biografema como estratégia biográfica
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
Programa de Psgraduao em Educao PPGEdu
Linha de pesquisa: Filosofia da Diferena e Educao
rea temtica: Fantasias de crticaescrileitura
BAA AA BA: , , B
Tese de Doutorado
Orientadora: Prof. Dr. Sandra Mara Corazza
Orientando: Luciano Bedin da Costa
Porto Alegre
Agosto de 2010
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Luciano Bedin da Costa
BAA AA BA:
, , B
Tese apresentada ao Programa de PsGraduao em Educao da Faculdade de
Educao da Universidade Federal do RioGrande do Sul, como requisito parcial paraobteno do ttulo de Doutor em Educao.Orientadora: Profa. Dra. Sandra Mara Corazza.
Defendida em 24 de agosto de 2010
Profa.Dra.Sandra Mara Corazza Orientadora FACED/UFRGS
Profa. Dra. Paola Basso Menna Barreto Gomes Zordan FACED/UFRGS
Profa. Dra. Tania Mara Galli Fonseca PPGPSI/UFRGS
Prof.Dr.Eduardo Anbal Pellejero UFRN
Prof.Dr.Silas Borges Monteiro UFMT
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Agradeo Sandra Corazza, minha amiga e orientadora emseis anos de aventuras acadmicas e de vida exemplo derigor e paixo pela pesquisa; Mayra, meu amor ecompanheira em tudo que esta Tese passou e no passou;
aos meus pais e famlia Walder, Marlene, Dani e Teteu,pelo que me deram e ainda do; ao Hugo, pela sempresimptica acolhida desde os tempos de AlunoPEC; a todosque fazem parte e passaram pelo Bando de Orientao dePesquisa (BOP) Chico, Eduardo, Marcos, Ester, Gabriel,
Jane, Mximo, Betina, Patrcia, Deniz, Karen, Dayana, Ana,Maira, Cludia, Luiz, Rosiara...; Tania Galli, pela paixoque tem pelas coisas que nos deixam vivos e por acreditarem mim e nas coisas que acredito; Barbara Neubarth eTania Capra, por darem vida Oficina de Criatividade; a
todos os amigos e integrantes do acervo Eu sou Voc doHospital Psiquitrico So Pedro Blanca, Leonardo,Gabriela, Sara, Andresa, Vitor, Juliane, Jlia, Fbio,Guilerme, Leonora, Mrio, Regina, Luis Arthur, poracreditarem na vida que h mesmo nas coisas ditas mortas;ao DIF e matilha de Paola Zordan, pelos uivos dadiferena; ao Eduardo Pellejero e Silas Monteiro, porestarem juntos desde o projeto de Tese; ao Tomaz Tadeu,pela intensidade dos tempos de ritornelos; ao intenso einesquecvel amigo Fbio Parise, pela presena e
sensibilidade; Larisa Bandeira, pela genialidade daspequenas percepes e por me dizer que hora de dar umponto final; Adriana Thoma, por me fazer pensar abiografia dentro de outros domnios; equipe de psicologiada SETREM Rita, Lilian, Jeane e Vanda, pela compreensoe pacincia; famlia Redin Euclides, Mayana e Marita,por serem sempre especiais e por tambm serem minhafamlia; Renata Roos, por ter me colocado nisso tudo; aoamigo Rafael Ribeiro, pelas geologias da vida alm da Tese; Alexandra Bello, pela leveza e amizade tambm na
leveza; ao Andr Pietsch Lima e Anglica Munhoz, pelafora na ida Frana; Vitria e Jana, pelas importantes edeliciosas aulas de francs; ao professor Dominique Viart,coorientador na distante e glida Lille; Capes, peloinvestimento e apoio desde o mestrado; UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul e Faculdade de EducaoFACED, pela estrutura e suporte para minha pesquisa; porfim, agradeo VIDA, por me deixar diante de todos estesque aprecio e amo.
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Como escrever uma vida? Essa pergunta aparentemente simples a questo quemovimenta este texto. A escrita de vida chamada aqui de biografia (b b,
vidae ge, escrever) um tema transversal, compreendendo nosomente a literatura, como tambm outros domnios das Cincias Humanas e daSade, como a psicologia, educao, antropologia, histria e cincias sociais. Abiografia comporta um tecido amplo de operacionalizaes e metodologias; elaaparece nas histrias de vida, na formao profissional, nas anamneses, nos relatos
de experincias, nos projetos de vida, nos estudos de caso, etc. O binmio vidaescritura tratado a partir da perspectiva levantada pelos filsofos FriedrichNietzsche e Gilles Deleuze, como a fora capaz de criar, e sobretudo, criar a simesma. A noo de biografema, proposta por Roland Barthes, uma potenteestratgia para se pensar a escritura de vida aberta criao de novas possibidadesde se dizer e, principalmente, de se viver uma vida. O surgimento do biografemaacompanha uma mudana de abordagem em relao s prprias vidas biografadas,acarretando num novo tratamento biogrfico por parte das disciplinas. Tratase deoutra postura de leitura, de seleo e de valorizao de signos de vida. Ao invs depercorrer as grandes linhas da historiografia, a prtica biografemtica voltase para
o detalhe, para a potncia daquilo que nfimo numa vida, para suas imprecises einsignificncias. Tomar partido da biografia enquanto criao (e no somentecomo representao de um real j vivido) colocarse diante de uma poltica quese mostra contrria a todo uso biogrfico que sufoca a vida, a toda estratgia oumetodologia thanatogrfica. O prprio sujeito se desloca ele passa a ser, nestesentido, tambm um criador, um fabulador de realidade, um ator mesmo deescritura e de vida. Afinal, haveria outro sentido em se escrever uma vida que nofosse o de acreditar na potncia de reinveno desta prpria vida?
AAAA
Biografema, Escrita de Vida, Nietzsche, Barthes, Deleuze, Educao, Psicologia
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Comment crire une vie? Cette question apparemment simple est la question quianime ce texte. L'criture de la vie qu'on appelle ici la biographie (b bios, vieet graphein, crire) est un thme transversal. L'criture biographiquecouvre pas seulement la littrature mais aussi d'autres domaines de la sant et dessciences humaines, comme la psychologie, l'ducation, anthropologie, histoire etsciences sociales. La biographie comprend un large tissu de mthodologies; elleapparat dans les histoires de la vie, dans la formation professionnelle, dans les
tudes cas dans, dans les projets de vie, tudes de cas, etc. Le binme viecritureest trait avec la philosophie de Friedrich Nietzsche et Gilles Deleuze, comme laforce capable de crer, et surtout, crer ellemme. La notion de biographmepropos par Roland Barthes, c'est une stratgie puissante pour une rflexion surl'criture de la vie ouvert la cration de la possibilit de dire et surtout de vivrecette vie. L'apparition du biographme conduit un nouveau traitementbiographique de l'histoire. C'est une autre position de lecture, de slection et dercupration des signes de vie. Plutt que de passer par le contour del'historiographie, la pratique biographematique se tourne vers le dtail, lepouvoir du minuscule, vers le insignifiant et inexact. En pensant la biographie
comme cration (et pas seulement comme une reprsentation du rel, dj vcu)c'est mis en avant d'une politique contre l'utilisation de la biographie qui toufflela vie, contre toute la stratgie ou mthodologie thanatographique. Le sujet luimme se dplace aussi il devient, en effet, aussi un crateur, une ralitincroyable, mme un acteur d'criture et de la vie. Aprs tout, estce qu'il y avaitun autre sens par crit une vie qui n'est pas de croire en la puissance de larinvention de cette vie?
Biographme, Rcit de vie, Nietzsche, Barthes, Deleuze, ducation, Psychologie
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CINCO POSES
Beckett, Barthes, Blanchot, Brenda e Brenner 9
NO LIMBO EPISTEMOLGICO 23
DA CONSCINCIA HISTRICA CONSISTNCIA BIOGRFICA 32
A INVENO DA VERDADE BIOGRFICA 47
THANATOGRAFIAS E A AUTPSIA DA HISTRIA 53
THORUBOS DA PALAVRA 68
DA ORELHA DO LEITOR AO TMPANO DO TEXTO 79Nietzsche, Derrida e Barthes, otobigrafos
A ECOGRAFIA E O DRAMATURGO DA HISTRA 90
UM CORPO SENO SUFOCO 97
BIOGRAFEMA
o amigvel regresso e a impossibilidade da biografia 104
PESQUISA BIOGRAFEMTICA, MODOS DE USAR 118
REFERNCIAS 127
ANEXO: BIOGRAFIAS FUZILADASseguido de 10 fotografemas
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A palavra AutoBioGrafia uma palavra feia,artificialmente mdica, uma palavra sem alma,
desprovida de vibrao histrica e deencantamento potico, tida como necessriaaos profissionais da crtica literria. Mas estaantiptica palavra tem ao menos um mrito: ode dizer o que ela diz com uma rara preciso.
GUSDORF,ABGae
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Existem palavras que deveriam fazer parte de uma nova categoria
gramatical chamada de . No por serem perfeitas ou por muito
designarem as supostas que elas representam, mas por
serem justamente esfareladas, poeirentas, e por mais sobrecodificados que sejam
os sentidos a elas concebidos, basta um sopro para que um outro sentido
as coloque fora de rota.
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Biografia uma dessas .
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B, BA, BA, BA,B
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1961 e Samuel Beckett est sentado no trono junto aos grandes de todos
os tempos. Como Shakespeare, Dante, Hugo e Joyce, o escritor irlands tem sua
imagem revestida de imaginrios dinsticos. Beckett rei. desta imagem real
que Pierre Michon inicia seu C d R (2002). Segundo Michon (2002, p.1316), ao rei destinado dois corpos: um corpo eterno, dinstico, o qual a biografia
sacraliza; e um outro corpo, mortal e funcional, vestido de pequenas
precariedades. Lutfi zkk, fotgrafo turco, o responsvel pela fotografia que
haveria de imortalizar Beckett em seus dois corpos. Ele est presente no charme
dos lbios rigorosamente perfeitos, na brancura do cigarro que pende em sua
boca, nas sombrancelhas negras e grossas e nas rugas que desenham em seu rosto
uma prateada cartografia. O rosto de Beckett pe em questo a justa imanncia da
imagem, a apario simultnea do corpo do Autor e de sua encarnao pontual, o
verbo sacro do rei e seu acc eda. Na imagem de Beckett os signos
transbordam e o corpo apresentase ntegro em sua ciso.
***
Tudo est
N e agee.
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Os dois corpos de Samuel Beckett
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incio de 1980. Mesmo contrariado, Roland Barthes deixase fotografar
como poucos. Sua imagem preenchida de um charme aristocrtico, seus lbios
portam o cigarro que tambm o cigarro de Beckett. Barthes velho e bonito. Seu
rosto invadido por sombras perfeitas e a flacidez da pele confudese com a
mesma textura prateada que encobre a face do escritor irlands. ric Marty no o
fotgrafo mas o autor de Rad Bae, fc de ecee (2009), a fotografia
literria dos corpos que se insinuam no corpo nico que atende por Barthes. A
biografia do escritor assediada por comoventes biografemas. Marty o aluno eamigo de Barthes, aquele que recebe um telefonema dizendo: Rad fe
acdee.... Barthes atropelado por uma caminhonete quando atravessa a rue des
coles, em Paris. No hospital, recebe a visita do amigo que v nos olhos do escritor
o olhar de desespero, do tipo verificado nos prisioneiros de morte. O quarto
branco, to claro a ponto de quase cegar, ele est deitado numa cama mais alta do
que as camas normais, o que d a sensao de um corpo em exposio, sem mais
nenhum elo com o solo, o corpo coberto por um lenol branco e repleto de tubos,
de fios de controle, corpo que perdeu toda a sua existncia vital. Mas, esse corpo
estrangeiro, nohumano, est ligado a uma cabea desesperada, que me olha
enquanto atravesso lentamente o quarto para me aproximar dele (MARTY, 2002,
p.116).
***
Marty passa os dias ao lado do amigo que haver de morrer logo. Fiquei ao
lado da sua cama, quis pegar na sua mo, mas fiquei achando que ele podia ler no
meu rosto a sua prpria morte, ento virei o rosto e sa sem dizer quase nada
(MARTY, 2002, p.118).
***
A morte enfim chega e ric Marty o primeiro a vlo. Na sua memria, o rosto de
Barthes tinha voltado ao normal.
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Em estado normal: Roland Barthes
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outono de 1949 e Maurice abandona seu apartamento em Neuilly.
Blanchot continua a ser um homem pblico mas seu rosto no aparece. Ele no
tem voz, no fala Radio France e seu corpo e no participa da cena mundana
francesa. Longe de Paris, ele est tambm longe dos amigos e de Bataille. Seu
corpo o corpo usurpado pela misria fisiolgica e pelo cansao das coisas que
acontecem. Blanchot habita o minsculo vilajero de ze, a dois passos de Nice e de
Cap Ferrat. Do seu pequeno quarto, avista o penhasco rochoso que outrorainspirou Nietzsche a compor a terceira parte de seu Zaratustra. ze oferece a
Blanchot uma dupla reserva: de espao e de assdio. Um pequeno jardim
delimitado por muros espessos e um quarto que no o prolonga nem o reduz. Ali
Blanchot est na medida certa. Christophe Bident (1998, p.308), o competente
bigrafo, constri o cenrio que nos parece fugidio: O espao real (a casa, o quarto
de ze) se ausenta, para dar lugar a um espao difuso, difratado, disseminado, s
vezes alucinado, espao de escritura, espao literrio, espao abrindo o espao ()
espao que permite entrar no vazio silencioso da obra e na ausncia do tempo. Ocerto que ze conhece esse Blanchot sobre o qual pouco sabemos. Alguns turistas
por vezes assediam a residncia. Eles fotografam e olham para a pequena janela
lateral fechada que teria sido do escritor. Blanchot no est l.
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Um quarto de Maurice Blanchot
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maio de 1980 e Henry Miller tem 88 anos. Fisicamente ele a expressoviva de uma runa. O caminhante de Paris sabe que a vida logo o deixar. Ele se
tornou frgil, seu corpo agora esqueltico. Os msculos definharam. Seu corao
inquietantemente bate com a ajuda de uma grande artria artificial.
Completamente cego do olho direito, esforase para enxergar o pouco de vida que
ainda lhe resta esquerda. Brenda Venus, o ltimo dos amores de Miller, est
sentada ao seu lado. Brenda sua amante e derradeira musa. Num curto espao de
tempo, a ela dedicoulhe mais de 1500 cartas. Ele escreve duas, trs vezes por dia,
em frases que se tornam cada vez mais enxutas. Brenda tem 22 anos, um amordesprezado por aqueles que se dizem mais prximos do escritor. Ela bem sabe
disso e se mantm distncia. Costumase dizer que, s paixes mais
arrebatadoras, o lado de fora o mais conveniente. O certo que, com a entrada
de Brenda, a vida do velho escritor havia mudado radicalmente. Ela devolveulhe o
poder de domesticar suas enfermidades e de conhecer as ltimas alegrias do
paraso em vida. Miller no se cansava quando me falava de Brenda Venus; ele
no passava um dia sequer sem deixar de escrever uma mensagem para ela. O
pensamento de Brenda era onipresente testemunha o amigo Lawrence Durrel,
no prefcio de Lee d'a Beda Ve (1986, p.9).
***
Uma equipe de televiso chega para fazer um documentrio. Em seu
quarto, a cmera o filma deitado na cama. Sua ltima cama. Ele sabe disso. Esta
cama porta um nome: leito de morte1. Ao lado, silenciosamente Brenda o observa.
Ela tambm parece saber.
1Batrice Commeng,Henry Miller: ange, clown, voyou, 1991, p.330.
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Brenda Venus e o pensamento onipresente
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1877. A Villa Rubinacci uma casa de campo simples e clara, nutrida pela
presena de dois modestos terraos um projetado sobre a falvel borda que
entorna o golfo de Npoles, e o outro debruado sobre o limite do real impostopelos paredes de pedra. Deste segundo, podese melhor sentir o odor do bosque
ocupado por limoeiros, banharse na frescura da brisa proveniente dos assdios da
montanha prxima. De longe avistase o Vesvio, o magnfico tormento de
Pompia. Vivese numa atmosfera buclica de recolhimento e introspeco. Trata
se de uma penso alem, destas destinadas a acolher viajantes germnicos. As
janelas, costumeiramente entreabertas, so protegidas pela aprazvel sombra
oferecida pelos pinheiros, dando a ver o inesgotvel
movimento repetitivo do mar. A pequena casa est situada em Sorrento, naCampnia italiana, ao sul deste imenso pedao de terra chamado Europa. o lugar
onde o calor e a luminosidade mediterrnea banham os espritos. Villa Rubinacci
um destes lugares para onde se pode ou se quer fugir.
O quarto de Malwida de Meysenbug est situado no primeiro andar. Ele
tem o conforto necessrio. Seus trs nicos hspedes ocupam, por sua vez, o
suficiente espao do trreo. As manhs so consagradas ao trabalho solitrio e aos
momentos de meditao. Aquele que assina Pf. D. F.N ao final de suas cartas,
acorda em torno de seis horas da manh, quando dia e noite ainda esto em
comum acordo de convivncia. F.N prepara calmamente seu desjejum e logo se
coloca diante de sua obra. Durante as manhs, cada um dos habitantes trabalha
solitariamente no seu canto at que o odor da panela quente e temperada
lentamente percorra os poucos corredores da casa anunciando a hora do almoo.
As tardes reservam caminhadas. Trs horas de marcha moderada costumam
ser suficientes, por entre magnficos caminhos montanhosos que cortam os
campos de oliveiras, prximos a desfiladeiros, de onde se avista o oceano de
laranjeiras carregadas de frutos dourados.
noite, antes do jantar, sesses de leitura, geralmente confiadas a Paul Re.
Sua voz densa e carismtica. Mesmo srio, Re provoca risos. Os quatro solitrios
da Villa Rubinacci esto sentados na sala de estar. Acomodado numa poltrona,
Nietzsche observa calmamente cada uma de suas polidas unhas, abrigado pela
cndida luz de um pequeno abajur. Re, o leitor, sentado em frente mesa, sobre a
qual uma outra lamparina continuamente queima. Perto da lareira, Malwida
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descasca laranjas para o almoo, num silncio que sobretudo ctrico. Uma hora
aps o jantar, todos se retiram aos seus quartos. No relgio, 21hs.
De todos os quatro solitrios, Paul Re o nico com uma sade invejvel.
Villa Rubinacci tambm um lugar onde a vida transita abraada sua realprecariedade. Friedrich Nietzsche, hspede da senhora Meysenbug, amigo do Dr.
Re. Eles se conheceram na Basilia, na primavera de 1873, quando Nietzsche era
seu professor. Dr.Re escrever uma dezena de livros importantes e ter um papel
privilegiado na vida do filsofo alemo e de Lou Salom. Malwida de Meysenbug
uma notria idealista, a escritora que se tornar clebre no seleto crculo dos
wagnerianos.
Albert Brenner, o quarto e ltimo dos solitrios. O jovem Brenner foi
tambm aluno do professor Nietzsche e ter uma vida breve. No to brilhantecomo Paul Re. Tuberculoso, morrer aos 22 anos, muito jovem, sem receber os
louros da eternidade. Passar pela vida quase margem da histria, como muitos
outros personagens do vivido. Entretanto, ter convivido com os grandes, como
poucos. Ter escrito algumas inexpressivas novelas, nenhuma delas publicada em
sua vida breve. Brenner aparecer em algumas memrias de Nietzsche e de
Malwida de Meysenbug. O jovem rapaz est muito doente e vai morrer. A nica
alegria que ele conheceu foi a sua estadia na Itlia2. H muitas coisas para as
quais gostaria de me calar: a morte e o ltimo perodo de ede Brenner, o
estranho afastamento de muitos amigos3.
Ento, a grafia do nome Brenner ser timidamente mencionada em alguma
escassa biografia que no a sua. Brenner no a ter pelo fato de no ter sido
suficientemente interessante aos olhos e ouvidos dos grandes contadores dos fatos
ditos reais. Sua fotografia no estar dentro da sua biografia que nunca ser escrita.
Quando muito, aos esfarelados da histria resta o rido intervalo entre duas
inspidas datas, sobre as quais costumase depositar um incio e um fim.
2Malwida von Meysenbug.Le soir de ma vie, suite des Mmoires d'une idaliste, 1908.3Friedrich Nietzsche.Lettres Peter Gast, 1957.
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Albert Brenner(18561878)
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10 de abril de 1877. terafeira e o tempo est encoberto. O jovem Brenner,
tuberculoso, est partindo da Villa Rubinacci com Paul Re. Brenner estava
totalmente desnorteado de dor, ele queria a todo tempo dar meiavolta e retornar a
Sorrento. Re tambm estava igualmente calado, mas se controlava, mantendo
uma postura sbria e bela, assim como a sua pessoa. Eu estava sinceramente
desolada por ver Brenner nesse estado, e disse adeus Re como a um filho
querido. Talvez a gente se reencontre, mas de forma alguma ser to belo como foi
nestes 5 ltimos meses carta de Malwida4. E ento Brenner salta rapidamenteno vago enquanto Malwida procura seu rosto por entre as pequenas janelas
embaadas. A tuberculose logo terminar e com ela a vida do jovem. Restaro
brevidades.
4Friedrich Nietzsche. Correspondance avec Malwida von Meysenbug,2005.
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Beckett, Barthes, Blanchot, Brenda, Brenner.
A biografia comea com corpos que escapam.
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B
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Embora seja um dos gneros literrios mais lidos no Brasil e no mundo,
ainda so poucos os estudos acadmicos que tomam a questo da biografia em sua
transversalidade, conforme afirmam Schimidt (2000; 2004) e Vilas Boas (2003).
Tratase, segundo este autor, de uma tessitura delicada, onde universos se
entranham e, por vezes, at se estranham, fazendo com que os estudos sobre
biografias ainda sejam ocasionais, restando apenas iniciativas isoladas, quesomente tangem o gnero como parcela secundria ou complementar de uma
pesquisa maior. Pena (2004, p.51) dir que, ao no ser reconhecida como gnero
autnomo de discurso (situandose entre a histria e a fico), a biografia desliza
num certo b eegc, justificando esta suposta falta de interesse da
crtica universitria em relao ao tema.
A questo da escrita da vida, da (do grego: b b,vida e
ge, escrever), pelo seu carter heterogneo e deslizante, assume uma
perspectiva transversal. Tendo em vista a multiplicidade de tratamentos aos quais submetida, falar sobre biografia se torna uma conversa difcil, indireta e
ininterrupta, como bem sinaliza Sabina Loriga (2003, p.17). No que diz respeito a
uma definio geral do que seja biografia, Gobbi (2005, p.90) dir que se trata de
uma tarefa impossvel, justamente pelo carter transdisciplinar que a envolve. O
campo que faz uso da escrita biogrfica abrange no somente a literatura, como
tambm a histria, a psicologia, a pedagogia, a antropologia e cincias sociais.
Para que a biografia no fique limitada ao gnero literrio propriamente
dito, pesquisadores como Dominique Viart (2002 b) e Benito Bisso Schimidt(2000) preferem utilizar o termo biogrfico. Mesmo que faa uso de elementos de
uma concepo tradicional de biografia (recorrentes em pesquisas documentais e
historiogrficas), o biogrfico seria esse material processado pela escritura.
Segundo Viart (2002 b), o biogrfico esse efeito do vivido; a questo da realidade
histrica deste material no o mais importante no que diz respeito ao
biogrfico, o que se coloca em questo a maneira como o texto apresenta seu
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material. Tomando o biogrfico como efeito de escritura, possvel produzir um
distanciamento, uma da dcaacerca do que se entende por fidelidade
histrica ou historiografia de vida. O biogrfico, neste sentido, opera com aquilo
que Deleuze & Parnet (1998, p.58) chamam de traio da escritura, onde o trair colocado ao lado da criao, distante dos ditames identitrios produzidos pela
idia de babiogrfica de um autor. Escrever uma vida, ou a prpria vida,
ficcionalizar; toda representao de vida , desde o incio, fictcia, afirma Viart
(2002b,p.211). Dessa forma, ao introduzir a fabulao no prprio cerne biogrfico,
operase uma nova poltica, tal como Deleuze & Guattari (1977) anunciam: a de
propor novas entradas, e principalmente, inventar novas sadas. Tratase de tomar
a biografia a partir da articulao entre a inveno fictcia e o pensamento crtico
(VIART, 2005), num gesto que , sobretudo, de sada. O componente biogrficopassa a ser compreendido como um empreendimento de sade, naquilo que Viart
(2002 b, p.73) apresenta como a inveno de si como se fora um outro. A histria
, pois, atravessada pela fabulao, sendo o biogrfico o plano onde estas misturas
efetivamente se do.
Ao considerar o texto um gesto coletivo, sempre escrito e lido a vrias
mos, Barthes (2004, p.74) solicita do leitor uma colaborao prtica. Mesmo nos
escritos autobiogrficos, o que est em jogo , menos a monotonia de um sujeito
consciente que busca exprimir sua interioridade, e mais aquilo que a assemblia
viva de leitores e escritores lhe solicita (ibid, p.99). Ser por esta solicitao de
escritura que o trabalho de uma biografia ser assumido. Tratase de um coletivo
engendrado pelo prprio bigrafo, do qual ele tambm faz parte, e sobre o qual ele
mesmo se dilui. A biografia pode ser pensada, ento, como a grafia possvel das
vidas que correm e avanam sobre o texto escrito, sobre a dita bade um autor,
fazendo desta um Texto. Para Barthes, o Texto aquilo que se atravessa na obra e
que a coloca em movimento, tudo o que passvel de ser lido e que no est
intimamente ligada obra propriamente dita (uma imagem, uma fotografia, uma
pintura, uma anotao...). Entretanto, fazse necessrio reforar que o movimento
produzido pela concepo de Texto biogrfico outro, pois o que avana no a
escrita sistemtica de uma vida (com sua cronologia, fases, perodos, etc), mas as
vidas que se engendram e que tornam a biografia sempre aberta, produzindo sadas
para as vidas mais aprisionadas.
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. A
A insero do leitor dentro do problema biogrfico aproximase daquilo que
Philippe Lejeune (1980; 1984; 1996) apresenta como pacto autobiogrfico. A
assinatura de um Texto biogrfico ser, tambm, do leitor que, lendoo, convocado a fazer algo com aquilo que l. Uma leitura acompanhada de um desejo
por escrever, de ce(BARTHES, 2005, p.1920). desse leitorscriptor que
Corazza (2008) retirar subsdios para pensar o que define como escrileitura, ou
seja, o movimento de escrita testemunhal daquilo que faz corpo entre o escritor
leitor e seu autor a ser escrito. O agenciamento escrituraleitura constitui essa
mquina de escrileitura literria (CORAZZA, 2008, p.183) que se pe a minorar as
grandes entidades metafsicas encarnadas na figura do Escritor, do Leitor e do
Crtico. O movimento de escrileitura acompanha o que Viart (2000, p.75)apresenta como o novo movimento da crtica. Ao contrrio da postura clssica
(que exaltava a imitao das grandes obras) e das vanguardas (que preconizavam
uma ruptura total com os modelos), a atitude contempornea privilegia o gesto de
leitura, sem exclusividade ou excluses prvias. Este novo tipo de postura no
busca um modelo para testemunhar fidelidade e nem tampouco rechaa as
prticas mais antigas; a postura crtica contempornea trabalharia, ento, a partir
do transbordamento de suas prprias interrogaes (VIART, 2000, p.76), numa
escritura que situa a leitura no corao de seus prprios princpios. Para Viart &
Vercier (2006), a literatura contempornea ajudanos a pensar a natureza
fragmentria e descontnua do real. Segundo Loriga (2003, p.19), se escritores
como Gide, Musil e Valry criticavam a biografia, era com a inteno de instigar e
fomentar as prprias variaes do dito eu substancial. Uma vez admitidas a
fragmentao do ser e o estilhaamento do olhar individual, tais escritores
buscavam adentrar ao universo daquilo que virtual e hipottico. Tratase, atravs
da experincia individual, de promover o rompimento com o excesso de coerncia
do discurso histrico, instaurando a pluralidade e a virtualidade que h na
tentativa de se reescrever um passado.
Essa nova posio frente ao campo biogrfico coloca a biografia dentro de
uma historicidade capaz de sugerir espaos de liberdade frente aos sistemas
normativos vigentes. o que Schimidt (2003, p.69) afirma, quando se refere a essa
histria tomada pelas margens, a qual nos faz responder, mesmo que
tangencialmente, a uma importante questo existencial: qual a nossa
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possibilidade de individuao, de criatividade, de interveno no curso dos
acontecimentos?. Ao no pactuar com o determinismo histrico, a biografia passa
a ser um dispositivo para que a prpria produo de vida seja colocada em questo,
tal como Corazza (2006, p.29) escreve: os modos de vida inspiram maneiras depensar e escrever; os modos de pensar e escrever criam maneiras de viver. Pensar,
ler e escrever a vida de um outro passam a ser trs movimentos indissociveis. A
escrileitura biogrfica teria a marca dessa indiscernibilidade. A obra de um escritor
seria, ento, isso que permite ler a vida dele como um Texto, e no o apanhado
histrico e seco do que fora o registro das suas experincias vividas.
.
Para romper com a concepo majoritria de biografia, este texto faz uso danoo barthesiana de biografema. Em Rad Bae Rad Bae(1975), o
biografema entendido como uma espcie de anamnese factcia, de uma
imitao que mais da ordem da fabulao, daquilo que no toma como modelo
um Realimaginrio, mas que o inventa na sua necessidade de fazer algo com ele.
Em Se Ec (1979), o biografema tratado como o amigvel regresso ao
autor, no o autor identificado pelas grandes instituies como a histria (da
literatura ou da arte), e tampouco o heri recorrente das grandes biografias. Em
Sade, Fe e La(1971), este autor se mostra disperso: um pouco como as
cinzas que se lanam ao vento depois da morte, e que trazem no mais do que
clares de lembrana e eroso da vida passada. Em A caa caa (1980), o
biografema apresentado como um trao biogrfico, como o ponto (c)
que coloca o observador para fora da obra histrica propriamente dita. O princpio
biografemtico que envolve essa nova escrita da vida diz respeito fragmentao e
pulverizao do sujeito; o autor da biografia no a testemunha de uma vida a ser
grafada por ele, mas o ator mesmo de uma escrita. De acordo com Moiss (1983),
ao estabelecer aquilo que chama de biografemtica, Barthes aponta para dois tipos
de biografias possveis: uma bgafade, onde todos os dados e
acontecimentos histricos parecem se ligar e fazer sentido; e um segundo tipo
biogrfico, a bgafadeca, que toma para si a prpria potncia dispersiva
do biografema, criando uma ordenao outra. Enquanto o primeiro tipo de
biografia direciona o sentido, a biografia calcada na biografemtica cria sentidos
outros sempre que o leitor toma para si a multiplicidade de signos dispersos que
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povoam o Texto. Segundo Noronha (2001), a prtica de uma biografemtica
envolve a constituio de um retrato de vida, este, porm, nunca acabado. O que
h o desejo de encontrlo, um rosto que ser sempre etreo. Tratase de um
outro tratamento para aquilo que a cultura nos oferece acerca do autor (atravs doslivros, fotos, manuscritos, filmes, entrevistas, documentos, etc): a relao
biografemtica faz uso deste material, porm tomao como um compsito de
signos soltos, prontos para pontilharem outros rostos, culminando em novos jogos
de mentiras e verdades. Desta rede de signos dispersos, Pignatari (1996, p.1319)
estabelece o que chama de semitica da biografia. Prope a concepo de
bdagaa como o conjunto de biografemas, destas quaseunidades que
compem a narrativa de uma histria a ser documentada. Ao extrair fios da mais
variada natureza sgnica, o bigrafo arma uma espcie de teia (bdagaa),graas qual apreende, capta e l a vida de algum, tal como a aranha em relao
mosca. Formado pelo acmulo e ordenao destas quaseunidades, o e
biodiagramtico passa a apresentar enormes lacunas quantitativas e qualitativas,
transformandose naquilo que Pignatari (1996, p.16) chama de arquiplago
bizarro de biografemas f lutuantes. Ao se mostrar fragmentrio e incompleto, este
conjunto de ilhas biografemticas libera a escritura para aquilo que ela tem de mais
potente, ou seja, seu movimento de criao e recriao de mundos.
De toda forma, o surgimento da biografemtica barthesiana acompanhou
uma mudana de abordagem no que diz respeito s prprias vidas biografadas,
acarretando num novo tratamento biogrfico da histria. De acordo com
Caramella (1996, p.2122), a noo de biografema envolve uma outra postura de
leitura, de seleo e valorizao de determinados resduos sgnicos. Ao invs de
modelos exemplares, de biografias de heris ou de personagens religiosos
(hagiografias), a prtica biografemtica voltase para aquilo que mais comum,
para o potente que se entranha no ordinrio, para as imprecises do rosto, uma
espcie de etnologia do minsculo, um inventrio de banalidades (OLIVEIRA,
2010, p.9). Atravs da anlise de Vda Mca (2004), do escritor Pierre
Michon, Viart (2004) evidencia o desvio do olhar contemporneo para aquilo que
nfimo e o insignificante. Segundo o autor, a prpria biografia passou a se tornar
minscula, provando o xito literrio do biografema barthesiano (VIART, 2002a,
p.70).
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.
Ao se pensar o biogrfico a partir de sua fora minoritria, a prpria
concepo de biografia passa a assumir um sentido outro. Falar em biografia ,antes de tudo, apontar para a fora que a prpria noo possui, em seus dois
principais componentes: a escrita e a vida. Tomar partido da biografia enquanto
criao (e no somente como representao de um real j dado por um passado
vivido) colocarse diante de uma poltica que se mostra contrria a todo uso
biogrfico que sufoca a vida, de toda estratgia ou metodologia thanatogrfica.
Neste sentido, outras noes caras s cincias humanas e da sade, como anamnese
e histrias de vida, podem ser repensadas, aproximandose daquilo que Marre
(1991, p.88) chama de um outro futuro para o mtodo biogrfico propriamentedito. O autor questiona o uso da Histria de Vida como uma simples tcnica de
investigao e ilustrao emprica, afastandoa da concepo de que seja apenas um
mtodo realista de recolher informaes exemplares sobre a vida de algum ou de
algum grupo especfico. O realismo biografemtico sustentase na idia de um real
sempre em vias de ser feito, um real impossvel de ser aprisionado, pois no se
trata de dizer o que foi, mas de avanar em direo ao que vem (VIART &
VERCIER, 2006, p.50).
Em L bgae, Pierre Bourdieu (1998) faz uma interessante
crtica a certos procedimentos biogrficos. Segundo o autor, a concepo de
Histria de Vida guarda consigo algumas importantes iluses produzidas na
modernidade, e que ainda permeiam a lgica dos estudos nas Cincias Humanas.
Uma grande iluso diz respeito vida como uma histria passvel de ser relatada,
vida esta compreendida como um encaminhamento de acontecimentos lineares
delimitado por dois pontos estanques: um comeo (estria) e um fim, este
entendido como trmino e finalidade. Esta perspectiva acerca da vida aponta,
segundo Bourdieu (1998), para aquilo que se entende como cronologia, para uma
vida marcada por um tempo c e por uma lgica sustentada por uma verdade
lgica discursiva. No lugar da fragmentao, buscase o sentido lgico, uma
razoabilidade retrospectiva e prospectiva que permita olhar para trs e ver as
causas, assim como olhar para frente e projetar de forma mais segura as aes
vindouras. O problema apontado por Bourdieu diz respeito ao sufocamento da vida
em seu devir, pois ao buscar incessantemente uma lgica coerente, uma constncia
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de simesma, a vida mesmo que acaba se mostrando aprisionada, sufocada,
distante da criao e de sua reinveno.
Para que se possa escapar dessa dureza despertada pelo excesso de realismo
biogrfico, necessrio, de acordo com Vilas Boas (2003, p.18), que as prticas semisturem, que haja uma exposio literatura e suas tcnicas narrativas. Nesse
sentido, tratase de investir naquilo que Deleuze e Guattari (1992, p.260) anunciam,
no cruzamento e entrelaamento dos planos e disciplinas, tomando como critrio
as suas diferenas e especificidades, assim como (e principalmente), suas sombras e
zonas de indistino. quando a Filosofia, a Literatura, a Crtica Literria, a
Psicologia e a Educao importam, mais pela potncia de afeco gerada pelos seus
cruzamentos, do que pelo estudo ou anlise dos seus campos especficos. Segundo
Deleuze (2002, p.226), de grande interesse pedaggico jogar no interior de cadadisciplina as ressonncias entre estes nveis e domnios de exterioridade.
No que tange ao campo educacional, ao aproximar as prticas biogrficas
pedaggicas das problematizaes promovidas pela crtica literria
contempornea, abrese um campo problemtico bastante interessante. De acordo
com Viart & Vercier (2006, p.27), a literatura contempornea, jogando com as
formas e modelos tradicionais, acaba turvando o quadro do gnero (auto)biogrfico
propriamente dito, deslocando os lugares seguros que a crtica estruturalista dos
anos 70 estabeleceu. Ao buscar novas possibilidades de expresso para a escritura, a
prpria concepo de sujeito acaba sendo colocada em xeque. Conceitos como
autofico e fico biogrfica destituem o lugar legtimo dos escritos
biogrficos, colocando as prticas biogrficas ao lado da fabulao. Neste sentido,
cabe aos escritores (e no somente aos tericos ou cientistas humanos), a tarefa
de criar outras possibilidades, de produzir variaes autobiogrficas, como bem
apontam Viart & Vercier (2006, p.29). Ao invs de sustentar suas criaes literrias
sob o terreno das terminologias tradicionais, a escritura contempornea opta pela
inveno: Serge Doubrovsky fala em autofico, Claude LouisCombet cria sua
automitobiografia, Derrida fala em otobiografia, Michel Butor recria o
curriculum vitae, Alain RobbeGrillet apia seus escritos no que chama de novela
autobiogrfica estes so apenas alguns exemplos daquilo que a literatura capaz
de oferecer aos estudos (auto)biogrficos; os biografemas de Barthes poderiam,
tambm, constar nesta lista que, de acordo com Viart & Vercier (2006, p.29), ser
sempre aberta. O sujeito autntico e verdico d lugar a escritos e prticas
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biogrficas que se assentam em sua prpria incapacidade, na certeza de sua
inautencidade e de seu empreendimento impossvel. A prpria crtica tambm se
desloca o crtico, neste sentido, passa a ser um criador, um fabulador de
realidade, um ator mesmo de escritura.
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A A A A BA
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Pouco a dizer acerca de Michel de Montaigne e Ren Descartes. Tantas
foram as edies para Ea e Dc d Md, que uma anlise
acerca dessas mesmas edies seria uma tarefa quase impossvel. Embora seja
mais uma a editar duas obras clssicas, h de se considerar um ponto importante
no que diz respeito coleo Bbeca d Peae V5: alm dos textos
escritos pelos dois filsofos, os volumes sobre Montaigne e Descartes
oferecem ao leitor o sabor de dois interessantes prefcios, assinados por AndrGide e Paul Valry, respectivamente. primeira vista nada de novidadeiro, pois a
presena de prefcios recorrente em obras literrias. O que causa surpresa ao
leitor que, em especial, estes dois prefcios esmagam a necessidade histrico
biogrfica que costuma se impor aos escritos que apresentam obras clssicas.
Embora se consiga, por exemplo, ter uma boa idia acerca da presena da vida de Descartes na produo de seu Dc, o que salta aos
olhos do leitor a presena de seu prefaciador Paul Valry. No se trata de um
egocentrismo por parte do escritor que prefacia . de um Valry egosta que o prefcio fala, naquilo que ele mesmo chama
de Me Decae. Um egosmo intrnseco a toda escrita que faz uso do mundo
segundo os problemas por ela criados. Pouco a explicar do mundo, nenhuma
verdade deste a ser descoberta. A escrita toma o mundo para si com a inocncia de
quem sabe que nada deve a este mundo por cometer tamanha
apropriao. Inocente abandono daquilo que fora exigido de tal escrita:
a devoluo de um mundo mais compreensvel . Valry abraa Descartes e o
efeito deste abrao gatuno o que se pode ler no prefcio do livro. Tratase de uma
outra sada para a empresa cartesiana: a de avaliar o filsofo por sua linguagem,
nas claridades particulares de seu pensamento e no modo como se apresenta
expectativa daquele que o l. Ou como Valry mesmo escreve, a e a
5Os volumes acerca de Montaigne e Descartes fazem parte da referida coleo, organizada em
1960 pela Martins Editora.
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eca caeaa e e a acea e a , e a ccee e e
ecbe, a de ee e fada , ee.Ao final de sua
leitura, o leitor no ter um retrato aproximado de ,
mas to somente sua ade de aaece aos olhos do leitor Valry.
***
E a vontade de Valry em aparecer aos olhos do leitor.
***
Uma epstola traioeira essa histria de prefcios ou apresentaes de
outros. Epstola porque se dirige a um outro em sua transitividade . Traioeira porque sempre envolve um ,
no c eea que a expresso corriqueira nos sugere. Mas para que se possa
necessrio um certo grau de afinidade. O
traioeiro ser aquele que inocula o veneno naquilo que anteriormente se
mostrava apenas como consanginidade. Ou seja, para trair necessria a crena numa certa fidelidade.
***
Dizse que todo verboso traioeiro possui virtudes ciceronianas. Uma
eloqncia capaz de apaziguar at mesmo os ouvidos mais adversativos, tornando
os igualmente cmplices quando na virada das costas. O grande ato traioeiro de
falar s costas introduz um quando tudo parecia girar em torno do . Um que sempre exterior, uma profana consanginidade que se
coloca da consanginidade primeira. Ea
a faa de c.O do prefcio o corpo que envolve o daquele que
prefacia e o daquele que se apresenta como leitor. Um que exclui o eu
do escritor e que faz do falar s costas um ato de irmandade coletiva. De
todo modo, uma traiocriadora porque se pe a constituir um outro
corpo.
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Ao arquitetar novos enredos e estabelecer outros graus de parentesco,
o corpo ser um traidor.
Referindose ao Dde Andr Gide, Roland Barthes escreve:
ce eg, e ad Gde faa d 6. Em se
tratando de dirios, dos escritos ditos , h de se tolerar estas
posies egostas. Porm, quando se trata de uma escrita sobre a vida de outro, de
uma biografia, esperado que o bigrafo assuma uma posio neutra . Ao tentar se excomungar de tal incmodo, Valry ensaia
aquilo que se tomar, aqui, como um primeiro ponto acerca de uma biografia:
cede aageaee c d ca da defaee
aagada e efe d e, eeeae e ee de d e
de abaee dea de eeece, a c a caa gegfca
ab eeece7. Ao ceder calor, o bigrafo componente da
biografia, no apenas o escrevente que comunica ao mundo a vida de um outro.
***
Um corpo rouba calor.
***
De qualquer forma, no ser Histria que a biografia oferecer seus
prstimos. Embora porventura s vezes o faa, ela no se presta a recuperar antigas
coordenadas. Ao oferecer calor carta geogrfica envelhecida, cria condies para
que novas rotas possam ser tomadas. Lida com textos e signos
apagados, mas no fazda sua leitura um purgatrio da Histria.
6Barthes. Notas sobre Andr Gide e seu dirio. In:Inditos, vol.2 crtica, 2004.7 Paul Valery. Descartes. In: O pensamento vivo de Descartes, 1961.
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***
Um ou dois pequenos esclarecimentos acerca da biografia: ao invs daquilo
que se costuma chamar de , o biogrfico tomar para si a
concepo deleuzeana de 8, ou seja, aquilo que garante acomposio de elementos aparentemente heterogneos e divergentes entre si. Em
outra instncia, o projeto dito colocar sob suspeita todo e qualquer
apego consciente memria historiogrfica, o que j o
reveste de uma certa infidelidade. Tratase de uma prtica de escrita
infiel quilo que Philippe Lejeune9chama de , ou seja,
d ea eeeee c e ceaee dd b
ge bgfc. contra a naturalizao dessa ordem cronolgica que uma biografia assenta sua artilharia, entendendo, por tal, a buscade uma certa justia.
***
Assim Amar + Escrever = fazer justia queles que conhecemos e amamos,
isto , testemunhar por eles 10.
***
Escrevemos aqueles que amamos 11
****
Mais do que uma substituio da leitura historiogrfica, a
concepo de consistncia biogrfica parece acompanhar e fazer justia ao prprio
movimento descontnuo e rtmico da vida. Rgca da12. Se por um lado a
conscincia histrica tida como arquivo de vida , a consistncia biogrfica tornase a
outra voz que se coloca sobre a ponta da lngua e da memria. Tratase do ritmo
disparatado que se volta contra a cadncia ordenada daquilo que ritmado. Se a
conscincia histrica nutrida pela iluso de um retorno possvel ao absoluto do
8 Deleuze e Guattari. Introduo: Rizoma e Plat 3: A geologia da moral. In:Mil Plats, vol.1, 1995.
9Philippe Lejeune.Le pacte autobiographique,1996.10Barthes.A preparao do Romance I, 2005.11Sandra Corazza. Introduo ao mtodo biografemtico. In: Fonseca & Costa. Vidas do Fora:habitantes
do silncio, 2010.12Andr Pietsch Lima.Ritmologia, 2006.
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vivido , a consistncia biogrfica aquilo que, junto a este
oceano de representaes, invade a cadeia mnemnica com os heterogneos que
nela j pululavam, bastando apenas um componente organizador, um plano capazde tornlos possveis . A prtica da
consistncia a trama deste plano, em favor dos matizes, das gradaes e das
nuances, daquilo que Nietzsche chama de o e beefc da da 13. A prtica
diz respeito quilo que no se d pelo simples fato de se retornar, mas no ato
mesmo do retorno . A consistncia biogrfica a investida dos demnios que j andavam a
sobrevoar, introduzindo a raridade naquilo que acostumouse a ser duro e grave
g ae ea a a, a aa a ea
ecea aa aeae d ae, e aa agaa a
fa e cabe14.
***
Um apego:
cronologia,
historiografia,
narrativa,
linearidade,
memria,
profundidade,
causa,
finalidade,
ao contexto,
inteno,
influncia,
profundidade,
ao conjunto,
ao explicvel,
ao que fica.
13Quando se jovem se venera ou se despreza indiscriminadamente, sem considerar o conceito de valor
do matiz, que o melhor benefcio da vida. In: Nietzsche.Alm do bem e do mal, 31, 2002.14Nietzsche.Alm do Bem e do Mal, 275, 2002.
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Um apego:
s sries disjuntivas,
ao fragmento,ao paradoxo,
ao efeito,
superfcie,
ao inusitado,
ao ahistrico,
ao acontecimento,
ao esquecimento,
ao expressvel,ao que foge.
Sabe, o bigrafo, que no se trata de escrever. Sabe que, assim
como as grandes filosofias, uma biografia constitui novos mundos, na
condio de darlhes uma certa consistncia. Tanto em vidas para as quais
documentos mingam , quanto em
vidas saturadas de testemunhos , o que h de ser
registrado ter o tom dessa sismografia impossvel, de uma zona de
distanciamento entre o que se julga e o que se tem . Em outras
palavras, a vida biografada no puro reflexo de uma vida vivida, mas o vivido em ato presente.
***
.
O bigrafo suspeita da figura do espelho.
***
maneira clssica, uma biografia lida como um texto espelho. Algo como
um segundo texto, um espelhamento daquilo que teria sido a , ou
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aquilo se toma por . Ao considerar essa relao como princpio, a leitura
de uma biografia ser sempre segunda, sempre este que se
coloca aps o . A biografia como espelho seria esse texto refletido
do real, com a incumbncia de trazer todas as imperfeies e deslizes do textoprimeiro , oferecendo um olhar sobre aquilo que a cegueira
inerente do momento passado no pode trazer. Ora, nesse caso h de se considerar
um primeiro paradoxo, pois o que haver de ser refletido pelo espelho ser sempre
da ordem do . A leitura de uma biografia seria este em ato, texto
enquanto reflexo de um j vivido por outrem. Como efeito, uma biografia costuma
transformar em aquilo que possivelmente fora somatrio de
vidas provisrias e efmeras.
***
Nas linhas de uma biografia o outrora dito
como tempo do vivido .
***
comum que se tome o espelho como o , a sentena que
se afirma no exato momento do olhar, embora no se costume incluir nesse
julgamento o prprio olhar daquele que olha. O orculoconselheiro, em
; o estranho unificador no ; ou, ainda,
o metonmico olhar que aspira a um terceiro . De todo
modo, ser o espelho esse , o que em no passa desse . Uma duplicao de superfcies
oferecida aos olhos.
***
o j vivido
outro
***
O bigrafo sabe que pouco acerca de espelhos, e com este pouco
sabido costumase construir a verdade sobre si mesmo. Qe ge
d e e, e e efed ee ae de e e
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enunciado>. Os olhos vem aquilo que na
profundidade da superfcie espelhada se apresenta como superfcie do prprio
corpo que v. Condenado invisibilidade, o rosto este estranho que tudo v e que
no conhece a si prprio seno por algo que o espelhe.
______
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A superfcie do rosto to estranha
quanto a mucosa que reveste o corao.
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Se procurarmos observar o espelho em si, nada descobriremos afinal, seno
as coisas nele. Se ee aede a ca, ada acaa aee,
ece ee.
***
A arte de caminhar em duas direes faz do bigrafo o amante das
superfcies por justamente no temer as profundidades. Nada h de mais secreto
a ponto de tornar a superfcie mais ou menos verdadeira. Se o
bigrafo desce caverna platnica, no ser para iluminar as verdades que se
encontram acorrentadas ao obscurantismo. A caverna ser, entretanto, espelho
para uma outra caverna e assim conseqentemente. O bigrafo lana a linha do
tempo para trs porque entende melhor do que ningumdessas ca de ca15. Ele sabe que tudo aquilo que se refere a datas, perodos,
fases, nomes e nmeros so como anzis
para que outras coisas se deixem iscar.
***
No h biografia por natureza, tampouco
bigrafo. O bigrafo no busca o sentido intrnseco da vida a ser biografada
porque sabe que biografar criar novos sentidos e vidas, e que ao jogar o canio
possvel que ele mesmo seja pescado.
***
O mar dos signos biogrficos no carrega paradoxos em si. No disperso e
disparatado oceano semitico, o bigrafo lida com aquilo que ao seu corpo
impregnado e com aquilo que dele insiste em fugir. A vida a ser biografada tem o
movimento disso que adere e que desgruda, disso que tem consistncia
justamente porque num instante foi possvel de se viver .
***
O bigrafo leitor que tambm biografa.
15Nietzsche. Para Alm do Bem e do Mal, 1. In:Ecce Homo, 1995.
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Barthes adverte para o uso ordinrio daquilo que os gneros
literrios costumam chamar de biografia16, na qual se espera que a vida de um
escritor oferea informaes sobrea sua obra. Isto que Barthes chamar de a biografia operada por
linhas de causalidade entre os fatos verificados na vida do escritor e os episdios
narrados em sua obra. Tratase da busca pelas causas da obra como autenticao
da fbula literria, atravs da . Barthes v esse
projeto ordinrio ser interrompido pois . Com Barthes,
somos conduzidos seguinte setena: o mundo no haver de fornecer as chaves
do livro pois ser o livro que abrir este mesmo mundo.
***
Abrir um mundo abrir uma nova deciso
possvel que a pergunta pela acabe levandonos a
Plato. possvel que Scrates seja o exemplo mais notrio de uma
vida retratada por outrem. Scrates platnico personagem de muitos dilogos e,
como tal, suscetvel mistura de corpos, to temida em seus discursos na plis. O
bigrafo toma Scrates platnico como um dos Scrates possveis,
tambm oferecendo no seu banquete biogrfico o riso aristofnico e os
memorveis ditos e feitos de Xenofonte. Nas nuvens ou no mercado, Scrates
que as linhas biogrficas havero de fabular. Alis, ser
Olimpiodoro que apresentar o desejo
de Plato em se tornar um grande dramaturgo. Oa, ae a edade e a
Scae?Mesmo L.F.Stone, na busca de seu , deixarse trair
por seu prprio projeto. A frieza historiogrfica do projeto cede lugar paixo do
escritor. E no toa que nas listas dos livros socrticos O gae de Scae17esteja entre os mais lidos.
16 Barthes. Vidas Paralelas. In:Inditos, vol.2 crtica, 2004.17
L.F.Stone. O julgamento de Scrates, 2005.
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TBULA RASA: A biografia no trabalha sobre nada. Nenhuma idia de
tbula rasa lhe estimada. Ela luta contra os fascnios despertadospela idia de nada, contra o brilho narcisista de uma que se diz vir
.
ALFAIATARIA: O bigrafo no veste terno novo porque
sabe que prefervel que se vista com o tecido mais
gasto ao invs de ostentar a patifaria de um brilho que no se sustenta aps a
primeira secagem.
CLICH: O bigrafo no ignora os
clichs porque sabe que estes esto impregnados na matria, e da matria queele parte.
MATERIALISTA: O bigrafo um amante da matria porque ela haver de ser
molecularizada.
ESPIRITISMO: O bigrafo acredita em espiritismo: ele biografa para os
espritos livres que povoam a superfcie do texto. , ele sabe que
dotado de um esprito coletivo, na medida em que no conta apenas com o seu
prprio esprito, mas tambm com o esprito de seus amigos .
RABUGENTO: O bigrafo resmunga sempre que algo afirma ter sado
somente de si e que no h nada mais a ser escutado do que o seu
prprio pequeno ritornelo existencial. Ele lana seus olhos a essa vida
universal cujo pensamento vai alm de si mesmo.
PARADOXAL: O bigrafo biografa com as sadas de si, mesmo que
nunca saiam de si.
ASSUSTADO: O bigrafo se assusta com o fato de ser um
inventor.
***
Como pesquisador, o bigrafo sabe que est sendo lido ou o ser em algum
momento. Sabe que a polifonia biogrfica que se desprende na sua prtica de
escritura tem ouvidos que se colocaro a escutlo.
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Nietzsche> ele trata de estabelecer a poltica de sua bgafa18: nenhuma
neutralidade da escrita, ao ser a lana que escolhe os
ouvidos certos para ouvila e exclui aqueles que nada fariam com aquilo que
escutassem. possvel que estes ltimos sejam os grandes ecompetentes cacarejadores a servio da humanidade, e que os primeiros pouco
contribuam para aes futuras, pois havero de escutar a partir de suas
paixes presentes.
***
a prtica de uma biografia tambm uma poltica de abalo
a duas grandes fices: a de que a escrita biogrfica apenas expe uma
determinada realidade investigada, fazendo da escrita a operao de se ofereceruma forma final acerca de uma vida; e a de que o da
biografia exterior ao Texto, e que por uma contingncia de pesquisa, ele
se pe a definitivamente ser escrito. Em ambas as fices h de se constatar o
princpio de exterritorialidade, ou seja, a fico do escritor enquanto personagem
exterior dita vida do outro sendo escrita.
***
Esta vida no era.
No h vida pregressa vida posta pela escritura.
***
Tae aba ca aea e caa faa de eca
e a aaa de e Pa ca a e f ad. Ora, ser com
estes farrapos entranhados por significantes despticos que o trabalho de um
bigrafo comea.
Leitores hereditrios encontram alvio quando o cdigo gentico
decifrado, pois sabero falar sobre suas descobertas e constataes.
Mas nada querero saber acerca dos desvios, das infimidades
18 Derrida. Otobiographies: lenseignement de Nietzsche e la politique du nom propre, 1984.
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de uma fagulha. O mximo a que conseguiro chegar a suspeita dos porqus da
fagulha, mas de fagulhas felizmente ficaro privados.
***Na infimidade de uma fagulha e na enfermidade dos seus porqus
.
***
Tudo aquilo que vive, movese;
esta atividade no responde a fins precisos
19.
19 In: Nietzsche.Escritos sobre Histria, 2005.
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A A A BA
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Mesmo encoberto pela euforia da escrita consumada , h de se constatar um certo grau de melancolia ou tristeza frente
verdade da biografada. Tade dea! , ou
sua decorrncia aos olhos do leitor: E ea ea a da?Ao colocar a
no seu eixo, restaria uma indigesta amargura impregnada de paixes
tristes, nisso sobre o qual no haveria mais nada a ser feito.
***Remexer montes de coisas em todas as direes
20.
***
preciso ser suficientemente organizado
para produzir algum tipo de espalhamento.
***
A literatura costuma no dar muita ateno a um aspecto fundamental no
que diz respeito ao tratamento da linguagem: tratase daquilo que Barthes chama
de gea21. Inclui nessa nobreza de escritores Sade, Fourier e Loiola. certo
que essa classe de inventores no funda uma lngua de cunho comunicacional.
Nietzsche dir que este tipo de servio se presta somente ao uso mediano, daquilo
que persegue to somente a mediocridade da experincia. Ora, preciso no ceder
aos anseios do hlito das lnguas ordinrias. Para isso, os logotetas tratam de
retalhar e dilacerar o comum linguageiro. O comunicvel o menos interessante
ou, antes, comunicase a disperso, o que se dispersa por entre fagulhas e farrapos.
Mas o retalhar sempre seguido de um novo agrupamento, de uma nova
combinatria. N ee ga e ee g ddd fe de
agad a a cbaa . Sim, os fundadores de novas
20Barthes. Sollers Escritor, 1982.21Barthes. Prefcio de Sade, Fourier e Loiola, 1979.
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lnguas produzem novas regras de conjunto, que se assentam no ordinriocaduco
lingstico, embora no sucumbam s suas armadilhas. Fazem do ordinrio da
linguagem a cama dura de campanha, boa para um breve descanso e
suficientemente dura para que ningum pense em permanecer deitado nela pormuito tempo.
***
Na ausncia de uma lngua
forjla.
***Em sua invencionice de lnguas, os logotetas ainda precisam operar com
um ltimo componente: a teatralizao.N e aa de deca a eeea
a de a a gage. A lngua nova pouco comunica se o outro
no e c. Barthes fala de um na escrita
sadeana, algo como injetar fragmentos de fala sadeana na fala cotidiana.
Entretanto, viver com o escritor no imitlo . Mmese
alguma. Os logotetas estipulam o principio da entre o escrito e
aquilo que transmigra para a cotidianidade do leitor.
***
O princpio da coexistncia o que torna possvel biografar sem o rubor
daquilo que apequena a vida. Vae aa a da d ec bed
age ege . O escritor que retorna no o
identificado pelas grandes instituies histricas e literrias, tampouco o heri
sacro corriqueiramente traado por aquilo que os cdigos literrios chamam de
biografia. A este tipo de biografia, o retorno sempre do estatuto do sujeito. No
h espao para coexistncia quando se opera sob a lente do heri ou
biogrfico. O regime passa a ser desptico , numa
grafia que consegue, no mximo, reforar os contornos.
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***
Quando a biografia vira thanatografia.
***O retorno amigvel da coexistncia inaugura a presena do amigo
nietzschiano e
devolve o corpo ao texto.
***
Dme
um
outro
***
O e e ?. H de se pensar em duas
classes de biografia segundo seu componente gentico: uma primeira, da ordem
das desprezadoras do corpo ; e
uma outra, da ordem das afirmadoras do corpo .
***
O e e ? a prova de fogo para qualquer escrito biogrfico, na
medida em que instala um novo componente: a vontade. A pergunta primeira
ento deslocada para e e ?Desta, duas qualidades do querer: a vontade
de verdade e a vontade de potncia. Ou : Qe, afa, e a
ega?Ua ca a edade?
***
Acerca da verdade,
ningum at agora foi suficientemente verdadeiro.
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***
Sejamos justos: estamos desde j liquidados
postura de um bom bigrafo diante de sua grande biografia.
***
o que se quer uma vida verdica
sustentada por um homem verdico . possvel que se
acrescente a esta vida o ada seriedade, sob o rtulo de . S a, eada e ae o que diz a
mquina rangente que se proclama como a Verdadeira Biografia.
***
U d edc.
possvel que sob esta absoluta vontade de verdade se oculte uma outra vontade
ainda mais corpulenta ou ainda mais . O bigrafo ento ruboriza quando suspeita
que algo no anda bem. provvel que algo no bem e bem provvel
que ele se volte contra o rudo produzido. ,
pergunta este bigrafo de ouvidos entupidos.
***
Acontece que no querer enganar a si mesmotraz consigo um
outro problema: a moralidade . O problema
parece surgir quando o verdadeiro bigrafo tornase vigilante das boas ou ms
condutas. Prestarse ele a enganar? . Caso sim, ser
tomado por um rubor. Caso no, entrar no estatuto dos bigrafos.
***
O perjrio do Eu o pecado original de toda biografia do sim.
***
O bigrafo no querer ser o grande falsrio pois, assim
sendo, quem ir assegurar a veracidade da biografia? O
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projeto da verdadeira biografia trepida sempre que se levanta suspeita sobre o
. Oa, se eu sou fruto de uma falsificao, o que se dir do?
***
A lgica de uma biografia :
1. querse um mundo verdadeiro;
2. preciso sustentar a integridade da verdade;
3. uma verdade ntegra uma verdade imutvel;
4. verdades mutveis no so ntegras;
5. aquilo que no muda traz consigo a verdade absoluta;
6. a verdade absoluta de uma coisa a sua essncia;7. s a essncia confivel;
7. aquilo que muda no confivel;
9. a vida mudana contnua;
10. a vida se d no mundo;
11. o mundo no confivel;
12. a vida no confivel;
13. um outro mundo preciso;
14. que se acabe com a vida.
***
Ao querer um extramundo onde as permanncias sobrevivam,
a vontade do bigrafo querer o fim da vida. Se a vida
movimento e criao, afirmar o imutvel afirmar a morte deste mesmo mundo.
a vontade de verdade oculta uma outra : a
vontade de morte.
***
Na medida em que exigem de si o estatuto de uma vida confivel
as biografias majoritrias so grandes thanatografias.
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AAAA
A AA A A
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Quem no morre muitas vezesantes de morrer,
est arruinado quando morre.
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A histria dos historiadores : permitir reconhecer um
Todo, e dar a todos os disparates passados a forma de reconciliao . A linha restituir o suposto corpo perdido do biografado,
oferecendoo ao leitor em doses homeopticas . Uma homeopatia
que permite ao leitor curarse de sua maior doena: a ignorncia em relao ao
corpo biografado.
***
Thanatgrafos gostam destas pequenas dosagens.
***
22.
22, de Rembrandt .
______
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***
O brilhantismo de Rembrandt no est na sua capacidade de retratar a leo
a dissecao pblica do cadver. Em h algosurpreendentemente mais cortante que a lmina do instrumento que rasga a
superfcie do brao morto. No olhar fixo do patologista um
rudo se desprende. Tudo est posto, a ser explicado pelo espetculo visual
oferecido pelo corpo dissecado. S a morte consumada desvendar o
grande segredo da vida ag de dee c? . Apenas o murmrio
silencioso dos dezesseis olhos abertos e o abrasivo murmrio provocado
pelo par de olhos fechados.
***
O propsito de uma autpsia responder s principais perguntas
que se impem ao corpo morto.
***
Fazem parte de uma autpsia os seguintes procedimentos: 1. anlise externa
do cadver; 2. exame cdos rgos internos a partir da abertura das cavidades;
3. retirada dos rgos das cavidades, do pescoo e do retroperitnio para avaliao
macro e microscpica; 4. lavagem e fechamento do corpo; 5. relatrio ; 6. atestado de bito.
***
Carlos Camejo foi declarado morto aps um acidente de trnsito,
sendo levado para a morgue, onde os peritos comearam a autpsia. Logo na
primeira inciso , perceberam que o
mesmo sangrava abundantemente e que aquilo no era movimento esperado de
um cadver. Os peritos trataram de fechar o corte , de modo a
evitar maiores constrangimentos ao mortovivo.
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***
E acde e a d ea ee relata Camejo para a imprensa,
com a ordem de autpsia em suas mos.
***
Thanatgrafos escrevem em morgues
porque confiam no trabalho dos anestesistas.
***
Em geral, uma autpsia realizada em casos de morte violenta
ou por desconhecidas causas. Todas as mortes com suspeita de envenenamento
tm indicao para que se realize uma autpsia .
***
Uma vez limpo e fechado por suturas, o corpo morto devolvido aos
responsveis, em condies para realizao de um funeral adequado. Frente ao
cadver vestido, ningum dir que o mesmo sofreu uma autpsia, evitando
maiores constrangimentos famlia.
***
olhar para o morto como um quebracabea.
Seu trabalho resolver o enigma, dandolhe uma causa .
***
: Me e a e ec, a
c a e abaad. O historiador s existe para reconhecer um calor
do corpo sobre o qual se debrua. Seu e: ser um magistrado civil
encarregado de administrar a fortuna dos mortos23. Ainda, tratase de estabelecer a
grande fraternidade dos mortos, oferecendolhes uma coerncia a partir da matria bruta e dispersa que lhe foi possvel acessar com o
23Barthes. Michelet, 1991.
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encontro morturio. O grande delrio da histria esta linha congruente a ser
traada, esta grande voz que assumiria o coro disperso que a vida.
***Quem ouve uma s voz no percebe o coro>.
24
***
O bigrafo traa uma linha a quatro mos , enveredando pelos murmrios do Texto. No esquecendo
que um texto sempre parte. Ele nunca chega.
***
Thanatogrfica no somente a morte do autor, a eliminao do , ou o
esmagamento do sujeito. Tratase da morte daquele que sempre se pe a partir e
que acredita ter definitivamente chegado. Barthes diz que o
definitivo, , e infinitamente aberto 25.
***
Aberto
nele se l.
***
para onde o termo grego aaaponta
. O vocbulo foi primeiramente empregado
a partir do trabalho executado pelo legista que, pondose minuciosamente a
examinar o cadver, estaria examinando de forma meticulosa a si
mesmo.
24Donald Schler.Herclito e seu curso, 2001.25Barthes. Sollers Escritor, 1982.
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***
O propsito de uma autpsia
responder s perguntas dos vivos.
***
A promessa histrica sustentada pelo Grande Olho capaz de dissecar a
suposta trilha deixada pelo real. A sua crena: em tudo haveria um rastro ou
espalhamento de vestgios prontos para serem compilados e devidamente
ordenados pelo sisudo par de olhos do esprito historiogrfico. Para este, a
eadade ea cda eee, a ea a
eca ccea, eead aea aa ee decbe26. To logo
descobertos e agrupados, o grande olhar deve tornarse paulatinamentedesinteressado, cedendo lugar a uma linguagem capaz de comunicar a verdade
arduamente conquistada. Do mundo j visto, restar a grosseira coleo de
enunciados mdios tambm chamada de . Uma crena
incondicional nisso que a linguagem produz. O colecionador constri seu objeto
mdio e os espectadores assumem a crena dessa verdade. Uma certa irmandade
nesse compsito : da viso com a grandeza de uma
lngua capaz.
***
Grandes olhos se perdem diante das pequenas lnguas
e dos ouvidos curtos.
***
A biografia v com os prprios olhos sabendo
que estes esto j dispersos. No os dezoito olhos da L de Aaa d D.
T,mas o seu rudo. Da autpsia, to somente o , aquilo que se dispersa a
linguagem e que faz da lngua o deserto das verdades a serem vistas. O como este
rudo do olhar, aquilo que inviabiliza o pressuposto de uma viso do
mundo, e que instaura uma outra poltica acerca do que se entende por clnica. Ao
invs da captura por uma linha estendida na relao pureza X silncio
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eaa gad a a eca eca>27, a clnica daquilo que
incessantemente foge. Da poltica das linhas estendidas ao que se distende em
vrias direes. Poltica da distenso, dedee clnico. No mais o trajeto entre a
coisa e seu sentido, mas as flutuaes deambulatrias operadas pela prpriaproduo do sentido. Da linearidade obsessiva de Descartes aoa
desviante de seu prprio mtodo. Ao querer lanar um olhar sobre todas as coisas,
o seu cg eg apaixonadamente irrompido por um , como num
golpe de fora. Enquanto a histeria do esprito histrico busca atrair para si o olhar
do mundo , o de
uma clnica esquizolgica28instaura o regime cartesiano do signo fugidio,
em colees sempre distendidas por este apaixonado.
***
Em todo estudo thanatogrfico, o que h a insistente
permanncia do mundo. Mesmo nos processos bruscos ou violentos,
buscase o componente mnimo originrio que se mantm intacto e a partir do
qual se instaurou todo o movimento. A morte implicada numa thanatografia no
a grafia das mortes que se amarram a qualquer teia de escrituras, mas
a prpria concepo de imortalidade que se inscreve na alma dos corpos. Ou seja,
o corpo, uma vez biografado, tornase imortal. O thanatgrafo busca as palavras
como se estas preservassem seu sentido e como se as idias que
as amarram sustentassem sua lgica .
***
A e a e a.
As ltimas palavras do matrimnio thanatolgico.
***
Recado de Nietzsche ao circunspecto thanatgrafo: d da ca
da & eca cece ae, a, aa, dface e
aca.Thanatografias sonham com este na medida que o colocam como
sentena de morte e condio de permanncia da o gozo quando se acredita ter
27Foucault. O nascimento da clnica,2004.28Felipe Ribeiro.Esquizopathologos: musicae.
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algo, pois este descoberto haver de ficar para a eternidade. J
decb! grita ao mundo o thanatgrafo, tomado por uma alegria quase
arquimediana. Como Arquimedes, nu pelas ruas, gritando aos passantes: eea!
Entretanto, o bigrafo descobrir neste , o rumor de uma coletividadeconvulsiva, o murmrio daquilo que carregou consigo uma matilha e que se
mostra sempre prestes a novas e indevidas apropriaes. Se haveria algo a ser
descoberto, seria este plexo disparatado.
***
O e e eca ce c
de ae ca daae 29.
***
Trabalhar, o bigrafo, sobre esta matria que por desvio. Tal
como artista que se depara com a madeira: as fugas criativas partem desta e no da
cabea ou das mos sublimes do dito criador. O xilgrafo se entrega s fugas que
seu material oferece, estas produz sua xilogravura. Da mesma forma haver
sendas, em todo dito e escrito, para que se possa justamente desviarse das
formas dadas pelo fatalismo histrico.
***
Onde tudo parece tender ancoragem segura do ,
o bigrafo dispara a buzina do .
***
Tratase de reconhecer a essncia exata da
coisa, sua possibilidade mais pura, sua identidade cuidadosamente envolvida
sobre si mesma, sua forma imvel e anterior ao que externo, acidental e
sucessivo. Comprometerse a encerrar todas as mscaras para desvelar, no fim,
uma identidade primeira. A condio: um fiel apego verdade. O objetivo: chegar
s profundezas da origem para buscar o que existia. A concluso: ento era
isso mesmo ...
29Foucault.ietzsche, La genealogia e la historia, 1988.
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***
A origem est ao lado das nuvens e a quilmetros do corpo.
Uma questo pertinente: de e c e e faad? O corpo
nietzschiano : efce de c d acece, ga de
dca d 30. Ainda que a linguagem o marque e as idias o dissolvam,
tratase de um volume em perptuo desmoronamento. De toda forma, o corpo no
teria outras leis que no as de sua fisiologia, da o trabalho sintomatolgico e
clnico daquele que se presta a biograflo. Cabe ao sintomalogista mostrar este corpo impregnado de histria, esse que
oferece to somente seus pedaos. Cuidadoso estar aquele que se presta a
reconstitulo, que pacientemente procura por fragmentos encobertos, que v em
cada migalha de documento, em cada nota, em cada escrito, relato, em cada dito
visto, a possibilidade de completar seu servio. Ora, dir Nietzsche que
sua obsessiva fome por encontrar marcas no corpo o impede de ver o
corpo em sua plenitude, ou seja, como o lugar de excelncia no enfrentamento de
novas foras.
***
Biografar escrever de corpo todo
para tudo o que o atravessa.
***
Os sintomas de um corpo impregnado de histria aponta para um outro
diagnstico da modernidade: a senilidade. Nietzsche tratar este corpo como o
velho operrio, mquina rangente que desaprendeu a rir, pondose apenas a
pestanejar. Hae de e a edade ecdda e a da ed aa ea
da eeecda pensa o pesado esprito. Ser preciso, pois, mais uma vez
retornar, mesmo que seja em nome de uma esterilidade e de uma
assepsia quase hospitalar. Eduardo Pellejero escreve que se trata de uma
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turstica com o passado>31, de um fascnio pelas possibilidades que este passado
pode reservar, tornando o presente o fruto mximo da
debilidade.
***
Thanatgrafosturistas
sempre retornam ao lar das suas certezas.
***
Tendo como critrio , foras estas
provindas de rapinas, desvios e apropriaes indevidas, o bigrafo lida com um
corpo sempre da ordem do mltiplo. O corpo biografado ser o estado de forasresultante dos encontros e foraes maquinadas em sua pesquisa. Tratase de
misturas de corpos, na relao entre o corpo com o c , ou o que se trava na fronteira entre os dois: lutas, rapinas e pactos
diablicos. Disto resulta sua poltica do abandono, na dissociao do
soberano, fazendoo pulular no que sua constituio Deleuze e
Guattari falam em corpo sem rgos. Nem o grande do bigrafo tampouco a
figura sacra do a ser biografado.
***
No caber histria a sano de toda a verdade, pois a verdade ser
sempre a verdade de um estado de foras, de um corpo constitudo enquanto
problema biogrfico.
***
Contra aquilo que chamou de histria dos Historiadores, Nietzsche
apresenta sua Wce He : 32
1. no apoiarse em nenhuma constncia;
2. introduzir o descontnuo no ser;
3. dividir sentimentos, dramatizar instintos, multiplicar o corpo e o opor a si
31Eduardo Pellejero. Nietzsche, Foucault, Deleuze: de la utilidad y los inconvenientes de los
estudios histricos para la vida. In: Lins e Gadelha. ietzsche e Deleuze: o que pode o corpo,
2002.32Foucault.ietzsche, la genealoga e la historia, 1988.
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mesmo;
4. no deixar nada sobre si que tenha a estabilidade tranqilizadora da vida;
5. socavar aquilo sobre o que se quer fazer repousar;
6. lembrar que o saber no feito para compreender mas para resolver;7. trabalhar num mundo como uma mirade de acontecimentos emaranhados, e
no um fio de constncia estendido;
8. dirigir a viso para o mais prximo para dele bruscamente apartarse,
voltando a captlo histrica e fisiologicamente ;
9. menos o veneno e mais a alquimia;
10. no temer ter um saber perspectivo.
***O bigrafo da Wce e no ignora aquilo que pode tralo, o lugar
de onde olha, o momento no qual est, o partido que toma, o inevitvel de sua
paixo. Ele se coloca a um certo ngulo com o
propsito deliberado de apreciar, de dizer sim ou no, de seguir as pegadas do
veneno e de encontrar o melhor antdoto .
***
o bigrafo pestaneja e ri.
***
Um devir da histria naquelas vidas biografadas por Emerson e Plutarco33.
Encontro de vidas nobres com o tratamento devido por parte dos bigrafos.
Emerson no resgatam grandes homens de um
mas tornam o prximo, atravs da grandeza afirmativa que perpassa o
enunciado acerca dos seus biografados. Este o estado de
foras produzido pelas flechas histricas das vidas biografadas, que s criam
sentido quando efetivam sua potncia no cda escritura criado. Diria que no
est em Emerson nem em suas vidas biografadas, tampouco em Plutarco. No se
trata dos sujeitos ou personagens histricos, e tampouco dos seus respectivos
33Trata-se, respectivamente, dos livros Os Super-Homens, deRalph Waldo Emerson e Vidas Paralelas, de
Plutarco.
______
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bigrafos. A fora que ativa a escritura o
corpo criado e com a pluralidade de vidas que se colocam entre o
Texto e seu leitor, fazendoos transbordar em seus lugares.
***
O texto transbordante aquilo que cria condies para o Texto.
***
Tae fceeee cfe. provvel que tenha que
desenvolver uma aptido social centrada em abstraes gerais, como as
idias de respeitabilidade e confiabilidade, arquitetando um aparelho que lhepermita no se asfixiar com o pesadume atmosfrico do panorama para si traado.
***
O bigrafo passa o olho pela estante e suspeita das biografias confiveis.
Ele no .
Charles Feitosa, analisando o carter da obra de
Nietzsche, apresenta Ecce Hcomo um estudo thanatogrfico34. Relaciona o
termo aos signos de morte presentes no livro, no s a morte do pai ou da ptria
alem, como do autor enquanto sujeito estvel e monoltico. O
carter thanatogrfico estaria ligado a esta outra tipologia autobiogrfica, uma
espcie de heterografia. De toda forma, uma grafia de morte marcada pela
perturbao de um outro, de um que se coloca frente ao suposto
sujeito que escreve sua prpria histria. Ecce H seria o livro das vrias
assinaturas, o libreto de Dioniso, O Crucificado e de Nietzsche . No mais a morte da biografia
enquanto cmera anecica
34Charles Feitosa. Labirintos: corpo e memria nos textos autobiogrficos de Nietzsche. In: Lins
e Gadelha.ietzsche e Deleuze: o que pode o corpo, p.2002.
______
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mas as mortes operadas pelo prprio ato biogrfico.
***
Do thanatgrafo ao thanatgrafo de um sempre outro edesviante. Um thanatogrfico.
***
O sim biogrfico diz sim thanatografia
.
***
Desse mpeto na busca por biografias de grandes homens , ofenmeno de transformao dos biografados em grandes
personalidades histricas. O acmulo de conhecimento acerca dos mesmos parece
engessar o que antes era da ordem das possibilidades. Algumas vidas j nos
chegam soterradas por todo um deserto erudito de biografias , so obrigadas a responder a uma mirade de perguntas
impertinentes. o que Nietzsche j nos atentava acerca de Mozart e Beethoven.
Algumas dezenas de anos se passaram e o entulho sobre estes continua a proliferar
nas prateleiras das grandes e pequenas bibliotecas.
***
Um conhecimento que aniquila a vida, aniquila a si mesmo.
***
O que as thanatografias esquecem que h sempre ataques,
exigncias, impulsos de vida e paixes, comprimidos em toda e qualquer
generalizao. isto que faz com que mesmo a biografia mais asfixiante tenha
suas pontas e desvios. Ao tomar para si a clausura destas biografias , ser trabalho de um outro bigrafo suspeitar destes desvios e
inventar outros.
______
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***
Desaprender nossas antinomias, eis nosso papel 35.
***A atmosfera de uma biografia se desdobra na dobragem de outras biografias
e thanatografias. Instaurase no e da da, nunca como zona fronteiria entre
vida e morte, mas como o fim da oposio entre be aa. E
ee e e dee e de de e de ecee, alertanos Derrida36.
35In: Pierre Chassard.ietzsche: Finalisme et Histoire, p.64.36
Derrida.Otobiographies:lenseignement de Nietzsche e la politique du nom propre, 1984.
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Scrates foi alvo do primeiro grande julgamento da histria. O pomo de
discrdia do estado ateniense foi colocado em xeque na assemblia dos quinhentos
heliastas, consumandose o exorcismo. Deste, poucos so os relatos. de Plato o
escrito mais notrio, ainda que Xenofonte tambm o tenha relatado em sua
Aga37. Culpado por negar os deuses reconhecidos da cidade, e por introduzir
outros tantos, oaa eac38 levado ao tribunal, sendo posteriormente
condenado. Teria sido possvel a aplicao de alguma pena mais amena, masScrates teria produzido o seu fim atravs da sentena de morte. Esta
atitude de Scrates diante dos juzes levou L.S.Stone a debruar seus estudos sobre
aquilo que relata como seu maior tormento: decb a e Pa
eea, e a ca e de Aea39. Em Plato, Xenofonte e em L.S.Stone, a grafia acerca de Scrates gravita sobre aa.
Escrituras thanatogrficas na medida em que procuram elucidar aquilo que fora
silenciado pela morte do filsofo. bem certo que Scrates fora aconselhado pelo
seu da a proferir seu discurso em viva voz, sem recurso a nenhum escrito
prvio . Desse discurso , Plato trata de escrever, mais
interessado pelo contedo dialtico do que pelo registro novelstico propriamente
dito. A Apologia platnica toma para si a contradio provocada pelo discurso de
seu mestre, fazendo do escrito um relato daquilo que
ficara registrado em sua memria. Sbed a edade d fa talvez seja isso
que Plato tenha buscado produzir. Ora, em sua Aga de Scae, Plato
mesmo se omite enquanto personagem da cena. Em ltima instncia, fazendo uso
de Francis Ponge, um Scae e 40parece ser o que se desprende do texto
platnico. Um Scae e Papelo fato deste, Plato, no ter mencionado a si
37Trata-se das duas verses deApologia de Scrates,porPlato e por Xenofonte.38Referncia satrica a Scrates por Aristfanes