biological determinism and neuroscience in the case of attention
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941Determinismo biolgico e as neurocincias no caso do transtorno de dficit de ateno com hiperatividade
| 1 Fabiola Stolf Brzozowski, 2 Sandra Caponi |
1 Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva da Universidade Federal de Santa Catarina. Endereo eletrnico: [email protected]
2 Departamento de Sociologia e Cincias Polticas da Universidade Federal de Santa Catarina. Endereo eletrnico: [email protected]
Recebido em: 10/10/2011.Aprovado em: 06/06/2012.
Resumo: nosso objetivo refletir de que forma as neurocincias podem ser fortemente reducionistas quando tentam explicar comportamentos somente com base em processos cerebrais, e usamos como exemplo o caso do transtorno de dficit de ateno com hiperatividade (tDaH). o reducionismo ao qual nos referimos, tambm chamado determinismo biolgico ou neurogentico, na questo das neurocincias, o epistemolgico, ou seja, aquele que tenta explicar um problema complexo apenas por algumas de suas partes, desconsiderando outros fatores, tais como sociais e culturais. Como o tDaH atualmente descrito essencialmente como uma doena cerebral, aplicamos um modelo de sequncia redutora defeituosa para o determinismo neurogentico proposto por steven Rose, que inclui: objetivao, aglomerao arbitrria, quantificao improcedente, crena na normalidade estatstica, localizao ilegtima, causalidade fora de lugar, classificao dicotmica de causas genticas e ambientais e a confuso de metfora com homologia. a vida um fenmeno complexo e est relacionada com aspectos biolgicos e sociais. Dessa forma, explicaes sobre ela so adequadas somente quando levam em conta esses dois aspectos. sugerimos, dessa forma, que parte das neurocincias utiliza explicaes reducionistas para vrias condies mentais classificadas como doenas, incluindo o tDaH.
Palavras-chave: neurocincia; transtorno de dficit de ateno com hiperatividade; reducionismo; determinismo biolgico; determinismo neurogentico.
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Introduoo objetivo das neurocincias compreender os mecanismos celulares e
moleculares do funcionamento cerebral a fim de que, no longo prazo, seja
possvel agir sobre o crebro para modificar estados mentais (eHRenBeRG,
2009). engloba as disciplinas biolgicas que estudam o sistema nervoso, mas
tambm disciplinas que buscam a explicao sobre comportamentos, cognio
e regulao orgnica. Por isso, nas neurocincias, h uma juno entre o social,
o cerebral e o mental. as disciplinas que hoje formam as neurocincias tinham
inicialmente como objetivo o estudo do movimento, dos sentidos (tais como
viso e audio), da aprendizagem e das doenas neurolgicas (por exemplo,
alzheimer e Parkinson). a partir da dcada de 1980, as doenas neurolgicas e
as doenas mentais, alm das emoes, comportamentos e alguns sentimentos
morais, passaram a ser considerados como pertencentes a um mesmo conjunto
de transtornos (eHRenBeRG, 2009).
Joelle abi-Rached e nikolas Rose (2010) afirmam que, apesar de conhecermos
estudos sobre o crebro desde a antiguidade, foi na dcada de 1960 que ocorreu
uma quebra na histria das cincias do crebro. a hibridizao de diferentes
disciplinas, prticas e conhecimentos sobre o crebro, mente e comportamento e
a introduo de uma abordagem molecular predominantemente reducionista so
as principais caractersticas dos estudos em neurocincia atualmente. os autores
chamam essa mudana de olhar neuromolecular (neuromolecular gaze), ou seja, a partir da passou a haver certa predominncia da abordagem molecular nos
estudos sobre o crebro.
apesar de que h muito tempo no se aceita mais a ideia de faculdades
mentais e sua localizao no crebro, tal como foi proposta por Gall e
spurzheim, a premissa de que processos psicolgicos isolados podem ser
localizados no crebro compreende uma parcela considervel das neurocincias
contemporneas. De acordo com uttal (2001), a ideia geral foi resgatada na
forma de uma hiptese moderna da localizao de faculdades mentais no
crebro. ainda que estudiosos falem de muitos processos da mente (percepes,
emoes, sentimentos, atitudes, memrias, dentre outros), definir tais processos
lgica e empiricamente no to simples ou direto como determinar regies
cerebrais especializadas, tais como as regies cerebrais responsveis pela viso
ou por determinados movimentos corporais.
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943Dessa forma, nosso objetivo refletir sobre alguns aspectos das neurocincias
e discutir de que forma essa cincia pode ser, em certas situaes, fortemente
reducionista, como ocorre no caso aqui analisado do transtorno de Dficit de
ateno com Hiperatividade (tDaH). Para isso, primeiramente apresentamos
alguns conceitos relacionados ao reducionismo e ao determinismo biolgico,
principalmente neurogentico. Por fim, propomos uma discusso sobre o caso
das neurocincias no tDaH.
existem, atualmente, muitas crticas em relao ao diagnstico do tDaH.
aquelas que o descrevem como resultado de um processo de medicalizao
infantil, ou do sofrimento, so as mais conhecidas (ConRaD, 2007; ConRaD;
sCHneIDeR, 1992; tIMIMI, 2002), e existem desde a dcada de 1970
(ConRaD, 1975). o que pretendemos discutir neste artigo se relaciona a um
outro tipo de crtica, que tem a ver com a medicalizao, porm mais especfica
aos aspectos biolgicos da etiologia descrita na literatura cientfica do tDaH.
nosso argumento vai ao encontro dos conceitos e afirmaes do reducionismo
biolgico desenvolvidos por steven Rose. nesse sentido, questionamos a ideia de
que o tDaH um transtorno biolgico, que pode ser identificado por meio de
tcnicas de neuroimagem e que tratvel por meio de psicoestimulantes como
o metilfenidato. Para essa anlise, utilizamos trs artigos cientficos da revista
the American Journal of Psychiatry, publicada pela associao americana de
Psiquiatria (aPa American Psychiatric Association), responsvel tambm pela
publicao do DsM (Manual Diagnstico e estatstico de transtornos Mentais,
Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders): levy (1959), Faraone et
al. (2001) e Peterson et al. (2009).
levy (1959), no final da dcada de 1950, destaca possveis causas orgnicas
por trs de problemas de comportamento em crianas. o artigo bastante
relevante, pois apresenta dois tipos de discurso em torno de crianas com
problemas de comportamento: (1) discurso em que as causas dos problemas
esto no meio social, explicao mais comum na dcada de 50; (2) discurso
biolgico, alertando para possveis causas orgnicas para os distrbios de
conduta, baseado em concluses tiradas a partir do uso de medicamentos e na
resposta positiva deles sobre o comportamento infantil. Peterson et al. (2009)
examinaram o efeito de psicoestimulantes na atividade cerebral de crianas e
adolescentes com tDaH e Faraone et al. (2001) realizaram uma metanlise
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dos estudos genticos sobre o tDaH. os dois ltimos artigos representam o
discurso hegemnico dos estudos de neuroimagem e gentica em relao ao
tDaH atualmente. o referencial para essa anlise consiste, principalmente,
na sequncia redutiva proposta por steven Rose (2001).
o reducionismo e o determinismo neurogentico Chama-se reducionismo a ideia de que todas as coisas e objetos complexos e
aparentemente diferentes que observamos no mundo podem ser explicados em
termos de princpios universais que regem seus componentes fundamentais
comuns (naGel, 1998). De uma forma geral, os reducionistas tentam explicar
as propriedades de conjuntos complexos (como molculas ou a sociedade, por
exemplo), em termos das unidades que compem essas molculas ou sociedade.
o debate contemporneo sobre o reducionismo ganhou fora com ernest
nagel (1961), citado como um dos principais autores do positivismo lgico.
segundo ele, reduo [...] a explicao de uma teoria ou um conjunto de leis
experimentais estabelecidas em uma rea de pesquisa, por uma teoria geralmente,
embora no invariavelmente, formulada para algum outro domnio (p. 338).
outros autores clssicos que tambm discutem o tema so Feyerabend (1962) e
schaffner (1967), porm no entraremos em detalhes neste artigo.
Vamos nos deter aqui descrio de Dobzhansky, ayala, stebbins et al.
(1980) sobre trs tipos de reducionismo: um ontolgico, um metodolgico e um
epistemolgico. o campo ontolgico est relacionado, em biologia, estrutura
dos seres vivos. a questo se as entidades e processos fsico-qumicos so
subjacentes a todos os fenmenos vivos. o reducionismo ontolgico afirma que
os organismos so compostos de partes no vivas e que as leis da fsica e da
qumica so as que regem os processos biolgicos ao nvel de tomos e molculas.
entretanto, no sustenta que, necessariamente, os organismos so unicamente
tomos e molculas, trata apenas da origem, da formao dos seres vivos. este
tipo de reduo encara a cincia como uma coisa unitria, sendo que a fsica
considerada a cincia mais fundamental (Rose, 1998).
o reducionismo metodolgico refere-se estratgia de investigao e de
aquisio de conhecimentos. Consiste em estudar o todo a partir das suas partes,
procedimento bastante comum em pesquisa. sustenta que os fenmenos vivos
so mais bem estudados atravs dos menores nveis de complexidade possveis.
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945 mais fcil entender um fenmeno se podemos isol-lo do resto do mundo e
controlar as possveis interferncias de variveis (Rose, 1998). uma verso mais
radical do reducionismo metodolgico afirma que todos os fenmenos biolgicos
podem ser compreendidos a nvel molecular e atmico e s as investigaes de
processos e componentes fsico-qumicos so vlidas. J a viso moderada do
reducionismo metodolgico d nfase ao fato de que a compreenso dos processos
vivos apresenta um avano notvel se os processos adjacentes a eles so conhecidos.
Mas no justifica uma demanda de que sempre se deve investigar nveis cada
vez menores. o nico critrio para a validade de qualquer investigao o seu
xito. a metodologia reducionista, para uma melhor compreenso do fenmeno
investigado, pode ser complementada por meio de outra metodologia que veja
esse fenmeno de forma mais ampla e complexa.
Por exemplo, em uma viso estritamente biolgica, o ser humano um ser
corporal e, por essa razo, deve ser metodologicamente reduzido ao seu corpo ou
a partes de seu corpo (genes, aminocidos, enzimas, rgos, neurotransmissores,
sinapses). os estudos cientficos em biologia devem eliminar, em nome do rigor
metodolgico, o social. na falta dessa eliminao, no possvel obter resultados
confives, fazer correlaes estatsticas ou testar hipteses (eHRenBeRG, 2009).
Por fim, existe ainda o reducionismo epistemolgico, terico ou explicativo.
a reduo epistemolgica de um ramo da cincia a outro se produz quando se
considera que as teorias ou leis experimentais de um so casos especiais das teorias
e leis formuladas em outro. a integrao de diversas teorias e leis cientficas
em outras mais amplas simplifica a cincia e amplia o poder explicativo dos
princpios cientficos, ajustando-se deste modo aos fins perseguidos pela cincia
(DoBZHansKY; aYala; steBBIns et al., 1980, p. 490). a questo
fundamental do reducionismo epistemolgico, de acordo com Dobzhansky,
ayala, stebbins et al. (1980) consiste em se as teorias e leis da biologia, por
exemplo, podem ser reduzidas s leis da fsica e da qumica. Podemos perguntar
se as leis e teorias que explicam o comportamento de sistemas complexos podem
ser deduzidas como consequncias lgicas a partir de leis e teorias que explicam
o comportamento de seus componentes.
o reducionismo ao qual nos referimos, na questo das neurocincias, o
epistemolgico. e a discusso que propomos sobre a tendncia em insistir na
explicao reducionista sobre qualquer outra, ou melhor, explicar aspectos muito
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complexos da conduta e organizao social, mais especificamente humana, por
meio de suas partes, fragmentos, e reduzi-los a essas partes ou fragmentos.
Para tornar o conceito de reducionismo epistemolgico mais aplicado ao caso
que nos propomos a discutir, podemos reconstruir o raciocnio reducionista
praticado por alguns neurocientisas do seguinte modo: h muito se conhecem
regies cerebrais responsveis por fenmenos motores e sensoriais. possvel
observar esses fenmenos por meio de tcnicas de neuroimagem. Quando
processos mentais ou comportamentos so analisados por meio dessas mesmas
tcnicas, possvel observar alteraes funcionais, dependendo do estmulo
oferecido. Portanto, pode-se pensar que processos mentais e comportamentos
tambm podem ser localizados em regies cerebrais.
Para ehrenberg (2009), muitas especulaes biolgicas sobre a mente,
ou sobre a relao crebro/mente, vo alm do reducionismo metodolgico,
necessrio em estudos cientficos, chegando ao que o autor chama de cegueira
conceitual, na qual o ator das operaes mentais se resume aos mecanismos
cerebrais. Isso sugere que o que est por trs dessas especulaes o reducionismo
epistemolgico, postura que lewontin, Rose e Kamin (2003) chamam de
determinismo biolgico.
as explicaes reducionistas, ou deterministas, quando falamos de
neurocincias, esto relacionadas s funes cerebrais, regies cerebrais,
neurotransmissores, neurnios, genes, dentre outros. lewontin, Rose e Kamin, por
serem genetecistas, referem-se mais especificamente a um tipo de reducionismo,
o determinismo gentico, mas ressaltamos que essa no a nica forma de
explicao reducionista encontrada nos discursos das neurocincias. De acordo
com esses autores (leWontIn; Rose; KaMIn, 2003), os deterministas
biolgicos que, por sua vez, so reducionistas, afirmam que a vida e as aes
humanas so consequncias inevitveis das propriedades bioqumicas das clulas
que constituem o indivduo e que estas caractersticas esto determinadas, por
sua vez, pelos constituintes dos genes que cada indivduo possui.
em relao gentica, fala-se do descobrimento de genes no s para doenas
como cncer de mama, mas tambm para comportamentos ou situaes sociais, tais
como homossexualidade, alcoolismo, criminalidade e at problemas sociais muito
complexos, como a falta de moradia (Rose, 2001). Como a falta de moradia, um
problema social complexo, pode ser reduzido a um gene ou a um grupo de genes?
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947o determinismo biolgico tem sido um meio poderoso para explicar as
desigualdades sociais, riquezas e poder observadas nas sociedades capitalistas
industriais contemporneas e definir os universais humanos de comportamento
como caractersticas naturais das sociedades. assim, fcil considerar que, se
as desigualdades so determinadas biologicamente, ento elas so inevitveis e
imutveis (leWontIn; Rose; KaMIn, 2003).
a sntese entre gentica e as cincias neurolgicas (chamada neurogentica)
oferece a possibilidade de identificar os genes que afetam o crebro e a conduta,
atribuir-lhes poder causal e, se possvel, modificar esses genes. Para Rose
(2001), a neurogentica se diz capaz de responder a pergunta: onde devemos
buscar as explicaes para nossas condies sociais e como modific-las?. os
reducionistas afirmam que o social tem sua importncia mas, em ltimos casos,
os determinantes so biolgicos. assim, h os conhecimentos para intervir nos
processos biolgicos por meio de frmacos ou terapia gentica.
ehrenberg (2009) afirma que [a]s razes sociais do sucesso popular das
neurocincias esto menos relacionadas a seus resultados cientficos e prticos
do que ao estilo de resposta dada para os problemas formulados pelo nosso
ideal de autonomia individual generalizada (p. 202). segundo o autor, elas
permitem consolar os que tm dificuldades para encarar o mundo de deciso
e ao que evoluiu a partir da sociedade da disciplina (aquela que impunha o
respeito autoridade). alm disso, as neurocincias do esperana de que sejam
disponibilizadas a todos tcnicas de otimizao das capacidades cognitivas e de
controle emocional, tambm indispensveis ao estilo de vida contemporneo.
segundo Rose (2001), todos gostariam de descobrir as origens de nossos
fracassos, xitos, vcios, crises, etc. Podemos buscar essas origens na sociedade,
tais como estrutura social, economia, legislao; ou ento na ordem pessoal,
psicolgica. ou ento podemos pensar no fator biolgico e dizer que a raiz dos
nossos problemas se encontra no crebro, em sua bioqumica ou sua gentica.
se for assim, devemos voltar nossos esforos para as neurocincias em busca
de explicaes e para a farmacologia e a engenharia molecular, para falar nas
solues. essa situao que o autor chama de reducionismo como ideologia.
Rose (2001) apresenta ainda uma sequncia redutora defeituosa para o
determinismo neurogentico, que inclui: objetivao, aglomerao arbitrria,
quantificao improcedente, crena na normalidade estatstica, localizao
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ilegtima, causalidade fora de lugar, classificao dicotmica de causas genticas
e ambientais e a confuso de metfora com homologia. o autor apresenta esses
passos para alguns assuntos especficos, como inteligncia, sexualidade ou
violncia, que servem de base para seus estudos. Porm, tentaremos, na seo
seguinte, aplic-los ao tDaH.
a objetivao converte um processo dinmico em um fenmeno esttico.
J a aglomerao arbitrria uma extenso da objetivao, reunindo processos
diferentes em uma nica classificao. assim como a aglomerao rene
atividades diversas, um mesmo ato ou fenmeno socialmente aceitvel ou no
segundo as circunstncias em que ocorre.
a quantificao improcedente sustenta que se podem dar valores numricos
aos caracteres objetivados e aglomerados, tornando possvel a comparao entre
indivduos. este postulado reflete a crena de que matematizar algo apreend-
lo e control-lo. a crena na normalidade estatstica supe que, numa populao,
a distribuio dos pontos contados de alguma caracterstica tem a forma da
chamada distribuio gaussiana ou distribuio normal. no sentido estatstico,
normal descreve uma forma particular de curva que possui a propriedade de
95% de sua rea se encontrar a uma determinada distncia da mdia. Porm, a
qualificao no fica apenas nas anlises estatsticas; ela tem uma caracterstica
normativa: ficar distante do que considerado normal, em uma distribuio
gaussiana, significa ser anormal.
outra caracterstica do reducionismo neurogentico, para Rose (2001), a
localizao ilegtima, na qual o processo objetivado e quantificado deixa de ser
propriedade do indivduo e passa a ser propriedade de uma parte desse indivduo.
Diferentemente da frenologia e da poca dos anatomistas, a localizao hoje no
est representada apenas por uma estrutura cerebral, mas por anormalidades
em substncias qumicas do crebro (neurotransmissores, enzimas ou genes
responsveis por sua produo).
a causalidade fora de lugar relaciona-se ao argumento recente de que um
desequilbrio em alguma molcula ou grupo de molculas seria a causa subjacente
de determinada conduta relacionada a essa molcula, geralmente tratada com
algum frmaco que age nela. em outras palavras, dizer que um desequilbrio
em um neurotransmissor a causa de determinada conduta ou comportamento
equivocar a correlao e talvez at mesmo tomar a consequncia pela causa.
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949no se pode afirmar se o desequilbrio nos neurotransmissores a causa ou a
consequncia de uma conduta considerada anormal. at porque, geralmente,
esse desequilbrio observado a partir do mecanismo de ao do psicofrmaco
utilizado para tratar aquela condio. ento, se a fluoxetina, por exemplo, age
aumentando a recaptao de serotonina na fenda sinptica e tem resultado no
tratamento da depresso, considera-se que a prpria depresso causada pela
falta desse neurotransmissor. essa causalidade invertida uma das caractersticas
da petite biologie, ou biologia menor, que, segundo Pignarre (2001), o tipo de
biologia que se utiliza para a pesquisa de novos frmacos em psiquiatria.
se determinadas condutas so causadas por uma anormalidade na estrutura
cerebral ou bioqumica ou por um desequilbrio hormonal, quais so, por sua
vez, as causas dessa anormalidade ou desequilbrio? Poderamos dizer que as
causas so devidas ao meio ou alimentao, dentre outras; porm, atualmente,
fala-se com frequncia nos genes, possibilitando os estudos de herdabilidade. Isso
o que Rose (2001) chama de classificao dicotmica.
Mesmo o comportamento mais trivial, para o qual a estatstica no conseguiu
encontrar um gene que o explique, justificado por meio da herdabilidade. as
novas tcnicas estatsticas empregadas atualmente auxiliam a mostrar que as
condies para as quais no se encontra um componente gentico especfico,
so de fato resultantes de um efeito aditivo de muitos genes de pouco resultado.
Por fim, a confuso de metfora com homologia tem a ver com a busca por
equivalentes da conduta humana no mundo animal, em outras palavras,
encontrar um modelo animal cuja conduta se possa controlar, manipular e
quantificar mais facilmente. Dessa forma, se descoberta alguma regio do
crebro, ou neurotransmissores, ou genes, responsveis por determinados
comportamentos nos animais, rapidamente se pensa que ento devem existir
regies cerebrais, neurotransmissores ou genes similares ou idnticos nos seres
humanos relacionados patologia em questo.
John Bickle (2006) faz uma crtica aos debates sobre reducionismo em
neurocincias, argumentando que, muitas vezes, os resultados mais recentes
das pesquisas neurocientficas so ignorados. Prope um modelo diferente
para a reduo em neurocincias, o que ele chama de intervir celularmente e
acompanhar comportamentalmente, defendendo que possvel, hoje, modificar
uma molcula do crebro, por exemplo, e observar os efeitos em termos de
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comportamento. Porm admite no ser possvel praticar essa reduo em campos
da neurocincia nos quais os mecanismos moleculares so ainda obscuros.
Procuramos refletir aqui sobre alguns aspectos das neurocincias que podem
estar criando explicaes reducionistas para problemas muito mais complexos
do que conexes neurais ou dficits em neurotransmissores. a seguir, propomos
uma anlise sobre o discurso cientfico em torno do tDaH e das neurocincias,
estudos de neuroimagem e determinismo neurogentico.
neurocincia e comportamento infantilo tDaH um transtorno caracterizado por dificuldade em manter a ateno
em algumas atividades, acompanhado ou no de hiperatividade. explica-se
sua ocorrncia, frequentemente, por um desequilbrio em neurotransmissores
cerebrais, especialmente a dopamina, e h uma busca constante por um
componente gentico. nesse caso, poderamos falar que ocorre um tipo de
reduo epistemolgica?
estudos estimam que o tDaH ocorra em 3% a 5% das crianas em idade
escolar, correspondendo a, aproximadamente, 30% a 50% das crianas atendidas
em servios de sade mental (Mta, 1999). De acordo com o CDC1 (2010), nos
estados unidos, a porcentagem de crianas de 4 a 17 anos j diagnosticadas
com tDaH aumentou de 7,8% para 9,5% entre 2003 e 2007, representando
um aumento de 21,8% em quatro anos. entre os meninos, a prevalncia de
tDaH foi ainda maior, 13,2% em 2007. entre as crianas com tDaH, 66,3%
tomam medicao, totalizando 4,8% de todas as crianas entre quatro e 17
anos (aproximadamente 2,7 milhes). no Brasil, alguns estudos que utilizaram
critrios da quarta edio do Manual Diagnstico e estatstico de Doenas
Mentais DsM-IV (aPa, 1994), revelaram prevalncias distintas do tDaH em
escolares, variando de 5,8 a 17,1% (PastuRa; Mattos; aRauJo, 2007).
Pensando na sequncia redutora proposta por Rose (2001), observamos que,
a partir da objetivao e da aglomerao arbitrria, foram criados os critrios diagnsticos para o tDaH. o conjunto de sintomas bastante heterogneo,
caracterizando a reunio de processos diferentes em uma nica classificao.
Caractersticas de personalidade diversas, tais como cometer erros por descuido
em atividades escolares, ter dificuldades para manter a ateno, ter dificuldade
para organizar tarefas e atividades, falar em demasia, agitar mos ou ps na
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951cadeira, ter dificuldades em esperar sua vez, dentre outras constantes do DsM-IV, foram transformadas em sintomas mdicos.
a quantificao improcedente ainda no to disseminada em casos de tDaH. a avaliao diagnstica ainda feita de forma qualitativa, por meio de relatos dos professores e pais. Mas existem instrumentos que buscam a quantificao dos sintomas, para comparar entre indivduos como, por exemplo, o questionrio de Conners. este foi elaborado na austrlia em 1969 e, posteriormente, revisado e abreviado em 1973. existe uma verso para ser aplicada em pais e outra em professores, para avaliao de crianas com tDaH, principalmente do tipo hiperativo. muito usado atualmente em estudos clnicos e epidemiolgicos, sendo composto de vrias perguntas que pais e/ou professores devem atribuir um nmero que vai de 0 a 4 (Zentall; BaRaCK, 1979). ao final, as somas das respostas so contabilizadas e comparadas, tanto temporalmente (o resultado de um teste comparado com o resultado de outro teste da mesma criana) ou entre as crianas. acredita-se, desse modo, ter mais confiabilidade e comparabilidade do que apenas o relato de pais, professores e das prprias crianas (que geralmente no so ouvidas).
at a dcada de 1950, havia certa predominncia de explicaes sociais e psicolgicas para os desvios de comportamento infantil, como afirma levy (1959), quando descreve crianas com transtorno do comportamento ps-encefaltico, entidade nosolgica considerada como uma das precursoras do tDaH. nessa poca, tanto etiologia quanto tratamento em psiquiatria infantil eram geralmente psicodinmicos. o autor chama a ateno para uma tendncia em encontrar explicaes orgnicas para essas condutas desviantes. Dessa forma,
assim como nas psicoses maiores, onde, atualmente, estamos olhando novamente, cada vez mais, para causas biolgicas e desconsiderando como causas bsicas as influ-ncias psicolgicas, talvez seja bom fazer o mesmo com os problemas de comporta-mento e a delinquncia juvenil. (leVY, 1959, p. 1063)
levy ainda complementa afirmando que, se essas abordagens estiverem certas, os problemas de comportamento e a delinquncia deveriam diminuir mais do que aumentar, como ocorreu [...] em condies puramente fsicas tais como tuberculose e plio (leVY, 1959, p. 1063). essas explicaes indicam vontade de encontrar um ou mais agentes causais para os problemas de comportamento, como aconteceu com a tuberculose e a plio, para utilizar os exemplos do autor, e poder exterminar esse desvio do crebro da criana
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da mesma forma que, utilizando um antibitico, podemos matar o bacilo de
Koch, agente causal da tuberculose.2
se analisarmos a previso de levy, podemos perceber que essa comparao
no possvel. existem diferenas entre essas estruturas explicativas. a explicao
etiolgica construda para uma doena infecciosa muito diferente da que
construda para a depresso ou outra doena da mente ou um comportamento.
no caso da doena infecciosa, exames microbiolgicos e anatomopatolgicos,
alm de confirmarem o diagnstico, podem indicar a teraputica mais eficaz
(BRZoZoWsKI; BRZoZoWsKI; CaPonI, 2010; CaPonI, 2009).
Ian Hacking (1999) sugere que algumas doenas mentais, como esquizofrenia
ou autismo, e aqui acrescentamos o tDaH, tm um componente interativo.
Isso quer dizer que o diagnstico interage com a pessoa classificada, porque
o componente interativo est relacionado com um papel social. Dessa forma,
Hacking afirma que em uma classificao h dois tipos de elementos que podem
estar associados com a doena: (1) a etiologia e as explicaes biolgicas; e (2) o
comportamento do paciente e seu entorno social.
Quando a classificao, ou diagnstico, tem uma etiologia definida e um
marcador biolgico, como na maior parte das doenas infecciosas, principalmente
as de curta durao, como faringite3 por exemplo, no h um elemento interativo.
entretanto, quando as causas etiolgicas no so to evidentes, como nas doenas
mentais, que envolvem comportamentos e julgamentos sociais, h um elemento
interativo. nesses casos, as pessoas classificadas podem mudar em razo do
diagnstico e das interaes que resultam desse diagnstico. levy (1959) afirma
que, se a hiptese de causa orgnica para os problemas de comportamento e a
delinquncia estiverem corretas, haveria uma diminuio de casos a partir do
tratamento adequado dessas crianas. Poderamos afirmar, no entanto, que isso
tambm ainda no ocorreu.
o consumo global do metilfenidato, o principal frmaco utilizado no
tratamento do tDaH, no perodo de 2003 a 2007, foi de 28,5 toneladas. os
estados unidos o maior produtor e o maior consumidor do metilfenidato. no
perodo entre 2005 a 2007, esse pas consumiu uma mdia de 783 milhes de doses
dirias (s-DDD4) de metilfenidato, o que corresponde a, aproximadamente, 77%
do consumo mundial dessa substncia. no Brasil, em 2003, foram produzidos 86
Kg de metilfenidato. J em 2007, essa produo subiu para 204 Kg (onu, 2008).
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953se o metilfenidato o frmaco que combateria o problema cerebral responsvel
pelo tDaH, era de se esperar que a prevalncia do transtorno diminusse com
o tratamento. Porm, com o passar dos anos, com as mudanas nos critrios
diagnsticos e difuso da informao sobre o transtorno, o nmero de crianas
diagnosticadas e o consumo do metilfenidato vem aumentando. alm disso, o
tDaH hoje considerado uma condio crnica, que persiste na vida adulta em
cerca de 70% a 80% dos casos (RoHDe; HalPeRn, 2004).
a tentativa de localizao cerebral das condutas, que Rose (2001) chama
de localizao ilegtima, se torna evidente ao analisarmos o discurso dos artigos
cientficos publicados sobre o tDaH como, por exemplo: o tamanho do
crtex pr-frontal lateral e dos crtices temporais anteriores esto bilateralmente
reduzidos em crianas com tDaH [...] (PeteRson et al., 2009, p. 1291).
a busca por medidas objetivas para o diagnstico j era presente em 1959.
entretanto, nem exames fsicos nem neurolgicos davam resultados positivos.
o eletroencefalograma (eeG) era comumente utilizado e no resultava em
anormalidades especficas ou persistentes (leVY, 1959). at hoje, apesar
de haver relativa certeza de que o tDaH um transtorno biolgico e que
os medicamentos psicoestimulantes so o tratamento de primeira escolha,
Peterson et al. (2009) admitem que o conhecimento sobre as bases neurais do
tratamento ainda limitado.
a maior parte desse conhecimento provm de estudos com modelos animais
e estudos de tomografia em adultos, ambos com limitaes quando falamos em
extrapolao para o caso de crianas com tDaH. Pesquisas com exames de
neuroimagem em crianas estudam um nmero pequeno de indivduos com
tDaH e os achados so bastante variados, envolvendo mltiplas regies cerebrais
na patofisiologia do transtorno como, por exemplo, vrmis do cerebelo, gnglios
da base e crtex cerebral (PeteRson et al., 2009).
De acordo com Moyss e Collares (2010), possvel observar que cada
localizao descrita por grupos de pesquisa diferentes, o que indica que talvez
nenhum deles tenha encontrado algo muito concreto. alm disso, o nmero de
sujeitos estudados sempre muito pequeno, no h uma amostragem bem definida,
no h grupo controle e nem preocupao em relatar como o diagnstico foi
feito. ademais, segundo leo e Cohen (2003), o grande problema da maior parte
dos estudos de neuroimagem que eles comparam crianas com tDaH (que
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geralmente tomam um medicamento estimulante) com crianas consideradas
normais. ainda que, em grande parte dos estudos realizados, a administrao
do metilfenidato tenha sido interrompida at 48 horas antes dos testes de
neuroimagem, no h como ter certeza de que as diferenas encontradas estejam
relacionadas com a patofisiologia do tDaH, e no com o metilfenidato. Isso
s seria possvel se fossem comparadas crianas que no tomam o medicamento
com crianas que o utilizam.
normalizar a criana com tDaH no significa somente ajustar seu
comportamento para que ela se adapte ao meio em que vive. trata-se de uma
normalizao biolgica, como descrevem Peterson et al. (2009, p.1290): esses achados sugerem que os estimulantes melhoram os sintomas em jovens com tDaH normalizando a atividade dentro de uma rede dispersa de regies do crebro no crtex cingulado anterior e crtex cingulado posterior e melhorando as interaes funcionais desse circuito com o crtex pr-frontal lateral.
a normalidade no tDaH no est to vinculada estatstica, j que
o diagnstico geralmente no quantificado, mas sim normalidade dos
comportamentos que, em ltima instncia, seriam regulados pelo crebro. a
normalizao biolgica faria com que ocorresse melhora no comportamento,
uma vez que os problemas de conduta teriam como causa subjacente alguma
alterao biolgica.
a biologia menor descrita por Pignarre (2001), na qual a explicao causal de
um transtorno mental seria advinda, principalmente, do mecanismo de ao do
tratamento farmacolgico, que caracteriza a causalidade fora de lugar, evidente
no caso do tDaH: os estudos genticos moleculares do tDaH esto focados nos genes das vias cateco-laminrgicas por causa de modelos animais, de consideraes tericas e da efetividade do tratamento estimulante, que implica uma disfuno catecolaminrgica na patofi-siologia do transtorno. (FaRaone et al., 2001, p. 1052)
Muitas das afirmaes em torno de uma etiologia biolgica para o tDaH so
postuladas a partir de modelos animais, o que pode levar confuso de metfora
com homologia. um exemplo de modelo animal utilizado para estudar o tDaH
o dos ratos espontanemente hipertensos, que so considerados como apresentando
caractersticas comportamentais semelhantes aos aspectos fundamentais do
transtorno (taKaHasHI, 2006).
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955a busca por um gene causador das modificaes biolgicas que so relacionadas
ao tDaH constante, mas nenhum estudo encontrou associao consistente
entre comportamento tDaH e um gene (FaRaone et al., 2001), como os
prprios pesquisadores admitem. Como o mecanismo de ao dos estimulantes
est relacionado com a dopamina, h uma busca por genes que tenham relao
com essa via, tais como o DRD4, o gene do receptor D4 da dopamina. a busca
pelos componentes genticos como causa primria do tDaH exemplifica a
classificao dicotmica descrita por Rose (2001).
apesar dos resultados poucos slidos, a explicao gentica no colocada
em discusso. Dvidas sobre as teorias atualmente aceitas no so colocadas em
pauta. Pelo contrrio, novos tipos de explicao biolgica so encontrados para
driblar esse tipo de percalo: se no possvel encontrar um gene que, em todos
os casos de tDaH, seria a causa biolgica dos problemas de comportamento,
ento o que causa o tDaH a soma de vrios genes de pouco efeito. Faraone
et al. (2001, p.1052) chamam a ateno para o fato de que essa impreciso
gentica comum em psiquiatria, [...] porque as doenas psiquitricas so
provavelmente mediadas por muitos genes agindo em conjunto, cada um desses
genes individualmente exerce somente um efeito pequeno no transtorno.
Mesmo quando se admite que o tDaH um transtorno complexo, como no
artigo de Faraone et al. (2001), ele considerado complexo apenas no sentido
biolgico, sem nenhum outro fator envolvido.
Consideraes finaisPara Rose (2005), de alguma forma a expanso das capacidades mentais, de
nossos ancestrais unicelulares at hoje, se deu por meio da evoluo no somente
do crebro, mas do crebro no corpo e ambos na sociedade, cultura e histria. e
o autor ainda pergunta: at onde somos capazes de ir na relao entre a mente e
o crebro, ou na relao entre processos mentais e dinmicos e processos neurais?
segundo Pignarre (2001), a biologia utilizada na psiquiatria uma biologia
dos receptores bioqumicos, mais do que do crebro. Fornece explicaes sobre
os modos de ao dos psicotrpicos e ajuda a escolher novas molculas, dentre
as disponveis nas quimiotecas da indstria farmacutica, mas jamais pode dar
uma explicao causal dos problemas mentais. essa biologia, a petite biologie, tem
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pouca utilidade fora dos laboratrios dessas indstrias e trabalha para aperfeioar as ferramentas de seleo de novos psicotrpicos, que so sempre os penltimos.
os fenmenos da vida so complexos e sempre relacionados com o biolgico e o social. Dessa forma, segundo Rose (2001), as explicaes somente so adequadas quando levam em considerao essas duas dimenses. lewontin, Rose e Kamin (2003) fazem uma crtica ao determinismo biolgico, mas tambm rejeitam a ideia de um determinismo cultural, ou seja, a biologia vai at o nascimento do ser humano e, a partir de ento, ele moldado essencialmente por meio da cultura (viso tambm considerada reducionista). os autores defendem uma compreenso integral das relaes entre o biolgico e o social, que eles chamam de compreenso dialtica. as explicaes dialticas no separam as propriedades das partes isoladas das associaes, quando formam conjuntos, mas consideram que as propriedades das partes surgem destas associaes. assim, de acordo com essa viso, as propriedades das partes e dos conjuntos se codeterminam mutuamente. as propriedades dos seres humanos individuais no se do isoladamente, surgem como consequncia da vida social, ainda que a natureza dessa vida social seja consequncia, por sua vez, do fato de que somos seres humanos.
segundo Rose (2001, p. 336)os motivos de semelhantes explicaes reducionistas derivam em parte do poder do re-ducionismo como metodologia e filosofia, mas sobretudo da urgncia para achar expli-caes da magnitude dos transtornos sociais e pessoais nas sociedades industriais desen-volvidas no final do sculo XX, as que deslocam a culpa do poltico para o individual.
as explicaes reducionistas, tomadas aqui atravs de um exemplo concreto, o tDaH, emergem como uma forma de tornar doena um comportamento indesejado socialmente. elas proporcionam uma soluo ao problema, pois se a causa de um comportamento biolgica, ento ele pode ser tratado biologicamente, por meio de um medicamento. alm disso, o reducionismo epistemolgico dificulta a reflexo, por parte dos prprios pesquisadores, sobre os fenmenos que se propem a estudar. no h discusso sobre as limitaes das explicaes apresentadas. Mesmo no encontrando um gene ou uma regio responsvel pelo comportamento tDaH, no se questiona a busca por esses marcadores. Pelo contrrio, no encontrar um marcador ilustra um fenmeno complexo, mas complexo biologicamente. os problemas sociais so transferidos para o nvel individual, no qual existe unicamente a pessoa doente, sem levar em conta os determinantes sociais.
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957De acordo com Rose (2004), os medicamentos psiquitricos so utilizados
em meio a certas concepes do que os seres humanos so ou podem ser, ou seja,
normas, valores, julgamentos especficos internalizados na ideia desses frmacos.
os diagnsticos psiquitricos, assim como a constante administrao dos riscos
a que estamos expostos diariamente, em certo sentido passam por uma definio
de moralidade. essa normalizao, a construo de si mesmo por meio de
medicamentos o que Rose (2004) chama de self neuroqumico (neurochemical
self ) e Dumit (2003) de self farmacutico (pharmaceutical self ).
o que possvel perceber, por meio dos artigos analisados e da literatura
apresentada, que as explicaes biolgicas para o tDaH desconsideram
o meio social em que a criana vive. Isso quer dizer que, se h um problema de
comportamento, levando em considerao somente a causa biolgica, com o
consequente tratamento medicamentoso, perde-se a dimenso social e muitos fatores
so desconsiderados, tais como violncia, pobreza, subnutrio, dentre outros.
no podemos negar a importncia dos fatores biolgicos na patofisiologia das
doenas, e tambm no negamos que os transtornos psiquitricos tenham um
componente biolgico envolvido. Mas como ter certeza de que esse componente
a causa do transtorno? Como afirmar que o meio social no tem influncia
no desequilbrio dos neurotransmissores? se for assim, se o meio social tiver
influncia no biolgico, ento somente administrando medicamentos estaramos
mascarando a tristeza e o sofrimento, causando um tipo de anestesia psicolgica.
sobre o reducionismo proposto por Bickle (2006) para as neurocincias,
intervir celularmente e acompanhar comportamentalmente, o autor cita
experimentos in vitro e em animais que claramente conectam um mecanismo
molecular a um comportamento especfico, no caso a memria de longo prazo.
Mas esses dados no podem ser diretamente extrapolados para os seres humanos,
que possuem um sistema nervoso muito mais complexo. alm disso, a ideia de
Bickle que a reduo possvel quando h um conhecimento avanado sobre o
assunto em questo. o que observamos, no caso do tDaH, uma lgica invertida:
ao invs de conhecer os mecanismos envolvidos na ateno e na impulsividade, a
explicao para o transtorno buscada principalmente a partir da lgica explicativa
do mecanismo de ao do medicamento que se utiliza para trat-lo.
sugerimos, dessa forma, que parte das neurocincias utiliza explicaes
reducionistas para vrias condies mentais classificadas como doenas. assim,
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so utilizados exames de neuroimagem para comprovar, a partir do mecanismo de ao de um medicamento, uma classificao nosolgica que possui, por sua vez, fragilidades epistemolgicas. apresentamos uma sequncia redutora em que se inscreve o caso especfico do tDaH, mas no podemos ir alm no momento. seria necessrio avaliar os argumentos utilizados para classificar o tDaH como sendo uma doena psiquitrica, para apontar tais fragilidades. Podemos, sim, sugerir certo cuidado ao generalizar e ter como certo explicaes sobre neurotransmissores, localizao cerebral e genes no caso especfico do tDaH.5
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notas1 Centers for Disease Control and Prevention (Centro para Controle e Preveno de Doenas): rgo americano responsvel pela preveno e controle de doenas e danos.2 ainda que o Mycobacterium tuberculosis, ou bacilo de Koch, no seja a nica causa da tuberculose (muitas pessoas convivem com o microorganismo em seu corpo e nunca desenvolvem a doena, pois os fatores sociais so muito importantes), no h tuberculose sem a presena do bacilo. ele seria uma causa necessria, mas no suficiente.3 no podemos afirmar o mesmo de doenas crnicas, mesmo infecciosas, com etiologia bem defini-da, como o caso do HIV e da hansenase. essas doenas so frequentemente alvos de preconceitos e estigmas sociais e possuem um elemento interativo, j que as pessoas acometidas se modificam em funo do diagnstico recebido.4 s-DDD (definer daily doses for statistical purposes, ou doses dirias definidas com fins estatsticos) uma unidade tcnica de medida desenvolvida para o uso de anlises estatsticas e no representa, necessariamente, a dose prescrita. Isso porque os psicotrpicos podem ser usados para diferentes tra-tamentos, dependendo do pas e suas prticas mdicas. Para o metilfenidato, a s-DDD corresponde a 30 mg dirios (onu, 2008).5 F. Brzozowski participou de todas as etapas da confeco do artigo. s. Caponi participou com con-tribuies tericas, superviso e reviso do texto.
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Biological determinism and neuroscience in the case of attention deficit disorder with hyperactivityour goal is to reflect how the neurosciences can be strongly reductionist when trying to explain behaviors based solely on brain processes, and use as an example the case of attention deficit disorder with hyperactivity (aDHD). the reductionism to which we refer, also called biological or neurogenetic determinism, the question of neuroscience, is the epistemological, ie one that tries to explain a complex problem for only some of its parts, ignoring other factors such as social and cultural. as aDHD is currently described as essentially a disease of the brain, we applied a model for defective reductive sequence neurogenetic determinism proposed by steven Rose, which includes: objectification, arbitrary agglomeration, quantification unfounded belief in statistical normality, location illegitimate, causality outside place, dichotomous classification of genetic and environmental causes and confusion of metaphor with homology. life is a complex phenomenon and is related to biological and social aspects. thus, explanations are appropriate only when it takes into account these two aspects. We suggest, therefore, that some uses of neuroscience reductionist explanations for various conditions classified as mental illnesses, including aDHD.
Key words: neuroscience; attention deficit disorder with hyperactivity; reductionism, biological determinism, neurogenetic determinism.
Abstract