menos, sumirão ao som de flautas. Talvez todos devêssemos ir treinando alguns acordes.

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Tecnologia para cefalópodes

E VOCÊ COMEÇOU a ler este artigo para entender o título, vamos facilitar logo sua vida. Cefalópode

quer dizer polvo (quem lembrou da zoologia lá do colégio sabia essa). É que depois do bicho profeta da Copa, perdeu a graça escrever “polvo” em títulos. Ninguém aguenta mais ler sobre isso. É só o que há. Então, para renovar o assunto, vamos ao papo sobre cefalópodes.

S

Na verdade, o papo é sobre tecnologias e probabilidades. Todo mundo ficou impressionado com os “acertos” do polvo Paul quanto aos resultados de jogos. Mas todos compartilham a concordância tácita de que se trata de palpites aleatórios. Casualmente, o polvo é o sujeito que acertou todos. Tinha também um periquito adivinhando, mas a ave errou o campeão. Nunca tente concorrer com um molusco. O cefalópode é o mais recente exemplo de um princípio investigado há cerca de 15 anos pelo guru de

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tecnologia Ray Kurzweil. Em seu livro The Age of the Spiritual Machines, o autor especulava sobre computadores de um tipo diferente, que fossem capazes justamente de uma espécie de adivinhação. A ideia seria resolver um problema não a partir da premissa inicial, mas das soluções possíveis. O negócio é brabo de entender. É mais ou menos assim. Você quer saber quanto é 2 mais 2 (tudo bem, até o polvo saberia essa, mas é um exemplo, certo?). Computadores normais exibem a resposta 4 por meio de uma tabuada que fica armazenada na memória da máquina (caso de certas calculadoras) ou então fazem uma operação algébrica, geralmente decompondo o algarismo em casas à maneira dos ábacos. Pois o computador sugerido por Kurzweil não faria isso. Ele “pescaria” a solução de um conjunto de todas as respostas possíveis. Para somar 2 e 2, ele partiria de todo o conjunto dos números naturais, descartando as respostas que não fossem satisfatórias para a pergunta inicial. Parece um jeito estranho de calcular, mas Kurzweil sustentava que funcionaria melhor para questões complexas. Pouco depois das especulações do autor, começaram as pesquisas sobre computadores quânticos, que prometem funcionar assim. A pegadinha é que nos tais computadores quânticos e na máquina de Kurzweil o desafio é filtrar rapidamente a informação certa no mar de possibilidades – coisa que nem se tem certeza de que dê para fazer. Como na Copa. Com todo mundo palpitando, em quem você vai confiar? No seu sogro que foi campeão da várzea ou no Galvão Bueno? No polvo? É. Futebol é uma caixinha de surpresas.

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O computador e o salamito

AZ ALGUMAS SEMANAS, já, meu computador morreu. Não estragou. Não deu defeito. Morreu.

Não chega a ser um luto, claro, mas é uma sensação de perda. Todo PC tem uma certa personalidade que, à sua maneira, é insubstituível. Nem se fala nas máquinas customizadas dos micreiros hardcore. Como o cavalo do Zorro, cada computador tem manhas que só o dono conhece. Tipo aquele tapinha estratégico que você tem que dar no gabinete quando o segundo HD não entra. Ou aquela placa gráfica meio solta que de vez em quando pede um aperto. As pequenas vicissitudes do convívio cotidiano.

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Agora, uma única coisa nunca falha nos computadores. Eles podem não funcionar conforme o manual, o sistema operacional pode agir erraticamente e o negócio inteiro pode se comportar das formas mais inesperadas, mas em hipótese alguma um PC deixa de cumprir rigorosamente a Lei de Murphy. Ou seja, ele sempre vai deixar você na mão no pior momento. Então, com prazos estourando e trabalho atrasado, era preciso tomar uma atitude rápida. Havia e-mails até do cachorro se acumulando na caixa de entrada (sim, recebo e-mails lindos de um cachorro). Não dava tempo de encomendar máquinas esculpidas com precisão suíça. Após uma rápida tomada de preços, uma surpresa: o melhor negócio com pronta entrega, incluindo marca conhecida e toda a configuração procurada, era um computador de supermercado. Não sei se você já comprou computador em supermercado, mas é uma curtição. Dá um pouco de trabalho na hora de se entender com o vendedor, já que o coitado do cara da seção de eletrônicos é encarregado tanto das cafeteiras e aspiradores de pó quanto dos Pentium Dual Core. No fim, a gente põe o computador num carrinho de compras e vai com ele para a fila do caixa. Depois disso era só pegar a garantia no balcão de saída, onde fui a ficha 2. A ficha 1 era uma senhora trocando um salamito. Como a coisa evoluiu! Vinte anos atrás, comprar computador era uma epopeia que incluía diversas negociações com o fornecedor a fim de obter a configuração certa. Máquinas melhores exigiam visitar esotéricas oficinas em porões cheios de técnicos parecidos com duendes. Isso não é de modo algum

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nostalgia. Agora há mais opções e isso é ideal para o consumidor. Também é indicativo da importância dos computadores e de sua penetração social. Mas vamos combinar. Nem o mais louco profeta tecnológico dos anos 90 previu que os PCs seriam vendidos junto com o salamito.

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O trânsito e os não-lugares

OCÊ SABE QUE está em um engarrafamento feio quando fica parado tempo que chega para

descobrir um broto de samambaia crescendo em uma rachadura no muro da BR. E você sabe que o congestionamento é crônico quando, cotidianamente, começa a avistar a samambaia com frequência suficiente para começar a pensar em adubá-la.

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A coisa mais óbvia para dizer é que a estrada não foi feita para ficar parado olhando as plantas. Para isso tem as praças e os jardins. Lugares. Já o antropólogo francês Marc Augé ficou famoso ao descrever a tendência da contemporaneidade de produzir os não-lugares, que são aqueles espaços por onde todo mundo passa anônimo e ninguém permanece. Aeroportos, rodoviárias e, teoricamente, estradas fazem parte desta categoria. Mas os não-lugares de Augé também incluem espaços mais melancólicos, como os campos de refugiados e as sub-habitações. E, guardadas as proporções, é num desses que você se sente quando está trancado em uma rodovia entupida. Uma vez um professor de engenharia explicou que em determinadas condições dá para calcular fluxo de

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tráfego utilizando equações de escoamento de fluidos. Neste tipo de cálculo, para todos os efeitos, os condutores e passageiros dentro dos carros não são indivíduos, são partículas em suspensão na grande gosma deslizante do trânsito. De uma certa maneira você não é uma pessoa, só uma espuma na água empoçada. Uma parte da sujeira que está ajudando a entupir o ralo. Resgatando o conceito de Augé, chega-se à conclusão que num congestionamento, então, você é uma não-pessoa num não-lugar. Que momento... Ou melhor, não-momento, já que “momento”, em Física, significa movimento, exatamente aquilo que não há durante um engarrafamento. Pra tudo na vida tem Sedex, dizia a propaganda. Assim, também, para todo assunto parece haver um filósofo francês. Pena que os franceses, como de resto todo mundo em toda parte, sejam melhores em discutir os problemas do que em de fato resolvê-los. Os engarrafamentos de Paris, dizem os noticiários, são piores do que os nossos. Vamos admitir que por aqui tem gente boa trabalhando arduamente para resolver o problema que viraram nossas estradas. Mas essas coisas levam tempo. Até que sejam literalmente construídas as soluções, vamos ter que esperar sentados. Atrás do volante. E em estradas lotadas. Alguém conhece um bom adubo de samambaia?

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As tecnologias sociais

ONFIRA SÓ ESTA proposta de atuação pública na área da saúde que está em funcionamento em um

outro país. Um agente comunitário visita uma casa, coleta amostras de sangue dos moradores e, graças a um kit portátil, obtém resultados no próprio local, apontando tanto um estado básico da condição clínica dos atendidos quanto indicadores sobre patógenos locais, em busca de epidemias e pandemias. Ele, então, envia esses dados dos pacientes para sua central, por mensagem de texto de telefonia celular SMS, e obtém de volta as primeiras indicações de tratamento. Se estiver dentro de suas possibilidades, ele já inicia tratamento ou então agenda consulta pelo mesmo processo.

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Esse procedimento merece elogios e também imitação, porque consegue aliar a tecnologia com o bem social. Aí, a essas alturas, o leitor pode estar pensando alguma coisa como o seguinte: não adianta a gente ficar comparando o Brasil com algum país lá do primeiro mundo, porque aqui nossa realidade é outra. Temos que nos contentar com uma estrutura com menos tecnologia e mais limitada.

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E aí está o irônico da coisa toda. A situação narrada acima acontece em aldeias no Quênia, em porções extremamente pobres da África, o continente da Copa do Mundo. Este exemplo foi citado por Jeffrey Sachs, diretor do Instituto Terra da Columbia University, em artigo recente na revista Scientific American. Ele falava, justamente, sobre o uso justo e social da tecnologia. Só para não deprimir a gente demais nessa comparação internacional, vale dizer que a aldeia queniana integra um projeto piloto. Ainda podemos correr para alcançar os caras. Sem dúvida também temos bons exemplos, ainda que limitados, no Brasil, e o nosso pessoal dos postos de saúde e dos hospitais públicos já faz verdadeiros milagres com os poucos recursos que são repassados. Mas o caso da aldeia africana e sua adaptação da tecnologia a favor do bem comum é, mais do que um modelo a ser imitado, um indicativo de como a vontade política e a criatividade resolvem problemas graves. Criatividade não falta em nosso País, ainda que vontade política costumeiramente seja confundida com outras formas menos nobres de política. Coisa, aliás, que vamos ver amiúde nesta eleição. Então, por enquanto, vamos guardar na mente o sonho de atingir aquele nível tecnológico da África no qual ainda não nos encontramos. E esqueça aqueles devaneios de imitar o Velho Mundo. O futuro é o Quênia.

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Guitar Hero é o novo karaokê!

LGUÉM JÁ DISSE que as formas de entretenimento são a expressão máxima daquilo que os franceses

chamam de “l’esprit du temps” e os alemães de “zeitgeist”, a alma da época. Já houve um tempo em que o conceito de diversão era ir para um coliseu ver gladiadores se arrebentando ou leões matando escravos. Embora alguns argumentem que essa fase do pão e circo ainda não tenha acabado, por conta dos reality shows, vale comentar que parece estar rolando uma mudança de forma de lazer social – e motivada por tecnologia.

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É assim: a gente está saindo da era do karaokê para entrar na do Guitar Hero. Pense bem: nos anos 80 e 90 foi ganhando importância social, sabe-se lá por qual motivo, o ritual de pagar mico na frente do microfone em um bar cheio de gente. Você ia numa festa, ficava lá encolhidinho num canto rezando para ninguém vê-lo, e algum amigo sacana o chamava lá na frente para rir da sua cara enquanto você tentava cantar Starway to Heaven ou alguma coisa do Air Supply. A coisa toda, claro, é cômica, mas tem um certo lado positivo. O karaokê foi a tecnologia que permitiu às pessoas se apropriar dos hits internacionais pasteurizados de um mundo cada vez mais globalizado.

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O sujeito que inventou o karaokê, o japonês Daisuke Inoue, até ganhou um prêmio bem-humorado em Harvard em 2004. Ele foi agraciado com o prêmio Ig Nobel da Paz, uma piada que a universidade norte-americana aplica aos cientistas que fazem pesquisas bizarras. Daisuke foi valorizado por ter inventado um troço que, embora irritante, ajudou, nas palavras de Harvard, a “promover a convivência entre as pessoas”. Aí já estamos bem adiantados no século 21 e a moda da vez são os jogos estilo Guitar Hero ou Rock Band. Felizmente, não é preciso mais desafinar em público. Você só precisa tentar apertar os botões de um joystick em forma de instrumento musical ao mesmo tempo que a música toca. Não é preciso tocar nem cantar, só seguir no compasso. Claro que isso também exige grande habilidade. Aqui na região tem até festival. E quem tiver coragem pode fazer uma performance. Não faltarão, talvez, críticos dizendo que Guitar Hero é uma atividade menos criativa que o karaokê. Isso é discutível. A tecnologia nova torna a música mais acessível a quem não é músico, e isto é positivo. Além do mais, do ponto de vista do espectador, dói bem menos. Nossos ouvidos e o zeitgeist agradecem.

(junho de 2010)

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A bolha da guitarra virtual

COMPANHAR A EVOLUÇÃO de um produto de tecnologia é um pouco como pescar muçum.

Primeiro você acha que tem alguma coisa, depois fica um bom tempo achando que não tem nada e no fim descobre que tinha, afinal, alguma coisa – mas pior do que você esperava. Pense bem. Isso acontece com muitas novidades. Agora no início do ano a produtora de games Activision anunciou que estava cancelando o Guitar Hero, sua série de simuladores musicais. Um ano atrás, todo mundo achava que esta era a onda do futuro. Junto com seu concorrente Rock Band, o Guitar Hero estava em todas as conversas. Havia acessórios para o jogo, bares organizando torneios e grupos de amigos formando bandas virtuais. A popularidade era tanta que os fabricantes foram lançando variantes e expansões, como o DJ Hero.

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Por que, então, cancelaram o troço? A Activision justificou dizendo que o mercado foi superestimado. Houve uma bolha. Bolhas são o nome que se dá na área de tecnologia para um problema antigo conhecido pelos economistas, que é o superdimensionamento da demanda potencial para um produto. Lá pelas tantas, os fabricantes se entusiasmam e aderem em massa a algum conceito, que mais tarde se revela menos promissor do que inicialmente se pensava. Houve isso no começo dos anos 2000, com o estouro das pontocom. Surgiram centenas de empresas virtuais, a maior parte das quais gorou. Este empolgamento inicial que beira a histeria é tão típico das empresas de tecnologia que o instituto de análise de mercado norte-americano Gartner chega a incluí-lo no ciclo de vida de todos os produtos. Segundo o Gartner, toda nova tecnologia passa por um pico de popularidade, depois uma queda brusca e em seguida uma lenta elevação ao patamar definitivo. No ano passado, o instituto avaliou que tecnologias badaladas como os dispositivos leitores de livros digitais estão recém caindo do pico. O problema destas análises de mercado e das decisões das empresas de abandonar ou não determinados produtos é que o usuário fica de fora da equação. Que a demanda tenha sido superestimada não quer dizer que não haja demanda alguma. Tanto que mais tarde, com uma avaliação mais realista, muitas vezes os fabricantes retomam as tecnologias. A própria Internet comercial é uma prova disso. Pô, tem gente que gosta de Guitar Hero. E de livros digitais.

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Tem até quem goste de pescar muçum.

(março de 2011)

Teste de destruição

M ENGENHARIA OS caras têm uma coisa chamada test to destruction (TTD, para encurtar). Durante o

desenvolvimento de uma peça ou equipamento, esta é a fase em que o artefato é colocado em uso até o desgaste ou colapso total. A ideia é testar os limites e estabelecer as margens de segurança. Daria para dizer que é uma forma produtiva de destruição.

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Você que está lendo vai esperar que venha a esta altura alguma metáfora edificante, tipo assim: “tem pessoas que testam a capacidade de um relacionamento desta forma”, ou então “os políticos testam a nossa paciência exatamente desse jeito”. Algum leitor engenheiro, por outro lado, talvez esteja aguardando

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pacientemente que lhe seja apresentada alguma novidade sobre TTDs.

Mas todo esse introito na verdade é para explicar uma das notícias tecnológicas bizarras da semana, uma daquelas coisas que acabam passando batidas no meio do bombardeio de informação. Com todo o alvoroço pela entrada no mercado internacional do tablete mágico da Apple, o iPad, muitos telejornais e vídeos da Internet destacaram alguns sujeitos que, logo após conseguir botar a mão neste que é o grande sonho de consumo do momento, destruíram seu aparelho novinho logo em seguida. De propósito. Alguns deles com requintes de crueldade, tipo banhos de ácido ou as proverbiais marretadas.

A coisa parece absurda para a maioria de nós. Mas uma olhada mais atenta nos sites especializados, como os fóruns internacionais das revistas PC Now e Wired, mostra que pode haver alguma lógica aí que não seja o puro nonsense. Exatamente estes espaços virtuais estão solicitando que aqueles que forem loucos o suficiente para fazer algo assim com seus iPads recém saídos da caixa, por favor, mandem suas descrições para as revistas.

É que a Apple, como quase todas as empresas de tecnologia, até justificadamente, não explica como funcionam ou mesmo de que são feitos seus aparelhos. Os caras que esmigalharam as maquininhas já descobriram que elas são movidas pelo mesmo chip do iPhone 3G e que têm dois módulos de memória de marcas diferentes. Nada disso está na propaganda, mas agora é de domínio público graças a uma confraria de doidos varridos que subverteram de forma

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aparentemente irracional a lógica do mercado de consumo. Eles fizeram testes de destruição consigo mesmos. Afinal, um iPad, pelo menos este mês, é status pessoal, patrimônio íntimo.

Mas vamos combinar, podiam ter doado alguns para nós. Até os caquinhos.

(abril de 2010)

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No século 21 se aprende com jovens

Á VIROU CLICHÊ repetir que os velhos têm muito a aprender com os jovens. Normalmente os veteranos

usam este lugar-comum para dizer que invejam a vitalidade da rapaziada, ou então que dependem dos mais novos para dicas tecnológicas. Mas não é só isso. Precisamos aprender maturidade com os jovens.

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A estas alturas alguns professores e pais já levantaram da cadeira e estão levando o jornal para a lixeira antes que algum adolescente leia. Antes de fazer isso, pense no seguinte. A geração que agora está entre os 30 e os 50 avaliou mal o impacto das tecnologias que ela própria criou. Foi preciso aprender com os jovens o que elas significavam. Quer um exemplo? Quando começou para valer a Internet comercial no Brasil, em meados dos anos 90, não faltaram artigos nos jornais e no mundo acadêmico sobre os perigos de uma era vindoura em que as pessoas ficariam isoladas em casa acessando a rede sem ir para a

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rua se relacionar. Só que esta era uma ideia contaminada pelo modo de pensar de uma geração anterior, quando o acesso à informação às vezes envolvia distanciamento social. Quem virou adulto entre os anos 70 e 90 se acostumou a pensar em televisão como uma atividade vegetativa a quatro paredes. E quem era mais velho ou mais tradicional, então, tinha na cabeça aquela imagem de uma biblioteca deserta onde a gente se enfurnava e passava horas isolado. Para esta geração, o sonho de uma biblioteca que desse para acessar de casa ou de uma televisão interativa seria o apocalipse social. Vamos todos acabar nos enterrando em casa, gritaram muitos. E daí a geração das crianças dos anos 90 ensinou aos adultos daquela época que a Internet servia para criar redes sociais, que os celulares com câmera postam a galera no FaceBook, que os torpedos SMS são uma rede de texto que une os amigos antes e depois da balada. Contra toda a expectativa, é a geração mais gregária de todos os tempos. Mais ainda: quando aqueles guris começaram a virar empresários, continuaram nos ensinando. Hoje os adultos que temiam a Internet têm que aprender com a gurizada a postar no Twitter e a colocar currículo no MySpace. Esta foi a maturidade dos jovens. Entender as novidades e usá-las sem preconceito. Só para não minar de vez a autoridade dos pais e professores, vale dizer que os jovens continuam tendo que aprender um monte de coisas. Mas não pensem que os velhos de vocês sabem tudo ou que nunca se enganaram. Nós erramos feio.

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(maio de 2010)

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Vamos passar a sacolinha

OM MUITO ACERTO, as crianças de vários níveis do ensino (e as famílias também) estão sendo

conscientizadas a consumir menos sacolas plásticas e a utilizar mais embalagens retornáveis. Felizmente estamos entrando em uma era de sacolas ecológicas nos supermercados. Mas vale refletir que o problema é complexo e que a solução para ele envolve uma equação muito mais difícil de resolver. Neste caso, nada melhor que informação e debate público.

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E por falar nisso, agora em março o Ministério do Meio Ambiente divulgou que as campanhas de diminuição do uso de sacolas nos supermercados levaram a uma economia de 600 milhões de sacolinhas em 2009. O órgão projetava economia de 1,5 bilhão para 2010. Até aí, tudo bem. Mas como muitas vezes acontece com campanhas oficiais, esta foi ótima para conscientização, mas um pouco precipitada na comemoração de resultados. Antes de se afastar para

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concorrer nas eleições, o então ministro Carlos Minc interpretou os números festejando o que, para ele, foram 600 milhões de sacolas plásticas a menos lançadas no meio ambiente no ano passado. Aí vale citar outra autoridade: Jeffrey Sachs, diretor do Earth Institute da Universidade de Columbia, nos EUA. Crítico feroz da depredação ambiental promovida pelo capitalismo industrial desenfreado norte-americano, Sachs discute, em seus artigos na revista Scientific American, várias armadilhas das campanhas da dita sustentabilidade. Um exemplo que usou é a renovação da frota automobilística que as montadoras convenceram a administração Bush a abraçar. O governo de lá emprestou dinheiro para que os cidadãos renovassem seus carros, a fim de diminuir consumo de combustível. Aí a indústria vendeu mais, poluindo um pouco mais, e os consumidores por sua vez compraram carros de motorização maior. Resultado: ficou elas por elas no balanço ambiental geral. Voltando ao otimismo do ex-ministro, talvez ele não tenha levado em consideração, por sua vez, a conta geral. Em muitas residências, por exemplo, as sacolas plásticas de supermercado são usadas para embalar o lixo entregue à coleta. O consumidor não saiu do supermercado com sacolas plásticas, mas pode ter sido obrigado a comprar embalagens para ensacar seu lixo doméstico. Neste caso o lixão da cidade continuou recebendo plásticos, só que de outra procedência. Conscientizar verdadeiramente seria discutirmos este lado do problema também.

(abril de 2010)

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O iPad e o Altair 8800

URIOSAMENTE, DUAS PONTAS do mundo da Informática foram notícia nestes últimos dias. De

um lado, o lançamento do iPad da Apple, a máquina mais aguardada do ano. Do outro, uma notícia obscura: o falecimento aos 68 anos, na Georgia, EUA, de um certo Henry Edward Roberts. As duas notícias têm mais a ver uma com a outra do que você pensa.

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Claro que o iPad chamou mais a atenção, merecidamente. O novo tablet da Apple é a novidade tecnológica do ano, isto se não for, como os mais entusiasmados vêm dizendo, da década. A maquininha tem uma missão que extrapola em muito os limites do mundo da informática. Com sua grande tela fina, o dispositivo quer atrair ao mesmo tempo quem usa laptop, quem assiste filmes em dispositivos portáteis, quem navega na Internet e, inclusive, quem lê impressos em papel. O iPad tenta ser uma espécie de caixinha mágica. Vale esperar algumas semanas para a poeira baixar e conferir as primeiras análises desapaixonadas. Sucesso de vendas o iPad já é, graças à grife de Steve Jobs. Resta ver se ele de fato vai ser o messias anunciado na nova era eletrônica.

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Aí vem a outra notícia, aquela mais discreta. Quem foi o sujeito que morreu, o norte-americano Henry Roberts, e por que ele mereceria constar em um artigo ao lado do dispositivo mais badalado do momento? É o sujeito que inventou o Altair 8800, lá atrás, em 1975. Daí, é claro, você continua não entendendo quem é o sujeito. É assim: Altair foi o primeiro computador pessoal. A empresa de Roberts, a Micro Instrumentation and Telemetry Systems, fundada em 1970, comercializava calculadoras e instrumentos de medição para engenheiros. Em 75 lançou o Altair, um computador que saía por menos de 400 dólares. Isso numa era em que só havia mainframes do tamanho de armários. O Altair não fazia quase nada, só piscava e tinha entradas e saídas para modular respostas entre dispositivos. Foi sucesso entre entusiastas de eletrônica, entre os quais uma garotada que incluía, justamente, Steve Jobs, Steve Wozniak, Paul Allen e Bill Gates. Estes são a geração que se flagrou que dava para usar a ideia da caixinha eletrônica de Roberts de outra forma. Com a graninha que juntou, Roberts vendeu a firma em 1977, estudou Medicina e se estabeleceu como discreto médico de interior na Georgia. Os outros caras, discretamente, dominaram o mundo.

(abril de 2010)

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O novo faz de conta

S PSICÓLOGOS DEVEM explicar a coisa de um jeito mais sofisticado, mas a verdade é que a gente

passa a vida mergulhado no faz de conta. Quando crianças, criamos mundos imaginários e amigos fictícios com os quais nos relacionamos individualmente ou em grupo. Isso se chama brincar. Depois de adultos, agrupamos nossas fantasias em categorias mais chiques, como mitologia, libido ou arte. Mas todos nós, grandes e pequenos, seguimos de uma forma ou outra ligados ao faz de conta.

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Tudo isso era só para justificar que alguns de nós, adultos, gostamos da fantasia no cinema ou na literatura. Não há nada de errado nisso. Boas obras do gênero conseguem unir temáticas maduras com aquela sensação de aventura e faz de conta que nos acompanha desde a infância. Isso até tem consequências positivas, porque estimula a criatividade. Uma vez George Lucas

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defendeu que não se teria viajado até a Lua se não houvesse filmes de viagens espaciais antes disso.

O faz de conta dos adultos, como o das crianças, tem participação ativa de quem brinca ou assiste. Pegue um filme clássico de ficção científica como Solaris, do russo Andrey Tarkowsky. A maior parte do tempo há dois personagens em cena, numa sala sem qualquer artifício. O papo que rola é sobre naves espaciais e planetas exóticos e você é convidado a aderir à brincadeira. O clima está todo na nossa imaginação. Na maior parte do tempo não se enxerga o mundo alienígena, ele é inteiramente de faz de conta.

Só que de uns tempos para cá o cinema está mudando as regras do faz de conta e, de certa forma, roubando nosso papel. É como aqueles brinquedos que você só aperta e fazem tudo sozinhos. Um rematado exemplo é a superprodução de fantasia Sucker Punch, que está em cartaz. Com um banho de efeitos especiais e uma sensacional profusão visual e acústica, tudo que nos resta é ficar sentados e olhar. Você não precisa imaginar nada. Está tudo ali, já fantasiado para você e embrulhado para presente. É uma diversão passiva.

Nos filmes 3D isso acontece bastante. Às vezes a pessoa ao seu lado desvia a cabeça de alguma coisa que pareceu saltar da tela. Isso já não é faz de conta, é uma reação física. O novo mundo virtual é quase sólido. Só que seria de se perguntar se os efeitos especiais realistas são satisfatórios do ponto de vista psicológico. Será que eles atendem aos anseios de fantasia da nossa criança interior ou estão só assustando a coitada?

Que saudades dos monstros de isopor do Ultraman.

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(março de 2011)

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A morte do urso multimídia

OI NOTÍCIA INTERNACIONAL discreta, agora em março, a morte do urso polar Knut no Zoológico de

Berlim. Foi o mesmo bicho que em 2007 protagonizou uma polêmica mundial. Filho de uma fêmea de circo e de um pai de cativeiro, foi rejeitado pela mãe logo depois de nascer e alimentado desde o início por tratadores. Isso revoltou ecologistas, já que ele não podia mais ser devolvido ao ambiente natural e nem sequer ficar sem cuidados humanos. Alguns até preferiam que, frente à perspectiva de uma vida na jaula, fosse sacrificado. O debate público originou uma “knutmania” que rendeu livros, bonequinhos, DVDs e, principalmente, engordou o cofrinho do zoo.

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Um vídeo que circula pela Internet mostra seus derradeiros momentos, no dia 19 de março. Visivelmente desnorteado, Knut começou a andar em círculos sobre uma pedra, em seguida teve convulsões e caiu na água, onde morreu afogado. Autópsia divulgada

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neste início de abril apontou que ele teve uma infecção que provocou inchaço no cérebro, causando o desmaio. Morreu aos 4 anos, bem antes da expectativa de vida de sua espécie, que é de 15 a 20.

A gente nem sabe quantos ursos polares morrem em circunstâncias idênticas ou até piores no seu hábitat natural. A grande maioria deles não ganha obituário no jornal nem necropsia ou galeria no YouTube. Aliás, a grande maioria dos seres humanos não ganha isso. Mas esse foi o diferencial que tornou Knut um legítimo filho do século 21. Biografado desde seus primeiros dias, não teve um dia na vida sem fotos, cobertura na imprensa ou vigilância eletrônica. Isso inclui o melancólico momento em que mergulhou para a morte. Foi o primeiro urso multimídia.

O zoo de Knut não tinha só grades, era a Aldeia Global inteira. Mas não se engane pensando que é uma jaula maior. Ele morreu enroscado na teia da www, como comprova o vídeo fatídico feito por celular. Você não precisa gostar de ursos ou ecologia para refletir sobre esta curta vida on-line. Há um lado assustador na superexposição desta era de redes sociais. O urso é só o caso extremo de uma tendência de que as vidas fiquem cada vez mais públicas e menos privadas. Tem gente que posta toda a rotina no Twitter. Knut não teve escolha, mas há quem crie eletronicamente seu próprio cativeiro.

Para ponderar sobre onde isso vai parar, vale acrescentar que a novela de Knut não acabou. Começou nova polêmica na Alemanha, agora para saber se o bicho vai ser ou não empalhado. E, claro, exibido na vitrine.

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(abril de 2011)

Lições erradas

ATROCIDADE NA ESCOLA no Realengo, no Rio, foi algo inaudito mesmo em um País infelizmente

acostumado a chacinas. Uma covardia e uma tragédia, algo no qual sequer dá para pensar sem ficar à beira do choro. Mas essa crônica não é sobre isso. Não bem isso, pelo menos. É, em honra às escolas e alunos em geral, sobre lições erradas.

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Nos Estados Unidos, tragicamente, os episódios como Columbine se repetem com tanta frequência que já se criou uma categoria para rotular seus autores. São os “spree killers”, diferentes dos serial killers porque cometem seus vários crimes numa só onda de violência ensandecida. E, cada vez que um deles aparece, repete-se na mídia o mesmo fenômeno que está acontecendo

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aqui: são semanas de matérias, entrevistas e debates. E aí, justamente, vem um perigo.

É comum, em momentos de grande comoção, fazer juízos apressados. A própria mídia, infelizmente, nem sempre escapa dessa armadilha. No meio das opiniões produzidas a toque de caixa e a partir da psicanálise de armazém que alguns programas de tevê oferecem, é fácil aprender as lições erradas.

Um destes equívocos é sutil, mas está sempre presente. Vários entrevistados descreveram o assassino com alguém fechado, concentrado. Este sujeito, como se viu, era um louco homicida. Logo, conclui-se, precipitadamente, que todo cidadão reservado seja um psicopata esperando para surtar.

Obviamente, não é a timidez que define quem é um doido varrido. Vários gênios eram sujeitos quietos e esquisitões. Beethoven, Kafka, Einstein foram descritos como ensimesmados. E não precisa ir tão longe. Até pouco tempo atrás, a chamada “vida interior” era um atributo desejável, algo estimulado em aula através da disciplina e ensinado nas religiões através da meditação. Ser reflexivo não é mais chique nestes dias, mas está longe de ser algo negativo.

Fazer esse tipo de ilação é um sinal dos tempos. Afinal, estamos na era do Big Brother, onde o sucesso parece vir só da aparência externa. O crítico norte-americano Sven Birkerts uma vez lamentou o declínio do hábito de ler romances entre as novas gerações e apontou que a leitura em profundidade e o hábito de pensar em silêncio são artes em extinção. Modernamente, opinava ele, trocou-se isso pela velocidade e, em certa medida, pela superficialidade.

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Isso é tão válido nos nossos dias que se chegou ao ponto de hostilizar os quietinhos.

Pô, vamos tentar pegar leve com os tímidos. Isso já é bullying.

(abril de 2011)

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Andy Warhol e o Twitter

ODOS CONHECEM A famosa frase do artista nova-iorquino Andy Warhol de que no futuro todos

serão famosos por 15 minutos. Isto até já rolou, nesta era de reality shows e celebridades da Internet. Mas, justamente devido à rede mundial de computadores, talvez esteja na hora de a gente dar uma revisada no corolário de Warhol. O mais certo agora seria dizer que no futuro todos vão ler e escrever apenas 15 caracteres.

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É que o Twitter, com o perdão dos fãs, às vezes irrita. O site de miniblog, claro, está bombando com suas mensagens de 140 caracteres, a ponto de várias palavras terem sido incorporadas ao vocabulário cotidiano mesmo dos tecnofóbicos. Tuitar e retuitar são termos já de uso comum. Mas o ponto não era esse.

A gente entrou na atual fase da revolução digital em meados dos anos 90, com os provedores comerciais. A moda eram os sites. Todo mundo tinha que ter. Cada um escrevia o que desse na telha. Num episódio dos

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Simpsons, Homer criava uma página e, para encher linguiça, começava a praticar jornalismo sensacionalista. A sátira toca no ponto de que todo mundo estava escrevendo, mas muitos sem saber o que dizer.

Como muitos não tinham grande coisa para falar, dava para fazê-lo com menos caracteres. Isso originou os blogs, que começaram a ficar famosos nos anos 2000. Embora a maioria hoje faça bom uso deles, o termo em si surgiu de “web log”, “diário da web”. Muitos blogueiros da primeira hora eram simplesmente sujeitos falando da vida deles, por incrível que seja alguém pensar que isso vá interessar a alguém.

A década atual surgiu sob a égide do Twitter, e novamente a evolução consistiu em enxugar a conversa mole e diminuir a quantidade de texto. Tudo bem, as tuitadas são ótimas para dar recados para os amigos (propósito inicial do site) e também para quem gosta de ficar sabendo de tudo em primeira mão. Mas aí é que vem a rosca.

Porque é impossível você aprofundar o que quer que seja em 140 caracteres. A não ser que divida os posts, mas aí estará incorrendo em um vício que a netiqueta condena. Há empresas e repartições públicas aderindo ao Twitter. Os comunicados deles são assim: “Aconteceu tal coisa.” Só que se você realmente estiver interessado na tal coisa, não é por ali que vai saber mais. Uma tuitada, por definição, é superficial. Nada contra usar o miniblog para agilizar a comunicação. Mas é de se pensar se a gente não está criando uma geração inteira desacostumada a organizar o pensamento em parágrafos coerentes.

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“Mim postar tudo.” Taí. Quinze caracteres. Prepare-se para o futuro.

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A última flor do Lácio

ORNALISTAS EM GERAL têm vários campos de atuação, mas costumam ser especializados em

algumas funções. Pessoalmente, sou um revisor de carreira. Passei a vida corrigindo textos e recitando pequenas regras para os colegas: “Escreva surfe, não surf”, “Escreva clique, não click”. Às vezes, em nome da Língua Portuguesa, até abracei causas perdidas como tentar convencer o editor de gastronomia a escrever “salada verde” no lugar de “green salad”. Mas ele me persuadiu que é um must. Afinal, os chefs iam desmaiar se você, por exemplo, entrasse em um restaurante chique dizendo que quer comer massa de parafusinho no lugar de fusilli.

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Tudo para dizer que eu deveria estar acima de suspeita quando se trata de defender a língua materna, a “última flor do Lácio, inculta e bela” de Olavo Bilac. Aquela coisa toda, como dizia o Clodovil. Mas aí queria

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marcar minha posição. Acho questionável o projeto aprovado de lei estadual abolindo os estrangeirismos.

Não se trata apenas de constitucionalidade ou não. É algo mais profundo. Processos de formação do idioma não são instaurados por decreto e, principalmente, não se fazem de um dia para o outro. O Português, como em geral as línguas latinas, é avesso a estrangeirismos. Eles são digeridos ao longo de muitos anos, na prática dos falantes, até que são assimilados em forma modificada. Ainda estamos terminando de herdar, para você ter uma ideia, alguns dos vocábulos de origem árabe vindos daquela invasão islâmica na península ibérica mil anos atrás. A gente fala “almofada” sem problemas, mas o mesmo editor de gastronomia brigou comigo enquanto negociávamos a grafia de “esfiha”.

Os próprios dicionários registram estrangeirismos em caráter provisório. O novo Aurélio está cheio de palavras em inglês, geralmente com alguma marca indicando que estão em uso corrente mas devem ser aportuguesadas. Isso é assim desde sempre. Uma característica da língua. Mas seria insanidade pensar que a gente vai conseguir de uma hora para a outra parar de escrever “mouse”, “lan house” ou “World Wide Web”. Nem o Superman, perdão, o Super-Homem conseguiria.

O canetaço não é o jeito de resolver estas coisas. A língua não é um bicho morto e empalhado no qual você possa mandar passar verniz. É uma coisa viva, que morde e corcoveia. Aliás, costuma dar coices em quem trabalha ou mexe com ela.

Nonsense. Des bêtises. Unsinn. Sciocchezza. Antes que proíbam, vamos xingar nas línguas que dá.

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Sobre o autor

André Carlos Moraes nasceu em 1969 em São Leopoldo, RS. É jornalista formado pela UFRGS e trabalha na região do Vale do Sinos. Já atuou em editora de livros e em jornais impressos. Em 1998 ganhou o Prêmio Gaúcho de Literatura, categoria Conto, do Instituto Estadual do Livro/Câmara Riograndense do Livro. Em 1994 foi primeiro lugar no concurso de contos da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e integrou a antologia Contos que vêm de Onde?, da Editora da Unisinos. Foi segundo lugar no concurso de contos Mario Drummond de Andrade da Universidade Federal de Santa Maria em 1988. Em 1987 teve conto classificado e publicado na antologia Escreva-se, da UFRGS, publicada pela Editora da Universidade. Em 2001 participou com uma crônica na coletânea 175 Anos de Imigração Alemã (EST Edições).

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