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um caleidoscópio de cor e melodiaA obra-prima de Bizet está sempre no segundo ou terceiro lugar - quando nãono primeiro - nas listas das preferidas das platéias e dos críticos. Mas quando estreoua mistura de elementos formais foi vaiada pelos puristas

Pinturao óleode um momentocapital dopeço Georges Bizet não nasceu pronto. Começou a

compor cedo: tinha apenas 12 anos ao escre-ver, em fevereiro de 1850, a sua primeira parti-

tura: dois Vocalises para voz feminina. Mas seu talento pre-coce precisou ser lapidado - e desabrochou pouco a pouco,ao longo de uma obra surpreendente volumosa para quemviveu somente 36 anos. Ao lado do inglês Henry Purcell, quetambém morreu muito jovem, sem conseguir realizar o pro-jeto de dotar seu país de uma escola nacional de ópera, ofrancês Georges Bizet é uma das grandes tragédias dahistória da música: sucumbiu a uma crise cardíaca poucodepois de - atingido o limiar da genialidade - ter estreadoCarmen, uma das óperas mais populares de todos os tem-pos, um daqueles títulos que são campeões de encenações egravações.

Ao começar a Carmen, na primavera de 1873, Bizetjá erao autor de sete óperas, entre sérias e cômicas. E trabalharaem 22 outros projetos, ora abandonando-os, ora deixando-os inacabados - o que atesta o grau de exigência do jovemcompositor e a sua busca incessante de um tom pessoal, quese concretizaria finalmente nesta obra-prima sem futuro,baseada no romance de Prosper Merimée.

Bizet abandonou o projeto de um Don Rodrigue, inspira-do na história do Cid Campeador, em que trabalhava desde oinício de 1873, ao saber que a direção do Théâtre de l'Opéraoptara por encenar, em vez desse melodrama de proporçõesheróicas, uma ópera de Edmond Membrée intituladal'Esclave - autor e obra hoje totalmente esquecido. Aoescolher o romance de Merimée, publicado em 1845, tinha acerteza de estar fazendo algo de inteiramente novo: "Oscríticos afirmam que sou obscuro, complicado e tedioso,mais preocupado com a habilidade técnica do que iluminadopela inspiração. Pois bem, desta vez escrevi uma obra que étoda feita de clareza e vivacidade, que está cheia de cor emelodia".

Essa confiança em sua criação, porém, não impediu aCarmen de ser um fracasso. Exatamente por ser demasiadoinovadora para seu tempo, ela foi vaiada ao estrear, em 3 demarço de 1875, no Théâtre de l'Opéra-Comique. Nas repre-sentações subseqüentes, ela foi aos poucos se impondo eacabou sendo bem recebida. Mas, infelizmente, seu compo-sitor nâo viveria o suficiente para vê-Ia transformar-se naópera mais amada de todo o repertório francês. No fim demarço, Bizet sofreu uma violenta crise de amigdalite, que odeixou fisicamente muito abatido. Esse estado de saúde foiagravado, em maio, por ataques de reumatismo infeccioso eum abscesso no ouvido. Apesar disso, Bizet continuavatomando notas para um oratório intitulado Geneviêve deParis, com texto de Louis Gallet, que pretendia encerrar comum Te Deum para grande orquestra, sinos e órgão. O sucessodo oratório cênico Marie-Magdeleine, de Massenet, canta-do na Sexta-feira Santa de 1873, o animara a tentar a sortecom esse mesmo gênero.

No fim de maio, Geneviéve, a sua mulher - filha do com-positor Halévy, de quem ele fora aluno - convenceu-o a irdescansar à beira do Sena, em Bougival. O amigo ~rnestGuiraud, que o visitou na véspera de sua partida, dia 28,encontrou-o profundamente deprimido, reclamando que o

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abscesso o deixara completamente surdo do ouvido esquer-do. Um longo banho de rio que insistiu em tomar desen-cadeou, no dia 30, um ataque de reumatismo seguido, no dia10 de junho, por um enfarte. Um médico chamado em Rueildisse que a crise tinha sido debelada e que ele precisavaapenas de repouso. No dia seguinte, o enfarte se repetiu.Convocado de novo, o médico - que atribuíra o estado dopaciente a seu excesso de imaginação - demorou a chegar.Georges Alexandre léopold Bizet morreu, aos 36 anos, às 2hda manhã de 3 de junho de 1875.

Guiraud e o compositor Ernest Reyer contaram que, nanoite anterior, na cena em que as ciganas lêem para Carmena sua sorte nas cartas, ao cantar os versos "moi d'abord,ensuite lui, pour tous deux la mortl'". Célestine GalLl-Marié,

que fazia o papel da protagonista,tivera um pressentimento e desmaiaranos bastidores. Conseguiu terminar oespetáculo, mas estava profundamenteperturbada. Na manhã seguinte, osamigos de Bizet recebiam um telegra-ma de ludovic Halévy anunciando amorte do compositor.

Hoje, Carmen está sempre nosegundo ou terceiro lugar - quando nãono primeiro - nas listas das preferidasdas platéias e dos críticos. Um sinal dofavor inabalável de que desfruta é onúmero de adaptações que recebeupara o cinema, o teatro ou o balé:entre elas, a Carmen Jones de OUoPreminger, um filme musical com elen-co negro; o balé Carmen-Suíte, que orusso Rodiõn Shtchédrin montou, coma música de Bizet, para sua esposa, abailarina Máia Plissétskaia; a Tragédíede Carmen, livremente reformulada, a

partir da ópera, pelo diretor inglês Peter Hall; ou a belíssi-ma filmagem da ópera dirigida por Francesco Rosi, comPlácido Domingo e Julia Migenes-Johnson nos papéis prin-cipais. Outro indício da posição que ocupa, na História dogênero, é o fato de que - à exceção do espanhol ErnestoHalffter que, em 1930, escreveu uma Muerte de Carmensem maior relevância - nenhum outro compositor jamais searriscou a usar de novo a novela de Prosper Merimée comotema para uma ópera.

A intérpreteCalvé em pinturaa óleo

Carmen insere-se na voga francesa do espanholismo,moda introduzida no país pela imperatriz Eugenia Montijo,mulher de Napoleão !II. De seu país, ela trouxe ritmos dedança, tipos de roupa e costumes culinários que a corte seapressou em adotar. Na virada do século XIX para o XX, acuriosidade gaulesa pela Península Ibérica e seus aspectosexóticos mais superficiais - a vida dos ciganos, astouradas, as procissões de penitentes, as sedutoras mu-lheres de mantilha e rosas vermelhas no cabelo - vai inspi-rar Chabrier (Espana). lato (Rapsódia Espanhola), Saint-Saéns (Introductíon et ~ondo Capriccioso), Ravel(Tzígane), Debussy (Ibéri.a). E esse modismo é tão mar-cante que influenciará até mesmo compositores espanhóisde formação francesa: Granados, Albéniz e, principal-mente, Manuel de Falla, cujas Noches en los Jardines deEspana têm indisfarçável tom franco-hispânico.

Carmen sempre exerceu fascínio sobre o público, nãosó pela música avassaladora, mas também por sua bemdosada mistura de elementos românticos e realistas. Ela éromântica na análise da paixão destruidora - na mesmalinha do romance Manon Lescaut, do abade Prévôt, queinspirou óperas a Auber, Puccini e Massenet. Paixão fatalque faz com que o soldado don José, por causa da ciganaCarmen, abandone Micaela, sua noivinha de aldeia,deserte, torne-se bandido, humilhe-se e chegue ao crime.Mas é realista, também, na descrição muito precisa dosambientes e na caracterização de personagens recortadasdo quotidiano. Isso dá à Carmen grande importânciahistórica: ela é uma das precursoras da Escola Verista, quesó surgirá em 1890. Mas esse realismo foi também respon-sável pela reação escandalizada, na época da estréia, porparte de um público que não estava habituado à crueza dealgumas de suas situações - o que em parte explica oinsucesso no dia da estréia.

A exuberantevisão de Carmen,segunda Franca

Zeffirelli

1 "Eu primeiro, ele em seguida, para nós dois a morte!"

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Guia do ouvinte

Julia Mlgenesna adaptaçãocinemotogrãtica deFrancesco Rosi

Otema exuberante com que se inicia aabertura será ouvido de novo, abrindo o

ato IV, que se passa diante da praça de touros. É uma melo-dia agitada, extrovertida, que logo cede lugar a outro maiscalmo. A modulação de lá maior para fá maior é tão bruscaque, na época da estréia, escandalizou muito os acadêmicospuristas. Essa modulação introduz a melodia suave com que,no ato II, termina a canção do toureador, repetida um poucomais alto antes de nova modulação levar-nos de volta ao lámaior e ao primeiro tema. De allegro giocoso o andamentodecresce para andante moderato e, com trêmolos nas cordas,ouvimos, marcado con tutta forza, o tema sombrio associadoao destino fatal dos personagens. Por um momento, pareceque esse tema vai ser sinfonicamente desenvolvido; depois,Bizet o corta com um acorde estrepitoso e, após um silênciocheio de expectativa, o pano se abre.

A arte incomparável do compositor para pintar quadrossonoros é demonstrada, de saída, com a movimentada cenados dragões que, diante do quartel da guarda, comentam ovai-e-vem das pessoas à sua volta. A caracterização dos per-sonagens é tão bem cuidada que até menos uma figurasecundarissima como o soldado Morales tem frases interes-santes a cantar.

Uma frase curta e delicada surge na orquestra quandoMicaela aparece, despertando o interesse imediato dos sol-dados. Ela está a procura de don José, qu~ não se encontraali naquele instante; mas estão à espera dele, pois vem ren-der Morales. Micaela rejeita a oferta de descansar um poucona casa do guarda e, ironicamente, usa a mesma melodia deMorales para dizer que há de voltar quando a troca de sen-tinelas tiver sido feita. "A ave voou", lamenta Morales, "masconsolemo-nos continuando a contemplar a multidão."

A corneta, fora de cena, ecoada por um clarim na orques-tra, introduz o tema alegre do regimento que chega, lideradopelo tenente Zúiiiga e o dragão don José, e escoltado por umbando ruidoso de garotos. Deliciosa miniatura burlesca é amarcha militar com que os meninos imitam os guardas,durante a troca de guarda, no fim da qual Morales descreve aJosé a menina loura, de longas tranças, que veio procurá-lo,e ele conclui: "Deve ser Micaela."

Aparentemente Zúiiiga está há pouco tempo em Sevilha,pois pergunta a José o que é aquele grande edifício emfrente ao quartel. É a fábrica de cigarros, e o comentárioreprovador de José sobre os modos levianos das mulheresque ali trabalham mostram-nos que ele é um rapaz rústico,puritano, quadrado, desacostumado a mulheres de modosmais livres (no diálogo inteqral. ficamos sabendo tambémque ele se chama José de Lizarabengoa - o que revela suaorigem basca - e alistou-se por ter matado um homem emduelo: informação importante pois já nos faz pressentir, desaída, seu caráter violento).

À pergunta de Zúiiiga se elas são bonitas, José responde,constrangido, que ele pode julgar por si próprio, pois ossinos anunciam a hora da folga. E as cigarreiras entram, cer-cadas por rapazes que se declaram a elas, entoando um coroem louvor do cigarro - uma das coisas que chocou o públicoda estréia -, cuja melodia oscila caprichosamente, como asvolutas de fumaça no ar. Mas os rapazes estranham a ausên-cia de la Carmencita e, mal mencionam o nome dela, e umfloreio provocante, derivado do tema do destino mas agoraensolarado, faz surgir a bela cigana que, à pergunta deles -"Quando nos amará?" -, responde que não sabe: talveznunca, talvez amanhã, mas hoje certamente não.

Uma das mais marcantes árias de apresentação de perso-nagem, em toda a história da ópera, é a Habanera deCarmen: "O amor é um pássaro rebelde, que ninguém con-segue domar." Os rapazes repetem suas juras de amor, masela nem lhes dá atenção. Encerra sua ária estrófica, de melo-dia cheia de requebros insinuantes e, num arremate deenorme efeito dramático, antes de sair de cena, pára diante

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o PrimeiroAtode Carmenem montogemno Óperade Paris

de don José que, muito perturbado com a provocante pre-sença da cigana, concentra a atenção na correia de sua espa-da. Tirando uma flor que traz ao peito, Carmen atira-a aorosto do soldado. Evai embora rindo zombeteiramente.

O sino sai novamente, as operárias voltam para a fábri-ca, don José fica sozinho em cena. Uma reminiscência dotema da fatalidade é ouvida quando ele se abaixa paraapanhar a flor. Mas não tem muito tempo para entregar-se

ao devaneio, pois Micaela se aproxima.Traz-lhe um pouco de dinheiro, uma cartae um beijo da mãe - que lhe dá pudica-mente. A melodia do dueto dos dois -"Vejo minha mãe, revejo a minha aldeia ...ó doces lembranças de outrora!" - é linda,mas um pouco antiquada, fazendo pensarno estilo de Os Pescadores de Pérolas ouA Bela üonzela de Perth, óperas do inícioda carreira de Bizet. E esse é um efeitodeliberado, pois José e Micaela são doiscampônios, gente simples, de costumespuritanos. Prova disso é a observação queo soldado faz para si mesmo de que porpouco tornou-se "a presa daqueledemônio" - a prova de quanto Carmenmexeu com ele.

Terminado o dueto, José relê a cartaem silêncio, ao som da melodia do dueto;mas é interrompido pelos gritos vindos dafábrica. O palco enche-se de gente. Asoperárias falam de uma briga que houvena fábrica: quando Manuelita disse que

queria comprar um burrinho, para vir trabalhar, Carmen,muito irônica, disse que em vez disso ela devia compraruma vassoura; e as duas se atracaram. Enquanto as moçasdiscutem quem é a culpada, Zúiiiga manda José e dois sol-dados à fábrica, averiguar o que aconteceu. Eles trazemCarmen presa, pois, na refrega, ela feriu a colega com umanavalhada.

Ao lhe perguntarem o que tem a alegar em sua defesa, elacantarola, em desafio: 'Tra-Ia-ta. cortem-me, queimem-me,não direi nada." Diante disso, Zúiiiga manda prendê-Ia, elareage com desprezo e, ao ser advertida, cantarola avec laplus grande impertinence. Zuiiiga ordena a José que ate asmãos da cigana às costas e leve-a para a cadeia. Ficando so-zinha com o dragão, Carmen, num trecho falado, o provoca,

Desenho deGalli - Marie. acantora que fesa primeiraCarmen

fala da flor que, a essa altura, já fez o seu feitiço e, quando osoldado a proíbe de lhe dirigir a palavra, diz que falará sozi-nha. Na-refinada Seguidilha - "Prês des remparts de Séville" -descreve-se dançando na taberna de Lilás Pastia, que ficaperto das fortificações da cidade, e fala de "um soldado quea ama e a quem ela talvez possa também vir a amar".

A cena é uma pequena obra-prima de caracterização danatureza selvagem de Carmen, ansiando pela liberdade enão hesitando em usar de seu poder de sedução para con-segui-lo; e da onda de paixão que se apodera de don José.Fascinado pelas promessas da cigana, ele desata a cordaque prende suas mãos. Carmen canta uma vez mais orefrão da Habanera, rindo na cara de Zúiiiga, e a caminhoda prisão esbarra em José fazendo-o tropeçar como com-binado. O final do ato é brusco, incisivo: a cigana escapa,a multidão cai na gargalhada, e o pobre José é preso portê-la deixado fugir.

~r l/r Breve introdução orquestral dá inícioao ato Il: que se passa na taberna de Lilás

Pastia. Acompanhada por 'suas amigas Frasquita e Mercedes,Carmen entoa a agitada Canção Cigana: "Les tringles dêssistres tintaient avec um éclat métalique ... "l, cujo ritmo seacelera até culminar num redemoinho frenético. Está na horade fechar, e Carmen fica muito contente quando Zúiiiga lhediz que don José já foi posto em liberdade.

Dos bastidores, chegam gritos entusiasmados da multi-dão. É Escamillo, aclamado por ter vencido uma tourada emGranada. Agradecendo ao brinde dos que o saúdam, eleentoa a "Canção do Toreador", cuja força vem de seu ritmovigorosa mente sincopado - e em seu refrão surge uma melo-dia já ouvida na abertura. As vozes de Frasquita, Mercedes eCarmen juntam-se à do barítono, em tom cada vez maisgrave, na última estrofe, repetindo a palavra "l'arnour" - oamor que o toureiro espera de suas apaixonadas admirado-ras. Pela sua conversa com a cigana, percebe-se que ela oimpressionou muito.

ShirleyVerrettcomo a cigana de

sangue quente

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Canção do Tourador, ouvida ao longe, o faz ir cheio dopressentimento de que, durante sua ausência, será traído. AMarcha dos Contrabandistas encerra esse ato.

Charge deEnrico Canusovivendo don Joséem montagemde 1910

A melodia com que se iniciou aabertura - o tema de um pólo

(canção anda luza) encontrado porBizet numa coletânea de canções espanholas - volta novibrante ato IV, em que vendedores e público se apinham,à 'porta da Plaza de Toros, esperando pelo início da toura-

da. Os toureiros desfilam ao somdos temas do prelúdio e da"Canção do Toureadór" - e

Escamillo, numa melodia terna,cheia de sinuosos intervalos de sexta,declara seu amor a Carmen, que está entre

a multidão. Ela retribui ardorosamente aseus sentimentos e, a Mercedes, que

vem advertir ter visto José no meiodo povo, responde-lhe que nãotem medo - pelo contrário, quer seexplicar com ele e acabar de umavez por todas com um relaciona-

mento em que não vê mais sen-tido.

É a cena culminante daópera, a confrontação mortal

dos dois amantes. José não vemameaçá-la: o que faz é um doídoapelo à reconciliação, o pedido

~

que ela esqueça todos osI'I'·(.,.~ ressentimentos e vá embo-v· - ';;--

-' - j ,- ~"j~~r\' ra com ele. CarmenIII'vlt.\tv·,t , ~J1(" , ,) 'C:-' recusa, diz que nunca

mais será dele, e o dueto vaicrescendo em intensidade, até José, desvairado, jurar quefaz tudo o que ela lhe pedir, para ouvir, como resposta:"Carmen nasceu livre e livre há de morrer."

Nesse momento, a turba, dentro da arena, irrompe emsaudações a Escamillo, e a cigana, radiante, quer entrar naPlaza de Toros. José barra-lhe o caminho, Carmen confessaque ama o toureiro - mesmo sabendo que isso poderá lhetrazer a morte - e, num gesto final de ruptura, tirado dedo

Mario Ewingecomo Carmen em

vários momentosdo montagem do

London RoyalOpero House

o anel que o soldado lhe dera, e joga-o em sua cara. Aosom dos aplausos a Escamillo, José, transtornado,esfaqueia Carmen, que tenta mais uma vez entrar naarena. Depois, ajoelha-se ao lado de seu corpo, devastadopela dor. A multidão acorre, ao som do tema da fatalidadedeclamado con tutta forza; e, aos soldados que se aproxi-mam, José se entrega exclamando: "Vous pouvez m'ar-rêter ... c'est moi qui l'ai tuée! Ah, Carmen ... ma Carmenadorée!"4 E a orquestra, num poderoso crescendo, encerraa sua frase, enquanto a ópera termina.

Julio Migenes ePlacido Domingo

no filme deFrancesco Rosi

1 "Os triângulos dos sistros tilintavamcom um ruído metálico ... "2 "Quanto ao fiscal da alfândega, deixe conosco."3 "Digo que nada me amedronta."4 "Vocês podem me prender. Fui eu quem a matou!Ah, Carmen ... minha Carmen adorada!"

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Liberdades e restriçõesDo ponto de vista textual, Carmen é uma ópera problemática, cujaedição final nunca ficou claramente definida. O próprio Bizet provavelmenteteria feito outras revisões, se a morte não o tivesse impedido

Tornou-se um hábito, ao longo do tempo, falar mal-do libreto de Henri Meilhac e Ludovic Halévy para aCarmen. depreciado pelos mais diversos autores.

Mas isso não é totalmente justo: esse libreto não é ne-nhum pináculo da arte literária, mas possui, em relação ànovela de Merimée, uma autonomia que o torna muito ade-quado às necessidades dramáticas de Bizet. Micaela nãoexiste no livro: foi criada para estabelecer uma oposiçãopsicológica com Carmen; mas também para que se tenhauma idéia do ambiente social de que provém don José. Apersonagem secundária do toureiro Lucas foi expandida etransformou-se em Escamillo, por quem Carmen sente-seatraída no momento em que sua paixão pelo possessivoJosé começa a declinar: embora não o ame profundamente,vê nele a chance momentânea de escapar de um rela-cionamento que está se tornando sufocante.

Foi eliminado o marido de Carmen, o contrabandistaGarcía, o Zarolho, que fecha complacentemente os olhostortos a seu relacionamento com o soldado, pois isso lhepoderá trazer vantagens materiais. O seu desaparecimentodá dimensão diferente ao relacionamento dos amantes, e

um caráter menos sórdido a Carmen: ela deixa de ser umaadúltera para transformar-se em uma mulher emancipada,que quer poder decidir seu próprio destino. José, por suavez, torna-se menos calculista e violento. No livro, ele matafriamente Zúíiiga e García; e o assassinato de Carmen é avingança premeditada do homem traído: ele a leva para umlocal distante, onde o corpo demorará a ser encontrado, emvez de esfaqueá-la sob o impulso de emoções descontro-ladas. E no ato II da ópera, foram concentrados episódiosque, na novela, ocorrem em momentos diferentes, o quelhes dá uma maior intensidade dramática.

Os libretistas, além disso, criaram uma série de cenasde efeito cênico muito eficiente, que não existiam emMerimée: a seguidilha, o episódio da flor que Carmenatira em don José, a cena da leitura do destino nas car-tas; o final do ato Ill. quando Micaela vem dizer a donJosé que sua mãe está doente e quer revê-lo antes demorrer (o que abre espaço para que Carmen, durante suaausência, torne-se a amante de Escamillo); e o momen-to, no último ato, em que Frasquita e Mercedes vêmadvertir Carmen que José voltou e a está procurando.

lIustraçàa dalibreta da estréiade Carmen. naOpéra-Comique de

;.;;1.-"'-- __ .:.-:_..::..==---"----'..........1 Paris.1875

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Cartaz de umamontagem feita

na Alemanha.em 1935

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Mudaram também o local da morte da cigana, de umlugar ermo nas montanhas para a plaza de toros, o que éum grande achado teatral - a começar pela grande cenacoral que esse finale permite, mostrando o povo que seprepara, no início do último ato, para assistir à tourada.A luta do toureiro com o touro, dentro da arena, ecoa aconfrontação final entre os amantes do lado de fora daplaza, e unifica com clareza as relações entre o amor e amorte. Para esse final, aliás, Francesco Rosi encontrou,em seu filme, uma belíssima solução visual: faz com que,no espaço vazio do areal em frente à plaza, vestidos devermelho e de negro - as cores da tauromaquia, dosangue e do luto, da paixão e da dor -, Carmen e donJosé se enfrentem em sua última coreografia mortal.

Meilhac e Halévy foram acusados de pausterizar a no-vela mas, na realidade, fizerammodificações no caráter de Carmenque a tornaram muito mais inte-ressante como personagem. EmMerimée, ela é ladra, mentirosa epromíscua, e exerce sobre Joséuma dominação essencialmentesexual. Na ópera, a sensualidade é,obviamente, um componente dosmais importantes; mas ela é tam-bém uma mulher livre, dona de seupróprio nariz, que não aceita asimposições do moralismo vigenteou do repressivo mundo masculi-no. Além da evidente atração físi-ca, há algo mais na paixão de Josépor ela: o conflituoso fascínio poressa liberdade interior que elatem, e que a torna diferente detodas as mulheres que ele já co-nheceu.

Meilhac e Halévy teriam adoci-cado mais alguns pontos do texto,temerosos da reação desfavorávelde um público muito puritano, seBizet não se tivesse oposto a isso.O compositor fez modificaçõesextensas na cena que precede a

Canção da Flor, na qual Carmen usa de todos os recursospara seduzir José e convencê-lo a não responder ao toquede recolher; e também na cena das cartas e no final daópera. E escreveu ele mesmo o texto da Habanera, afamosa "L.'amour est un oiseau rebelle'", que marca aprimeira aparição de Carmen, servindo-lhe de cartão devisita.

A respeito dessa ária, aliás, há um detalhe curioso:Bizet usou nela uma melodia que acreditava ser de fol-clore cubano - donde o nome que lhe deu. Só mais tardedescobriu tratar-se do tema de El Arreglito, canção com-posta pelo espanhol Sebastián Yradier, professor de canto

o Fenon Lhériecomo don José

da imperatriz Eugénie. Yradier erao autor de romanças de salão,entre as quais La Paloma, popularaté hoje. Bizet preocupou-se,então, em creditar-lhe, na partitu-ra, a autoria do tema - que, emtodo caso, ganha, em suas mãos,um tratamento harmónico muitomais refinado do que no original.

Carmen tem a estrutura deopéra-comique, ou seja, seusnúmeros cantados são interligadospor diálogo falado, e não porrecitativo, como no caso da óperade modelo italiano (observe-se, deresto, que a expressão opéra-comique refere-se a uma forma, enão a um gênero; os opéras-comiques não precisam, necessari-amente, ter assunto engraçado) .. Aforma de opéra-comique faz dela,portanto, uma ópera de númerosestanques. Mas ela possui umacaracterística excepcional: realiza,em sua partitura, a fusão muitofeliz de vários estilos de procedên-cia diferente, constituindo, assim,uma síntese da ópera francesa de seu tempo. Só a FlautaMágica, de Mozart, consegue trabalhar com tantos mate-riais diversos obtendo igual união perfeita de contrários.

Para criar cor local, Bizet usa melodias e ritmos deinspiração hispânica: a Habanera, a Seguidilha, a Cançãodo Toureador, a música da Plaza de Toros, cujo tema exci-tante estoura desde os primeiros compassos da abertura.O quinteto dos contrabandistas e o final do ato II sãotípicos da opereta. Todos os trechos ligados a MicaiHatêm o estilo da comédie larmoyante (comédia lacrime-jante), gênero surgido desde o Pré-romantismo, quepunha a ênfase nas intrigas amorosas, com grande pesopara os elementos sentimentais. São do domínio datragédie-lyrique a cena das cartas, a do duelo de Josécom Escamillo e a cena final. Quanto às movimentadasseqüências de rua, no- ato I, elas remetem ao gosto dogrand-opéra - a ópera da plenitude romântica, praticadapor Meyerbeer ou Halévy - pela recriação da cor local e odeslocamento das grandes massas de coro e de figu-rantes, embora domado por um impecável senso de pro-porção. E as seqüências com os contrabandistas, nasmontanhas, durante o ato III, pertencem ao clima dasóperas de aventura, que tinham estado em voga no iní-cio do século XIX.

Essa variedade de tons e de estilos não é gratuita. Elacorresponde a uma visão complexa e em profundidadedos contrastes internos da própria vida: o conflito deJosé entre o amor sagrado e o profano; e o drama de

o borítono Bouhycomo Escomillo.

o toureiroApriITlj

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Carmen, para quem a entrega amorosa não exclui apreservação de sua liberdade, mesmo se José, para ficarcom ela, abriu mão de uma série de valores (o noivado, orespeito à farda, a posição na comunidade, a próprianoção de honestidade). Nesse contexto, a tragédia final éuma solução lógica e inevitável. Carmen prefere a mortea ter de renunciar a seu direito de ser a sua própria dona.

E José é destruído por sua inca-pacidade de adaptar-se aos valoresem mutação de um mundoantagônico àquele em que se tinhacriado. Tudo isso é emoldurado porum retrato, contrastante em suavida e colorido, dos ambientespopulares: a praça pública, a taver-na, o acampamento dos contraban-distas, a arena de touradas.

Do ponto de vista da evoluçãomusical, cada situação, em Carmen,é expressa com uma invençãomelódica estupenda, que torna cadaum de seus temas inesquecível. Ecom uma absoluta concisão e sensode timing, creditável, entre as forçasque agiram na formação de Bizet, àinfluência verdiana. A lição aprendi-da com o italiano, que ele tantoadmirava, neutraliza a tendência aser prolixo, herdada do modelomeyerbeeriano. No estágio de per-feita maturidade em que Carmen éproduzida, há economia de material,perfeito controle dos meios deexpressão, colorido orquestral cinti-

A soprono Chopuv. aprimeira Michaêla

i~__~ ~

lante, impulso rítmico irrefreável e penetrante sensualidade.Em Carmen, culmina a capacidade, de que o composi-

tor vinha dando provas desde Os Pescadores de Pérolas,de adequar a música a cada uma de suas personagens.Micaela, a mocinha quadrada e limitada, exprime-se numestilo que lembra Gounod. Aqui, porém, já não se tratamais de influência, e sim do uso deliberado de um deter-minado estilo para caracterizar a garota ingênua. Masquando a namoradinha de aldeia encontra, dentro de simesma, reservas insuspeitadas de coragem para ir procu-rar José no acampamento dos contrabandistas, a melodiade sua ária. "Je dis que rien ne rn'êpouvante'", é Bizetpuro, de um tom muito diferente do dueto com o namora-do, no ato r.

A "Canção do Toureador", por sua vez, é de um volun-tária banalidade melódica, porque Escamillo é uma per-sonagem raso, superficial, o tipo de homem acostumadoa confiar no efeito sedutor que produz sobre as mulheres.E a música para Frasquita e Mercedes é esquematica-mente buliçosa enquanto se trata de mostrá-las sob seuângulo mais leviano. Mas ganha súbita densidade quan-do, ao ler as cartas. elas se vêem diante da necessidadede revelar o destino de Carmen.

O processo mais complexo de evolução de personali-dade é o de José, desenvolvido em termos musicais muitoclaros, de um ato para outro. O homem ingênuo que, noinício do primeiro ato, tínhamos ouvido cantando o bemcomportado "Ma mêre, je la vois"3 com sua prometida dealdeia, fica extremamente perturbado' ao ver a belacigana. E essa perturbação é expressa pela melodia em lámaior que irrompe logo depois de Carmen lhe atirar a florem praça pública. É com a evocação desse gesto que, naária "La fleur que tu m'avais jetêe'", no ato II, José deixaperceber todo o descontrole da paixão que se apossou dele.

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Apresentaçãona arena

deVerona.em 1965

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o múltiplo conflito que vive, no ato IrI, entre dever,

paixão, vergonha, ciúme, amor filial, remorso, raiva ehumilhação, desencadeia-se com veemência em suaexclamação: "Düt-il rn'en coüter la vie, non, Carme, je ne

partirai pas"5 - pois ele sabe que, assim que virar as

costas, ela o trocará por outro. No ato IV, o conflitodesapareceu. O que existe agora é um desespero frio. E a

determinação cega, enlouquecida,

de ir até o fim. A consciência trá-

gica de que é esse amor convertido

em ódio que o destrói e ao objeto

amado está toda contida numa sópalavra: "hêlas!", Quando a cigana

lhe diz claramente que deixou. deamá-to. a única coisa que ele con-segue responder é: "Mais, moi,

Carmen, je t'aime encore, Carmen,

hélas!, moi, je t'adore'".Carmen também é uma perso-

nagem nova, em termos de univer-

so operístico, e vai influenciar

muito todo o teatro lírico realistado futuro. Nada tem em comumcom a heroína tradicional, pura,

sofredora, um joguete nas mãosdos homens e do destino. Éarnoral, complexa, combina em si

traços tanto de heroína quanto de vilã, mas de uma forma

que a coloca acima dos julgamentos da moral corrente.

Junto com Violetta Valéry e Manon tescaut, faz parte

daquela galeria de personagens femininas que não se

sentem culpadas por terem um comportamento que os

padrões morais vigentes consider-

am "irregular". E é a precursora davisão iconoclasta da mulher

destrutiva que surqira. nasprimeiras décadas do século, com

o Expressionismo: Salomé, Lulu ou

as mulheres de Erwartung (AEspera), de Schonberq. ou Morder,

Hoffnung der Frauen, de Hin-

demith.

Era demais para o público de

1875! Adolphe de Leuven, que

deveria reger a estréia, desistiu

por não ter conseguido convencer Bizet a eliminar certascruezas: mulheres fumando em cena, alusões à liberdadesexual, a impunidade dos bandidos e o final trágico

explícito, desusado num opéra-comique. E foi substituí-

do por Deloffre, que já tinha regido a estréia de uma

ópera anterior de Bizet. JoLie fiLLe de Perth. A cigana,

entretanto, é livre mas nada há de sórdido em seu com-

portamento. É um erro dar uma ernpostação vulgar e car-

regada à sua interpretação - e Maria Ewing, a intérprete

deste vídeo, sabe encontrar o equilíbrio na sugestão de

seu fascínio, sem resvalar para o exagero. Carmen é umafascinante mistura de sensualidade, alegria de viver,

destemor, fatalismo, mas também de uma grande capaci-dade de carinho, como o prova o tom sonhador com que

interrompe o quinteto dos contrabandistas para confes-

sar: "Je suis arnoureuse" (marcado na partitura trêsretenu, "muito contido"; e isso denota um momento de

pudor numa mulher que, até aquele momento, vinha ofer-

ecendo de si mesma uma imagem muito desembaraçada).

Maria Callas,outra interprete

famosa dapersonagem

criada por Bizet

Montagem noteatro de Ópera de

Roma, em 1970

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É em Carmen que se afirma, em toda a sua originali-dade, o orquestrador genial que é Bizet. Sua instrumen-tação deriva diretamente da de Hector Berlioz, verdadeiromago do uso da orquestra no auge do Romantismofrancês. Seu objetivo primordial é a clareza, o equilíbrioque permite às vozes fazerem-se ouvir com naturalidade.E a orquestra de Bizet se coloca como o ponto de pas-sagem que levará, mais adiante, à técnica translúcida evi rtuosística da escrita de Debussy e Ravel.

É uma orquestração de extraordinária variedade. Aexcitação da música da tourada convive com a serenidadedas melodias que recriam o clima montanhês. Na cenadas cartas, a densidade trágica dos metais, pontuando orecitativo de Carmen, que repete obsessivamente "lamort! la rnort!", contrasta com o tom frívolo anterior docanto das outras ciganas. O filósofo Friedrich Nietzsche,rendido ao encanto dessa música, em que via o paradig-ma do antiwagnerismo, chamou de "a brisa que sopra dojardim de Epicuro" o murmúrio das cordas em surdina queacompanha o coro das operárias da fábrica de cigarros,no ato I. Mas, mesmo nos momentos em que a orquestraé usada de forma maciça, nunca se tem a impressão deque as vozes estejam sendo sobrecarregadas: ótimoexemplo disso é a cena do duelo entre Escamillo e donJosé, no ato Ill.

Nunca é demais ressaltar a originalidade no uso dossopros: os piccolos no coro dos meninos do ato I (cenaque impressionou Tchaikóvski a ponto de ele a imitar noinício de sua ópera A Dama de Espadas); a nota da cla-rineta com que é sugerida a raiva de Carmen, quandoJosé lhe diz que vai ter de voltar ao quartel; a melodiacumulativa dos metais na cena das cartas; a combinaçãodas madeiras com a harpa no entreato lI-lII; e os diver-sos usos muito caracteristicos da flauta que Bizet faz naSeguidilha, no dueto "Là-bas, là-bas dans la montagne",ou nos entreatos.

Todos esses elementos - e ainda o fato de que, numafase de euforia wagneriana, Bizet é totalmente imperme-ável à influência do compositor alemão - justificam oentusiasmo de Nietzsche por Carmen. Antes um wag-nerita de quatro costados mas, na época, em rota de col-isão com seu antigo ídolo, Nietzsche aclamou a músicade Bizet como um ideal solar, mediterrâneo, dionisíaco,verdadeiro antídoto para as névoas mitológicas e as diva-gações filosóficas do mestre de Bayreuth. Tudo isso deuà Carmen posição ímpar como a anunciadora da viradarealista: ela é uma das influências fundamentais sobre aCavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni, que em 1890abre as portas à Escola Verista italiana.

E tem aquela qualidade rara das verdadeiras obras-pri-mas: respeitada e admirada pelos críticos e historiadores,é adorada pelo público, que se rende à força de suassituações e à beleza embriagadora de suas melodias.Carmen é uma das óperas mais gravadas do repertório.Seu primeiro registro integral é de 1908 - 'Cantado em

alemão! -, com a legendária Emmy Destin, sob a regên-cia de Bruno Seidler-Winkler. Todas as grandes meio-sopranos ou sopranos dramáticas a documentaram emdisco: Rosa Ponselle, Gabriella Besanzoni, GiuliettaSimionato, Victoria de los Angeles, Maria Callas,Leontyne Price, Grace Bumbry e Tatiana Troyanos.

Há dela também vários registros em vídeo: vonKarajanjBumbry, em Salzburgo; Carlos Kleiberj Obrazt-sova, em Viena; LêvinejBaltsa no Metropolitan;AbbadojVerrett no Scala. A americana Maria Ewing játinha filmado, no Festival de Glyndebourne, a montagemde Peter Hall regida por Bernard Haitink - uma fita lança-da comercialmente no Brasil pela Globovídeo. É ela tam-bém quem encabeça o elenco desta montagem do CoventGarden, de Londres, ao lado de Luís Lima e de JustinoDíaz, sob a regência de Zubin Mehta.

Cartão postal deuma montagem na

Arena de Verona

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A mezosopranoGiuliella Simionatono Teatro 0110Scalla,1959

Do ponto de vista textual, porém, Carmen é uma óperaproblemática, cuja edição final nunca ficou claramentedefinida, O próprio Bizet ainda estava fazendo cortes,reduções e adaptações durante os ensaios para a estréia,E, provavelmente, teria feito outras revisões, se a mortenão o tivesse impedido. Para complicar as coisas, quan-do a Ópera de Viena decidiu programá-la, em outubro de1875, pediu a Ernest Guiraud que convertesse o diálogofalado em recitativo acompanhado, para converter oopéra-comique numa ópera de modelo tradicional.

Guiraud reduziu arbitrariamente os diálogos prejudi-cando, com isso, a evolução psicológica das personagens(para que o leitor possa sentir a diferença, sugiro a com-paração dos recitativos de uma gravação tradicional,como a de sir Thomas BeechamjAngeL com a de uma ver-são moderna: a de Rafael Frübeck de BurgosjEMI, porexemplo)7, Os recitativos de Guiraud são de um conven-cionalismo atroz, que destoa do resto da obra, Alémdisso, ele cometeu lamentáveis contra-sensos, como o dedestruir o original efeito desejado por Bizet ao oporcanto e fala, na cena do ato I em que Carmen desafiaZúfiiga; e fez desaparecer as passagens em que o com-

positor recorria, com objetivos dramáticos precisos, aomelodrama (texto falado com acompanhamento orques-tral contínuo),

A primeira edição da ópera, feita por AntoineChoudens em 1875, traz os recitativos e um balé total-mente inapropriado, preparado por Guiraud com temas dopróprio Bizet, Mantido em algumas gravações - por exem-plo a de von Karajan em Salzburgo - esse balé usa tre-chos extraídos de l'Arlésienne, a música incidental queBizet escreveu para uma peça baseada no conto deAlphonse Daudet. que se passa no sul da França, Transporpara' a Espanha música de inspiração folclórica provençalé simplesmente estapafúrdio, pois compromete uma dascaracterísticas mais importantes do Bizet maduro: a suapreocupação com a rigorosa criação de cor local atravésdas melodias e dos ritmos.

Durante muito tempo, a edição utilizada para montagense gravações foi a Choudens, que publicava a versão adap-tada por Guiraud, Em 1964, surgiu a edição crítica de FritzOeser que, baseando-se no manuscrito vocal, tentou rever-ter à forma original do opéra-comique - embora sem terchegado a um resultado que se possa considerar totalmentesatisfatório. O trabalho de Oeser, entretanto, fez culminarum processo de revalorização do formato inicial da Carmenque já tinha começado em 1947, em Londres, com a mon-tagem da companhia Carl Rosa, a primeira a voltar ao diá-logo falado, Em 1970, o selo Angel lançou a primeiragravação da versão opéra-comique: a de Grace Burnbry eJon Vickers, regida por Rafael Frübeck de Burgos. Mas aindanão existe um consenso quanto à edição e, conseqüente-mente, tanto as encenações quanto os registros disponíveisem disco e vídeo diferem sensivelmente em detalhes muitosignificativos.

CarmenMercedes e

Fanquita tiram ascartas para

saber o futuro

o climaxdapeça, o duelo

entre Escamillo edon José

1 "O amor é um pássaro rebelde"2 "Digo que nada me espanta"3 "Eu vejo a minha mãe"4 "A flor que me atiraste"5 "Ainda que isso me custe a vida, Carmen,não irei embora."6 "Mas eu ainda te amo, Carmen, infelizmenteeu ainda te adoro."7 O volume dedicado à Carmen, na coleçãoÓperas Imortais, da editora portuguesa Notícias, traz otexto integral do diálogo falado em versão bilíngüe.

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