bocage - 375 sonetos

182
Bocage 375 sonetos

Upload: roberto-felipe-amaral

Post on 08-Nov-2015

94 views

Category:

Documents


32 download

DESCRIPTION

Bocage - 375 Sonetos

TRANSCRIPT

  • Bocage

    375sonetos

  • PERODO DA VIDA MILITAR

    (1780 a 1787)

    [1] PROPOSIO DAS RIMAS DO POETA

    Incultas produes da mocidade Exponho a vossos olhos, oh leitores: Vede-as com mgoa, vede-as com piedade, Que elas buscam piedade e no louvores:

    Ponderai da Fortuna a variedade Nos meus suspiros, lgrimas e amores; Notai dos males seus a imensidade, A curta durao de seus favores:

    E se entre versos mil de sentimento Encontrardes alguns, cuja aparncia Indique festival contentamento,

    Crede, oh mortais, que foram com violncia Escritos pela mo do Fingimento, Cantados pela voz da Dependncia.

    [2] O AUTOR AOS SEUS VERSOS

    Chorosos versos meus desentoados, Sem arte, sem beleza e sem brandura, Urdidos pela mo da Desventura, Pela baa Tristeza envenenados:

    Vede a luz, no busqueis, desesperados, No mudo esquecimento a sepultura; Se os ditosos vos lerem sem ternura, Ler-vos-o com ternura os desgraados:

    No vos inspire, oh versos, cobardia Da stira mordaz o furor louco, Da maldizente voz e tirania:

  • Desculpa tendes, se valeis to pouco; Que no pode cantar com melodia Um peito, de gemer cansado e rouco.

    [3] SONHO

    De suspirar em vo j fatigado Dando trgua a meus males eu dormia; Eis que junto de mim sonhei que via Da Morte o gesto lvido e mirrado:

    Curva fouce no punho descarnado Sustentava a cruel, e me dizia. Eu venho terminar tua agonia; Morre, no penes mais, oh desgraado!

    Quis ferir-me, e de Amor foi atalhada, Que armado de cruentos passadores Aparece, e lhe diz com voz irada:

    Emprega noutro objeto os teus rigores; Que esta vida infeliz est guardada Para vtima s de meus furores.

    [4] CONTRA A INGRATIDO DE NISE

    Raios no peo ao criador do mundo, Tormentas no suplico ao rei dos mares, Vulces terra, furaces aos ares, Negros monstros ao bratro profundo.

    No rogo ao deus damor, que furibundo Te arremesse do p de seus altares; Ou que a peste mortal voe a teus lares, E murche o teu semblante rubicundo.

    Nada imploro em teu dano, ainda que os laos Urdidos pela f, com vil mudana Fizeste, ingrata Nise, em mil pedaos.

    No quero outro despique, outra vingana, Mais que ver-te em poder de indignos braos,

  • E dizer quem te perde, e quem te alcana.

    [5] INSNIA

    J sobre o coche dbano estrelado Deu meio giro a noute escura e feia; Que profundo silncio me rodeia Neste deserto bosque, luz vedado! Jaz entre as folhas Zfiro abafado, O Tejo adormeceu na lisa areia; Nem o mavioso rouxinol gorjeia, Nem pia o mocho, s trevas costumado:

    S eu velo, s eu, pedindo sorte Que o fio, com que est minha alma presa vil matria lnguida, me corte:

    Consola-me este horror, esta tristeza, Porque a meus olhos se afigura a morte No silncio total da natureza.

    [6] O COLO DE MARLIA

    Mavorte, porque em prfida cilada O cruel moo algero o ferira, No faz caso da me, que chora e brada, Quer punir o traidor, que lhe fugira:

    Na sinistra o pavs, na destra a espada, Nos gneos olhos fuzilante a ira, Pala negra carroa ensanguentada, Que Belona infernal coas Frias tira:

    Assim parte, assim voa; eis que v posto No colo de Marlia o deus alado, No colo aonde tem mimoso encosto:

    J Marte arroja as armas, e aplacado Diz, inclinando o formidvel rosto: Valha-te, Amor, esse lugar sagrado!

  • [7] O POETA LIVRE DAS PRISES DAMOR

    Ao templo do propcio Desengano A prvida Razo guiou meus passos; Por ver-me, louco j, mordendo os laos, Os duros laos de um amor profano:

    Ajoelho ante o nume soberano, Mostro-lhe os roxos, os cativos braos, Dizendo-lhe: - Gro deus, faze em pedaos Os ferros, que me ps Amor tirano!

    A deidade, inimiga da Esperana, Me responde: - Eu te livro do flagelo Que oprime os coraes; mortal, descansa.

    Eis que, brandindo um lcido cutelo, Meus ferros corta e logo da lembrana Me escapa de Marfida o rosto belo.

    [8] CELEBRA AS PERFEIES DE MARLIA

    No, Marlia, teu gesto vergonhoso, A luz dos olhos teus, serena e pura, Teu riso, que enche as almas de ternura, Agora meigo, agora desdenhoso:

    Tua cndida mo, teu p mimoso, Tuas mil perfeies, crer que a ventura As guarda para mim, fora loucura; Nem sou digno de ti, nem sou ditoso:

    E que mortal enfim, que peito humano Merece os braos teus, oh ninfa amada? Que Narciso? Que heri? Que soberano?

    Mas que l minha mente iluminada!... Cus!... Penetro o futuro!... Ah, no me engano; De Jove para o toro ests guardada.

    [9] RECORDAES DE FLIS

  • A loura Flis, na estao das flores, Comigo passeou por este prado Mil vezes, por sinal trazia ao lado As Graas, os Prazeres e os Amores.

    Quantos mimos ento, quantos favores, Que inocente afeio, que puro agrado Me no viram gozar (oh doce estado!) Mordendo-se de inveja os mais pastores!

    Porm, segundo o feminil costume, J Filis se esqueceu do amor mais terno, E com Jnio se ri de meu queixume.

    Ah! se nos coraes fosses eterno, Tormento abrasador, negro cime, Serias to cruel como os do inferno! [10] LOUVANDO AS GRAAS DE MARLIA

    Marlia, nos teus olhos buliosos Os Amores gentis seu facho acendem; A teus lbios voando os ares fendem Ternssimos desejos sequiosos:

    Teus cabelos sutis e luminosos Mil vistas cegam, mil vontades prendem; E em arte aos de Minerva se no rendem Teus alvos curtos dedos melindrosos:

    Reside em teus costumes a candura, Mora a firmeza no teu peito amante, A razo com teus risos se mistura:

    s dos cus o composto mais brilhante; Deram-se as mos Virtude e Formosura Para criar tua alma e teu semblante.

    [11] SOBRE A SEPULTURA DE TIRSLIA

    Negra fera, que a tudo as garras lanas; J murchaste, insensvel a clamores, Nas faces de Tirslia as rubras flores. Em meu peito as viosas esperanas:

  • Monstro, que nunca em teus estragos cansas, V as trs Graas, v os nus Amores Como praguejam teus cruis furores, Ferindo os rostos, arrancando as tranas!

    Domcilio da noute, horror sagrado, Onde jaz destruda a formosura, Abre-te, d lugar a um desgraado:

    Eis deso... eis cinzas palpo... Ah Morte dura! Ah Tirslia! Ah meu bem, resto adorado!... Torna, torna a fechar-te, oh sepultura!

    [12] VNUS PROTEGE ELMIRA CONTRA A VINGANA DAMOR

    De Pafos o menino ardendo em ira, Porque uma ingrata as suas leis detesta, To grave insulto despicar protesta, E a domar-lhe a altivez, teimoso, aspira: Dormindo encontra a desdenhosa Elmira, Sobre a mo reclinada a nvea testa: Teu gnio (diz) amansarei com esta Farpa sutil- e do carcaz a tira:

    Mas a bela Acidlia, a quem somente Rende o travesso infante vassalagem, Lhe aparece e lhe grita: Amor, detm-te!

    Tu, filho, que no sofres que me ultrajem, Elmira vens ferir, irreverente! Nela de tua me no vs a imagem?

    [13] VNUS EXCEDIDA POR MARLIA EM FORMOSURA

    Oh tranas, de que Amor prises me tece, Oh mos de neve, que regeis meu fado! Oh tesouro! oh mistrio! oh par sagrado, Onde o menino algero adormece!

    Oh ledos olhos, cuja luz parece Tnue raio do sol! Oh gesto amado,

  • De rosas e aucenas semeado, Por quem morrera esta alma, se pudesse!

    Oh lbios, cujo riso a paz me tira, E por cujos dulcssimos favores Talvez o prprio Jpiter suspira!

    Oh perfeies! oh dons encantadores! De quem sois?... Sois de Vnus? - mentira; Sois de Marlia, sois de meus amores.

    [14] CONVITE A MARLIA

    J se afastou de ns o Inverno agreste Envolto nos seus midos vapores; A frtil Primavera, a me das flores O prado ameno de boninas veste:

    Varrendo os ares o sutil Nordeste Os torna azuis; as aves de mil cores Adejam entre Zfiros e Amores, E toma o fresco Tejo a cor celeste:

    Vem, oh Marlia, vem lograr comigo Destes alegres campos a beleza, Destas copadas rvores o abrigo.

    Deixa louvar da corte a v grandeza: Quanto me agrada mais estar contigo Notando as perfeies da Natureza!

    [15] ESPERANA AMOROSA

    Grato silncio, trmulo arvoredo, Sombra propcia aos crimes e aos amores, Hoje serei feliz! - Longe, temores, Longe, fantasmas, iluses do medo.

    Sabei, amigos Zfiros, que cedo Entre os braos de Nise entre estas flores Furtivas glorias, tcitos favores Hei de enfim possuir: porm segredo!

  • Nas asas frouxos ais, brandos queixumes No leveis, no faais isto patente, Que nem quero que o saiba o pai dos numes:

    Cale-se o caso a Jove onipotente, Porque se ele o souber, ter cimes. Vibrar contra mim seu raio ardente.

    [16] RECEIOS DE MUDANA NO OBJETO AMADO

    Temo que a minha ausncia e desventura Vo na tua alma, docemente acesa, Apoucando os excessos da firmeza, Rebatendo os assaltos da ternura:

    Temo que a tua singular candura Leve o Tempo fugaz nas asas presa, Que quase sempre o vcio da beleza Gnio mudvel, condio perjura:

    Temo; e se o fado mau, fado inimigo, Confirmar impiamente este receio, Espectro perseguidor, que anda comigo,

    Com rosto, alguma vez de mgoa cheio, Recorda-te de mim, dize contigo: Era fiel, amava-me, e deixei-o.[17] ACHANDO-SE AVASSALADO PELA FORMOSURA DE JNIA

    Enquanto o sbio arreiga o pensamento Nos fenmenos teus, oh Natureza, Ou solta rduo problema, ou sobre a mesa Volve o sutil geomtrico instrumento:

    Enquanto, alando a mais o entendimento, Estuda os vastos cus, e com certeza Reconhece dos astros a grandeza, A distncia, o lugar e o movimento:

    Enquanto o sbio, enfim, mais sabiamente Se remonta nas asas do sentido corte do Senhor onipotente:

  • Eu louco, eu cego, eu msero, eu perdido De ti s trago cheia, oh Jnia, a mente; Do mais e de mim mesmo ando esquecido.

    [18] INCITANDO-SE A GANHAR PELA OUSADIA A POSSE DA SUA AMADA

    Aflito corao, que o teu tormento, Que os teus desejos tcito devoras, E ao doce objeto, s perfeies que adoras, S te vs explicar co pensamento:

    Infeliz corao, recobra alento, Seca as inteis lgrimas, que choras; Tu cevas o teu mal, porque demoras Os voos ao ditoso atrevimento.

    Inflama surdos ais, que o medo esfria; Um bem to suspirado e to subido, Como se h de ganhar sem ousadia?

    Ao vencedor afoute-se o vencido; Longe o respeito, longe a cobardia; Morres de fraco? Morre de atrevido.

    [19] RECORDAES DE MARLIA AUSENTE

    Por esta solido, que no consente Nem do sol, nem da lua a claridade, Ralado o peito j pela saudade Dou mil gemidos a Marlia ausente: De seus crimes a mancha inda recente Lava Amor e triunfa da verdade; A beleza, apesar da falsidade, Me ocupa o corao, me ocupa a mente:

    Lembram-me aqueles olhos tentadores, Aquelas mos, aquele riso, aquela Boca suave, que respira amores...

    Ah! Trazei-me, iluses, a ingrata, a bela! Pintai-me vs, oh sonhos, entre flores Suspirando outra vez nos braos dela!

  • [20] DESCREVENDO OS ENCANTOS DE MARLIA

    Marlia, se em teus olhos atentara, Do estelfero slio reluzente Ao vil mundo outra vez o onipotente, O fulminante Jpiter baixara:

    Se o deus, que assanha as Frias, te avistara As mos de neve, o colo transparente, Suspirando por ti, do caos ardente Surgira luz do dia e te roubara:

    Se a ver-te de mais perto o sol descera, No ureo carro veloz dando-te assento At da esquiva Dafne se esquecera:

    E se a fora igualasse o pensamento, Oh alma da minha alma, eu te ofrecera Com ela a terra, o mar e o firmamento.

    [21] LAMENTA SOLITRIO A PERDA DA SUA AMADA

    O corvo grasnador e o mocho feio O sapo berrador e a r molesta, So meus nicos scios na floresta, Onde carpindo estou, de angstia cheio:

    Perdi todo o prazer, todo o recreio... Ah malfadado amor, paixo funesta! Urselina perdi, nada me resta; Madre terra! Agasalha-me em teu seio:

    Da vbora mordaz permite, oh Sorte, Que nos matos asprrimos que piso As plantas me envenene o tnue corte!

    Ah! Que das graas? Que do paraso? A minha alma onde est? Quem logra... oh Morte, Quem logra de Urselina o doce riso?

  • [22] O TEMPLO DO CIME

    Guiou-me ao templo do letal Cime A Desesperao, que em mim fervia; O cabelo de horror se me arrepia Ao recordar o formidvel nume:

    Fumegava-lhe aos ps tartreo lume, Crespa serpe as entranhas lhe roa; Eram ministros seus a Aleivosia, O Susto, a Morte, a Clera, o Queixume:

    Cruel! (grito em frentico transporte) Dos scios teus, no bratro gerados, D-me um s, que te invejo, a Morte, a Morte:

    Cessa (diz) os teus rogos so baldados. Querem ter-te no mundo Amor e a Sorte, Para consolao dos desgraados.

    [23] PUNGIDO DA REALIDADE, PROCURA ALVIO NAS ILUSES

    nsias terrveis, ntimos tormentos, Negras imagens, hrridas lembranas, Amargosas, mortais desconfianas, Deixai-me sossegar alguns momentos:

    Sofrei que logre os vos contentamentos Que sonham minhas doudas esperanas; A posse de alvo rosto e louras tranas, Onde presos esto meus pensamentos:

    Deixai-me confiar na formosura,Cruis! Deixai-me crer num doce engano. Blasonar de fantstica ventura.

    Que mais mal me quereis, que maior dano Do que vagar nas trevas da loucura, Aborrecendo a luz do desengano? [24] RECREIOS CAMPESTRES NA COMPANHIA DE MARLIA

    Olha, Marlia, as flautas dos pastores Que bem que soam, como esto cadentes!

  • Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, no sentes Os Zfiros brincar por entre as flores?

    V como ali beijando-se os Amores Incitam nossos sculos ardentes! Ei-las de planta em planta as inocentes, As vagas borboletas de mil cores!

    Naquele arbusto o rouxinol suspira, Ora nas folhas a abelhinha para, Ora nos ares sussurrando gira.

    Que alegre campo! Que manh to clara! Mas ah! Tudo o que vs, se eu te no vira, Mais tristeza que a morte me causara.

    [25] DESENGANADO DO AMOR E DA FORTUNA

    Fiei-me nos sorrisos da ventura, Em mimos feminis, como fui louco! Vi raiar o prazer; porm to pouco Momentneo relmpago no dura:

    No meio agora desta selva escura, Dentro deste penedo mido e oco, Pareo, at no tom lgubre e rouco, Triste sombra a carpir na sepultura:

    Que estncia para mim to prpria esta! Causais-me um doce e fnebre transporte, ridos matos, lbrega floresta!

    Ah! no me roubou tudo a negra sorte: Inda tenho este abrigo, inda me resta O pranto, a queixa, a solido e a morte.

    [26] CONSTNCIA DE DIDO

    Arde em vo por Elisa, em vo porfia Contra a constncia da herona augusta O brbaro senhor dfrica adusta, Que do sangue de Jove se gloria:

  • Em vo lhe ofrece a vasta monarquia, Aonde a espdua atlntica robusta Sustenta os cus, o caminhante assusta, E hrridos monstros indomveis cria:

    No cede Elisa; e vendo que furioso Usa da fora o lbico tirano, Ela intrpida escolhe um fim glorioso.

    Mentes, mentes, injusto mantuano! Dido infeliz foi vtima do esposo, Foi vtima da f, no do troiano.

    [27] AOS ANOS DA SENHORA D. MARIA JOAQUINA DE MELO

    H pouco a me das Graas, dos Amores,Gerada pela espuma cristalina, Baixou asas da etrea regio divina Nas asas dos Favnios voadores:

    Oh das margens do Tejo habitadores! Hoje torna a luzir (disse Ericina) O ledo instante em que nasceu Marina, nclito fruto de nclitos maiores:

    Do cu, do mar, da terra os soberanos Imprimindo-lhe encantos a milhares, Criaram nela a glria dos humanos:

    Eia, cantai-lhe os dotes singulares, Louvai seus olhos, aplaudi seus anos, Queimai-lhe aromas, erigi-lhe altares.

    [28] VOLVENDO A AMAR DE NOVO UMA DAMA DESPREZADA

    A teus mimosos ps, meu bem, rendido, Confirmo os votos, que a traio manchara; Fumam de novo incensos sobre a ara, Que a vil ingratido tinha abatido:

    De novo sobre as asas de um gemido Te ofreo o corao, que te agravara;

  • Saudoso torno a ti, qual torna cara Perdida ptria o msero banido:

    Renovemos o n por mim desfeito, Que eu j maldigo o tempo desgraado Em que a teus olhos no vivi sujeito;

    Concede-me outra vez o antigo agrado; Que mais queres? Eu choro, e no meu peito O punhal do remorso est cravado.

    [29] CELEBRA AS GRAAS DE ELMIRA

    Os suaves eflvios, que respira A flor de Vnus, a melhor das flores, Exalas de teus lbios tentadores, Oh doce, oh bela, oh desejada Elmira;

    A que nasceu das ondas, se te vira, A seu pesar cantara os teus louvores; Ditoso quem por ti morre damores! Ditoso quem por ti, meu bem, suspira!

    E mil vezes ditoso o que merece Um teu furtivo olhar, um teu sorriso, Por quem da me formosa Amor se esquece!

    O sacrlego ateu, sem lei, sem siso, Contemple-te uma vez, que ento conhece Que fora haver um Deus e um paraso.

    [30] ANTEPE O AMOR DE JNIA S HONRAS E RIQUEZAS

    Esses tesouros, esses bens sagrados Para os cegos mortais, bens de que abunda sia guerreira, Amrica fecunda, Filhos da terra, pelo sol gerados:

    Honras, grandezas, ttulos inchados. Servil incenso, adulao jucunda, No quero, no, que sobre mim difunda Amiga destra de risonhos Fados:

  • Quero que as Frias hrridas mescoltem, Quero que contra mim, que em vo deliro, Os racionais e irracionais se voltem:

    Quero da morte o formidvel tiro, Contanto, oh Jnia, que meus lbios soltem Nesses teus lbios o final suspiro. [31] CONSOLAES NA TIRANIA DE UMA INGRATA

    Meu frgil corao, para que adoras, Para que adoras, se no tens ventura? Se uns olhos, de quem ardes na luz pura, Folgando esto das lgrimas que choras?

    Os dias vs fugir, voar as horas Sem achar neles visos de ternura; E inda a louca esperana te figura O prmio dos martrios, que devoras!

    Desfaze as trevas de um funesto engano, Que no hs de vencer a inimizade De um gnio contra ti sempre tirano:

    A justa, a sacrossanta divindade No fora, no violenta o peito humano, E queres constranger-lhe a liberdade?

    [32] MORTE DE UMA FORMOSA DAMA

    Os garos olhos em que Amor brincava, Os rubros lbios em que Amor se ria, As longas tranas, de que Amor pendia, As lindas faces, onde Amor brilhava:

    As melindrosas mos, que Amor beijava, Os nveos braos, onde Amor dormia, Foram dados, Armnia, terra fria, Pelo fatal poder que a tudo agrava:

    Seguiu-te Amor ao tcito jazigo, Entre as irms cobertas de amargura; E eu que fao (ai de mim!) como os no sigo!

  • Que h no mundo que ver, se a formosura, Se Amor, se as Graas, se o prazer contigo Jazem no eterno horror da sepultura?

    [33] QUEIXUMES CONTRA UM RIVAL PREFERIDO

    No disfarces, Marlia; por Josino J nos teus olhos a paixo flameja; E em que parte estar, que se no veja O tenro deus, o algero menino? Inda que ostentes de nimo ferino, H quem teu nveo peito abrase e reja; Porm, Marlia, dize-me qual seja A causa justa de um amor to fino?

    Nesse, que as esquivanas te suaviza, Encontras uma frvida ternura, Um corao brioso, uma alma lisa?

    Seus mritos quais so?... Mas oh loucura! Quem feliz, que mritos precisa? Que dons h de mister quem tem ventura?

    [34] A URSELINA DISTANTE

    Urselina gentil, benigna e pura, Eis nas asas sutis de um ai cansado A ti meu corao voa alagado Em torrentes de sangue e de ternura:

    Pe-lhe os olhos, meu bem; v com brandura Seu miservel, doloroso estado; Que nas garras da morte j cravado A f, que te jurava, inda te jura:

    Pe-lhe os olhos, meu bem, suavemente, Pe-lhe os mimosos dedos na ferida, Palpa de Amor a vtima inocente:

    E por milagre deles, oh querida, Vers cerrar-se o golpe e de repente Em ondas de prazer tornar-lhe a vida.

  • [35] QUEIXAS CONTRA A INGRATIDO DE MARLIA

    Em veneno letifero nadando No roto peito o corao me arqueja; E ante meus olhos hrrido negreja De mortais aflies espesso bando.

    Por ti, Marlia, ardendo e delirando Entre as garras asprrimas da Inveja, Amaldioo Amor, que ri e adeja Pelos ares, cos Zfiros brincando.

    Recreia-se o traidor com meus clamores, E meu cioso pranto... oh Jove, oh nume Que vibras os coriscos vingadores!

    Abafa as ondas do tartreo lume, Que para os que provocam teus furores Tens inferno pior, tens o cime.

    [36] OFERENDA A NISE

    Do arbusto, oh Nise, a Vnus consagrado Envisquei hoje um trmulo raminho; Pousou nele este incauto passarinho, E pelos tenros ps ficou pegado:

    Ento, depois de o ter na mo fechado, Corri, dizendo alegre: - Eu adivinho Que h de Nise estimar, que o meu carinho Lhe dedique este msico do prado.

    Disse; e no mesmo instante a simples ave Desata a linda voz e principia Um canto harmonioso, agudo e grave:

    Ah! Por ser tua entendo que dizia Que a priso mais gostosa e mais suave Que a prpria liberdade encontraria!

  • [37] INSNIA

    Oh retrato da morte, oh Noute amiga Por cuja escurido suspiro h tanto! Calada testemunha de meu pranto, De meus desgostos secretria antiga!

    Pois manda Amor, que a ti somente os diga, D-lhes pio agasalho no teu manto; Ouve-os, como costumas, ouve enquanto Dorme a cruel, que a delirar me obriga:

    E vs, oh cortesos da escuridade, Fantasmas vagos, mochos piadores, Inimigos, como eu, da claridade!

    Em bandos acudi aos meus clamores; Quero a vossa medonha sociedade, Quero fartar meu corao de horrores. [38] FESTEJANDO O DIA NATALCIO DE ANARDA

    Vinde, Prazeres, que por entre as flores Nos jardins de Citera andais brincando, E vs, despidas Graas, que danando Trinais alegres sons encantadores:

    Deusa dos gostos, deusa dos amores, Ah! dos filhinhos teus ajunta o bando, E vem nas asas de Favnio brando Dar fora, dar beleza a meus louvores.

    Da linda Anarda minha voz aspira A cantar o natal; tu, por clemncia, O teu fiel cantor, deidade, inspira:

    Do trcio vate empresta-me a cadncia, E faze que merea a minha lira Os cndidos sorrisos da inocncia.

    [39] LASTIMANDO-SE DA INGRATIDO DE NISE

    Canta ao som dos grilhes o prisioneiro, Ao som da tempestade o nauta ousado,

  • Um, porque espera o fim do cativeiro, Outro, antevendo o porto desejado:

    Exposta a vida ao tigre mosqueado Gira sertes o sfrego mineiro, Da esperana dos lucros encantado, Que anima o peito vil e interesseiro:

    Por entre armadas hostes destemido Rompe o sequaz do horrfico Mavorte, Co triunfo, coa glria no sentido:

    S eu (tirano Amor! tirana sorte!) S eu por Nise ingrata aborrecido Para ter fim meu pranto espero a morte.

    [40] O CIME

    Entre as tartreas forjas, sempre acesas, Jaz aos ps do tremendo estgio nume, O carrancudo, o rbido Cime, Ensanguentadas as corruptas presas:

    Traando o plano de cruis empresas, Fervendo em ondas de sulfreo lume, Vibra das fauces o letal cardume De hrridos males, de hrridas tristezas;

    Pelas terrveis Frias instigado L sai do inferno e para mim se avana O negro monstro, de spides toucado:

    Olhos em brasa de revs me lana; Oh dor! Oh raiva! Oh morte!... Ei-lo a meu lado, Ferrando as garras na viprea trana.

    [41] A ESQUIVANA DE ARMIA

    Pela porta de ferro, onde ululando O co trifauce est perpetuamente, Entraste, Orfeu, coa citara eloquente Os monstros infernais domesticando:

  • Penedos com teus sons amontoando L ergues Thebas, Anfion cadente; Pulsa Arion a lira e de repente V delfins, v trites no mar danando:

    Tu, linguagem do cu, tu, melodia, A tudo encantas, para tudo s forte. Menos para aplacar a ingrata Armia:

    Mais fcil te h de ser, domando a sorte, Ir de novo tartrea monarquia Ver outra vez o crcere da morte!

    [42] DESENGANO DE AMOR

    Triste quem ama, cego quem se fia Da feminina voz na v promessa! Aspira a v-la estvel! Mais depressa O facho apagar, que espalha o dia:

    Alada exalao, que na sombria Tcita noute os ares atravessa, Foi comigo a paixo volvel dessa Que o peito me afagava e me feria:

    Do desengano o blsamo lhe aplico, E a teus laos, Amor, sem medo exponho Dos benficos cus o dom mais rico:

    Vejo mil Circes plcido, risonho; E se f me prometem, ouo, e fico Como quem despertou de areo sonho.

    [43] AMOR TRIUNFANDO DA MAGIA

    Busquei num ermo Algnia feiticeira, Que de abrasado feixe a par jazia; Fui ver se atro conjuro me extorquia Do lao antigo esta alma prisioneira:

    Expus-lhe minha f, minha cegueira,

  • Tracei meus males e a rugosa estria Cedendo s ternas mgoas, que me ouvia, Cuspiu trs vezes na voraz fogueira:

    Trmulas preces murmurou e eu mudo; Eis que as melenas em sinal despanto Erria com semblante carrancudo:

    Meu rito vo (me diz) e vo teu pranto; O poderoso Amor zomba de tudo, No vence encanto algum dAmor o encanto.

    [44] A RAZO DOMINADA PELA FORMOSURA

    Importuna Razo, no me persigas; Cesse a rspida voz que em vo murmura; Se a lei de Amor, se a fora da ternura Nem domas, nem contrastas, nem mitigas:

    Se acusas os mortais e os no abrigas, Se (conhecendo o mal) no ds a cura, Deixa-me apreciar minha loucura. Importuna Razo, no me persigas.

    E teu fim, teu projeto encher de pejo Esta alma, frgil vtima daquela Que, injusta e vria, noutros laos vejo:

    Queres que fuja de Marlia bela, Que a maldiga, a desdenhe; e o meu desejo carpir, delirar, morrer por ela.

    [45] QUEIXUMES CONTRA OS DESPREZOS DA SUA AMADA

    Oh trevas, que enlutais a natureza, Longos ciprestes desta selva anosa, Mochos de voz sinistra e lamentosa, Que dissolveis dos fados a incerteza:

    Manes, surgidos da morada acesa Onde de horror sem fim Pluto se goza, No aterreis esta alma dolorosa,

  • Que mais triste que vs minha tristeza:

    Perdi o galardo da f mais pura, Esperanas frustrei do amor mais terno, A posse de celeste formosura:

    Volvei pois, sombras vs, ao fogo eterno; E lamentando a minha desventura Movereis a piedade o mesmo inferno.

    [46] VISO AMOROSA

    No carro de marfim sentada a Lua Da antiga me das sombras triunfava, Quando a furtivos gostos me guiava Amor, a quem me entrega a sorte crua:

    Hoje (me disse o nume) h de ser tua A ninfa mais gentil, que o Tejo lava; No deram tanta glria minha aljava Nem Vnus a carpir, nem Ttis nua:

    Ali dorme o teu bem... v, que momento!... Olho, corro anelante, aos ps lhe caio, Mas tentando abra-la, abrao o vento:

    Meu peito arqueja em sbito desmaio; Eis que soa esta voz de horrendo acento: Profano! Expia o crime e teme o raio!

    [47] RECORDAES DE UMA INGRATA

    Inda em meu frgil corao fumega A cinza desse fogo em que ele ardia; A memria da tua aleivosia Meu sossego inda aqui desassossega:

    A vil traio, que as almas nos despega, No tem cabal poder na simpatia; Gasta o mar importuno a rocha fria,

  • Melhor que o desengano a paixo cega:

    Bem como o flavo sol, que a terra abraa, Por mais que o veja densamente oposto, Atrado vapor fere e repassa:

    Tal, para misturar gosto e desgosto, Na sombra de teus crimes brilha a graa, Com que o prdigo cu criou teu rosto.

    [48] DESEJOS DA PRESENA DO OBJETO AMADO

    J o Inverno espremendo as cs nevosas, Geme, de horrendas nuvens carregado; Luz o areo fuzil, e o mar inchado Investe ao polo em serras escumosas;

    Oh benignas manhs! tardes saudosas, Em que folga o pastor, medrando o gado, Em que brincam no ervoso e frtil prado Ninfas e Amores, Zfiros e Rosas!

    Voltai, retrocedei, formosos dias: Ou antes vem, vem tu, doce beleza Que noutros campos mil prazeres crias;

    E ao ver-te sentir minha alma acesa Os perfumes, o encanto, as alegrias Da estao, que remoa a natureza.

    [49] CONJUROS A ANARDA, PARA QUE RETRIBUA O SEU AMOR

    Mimosa, linda Anarda, atende, atende As doces mgoas do rendido Elmano; Coum meigo riso, coum suave engano Consola o triste amor, que no te ofende: De teus cabelos ondeados pende Meu corao, fiel para seu dano; Coa luz dos olhos teus Cupido ufano Sustenta o puro fogo, em que me acende:

    Causa gentil das lgrimas que choro,

  • A tudo te antepe minha ternura, E quanto adoro o cu, teu rosto adoro:

    O golpe, que me deste, anima e cura... Mas ai! Que em vo suspiro, em vo te imploro: No pertence a piedade formosura.

    [50] DELRIO AMOROSO

    Meus olhos, atentai no meu jazigo, Que o momento da morte est chegado; L soa o corvo, intrprete do fado; Bem o entendo, bem sei, fala comigo:

    Triunfa, Amor, gloria-te inimigo; E tu, que vs com dor meu duro estado, Volve terra o cadver macerado, O despojo mortal do triste amigo:

    Na campa, que o cobrir, piedoso Albano, Ministra aos coraes, que Amor flagela, Terror, piedade, aviso e desengano:

    Abre em meu nome este epitfio nela: Eu fui, ternos mortais, o terno Elmano; Morri dingratides, matou-me Isbela.

    [51] DEPLORANDO A MORTE DE NISE

    J no calado monumento escuro Em cinzas se desfez teu corpo brando; E pude eu ver, oh Nise, o doce, o puro Lume dos olhos teus ir-se apagando!

    Hrridas brenhas, solides procuro, Grutas sem luz frentico demando, Onde maldigo o fado acerbo e duro, Teu riso, teus afagos suspirando:

    Darei da minha dor contnua prova, Em sombras cevarei minha saudade, Insacivel sempre e sempre nova:

  • T que torne a gozar da claridade Da luz, que me inflamou, que se renova No seio da brilhante eternidade.

    [52] EMPREGA O PODER DA MAGIA PARA DOMAR A RESISTNCIA DA SUA AMADA

    Oleno, meia-noute est caindo: Acende a vela azul, queima as verbenas, Torra os ossos de r, chamusca as penas Da esquerda gralha, que apanhei dormindo:

    Co p, coa vara, o ar e o cho ferindo Enquanto o filtro portentos ordenas, Eu irei, e a meu brado ouvido apenas Viro do inferno as Grgonas surgindo:

    Eia, avante o prestgio, no cessemos Da irresistvel mgica porfia, Contra quem v sem d nossos extremos;

    Que se hoje o fel tragamos da agonia, Amanh doce nctar libaremos Tu nos braos de Nise, eu nos de Armia.

    [53] IMPRECAES CONTRA UMA INGRATA (Improvisado)

    Vai-te, fera cruel, vai-te, inimiga, Horror do mundo, escndalo da gente, Que um frreo peito, uma alma que no sente, No merece a paixo, que me afadiga:

    O cu te falte, a terra te persiga, Negras frias o inferno te apresente, E da baa tristeza o voraz dente Morda o vil corao, que Amor no liga:

    Disfarados, mortferos venenos Entre licor suave em urea taa Mo vingativa te prepare ao menos:

    E seja, seja tal tua desgraa,

  • Que ainda por mais leves, mais pequenos Os meus tormentos invejar te faa. [54] PROTESTOS DE CONSTNCIA ETERNA

    No temas, oh Ritlia, que o choroso, O desvelado Elmano a f quebrante, No desconfies do singelo amante, Que tu podes, tu s, fazer ditoso:

    Serena o corao tenro e cioso, Que inda minhalma te h de ser constante Se, primeiro que a tua, andar errante Pelas margens do Letes preguioso:

    Naquela ao sol inacessvel parte, Dos manes taciturnos entre o bando Ao negro esquecimento hei de furtar-te:

    E o pensamento algero voando Por abafados ares, visitar-te Dali vir, meu bem, de quando em quando.

    [55] INVOCAO NOUTE

    Oh deusa, que proteges dos amantes O destro furto, o crime deleitoso, Abafa com teu manto pavoroso Os importunos astros vigilantes:

    Quero adoar meus lbios anelantes No seio de Ritlia melindroso; Estorva que os maus olhos do invejoso Turbem damor os sfregos instantes:

    Ttis formosa, tal encanto inspire Ao namorado sol teu nveo rosto, Que nunca de teus braos se retire!

    Tarde ao menos o carro Noute oposto, At que eu desfalea, at que expire Nas ternas nsias, no inefvel gosto.

  • [56] VNUS RECONHECENDO A SUPERIORIDADE DA BELEZA DE NISE

    Aquela, que na esfera luminosa Precedendo a manh, qual astro brilha, Me dos Amores, das espumas filha, Que o mar na concha azul passeia airosa: Apenas viu sorrir Nise formosa, A quem dos coraes o deus se humilha, Do cinto desatando a urea presilha, No regao lho ps, leda e mimosa:

    No te , bem sei (lhe diz) no te preciso; Para atrair vontades ternura Basta-te um gesto, basta-te um sorriso:

    Mas deves possu-lo, oh ninfa pura, Como trofu, que d ao mundo aviso De que Vnus te cede em formosura.

    [57] VISO REALIZADA

    Sonhei que a mim correndo o gndeo nume Vinha coa Morte, co Cime ao lado, E me bradava: - Escolhe, desgraado, Queres a Morte, ou queres o Cime?

    No pior daquela fouce o gume, Que a ponta dos farpes, que tens provado; Mas o monstro voraz, por mim criado, Quanto horror h no inferno em si resume.

    Disse; - e eu dando um suspiro: Ah! no mespantes Coa vista dessa fria!... Amor, clemncia! Antes mil mortes, mil infernos antes!

    Nisto acordei com dor, com impacincia; E no vos encontrando, olhos brilhantes, Vi que era a minha morte a vossa ausncia!

    [58] O POETA ASSETEADO POR AMOR

    Oh cus! Que sinto nalma! Que tormento!

  • Que repentino frenesi me anseia! Que veneno a ferver de veia em veia Me gasta a vida, me desfaz o alento!

    Tal era, doce amada, o meu lamento; Eis que esse deus, que em prantos se recreia, Me diz: - A que se expe quem no receia Contemplar Urselina um s momento!

    Insano! Eu bem te vi dentre a luz pura De seus olhos travessos e coum tiro Puni tua sacrlega loucura:

    De morte, por piedade hoje te firo; Vai pois, vai merecer na sepultura A tua linda ingrata algum suspiro.

    [59] RETRATO DE UMA FORMOSURA ESQUIVA (Improvisado)

    Da minha ingrata Flrida gentil Os verdes olhos esmeraldas so; de cndida prata a lisa mo, Onde eu dum beijo passaria a mil:

    A trana, cor do sol, rede sutil Em que se foi prender meu corao, douro, o pai da tmida ambio, Prole fatal do clido Brasil:

    Seu peito delicado e tentador poro de alabastro, a quem jamais Penetraram farpes do deus traidor:

    Mas como h de a tirana ouvir meus ais, Como h de esta cruel sentir amor, Se composta de pedras e metais!

    [60] PREDIO CUMPRIDA

    Tragado o peito de cruis pesares, Em doloroso e rbido transporte, Contra Amor, de quem pende a minha sorte,

  • Voavam meus queixumes a milhares:

    Eis que, desde os azuis serenos ares, Me grita o deus: - Tua alma se conforte, Que nem sempre o Furor, o Estrago, a Morte Ministros ho de ser dos meus altares:

    Aquela paz, aquele gosto, aquela Ventura, que at agora te hei negado, Guardei nos olhos de Ritlia bela.

    Disse, e limpando o rosto amargurado, Corro da ninfa aos ps, encontro nela Quanto Amor pode dar, e o Cu, e o Fado. [61] PRETENDENDO ABRANDAR A ESQUIVANA DE URSELINA

    Desprega as asas, tmida Esperana, Minha consolao, no desanimes: Adeja, voa; os cultos no so crimes, Nem Jove a quem o adora os raios lana:

    Com ais de um corao que no descansa, Terno, benigno d vai ver se imprimes Na formosa Urselina, ou se reprimes Tnue poro de rspida esquivana:

    Chorosas preces, trmulo respeito Exercita com ela, e tu, mimoso Cndido Amor, que escravo me tens feito,

    Para adoar-lhe o gnio desdenhoso Deixa-lhe os olhos, salta-lhe no peito, No perdes nada, e fazes-me ditoso.

    [62] DESESPERANA

    Nise, das Graas e de Amor tesouro, Voto implorado me firmava um dia. Na face meiga a cndida alegria, Aos ventos derramada a trana douro:

    Eis que junto de ns ave de agouro Trs vezes esvoaa, pousa e pia; Os ares prenhe sombra enluta, esfria,

  • E o raio estragador cai sobre um louro.

    No repentino horror, que a cena altera, Quereria talvez dizer-me o fado Que no tinha o meu bem alma sincera?

    Ah! S quis persuadir um desgraado Que de o felcitar capaz no era Nem a glria de ser por Nise amado.

    [63] GLOSANDO O MOTE: MORTE, JUZO, INFERNO E PARASO

    Em que estado, meu bem, por ti me vejo, Em que estado infeliz, penoso e duro! Delido o corao de um fogo impuro, Meus pesados grilhes adoro e beijo: Quando te logro mais, mais te desejo, Quando te encontro mais, mais te procuro, Quando mo juras mais, menos seguro Julgo esse doce amor, que adorna o pejo.

    Assim passo, assim vivo, assim meus fados Me desarreigam dalma a paz e o riso, Sendo s meu sustento os meus cuidados:

    E, de todo apagada a luz do siso, Esquecem-me (ai de mim!) por teus agrados Morte, Juzo, Inferno e Paraso.

    [64] GLOSANDO O MOTE: OS ROUBOS, QUE ME FEZ A M VENTURA

    Eu deliro, Gertrria, eu desespero No inferno de suspeitas e temores; Eu da morte as angstias e os horrores Por ti mil vezes sem morrer tolero:

    Pelo cu, por teus olhos te assevero Que ferve esta alma em cndidos amores; Longe o prazer de ilcitos favores! Quero o teu corao, mais nada quero.

    Ah! No sejas tambm qual comigo

  • A cega divindade, a Sorte dura, A vria deusa, que me nega abrigo!

    Tudo perdi; mas valha-me a ternura, Amor me valha e pague-me contigo Os roubos, que me fez a m ventura.

    [65] GLOSANDO O MOTE: NADA SE PODE COMPARAR CONTIGO

    O ledo passarinho, que gorjeia Dalma exprimindo a cndida ternura, O rio transparente, que murmura, E por entre pedrinhas serpenteia:

    O sol, que o cu difano passeia, A lua, que lhe deve a formosura, O sorriso da aurora alegre e pura, A rosa, que entre os zfiros ondeia:

    A serena, amorosa primavera, O doce autor das glrias que consigo, A deusa das paixes e de Citera:

    Quanto digo, meu bem, quanto no digo, Tudo em tua presena degenera, Nada se pode comparar contigo.

    [66] ENCARECENDO AS PERFEIES DARMNIA

    Oh terra, onde os seus dons, os seus favores Derrama de ureo cofre a Natureza, Que na estao de gelo e da tristeza Borda teus prados de verdura e flores:

    Oh clima dos heris e dos amores, Esmalte e perfeio da redondeza, Tu, que abrigas em ti tanta beleza, Tantos olhos gentis e encantadores:

    Tu, que do grego errante e cauteloso, Da mo que ao nada reduziu Dardnia, Tens em teus campos monumento honroso:

  • Deles todos, oh ptria, oh Lusitnia, O do Tejo mais ledo, mais vioso; Graas ao riso da celeste Armnia.

    [67] CONVCIOS A UM SEDUTOR INTERESSEIRO E A UMA BELEZA INGRATA

    Perverso estragador da formosura, Alma corrupta, desleal, impia, Onde interesse, amor e aleivosia Jazem com feia e srdida mistura:

    O fruto que produz tua ternura So (que assombro!) a vileza, a tirania; Sacrificas a tua idolatria Com tuas prprias mos em ara impura:

    Que bruto corao, que torpe amante Vende o seu gosto? Ah msera beleza, Eu te choro, eu te choro, outrem te cante:

    Excedeu-se em formar-te a Natureza; Divina te julguei pelo semblante, Humana vejo que s pela fraqueza. [68] O POETA AVASSALADO PELOS OLHOS DE CORINA

    Vendo o soberbo Amor, que eu resistia Ao seu poder com nimo arrogante, Mostrou-me um doce, anglico semblante, Que a prpria Vnus invejar devia:

    Minha nscia altivez, minha ousadia Em submisso troquei no mesmo instante; E o deus tirano, achando-se triunfante, Com voz insultadora me dizia:

    Tu, que escapar s minhas setas queres, Vil mortal, satisfaze o teu desejo. V, v Corina, e foge, se puderes.

    Amor, (lhe respondi) rendido a vejo; Adoro os olhos seus, com que me feres, Venero as tuas leis, teus ferros beijo.

  • [69] PREFERE AOS BENS DO MUNDO OS AGRADOS DE MARLIA

    Honroso louro o capito valente Ganhe embora na frvida peleja; Seu nome a fama espalhe, e geralmente Com pasmo e com respeito ouvido seja: Embora o torpe avaro, o vil demente, Que para os ferrolhar mil bens deseja, De ricas peas de metal fulgente Seus amplos cofres atulhados veja:

    Embora de lisonjas incensado Tenha o monarca s suas leis sujeito O povo mais feliz, mais afamado:

    Que a mim, para que viva satisfeito, Me basta possuir teu doce agrado, Ter lugar, oh Marlia, no teu peito.

    [70] UMA ESQUIVANA VENCIDA PELO PODER DE AMOR

    Deitado sobre a relva Amor estava Dormindo ao p duma rvore sombria, E num dos troncos pendurado havia Prenhe de setas a danosa aljava: Flora ento, que disenta blasonava, E do infeliz Dorindo escarnecia, Com soberba, sacrlega ousadia, Quis partir os farpes, que detestava:

    Mas apenas lhe toca, a mo ferindo No bico de um dos ferros penetrantes, Grita, lavado em pranto o gesto lindo:

    Ai de mim! Firme exemplo dos amantes, Onde ests? Vem, no temas, vem, Dorindo, Que eu j no sou cruel como era dantes.

    [71] S MOS DE MARLIA

  • De cima destas penhas escabrosas, Que pouco a pouco as ondas tm minado, Da lua co reflexo prateado Distingo de Marlia as mos formosas:

    Ah! Que lindas que so, que melindrosas! Sinto-me louco, sinto-me encantado; Ah! Quando elas vos colhem l no prado, Nem vs, lrios, brilhais, nem vs, oh rosas!

    Deuses! Cus! Tudo o mais que tendes feito Vendo to belas mos, me d desgosto; Nada, onde elas esto, nada perfeito.

    Oh quem pudera uni-las ao meu rosto! Quem pudera apert-las no meu peito! Dar-lhe mil beijos, e expirar de gosto!

    [72] AO VER O SEMBLANTE DA SUA AMADA ANUVEADO DE TRISTEZA

    Antes eu visse matador cutelo Por mo ferina contra mim vibrado, Ou perecesse o peito esmigalhado Pelos golpes de rgido martelo:

    Antes das Frias o infernal flagelo Sentisse, como Orestes malfadado, E no das sombras daflio turbado O cu, Marlia, de teu rosto belo!

    Das faces orvalhada a neve pura, Rouca a voz e na terra a vista presa, Te observo, sem que morra, damargura!

    Tu desta sorte, angelical beleza? Ai de mim! Quem ter prazer, ventura, Se at pode no cu caber tristeza?

    [73] O TEMPO OFERECE AO POETA SEU AUXLIO CONTRA AMOR

    De emaranhadas cs o rosto cheio, De assacalada fouce armado o brao, Giganteia estatura, aspecto bao,

  • Um velho em sonhos vi, medonho e feio:

    No tenhas, oh mortal, de mim receio; O Tempo sou (me diz) eu despedao Os colossos, os mrmores desfao, Prostro a vaidade, a formosura afeio:

    Mas sabendo a razo de teus pecares, Pela primeira vez enternecido, A falar-te baixei dos tnues ares:

    Sofre, por ora, o jugo de Cupido; Que eu farei, quando menos o cuidares, Que te escape Natrcia do sentido.

    [74] GOZO FANTSTICO

    Debalde um vu cioso, oh Nise, encobre Intactas perfeies ao meu desejo; Tudo o que escondes, tudo o que no vejo A mente audaz e algera descobre:

    Por mais e mais que as sentinelas dobre A sisuda Modstia, o cauto Pejo, Teus braos logro, teus encantos beijo, Por milagre da ideia afouta e nobre:

    Inda que prmio teu rigor me negue, Do pensamento a indmita porfia Ao mais doce prazer me deixa entregue:

    Que pode contra Amor a tirania, Se as delcias, que a vista no consegue, Consegue a temerria fantasia?

    [75] CEDENDO A SEU PESAR VIOLNCIA DO DESTINO

    Das faixas infantis despido apenas, Sentia o sacro fogo arder na mente; Meu tenro corao inda inocente, Iam ganhando as plcidas Camenas:

    Faces gentis, anglicas, serenas, De olhos suaves o volver fulgente,

  • Da ideia me extraam de repente Mil simples, maviosas cantilenas.

    O tempo me soprou fervor divino, E as Musas me fizeram desgraado, Desgraado me fez o deus menino:

    A Amor quis esquivar-se, e ao dom sagrado: Mas vendo no meu gnio o meu destino, Que havia de fazer? Cedi ao fado.

    [76] QUEIXUMES CONTRA A MUDANA DE MARLIA

    Enquanto muda jaz, e jaz vencida Do sono, que a restaura, a Natureza, Aumento de meus males a graveza, Eu, desgraado, que aborreo a vida.

    Velando est minha alma escurecida Envolta nos horrores da tristeza, Qual tocha, que entre tmulos acesa, Espalha feia luz amortecida:

    Velando est minha alma esto com ela Velando Amor, velando a Desventura, Algozes com que a Sorte me flagela:

    Preside ao ato acerbo a formosura, Marlia desleal, Marlia, aquela Que to branda me foi, que me to dura.

    [77] AS GRAAS DE FELISA PREFERVEIS S HONRAS E RIQUEZAS

    Incense da Fortuna os vos altares Destra venal de astuto lisonjeiro; Raios vibrando intrpido guerreiro De nuvens de atro fumo assombre os ares: Domando a fria de assanhados mares Sagaz comerciante interesseiro, Pejado o bojo do baixel veleiro Opulento sade os ptrios lares:

  • A deusa, que por bocas cem respira Aclame o sbio que medita e vela, Frtil em produes que o mundo admira:

    Minha alma s se apraz, s se desvela Na glria de cantar ao som da lira Os olhos de Felisa, as graas dela.

    [78] PEDE A MARLIA CONSOLAES CONTRA A RUDEZA DOS FADOS

    Minha alma se reparte em pensamentos Todos escuros, todos pavorosos; Pondero quo terrveis, quo penosos So, existncia minha, os teus momentos:

    Dos males que sofri, cruis, violentos, A Amor e aos Fados contra mim teimosos, Outros inda mais tristes, mais custosos Deduzo com fatais presentimentos.

    Rasgo o vu do futuro e l diviso Novos danos urdindo Amor e os Fados, Para roubar-me a vida aps do siso.

    Ah! Vem, Marlia, vem com teus agrados, Com teu sereno olhar, teu brando riso Furtar-me a fantasia a mil cuidados.

    [79] QUEIXANDO-SE DOS DESDNS DE UMA INGRATA

    Por indstria de uns olhos, mais brilhantes Que o refulgente sol dos cus no cume, Jaz preso entre os grilhes do idlio nume O mais terno e sensvel dos amantes:

    Uma ingrata exemplar das inconstantes, Por gnio, por sistema, ou por costume, Todo o fel da tristeza e do cime Lhe verte sobre os mseros instantes:

    Se com piedoso afago lhe suaviza, Lhe engana alguma vez a dor, que o mata,

  • Mil vezes com desdns o tiraniza:

    O lao aperta, e sbito o desata... Ah doce encanto meu, gentil Felisa, O desgraado eu sou, tu s a ingrata.

    [80] O CIME E FILENA CONJURADOS EM DANO DO POETA

    Em sonhos na escaldada fantasia Vi, que torvo drago de olhos fogosos Com afiados dentes sanguinosos As tpidas entranhas me rompia:

    Alva ninfa lou, que parecia A me dos Amorinhos melindrosos, Raivosa contra mim, cos ps mimosos Mais o drago faminto embravecia:

    De mrmore a meu pranto, a meu queixume, Deste mal, deste horror sem d, sem pena, Via dos olhos meus sumir-se o lume:

    Ah! No foi iluso to triste cena: O monstro devorante era o Cime, A cruel, que o pungia, era Filena.

    [81] ANELANDO VER A IMAGEM DA AMADA AUSENTE

    Doce nume damor, se bela Armia Consagrei por teu mando a liberdade, Doce nume damor, se tens piedade Do corao, que Elmano em ais te envia:

    Entre o calado horror da noute fria A minha amada, a minha divindade, (Com seus olhos dourando a escuridade) Pinta-me em ledo sonho a fantasia:

    Assome to risonha e to brilhante Como a rsea manh no cu jucundo, E as lgrimas enxugue ao triste amante.

  • Contarei ao meu bem meu mal profundo, E que vivo sem ela absorto, errante, Perdido, amargurado e s no mundo. [82] A PAIXO TRIUNFANTE APESAR DO RACIOCNIO

    O cu no te dotou de formosura, De atrativo exterior, e a Natureza Teu peito inficionou coa vil torpeza De ingrata condio, falaz e impura:

    Influiu-me os extremos da ternura A constncia, o fervor e a singeleza, Esses dons mais gentis que a gentileza, Dons, que o tempo fugaz no desfigura:

    Apesar da traio, do fingimento Que te infama e desluz, se enleva e para Em ti, alma infiel, meu pensamento:

    Nas paixes a razo nos desampara; Se a razo presidisse ao sentimento, Tu morreras por mim, eu no te amara.

    [83] NA AUSNCIA DE TIRSEIA

    s margens do Regaa cristalino Nos olhos de Tirseia ardi contente, Brandos olhos gentis, dos quais pendente Estava o meu prazer e o meu destino:

    O tenro deus, o cndido menino Pagava meu fervor puro, inocente; Mas cedo me impeliu a sorte inclemente, Para vs, tristes margens, que abomino:

    Aqui desde que aponta a luz febeia De lugar em lugar deliro e corro, Com suspeitas nutrindo a turva ideia.

    No posso contra Amor achar socorro; Perdi todo o meu bem, perdi Tirseia, Ela vive sem mim, sem ela eu morro.

  • [84] INSUFICINCIA DOS DITAMES DA RAZO CONTRA O PODER DE AMOR

    Sobre estas duras, cavernosas fragas, Que o marinho furor vai carcomendo, Me esto negras paixes nalma fervendo Como fervem no pego as crespas vagas: Razo feroz, o corao me indagas, De meus erros a sombra esclarecendo, E vs nele (ai de mim!) palpando e vendo De acudas nsias venenosas chagas:

    Cego a meus males, surdo a teu reclamo, Mil objetos de horror coa ideia eu corro, Solto gemidos, lgrimas derramo:

    Razo, de que me serve o teu socorro? Mandas-me no amar, eu ardo, eu amo; Dizes-me que sossegue, eu peno, eu morro.

    [85] Como no mundo Amor quinto elemento, Que tem dos gostos uma e outra chave.

    Pereira, Uliss.

    Debalde contra Amor seu fel derrama Gnio feroz natureza oposto; Crua esfinge infernal de humano rosto, Ou fria acesa na tartrea flama.

    Esse, a que astuto engano um vcio chama, Benigno sentimento em ns disposto, Brota o desejo percursor do gosto, Cria o preciso ardor, que a tudo inflama:

    Doura a negra existncia ao desgraado, Do peito arranca as serpes da tristeza, A que inda o mais feliz no foi vedado:

    Ventura, ao doce Amor tu andas presa; E de todo o vivente instinto e fado, teu quinto elemento, oh Natureza!

  • [86] AMOR TRIUNFANDO DA AUSNCIA E DO TEMPO

    Tu, que na fouce de sanguneo gume Tens fera, estragadora onipotncia, Como sofres de Amor a resistncia, Oh Tempo devorante, oh impio nume?

    E tu, que apagas da ternura o lume, Que tornas o desvelo em sonolncia,Filha do Letes esquecida Ausncia, Onde est teu poder e o teu costume?

    Nos outros co prazer morre a firmeza, Arrefece a paixo de dia em dia, Longe dos olhos porque fora acesa:

    Mas em mim terno ardor j mais esfria; Por glria da constncia, ou da beleza, Triunfam no meu peito Amor e Armia.

    [87] INSENSATEZ DOS CIMES

    Que ideia horrenda te possue, Elmano? Que ardente frenesi teu peito inflama? A razo te alumie, apaga a chama, Reprime a raiva do cime insano:

    Esperanas consome, ou vive ufano, Ah! Foge, ou cinge da vitria a rama; Ama-te a bela Armia, ou te no ama? Seus ais so da ternura, ou so do engano?

    Se te ama, no consternem teus queixumes Os olhos de que ests enfeitiado, Do puro cu de Amor benignos lumes:

    Se outro nalma dArmia anda gravado, Que fruto hs de colher dos vos cimes? Ser odioso, alm de desgraado.

    [88] DITADO PARA A CAMPA

    Sobranceiro ao poder e s leis da sorte,

  • Amor ouviu meus ais, cumpriu meu gosto: J, j sinto nos olhos, peito e rosto A nvoa, as nsias, o suor da morte:

    A terra mo piedosa me transporte, E depois que em sepulcro mal composto Der ao frio cadver frio encosto, Estes versos por d na pedra corte:

    Aqui se esconde Elmano; alegre estado Algum tempo deveu amiga estrela, Foi de Armia amador, de Armia amado:

    Desuniu duro caso o triste e a bela; Viver sem ela lhe ordenava o fado; Quis antes o infeliz morrer por ela.[89] MEMRIA DE MARLIA

    ureo fio sutil, que teve unida A corpo imaculado uma alma pura, De mimoso estalou, e a sepultura Ficou do teu despojo enriquecida:

    De mil graas lustrosa a doce vida Subiu ao cume da imortal ventura; Dous numes - Inocncia e Formosura - Vo dando ao mundo eterna despedida:

    L onde a morte e a terra te devoram, Na estncia do silncio e da tristeza, Inda, Marlia, coraes te adoram:

    Longe da tua divinal beleza Aos olhos que te viram, que te choram, Um tmulo parece a natureza.

    [90] A ARMIA AUSENTE

    Vem, suspirada, carinhosa Armia, Remir o escravo, consolar o amante, Que aflito, que saudoso a cada instante Te envia um pensamento, um ai te envia.

    D-me nos olhos teus mais puro o dia,

  • E flores mais gentis em teu semblante Que a flor de citereia, a flor brilhante, Que o mesmo Abril prefere a quantas cria:

    Inimiga de Amor a tardana: No tardes, no, meu bem, que me flagelas Em prolongar-me a sfrega esperana:

    Vem olhar neste rio as faces belas, Vem, por doce iluso da semelhana, Ver enganar-se os Zfiros com elas.

    [91] O POETA ENCADEADO A SEU PESAR EM NOVOS LAOS

    Do crcere materno em hora escura, Em momento infeliz, triste, agourado, Me desaferrolhou terrvel Fado, Meus dias cometendo Desventura: Perigosas sementes de ternura Havia o deus feroz em mim lanado; Que mil azedos frutos tm brotado, Regadas pelos prantos da amargura.

    Escravo da desptica beleza, Remir-me de impia lei, que me domina, Tento e desmaio ao comear a empresa:

    Oh poder da paixo, que me alucina! Oh cu, oh Amor! Oh frgil Natureza! Nalma busco a razo e encontro Alcina.

    [92] EXPROBANDO A ALCINA A SUA INGRATIDO

    Igual ingratido e igual vileza Poucos ho de encontrar entre as minas Que Amor prepara: prdiga de Alcinas No (graas aos cus!) a natureza:

    Gnio de fria, monstro de torpeza, Que o pejo afogas, que a traio refinas, So as Jlias, as Laias, as Messalinas, A par de ti modelos de pureza

  • No temas, infiel, que terra chame O raio, que reluz na mo do Eterno, Para que em negras cinzas te derrame:

    Rasguem-te as garras do remorso interno O corao corrupto, o peito infame; L tenho um vingador, l tens o inferno.

    [93] A ESTNCIA DO CIME

    H um medonho abismo, onde baqueia A impulsos das paixes a humanidade; Impera ali terrvel divindade, Que de torvos ministros se rodeia:

    Rubro facho a Discrdia ali meneia, Que a mil cenas de horror d claridade; Com seus scios, Traio, Mordacidade, Range os dentes a Inveja escura e feia:

    V-se a Morte cruel no punho alando O ferro de sangrento ervado gume, E a toda a natureza ameaando:

    V-se arder, fumegar sulfreo lume... Que estrondo! Que pavor! Que abismo infando!... Mortais, no o inferno, o Cime!

    [94] QUEIXAS CONTRA ISMENE NA SOLIDO

    s aguas e s reas deste rio s flores e aos Favnios deste prado. Meus danos conto, minhas mgoas fio, Dou queixas contra Ismene, Amor e o Fado:

    A paz do corao posta em desvio, O gosto em desenganos sufocado, Lgrimas com lembranas desafio, E pela tarda morte s vezes brado:

    To maviosos so meus ais mesquinhos,

  • Tanto pode a paixo que em mim suspira, Que se esquecem das mes os cordeirinhos:

    O vento no se mexe, nem respira; Deixam de namorar-se os passarinhos, Para me ouvir chorar ao som da lira.

    [95] O SUSPIRO

    Voai, brandos meninos tentadores, Filhos de Vnus, deuses da ternura, Adoai-me a saudade amarga e dura, Levai-me este suspiro aos meus amores:

    Dizei-lhe que nasceu dos dissabores Que influi nos coraes a formosura; Dizei-lhe que penhor da f mais pura, Poro do mais leal dos amadores:

    Se o fado para mim sempre mesquinho, A outro ofrece o bem de que me afasta, E em ais lhe envia Ulina o seu carinho:

    Quando um deles soltar na esfera vasta, Trazei-o a mim, torcendo-lhe o caminho; Eu sou to infeliz, que isso me basta. [96] PERSUADINDO ARMIA A QUE RECOMPENSE A SUA TERNURA

    No ds encanto meu, no ds, Armia, Ternas lamentaes ao surdo vento; Se amorosa impacincia um tormento, Com ledas esperanas se alivia:

    A rigorosa me, que te vigia, Em vo nos prende o lcido momento Em que solto, adejando o pensamento, Sobe ao cume da glria e da alegria:

    As fadigas dAmor no valentanto Como a doce, a furtiva recompensa Que outorga, inda que tarde, aos ais e ao pranto:

    Amantes estorvar, que astcia pensa? Tem asas o desejo, a noute um manto,

  • Obstculos no h, que Amor no vena.

    [97] LUTANDO EM VO COM AS MEMRIAS DUMA INGRATA

    Fatais memrias da traidora Alcina, Daquela que encantou meu pensamento; Se vos quero sumir no esquecimento, No o consente Amor, que me domina.

    Que da razo, que as almas ilumina? Porque no pe limite a meu tormento? Ah! que mal que a definem, se exprimento Que no pode evitar-nos a runa!

    Do que estorvar no sabe ela murmura; Deixando-me os efeitos perigosos De amorosa, frentica amargura:

    E inda so para mim menos penosos Os horrores da minha desventura, Que a vista, que o prazer dos venturosos.

    [98] DESCREVENDO UMA NOUTE TEMPESTUOSA

    O cu, de opacas sombras abafado, Tornando mais medonha a noute feia; Mugindo sobre as rochas, que salteia, O mar, em crespos montes levantado: Desfeito em furaces o vento irado, Pelos ares zunindo a solta areia, O pssaro noturno, que vozeia No agoureiro cipreste alm pousado;

    Formam quadro terrvel, mas aceito, Mas grato aos olhos meus, grato fereza Do cime, e saudade, a que ando afeito:

    Quer no horror igualar-me a natureza; Porm cansa-se em vo, que no meu peito H mais escuridade, h mais tristeza.

  • [99] MEMRIA DE ULINA

    Sonho, ou velo? Que imagem luminosa, Esclarecendo o manto noute escura, A meus olhos pasmados se afigura, Sopeia a tua dor, alma saudosa!

    De mais vistoso objeto o cu no goza, A clareza do sol no mais pura... Que encanto! Que esplendor! Que formosura! Caiu-te um astro, abbada lustrosa!...

    Sorrisos da purprea madrugada, Vs to gratos no sois... Ah! Como inclina A face para mim branda, apiedada!

    Refulgente viso, tu s de Ulina; Tu s cpia fiel da minha amada, Ou reflexo talvez da luz divina.

    [100] RECEANDO SER SUPLANTADO POR UM RIVAL

    Em verso torneado ao som da lira Eu canto amor, a formosura eu canto; Por teus olhos gentis, que podem tanto, Arde meu corao, treme, suspira:

    Audaz competidor, esse que aspira De teus carinhos ao celeste encanto, Grosseiro e carrancudo infunde espanto, Da bruta estupidez nas sombras gira.

    Ao v-lo assim e ao ver minha amargura, Mal que ele a ti dirige a vista acesa, Todos ao meu temor chamam loucura:

    Ah! Vem dalta razo minha tristeza; No receio o rival, temo a Ventura, Porque o pode vingar da Natureza.

    [101] O CIME REINANDO AINDA NO SEPULCRO

  • Se, vtima da ingrata e do tirano Que fazem lastimosa a tua sorte, Ao peso de frentico transporte Ceder teu corao, msero Elmano:

    Se quele que o teu mal contempla ufano Quiser teu fado que o prazer lhe aborte; Se nas garras tambm da turva morte Conhecer que a ventura doce engano:

    Se o seu despojo enfim se unir contigo, Para que nem, oh triste, a paz possuas Entre as eternas sombras do jazigo;

    Zelosas despertando as cinzas tuas, Revoltas pelo horror, pelo dio antigo, Ho de em negro monto fugir das suas.

    [102] MEMRIA DE ANARDA

    Voaste, alma inocente, alma querida, Foste ver outro sol de luz mais pura, Falsos bens desta vida, que no dura, Trocaste pelos bens da eterna vida:

    Por Deus chamada, para Deus nascida J de vs iluses vives segura: Feliz a f te cr; mas a ternura Co punhal da saudade est ferida.

    Desgraado o mortal, insano, insano Em dar seu pranto aos fados de quem mora No palcio do eterno soberano!

    Perdoa, Anarda, ao triste que te adora: Tal a condio do peito humano; Se a Razo se est rindo, Amor te chora. [103] CONSEGUINDO LIBERTAR-SE DE UMA PAIXO MAL CORRESPONDIDA

    J de novo a meus olhos aparecem A graa, o riso, as flores da alegria; J na minha teimosa fantasia Cuidados que velavam adormecem:

  • Coa verdade iluses se desvanecem, Qual foge o triste mocho luz do dia; Previdente Razo, porm tardia, J sobre esta alma teus auxlios descem.

    Como, cega paixo, nos persuades! Quando em Mrcia no vi seno beleza Julguei que dava glria s divindades:

    Mas de sacro fulgor coa mente acesa Noto-lhe o corao e as falsidades, Vejo que faz injria Natureza.

    [104] VARIEDADE DOS EFEITOS DAMOR

    Nascemos para amar; a humanidade Vai tarde ou cedo aos laos da ternura; Tu s doce atrativo, oh formosura, Que encanta, que seduz, que persuade:

    Enleia-se por gosto a liberdade; E depois que a paixo nalma se apura, Alguns ento lhe chamam desventura, Chamam-lhe alguns ento felcidade:

    Qual se abisma nas lbregas tristezas, Qual em suaves jbilos discorre, Com esperanas mil na ideia acesas:

    Amor ou desfalece, ou para, ou corre; E, segundo as diversas naturezas, Um porfia, este esquece, aquele morre.

    [105] NOTANDO INSENSIBILIDADE NA SUA AMADA

    A frouxido no Amor uma ofensa, Ofensa que se eleva a grau supremo; Paixo requer paixo, fervor, e extremo Com extremo e fervor se recompensa.

    V qual sou, v qual s, v que difrena!

  • Eu descoro, eu praguejo, eu ardo, eu gemo; Eu choro, eu desespero, eu clamo, eu tremo, Em sombras a razo se me condensa:

    Tu s tens gratido, s tens brandura, E antes que um corao pouco amoroso Quisera ver-te uma alma ingrata e dura:

    Talvez me enfadaria aspecto iroso; Mas de teu peito a lnguida ternura Tem-me cativo, e no me faz ditoso.

    [106] VENDO-SE PRESO NOS LAOS DE UMA DAMA VENAL

    Nos torpes laos de beleza impura Jazem meu corao, meu pensamento; E forada ao servil abatimento Contra os sentidos a razo murmura:

    Eu, que outrora incensava a formosura Das que enfeita o pudor gentil e isento, A j corrupta ideia hoje apascento Nos falsos mimos de venal ternura:

    Se a vejo repartir prazer, e agrado quele, a este, coa fatal certeza Fermenta o vil desejo envenenado;

    Cus! Quem me reduziu a tal baixeza? Quem to cego me ps?... Ah! Foi meu fado, Que tanto no podia a natureza.

    [107] DISPOSTO A ACOMPANHAR AO JAZIGO A SUA AMADA

    Perdi tudo (ai de mim!) perdi Marfida, Marfida, a glria minha, a minha amada; Tenra flor, a esperana malograda Do mimoso matiz caiu despida:

    Pede meu corao mortal ferida, S aos ditosos a existncia agrada; Vida entre angstias equivale ao nada,

  • No risonho prazer consiste a vida. Eia, amante infeliz, teu fim procura! Fantstico terror no te reporte, Nos tmulos no reina a formosura.

    Diga triste letreiro a minha sorte; Dai-me piedosa sombra sepultura Teixos, ciprestes, rvores da morte.

    [108] MORTE DE ARMIA

    Da rama escura de letal cipreste Em sonhos vi croada a bela Armia; Alvas, mimosas carnes lhe envolvia Da negra morte a lutuosa veste:

    Vagueava o meu bem num ermo agreste, Onde o mocho agoureiro se carpia, No to meiga e gentil como algum dia, Mas inda conservava um ar celeste:

    Esta que vs (me disse em tom magoado) Que no creste mortal, mas divindade, sombra v, fantasma inanimado.

    Eis ferido de amor e de saudade, Grito, acordo e seguiu-se (oh duro fado!) funesta viso fatal verdade.

    [109] A MARLIA, EM SEU DIA NATALCIO

    L onde o Fado impenetrvel mora. Voa o menino Amor entre os Amores; Loureja a trana, que matizam flores, Cintila o facho, que a Razo devora:

    Entra, sada o nume, ao nume implora Que de Marlia os olhos tentadores Vejam sempre ante as Graas e os Louvores De seus anos gentis surgir a aurora:

    Fronte rugosa vezes trs sacode O deus, cujo poder tudo atropela,

  • E s suplicas dAmor destarte acode:

    Escape s minhas leis Marlia bela, Seja, seja imortal: durar no pode O mundo sem amor, Amor sem ela.[110] REFLETINDO SOBRE A INSTABILIDADE DA CONDIO HUMANA

    Quantas vezes, Amor, me tens ferido? Quantas vezes, Razo, me tens curado? Quo fcil de um estado a outro estado O mortal sem querer conduzido!

    Tal, que em grau venerando, alto e luzido, Como que at regia a mo do fado, Onde o sol, bem de todos, lhe vedado Depois com ferros vis se v cingido:

    Para que o nosso orgulho as asas corte, Que variedade inclui esta medida, Este intervalo da existncia morte!

    Travam-se gosto e dor; sossego e lida; lei da natureza, lei da sorte Que seja o mal e o bem matiz da vida.

    [111] AO SONO, PARA QUE LHE REPRESENTE A IMAGEM DA AMADA

    Oh tu, consolador dos malfadados, Oh tu, benigno dom da mo divina, Das mgoas saborosa medicina, Tranquilo esquecimento dos cuidados:

    Aos olhos meus, de prantear cansados, Cansados de velar, teu voo inclina; E vs, sonhos damor, trazei-me Alcina, Dai-me a doce viso de seus agrados:

    Filha das trevas, frouxa sonolncia, Dos gostos entre o frvido transporte Quanto me foi suave a tua ausnca!

    Ah! findou para mim to leda sorte; Agora s feliz minha existncia No mudo estado, que arremeda a morte.

  • [112] INCONSTNCIA DE INLIA

    Quando que me rendeu jurava ufano Gostar por ela do funreo instante, Dizia a doce amada ao terno amante. Inlia morrer, se morre Elmano!O Tempo, das paixes, dos bens tirano, Tornou ferino o divinal semblante, E nos lbios gentis voz fulminante Vibrou, vibrou-me um raio; - o desengano!

    Esperanas, murchai; tu, lisonjeiro Sonho adorvel, com que o ser mantive, Desfaze-te em meu ponto derradeiro:

    Mas as cinzas do amante Amor no prive Dos ais descravos seus: triste letreiro Diga: - Elmano morreu, e Inlia vive.

    [113] A UMA DAMA, QUE LHE PEDIA QUISESSE RETRAT-LA (Improvisado)

    Pode o tosco pincel, que mal sustento, Pintar ousado divinal beleza? Oh! Quanto fora temerria empresa! Pagara icria sorte o louco intento.

    No pinta humana pena um tal portento, Milagre da sublime natureza; Tens mais alto pintor, que no despreza Pintar-te... a mo, que fez o firmamento:

    Tanto no posso, oh dentre as belas bela; E baixar dos cus fiel socorro Pra traar-te a paixo, que me flagela?

    Deliro, amvel Jnia; em vo discorro; Confunde-me a aflio que me atropela, Mal sei balbuciar que por ti morro.

  • [114] GLOSANDO O MOTE: DA LEMBRANA RISCAR-TE, AH QUEM PUDERA!

    Em frgil lenho o plago cruzando, Nos turbilhes das vagas envolvido, A razo se me esvai, perco o sentido, Na triste vida minha imaginando:

    Cedo a Morfeu: - a mente flutuando Pe ante mim o deus, que impera em Gnido, Do arco aguda seta enfurecido Vai ao peito de Anlia disparando:

    Trmulo, insano, exausto, delirante, Brado ao nume feroz: - Espera espera, No firas, poupa meu corao constante.

    Nisto o deus mostra o corao da fera; Vi-te, prfida, e disse agonizante: Da lembrana riscar-te, ah quem pudera!

    [115] A MARLIA, NO SEU DIA NATALCIO

    Quis, Marlia gentil, cantar teu dia, Teu dia grato a Amor, grato ventura, Pintar-te a graa, o riso, a formosura, Princpios de inefvel simpatia:

    Ao pai da claridade e da harmonia Roguei canes de singular brandura; Mas sempre mais e mais a mente escura Num tmulo de ideias se perdia:

    Eis o deus, que da aurora aviva os lumes, Me diz: - Porque tens nome entre os humanos, Objetos divinais cantar presumes?

    Subjuga dentro dalma os sons profanos; Muda em culto o louvor; celebrem numes, Mortais adorem de Marlia os anos.

    [116] A MRCIA, PEDINDO-LHE A CONFIRMAO DO SEU AMOR

  • Tu s meu corao, tu s meu nume; No vive para mim do mundo o resto; A morte, a vida, os cus, meu fado atesto, Meu fado, que em teus olhos se resume.

    Mas com frequente, rspido queixume Os mimosos ouvidos te molesto; Dias douro e de amor (ah!) toldo, empesto Coas trevas mais que horrveis do cime.

    Olho-te as graas, olho-te a beleza, E cuido que enfeitias por meu dano Quantos entes abrange a natureza!

    Socorre, doce Mrcia, o triste Elmano; Oh! Que infernal tormento o da incerteza! Ao menos s morte o desengano. [117] MEMRIA DE ARMIA

    Quando meu corao de Amor vivia, (Ufana a liberdade em ver-se escrava) E quando para mim se variava O cu num riso, o cu num ai dArmia:

    Das escuras irms a mais sombria, E que mais com seu peso o mundo agrava, Na vista divinal, que me encantava, Roubou luz minha alma, e luz ao dia:

    No mais, Dor, fado meu, Dor, meu costume; Cedo a paz gozarei, que o peito anela, Nos olhos do meu bem, do cu j lume:

    Junto ninfa imortal na estncia bela Os dias perenais, que vive um nume, Irei (nume em ser seu) viver com ela.

    [118] AGUARDANDO UMA ENTREVISTA PROMETIDA

    Noute, amiga de Amor, calada escura, Eia engrossa os teus vus, os teus horrores; Enquanto vou gozar de mil favores Sobre o doce teatro da ternura:

  • Marlia, mais gentil e at mais pura Que as ledas Graas, que as mimosas flores, Velando s mudas horas dos Amores Receia o casto pejo, que murmura:

    Em deleitoso e tcito retiro, Suspensa entre o temor, entre o desejo, Flutua a bela, a cuja posse aspiro:

    Ah! j nos braos meus a aperto e beijo! J, desprendendo um lnguido suspiro, No seio do prazer se absorve o pejo.

    [119] A UMA DONZELA DE EXTREMA BELEZA E DE RARA VIRTUDE, MORTA NA FLOR DOS ANOS

    De homens e numes suspirado encanto, Llia, inocente como virgem rosa, Llia mais branda, Llia mais formosa Que a ninfa etrea, de punceo manto:

    Eu e os Amores, que perderam tanto, Damos-te s cinzas oblao mimosa; Curva goteje minha dor saudosa Na mole ofrenda, que requer meu pranto:

    Em teu sagrado, perenal retiro, Disponho ao som de lnguidas querelas, A rosa, o cravo, a tulipa, o suspiro:

    Medrai no cho de amor, florinhas belas... Ah! Llia, eu gozo o cu!... Llia, eu respiro Tua alma pura na fragrncia delas!

    [120] NOS FAUSTOS ANOS DO SENHOR ANTNIO JOS BERNARDO DA GAMA FARIA E BARROS, EM SETBAL

    Da fria habitao, da vtrea gruta Ala o Calipo a fronte salitrosa; E risonho penteia a nunca enxuta Alva melena, rspida e limosa:

  • Em torno dele a modular se escuta Chusma de ninfas cndida e formosa; Dos ventos o tropel bramindo luta L na elia masmorra cavernosa:

    Dando lascivos sculos nas flores Gratos eflvios Zfiro derrama, Desfaz do inverno os mdidos vapores:

    Almo prazer os coraes inflama, Tudo respira amor, tudo louvores Ao festivo natal do ilustre Gama.

    [121] LAMENTVEL CATSTROFE DE D. INS DE CASTRO

    Da triste, bela Ins, inda os clamores Andas, Eco chorosa, repetindo; Inda aos piedosos cus andas pedindo Justia contra os impios matadores;

    Ouvem-se ainda na fonte dos Amores De quando em quando as niades carpindo; E o Mondego, no caso refletindo, Rompe irado a barreira, alaga as flores:

    Inda altos hinos o universo entoa A Pedro, que da morta formosura Convosco, Amores, ao sepulcro voa:

    Milagre da beleza e da ternura!Abre, desce, olha, geme, abraa e cra A malfadada Ins na sepultura.

    [122] MORTE DE SUA IRM D. MARIA EUGNIA BARBOSA DU BOCAGE, FALECIDA NA FLOR DA IDADE

    De radiosas virtudes escoltada Deste imaturo adeus ao mundo triste, Coa mente no almo polo, aonde existe Bem, que sempre se goza e nunca enfada:

    fouce, a segar vidas destinada, Mansssima cordeira o colo uniste;

  • O que do cu ao cu restituste, Restituste ao nada o que do nada:

    E inda gemo, inda choro, alma querida, Teu fado amigo, tua dita imensa, Que em vez de pranto a jbilo convida!

    Ah! Pio acordo minha mgoa vena; cativeiro para o justo a vida, A morte para o justo recompensa.

    [123] A UM VELHO MALDIZENTE

    Tn, maligno drago, cruel harpia, Monstro dos monstros, fria dos infernos, Que em vil murmurao, ralhos eternos Estragas sem descanso a noute e o dia:

    Tu, que nas horas em que o mocho pia, Caluniaste meus suspiros ternos, Sacode a carga de noventa invernos Nas descarnadas mos da morte fria:

    Cai de chofre no bratro profundo, Cai nas entranhas da voraz fornalha, Deixa em sossego o miservel mundo: E entre a maldita, rproba canalha, L bem longe de ns, l bem no fundo, Arde, murmura, amaldioa e ralha.

    [124] A G... P... S... M..., APONTADOR NO ARSENAL DA MARINHA

    Aquele que ali vs, rosto maldito, No sexto camarote vinculado, novo apontador, novo morgado, Sacerdote fiel do hebraico rito:

    A bazfia entre a crena o pe aflito Pela insgnia, que traz ao peito inchado; Por fora quer mostrar-se homem honrado, Em casa pisa a cruz e o sambenito:

  • Agora ele aspirava nova graa Dum tal prncipe herdar de preto couro, Por ter parte a mulher na fusca raa:

    Mas indo ao Alentejo alar o louro, Sem valer-lhe da usura o foro e a traa, Foi expulso do pao com desdouro.

    [125] AO MESMO

    Com pena de lato atrs da orelha, No sovaco chapu, na mo tinteiro, Passeia ufano em torno do estaleiro Um novo apontador de origem velha:

    Ora altivo, arqueando a sobrancelha, Marca a falta do pobre carpinteiro; Ora submisso s ordens do porteiro D revista mestrana, que aparelha:

    Acaba o exerccio baixo e sujo, E sai do arsenal o Dom Quixote Com mais pingos de breu do que um marujo:

    Eis que tempo de vir o paquebote; Aparecem Dona Aires co sabujo, Vinculados em certo camarote.

    PERODO DE EXPATRIAO

    (1788 a 1790)

    [126] O POETA DISTANTE DA SUA AMADA

    Olhos suaves, que em suaves dias Vi nos meus tantas vezes empregados; Vista, que sobre esta alma despedias Deleitosos farpes, no cu forjados:

  • Santurios de amor, luzes sombrias, Olhos, olhos da cor de meus cuidados, Que podeis inflamar as pedras frias, Animar os cadveres mirrados:

    Troquei-vos pelos ventos, pelos mares, Cuja verde arrogncia as nuvens toca, Cuja horrssona voz perturba os ares:

    Troquei-vos pelo mal, que me sufoca; Troquei-vos pelos ais, pelos pesares: Oh cmbio triste! oh deplorvel troca!

    [127] RECORDANDO-SE DA INCONSTNCIA DE GERTRRIA

    Da prfida Gertrria o juramento Parece-me que estou inda escutando, E que inda ao som da voz suave e brando Encolhe as asas, de encantado, o vento:

    No vasto, infatigvel pensamento Os mimos da perjura estou notando... Eis Amor, eis as Graas festejando Dos ternos votos o feliz momento.

    Mas ah!... Da minha rpida alegria Para que acendes mais as vivas cores, Lisonjeiro pincel da fantasia?

    Basta, cega paixo, loucos amores; Esqueam-se os prazeres de algum dia, To belos, to durveis como as flores.

    [128] A GERTRRIA AUSENTE

    Por fofos escarcus arremessado Ora aos abismos, ora ao firmamento, Escutando o furor e o som violento Do rspido Aquilo, de Noto irado:

    Aberto o peito, o corao rasgado

  • Pelo agudo punhal do apartamento, Qual pombinho, que foi de aor cruento Pelas garras mortais atravessado;

    Assim num cego amor j cego e louco, Envio, alma querida, envio aos ares De quando em quando um ai trmulo e rouco;

    Mas tantas aflies, tantos pesares Tudo pouco, Gertrria, tudo pouco, Se inda eu vir os teus olhos singulares.

    [129] MESMA, RECEOSO DA SUA CONSTNCIA

    Qual o avaro infeliz, que no descansa, Volvendo os olhos dum para o outro lado, Por cuidar que ao tesouro idolatrado Cobiosa vontade as mos lhe lana:

    Tal eu, meu doce amor, minha esperana, De suspeitas cruis atormentado, Receio que a distncia, o tempo, o fado Te arranquem meus carinhos da lembrana:

    Receio que, por minha adversidade, Novo amante sagaz e lisonjeiro Macule de teus votos a lealdade:

    Ah! cr, bela Gertrria, que o primeiro Dia em que eu chore a tua variedade, Ser da minha vida o derradeiro.

    [130] A GERTRRIA ESCRITO DURANTE UMA VIAGEM

    Enquanto os bravos, formidveis Notos, Por entre os cabos trmulos zunindo, O fendente baixel vo sacudindo A climas, do meu clima to remotos:

    Enquanto de Nereu contnuos motos Na vacilante popa estou sentindo, Ao meu dolo amado, ausente e lindo, Formo nas mos dAmor sagrados votos:

  • Mordaz tristeza o corao me corte, Sofra tudo, oh Gertrria, por amar-te, Farte-se embora a clera da sorte:

    Mas talvez (ai de mim!) que se no farte, Que ou tua variedade, ou minha morte Me roube as esperanas de lograr-te.

    [131] PRESSGIOS DE DESVENTURA PROPNQUA

    Usurpando um minuto a meu lamento Amigo sono os olhos me ocupava, E enquanto o dbil corpo descansava, Velava amor, velava o pensamento:

    Eis que em deserto e lgubre aposento. Que semimorta luz mais afeava, Cri, Gertrria (ai de mim!) que te avistava J sem cor, j sem voz, j sem alento:

    Sbito acordo em lgrimas banhado, E, das trevas palpando o vu medonho, Em vo busco teu corpo delicado:

    Mas inda em nsias trmulo suponho Que me vaticinou meu negro fado Dos males o pior no horrvel sonho.

    [132] ORCULO DE AMOR

    Alva Gertrria minha, a quem saudoso Mando trmulos ais enternecidos; Gertrria, que encantaste os meus sentidos Coum meigo riso, coum olhar piedoso:

    Amor, o injusto Amor, nume doloso, Insensvel penedo a meus gemidos, Me exala sobre os tmidos ouvidos Estas vozes cruis em tom raivoso:

    Tu, que j desfrutaste os meus favores,

  • Tu, que na face de Gertrria bela Nctar bebeste, mitigaste ardores,

    No tornars, no tornars a v-la: Lamenta, desgraado, os teus amores, Acusa, desgraado, a tua estrela.

    [133] VISO NOTURNA (Feito na ndia)

    Meia noute seria; eu passeando No meu palmar chorava o meu destino; Eis que ao som de um gemido repentino Olho, e vejo uma sombra no ar girando:

    Quem s, Guir? (pergunto-lhe arquejando) Quem s, quem s, oh Lmure maligno?... - Sou o espirito (diz) de Saladino, De quem j leste o caso miserando:

    De Grisalda as traies inda lamento Da solitria noute entre os horrores, E os olhos, mortal cego, abrir-te intento:

    No soltes por Natrcia mais clamores; Sepulta a desleal no esquecimento: Olha o trgico fim de meus amores!

    [134] VENTURA SONHADA

    Sonhei que nos meus braos inclinado Teu rosto encantador, Gertrria, via; Que mil vidos beijos me sofria Teu nveo colo, para os mais sagrado:

    Sonhei que era feliz por ser ousado, Que o siso, a fora, a voz, a cor perdia Num xtase suave, em que bebia O nctar nem por Jove inda libado:

    Mas no mais doce, no melhor momento Exalando um suspiro de ternura Acordo, acho-te s no pensamento:

  • Oh destino cruel! Oh sorte escura! Que nem me dure um vo contentamento! Que nem me dure em sonhos a ventura! [135] DESPEDINDO-SE DA PTRIA, AO PARTIR PARA A NDIA

    Eu me ausento de ti, meu ptrio Sado, Mansa corrente deleitosa, amena, Em cuja praia o nome de Filena Mil vezes tenho escrito e mil beijado:

    Nunca mais me vers entre o meu gado Soprando a namorada e branda avena, A cujo som descias mais serena, Mais vagarosa para o mar salgado:

    Devo enfim manejar por lei da sorte Cajados no, mortferos alfanges Nos campos do colrico Mavorte;

    E talvez entre impvidas falanges Testemunhas farei da minha morte Remotas margens, que umedece o Ganges.

    [136] DESCREVE AS SUAS DESVENTURAS, LONGE DA PTRIA E DE GERTRRIA

    Do Mandovi na margem reclinado Chorei debalde minha negra sina, Qual o msero vate de Corina Nas tomitanas praias desterrado:

    Mais duro fez ali meu duro fado Da vil calnia a lngua viperina; At que aos mares da longnqua China Fui por bravos tufes arremessado:

    Atassalhou-me a serpe, que devora Tantos mil, perseguiu-me o gro gigante Que no terrvel promontrio mora:

    Por brbaros sertes gemi vagante; Falta-me inda o pior, falta-me agora Ver Gertrria nos braos doutro amante!

  • [137] ACHANDO-SE PRESTES A AUSENTAR-SE DA SUA AMADA

    Praias de Sacavm, que Lenria Orna cos ps nevados e mimosos, Gotejantes penedos cavernosos, Que do Tejo cobris a margem fria:

    De vs me desarreiga a tirania Dos speros Destinos poderosos; Que no querem que eu logre os amorosos Olhos, aonde jaz minha alegria:

    Oh funesto, oh penoso apartamento! Objeto encantador de meus sentidos, A sorte o manda assim, de ti me ausento:

    Mas inda l de longe os meus gemidos Guiados por Amor, cortando o vento, Viro, ninfa querida, a teus ouvidos.

    [138] A CAMES, COMPARANDO COM OS DELE OS SEUS PRPRIOS INFORTNIOS

    Cames, grande Cames, quo semelhante Acho teu fado ao meu, quando os cotejo! Igual causa nos fez perdendo o Tejo Arrostar co sacrlego gigante:

    Como tu, junto ao Ganges sussurrante Da penria cruel no horror me vejo; Como tu, gostos vos, que em vo desejo, Tambm carpindo estou, saudoso amante:

    Ludbrio, como tu, da sorte dura Meu fim demando ao cu, pela certeza De que s terei paz na sepultura:

    Modelo meu tu s... Mas, oh tristeza!... Se te imito nos transes da ventura, No te imito nos dons da natureza.

  • [139] SAUDADES DE GERTRRIA

    Adeja, corao, vai ter aos lares, Ditosos lares, que Gertrria pisa; Olha, se inda te guarda a f mais lisa, V, se inda tem pesar dos teus pesares:

    No fulgor de seus olhos singulares Crestando as asas, tua dor suaviza, Amor de l te chama, te divisa, Interpostos em vo to longos mares:

    Dize-lhe, que do tempo o leve giro No faz abalo em ti, no faz mudana, Que ainda lhe s fiel neste retiro:

    Sim, pinta-lhe imortal minha lembrana; D-lhe teus ais e pede-lhe um suspiro, Que alente, corao, tua esperana.

    [140] AO PARTIR PARA A NDIA, DEIXANDO EM LISBOA A SUA AMADA

    Ah! que fazes, Elmano? Ah! No te ausentes Dos braos de Gertrria carinhosa: Trocas do Tejo a margem deleitosa Por brbaro pas, brbaras gentes?

    Um tigre te gerou, se d no sentes Vendo to consternada e to saudosa A tgide mais linda e mais mimosa; Ah! Que fazes Elmano? ah, no te ausentes.

    Teme os duros cachopos, treme, insano, Do enorme Adamastor, que sempre vela Entre as frias e os monstros do Oceano:

    Olha nos lbios de Gertrria bela Como suspira Amor!... V, v, tirano, As Graas a chorar nos olhos dela!

  • [141] AO PARTIR DA PTRIA PARA LISBOA, NO INTENTO DE AUSENTAR-SE PARA TERRAS LONGNQUAS

    Deixar, amado bem, teu rosto lindo, Teus afagos deixar, tua candura, Tanto me oprime, que da morte escura Sobre mim negras sombras vm caindo:

    Eu parto e vou teu nome repetindo, Porque d desafogo mgoa dura; Meus tristes ais, suspiros de amargura Aqum dos mares ficars ouvindo:

    Mas se me cercam no cruel transporte Quantas frias o bratro vomita, Se meu mal pior que a mesma morte:

    O fado em me aterrar em vo cogita! Com todo o seu poder no pode a sorte Tua imagem riscar desta alma aflita!

    [142] DESPEDIDAS AO TEJO

    No mais, oh Tejo meu, formoso e brando, A margem frtil de gentis verdores, Ters dalta Ulisseia um dos cantores Suspiros no ureo metro modulando:

    Rindo no mais ver, no mais brincando Por entre as ninfas e por entre as flores, O coro divinal dos nus Amores, Dos Zfiros azuis o afvel bando:

    Coa fronte j sem mirto e j sem louro, O arrebata de rojo a mo da Sorte Ao clima salutar e margem douro:

    Ei-lo em fragas de horror, sem luz, sem norte, Soa daqui, dali piado agouro; Sois vs, desterro eterno, ermos da morte!

  • [143] VENDO-SE LONGE DA PTRIA E PERSEGUIDO PELA FORTUNA

    J por brbaros climas entranhado, J por mares inspitos vagante, Vtima triste da fortuna errante, T dos mais desprezveis desprezado:

    Da fagueira esperana abandonado, Lassas as foras, plido o semblante, Sinto rasgar meu peito a cada instante A mgoa de morrer expatriado:

    Mas ah! Que bem maior, se contra a sorte L do sepulcro no sagrado hospcio Refgio me promete a amiga Morte!

    Vem pois, oh nume aos mseros propcio, Vem livrar -me da mo pesada e forte, Que de rastos me leva ao precipcio!

    [144] TENTATIVA DE SUICDIO, COMBATIDA PELAS LEMBRANAS DA ETERNIDADE

    Aquele, a quem mil bens outorga o Fado, Deseje com razo da vida amigo Nos anos igualar Nestor, o antigo, De trezentos invernos carregado:

    Porm eu sempre triste, eu desgraado, Que s nesta caverna encontro abrigo, Porque no busco as sombras do jazigo, Refugio perdurvel e sagrado?

    Ah! bebe o sangue meu, tosca morada; Alma, quebra as prises da humanidade, Despe o vil manto, que pertence ao nada!

    Mas eu tremo!... Que escuto!... a Verdade, ela, ela que do cu me brada: Oh terrvel prego da eternidade!

    [145] CONTRADIES DO ATESMO

    Qual novo Orestes entre as Frias brada,

  • Infeliz, que no crs no Onipotente; Com sistema sacrlego desmente A razo lumuniosa, a f sagrada:

    Tua brbara voz iguale ao nada O que em todas as cousas tens presente; Basta que o sbio, o justo, o pio, o crente Louve a mo, contra os maus do raio armada.

    Mas v, blasfemo ateu, v, monstro horrendo, Que a bruta opinio, que cego expressas, A si mesma se est contradizendo:

    Pois quando de negar um Deus no cessas, De tudo o inerte Acaso autor fazendo, No Acaso, a teu pesar, um Deus confessas!

    [146] ABANDONANDO-SE AOS AZARES DA FORTUNA

    Se a minha lastimosa desventura Irreparvel , se trago escrito No rosto cor da morte o meu delito, Que louca ideia os passos me segura?

    Ah! Some-te, infeliz, foge, e procura Margens quais as do lvido Cocito, Brenhas, matos, sertes, errante, aflito, At que vs parar na sepultura:

    Oh nume enganador, nume falsrio! Oh lbrica Fortuna de quem rego Em vo com triste pranto o santurio!

    J sem violncia em tuas mos me entrego; Sim, vria, aqui me tens inda mais vrio, Cega, a ti me abandono, inda mais cego!

    [147] DEPRECAO FEITA DURANTE UMA TEMPESTADE

    Oh Deus, oh rei do cu, do mar, da terra, (Pois s me restam lgrimas, clamores) Suspende os teus horrssonos furores,

  • O corisco, o trovo, que a tudo aterra:

    Nos subterrneos crceres encerra Os procelosos monstros berradores, Que enchendo os ares de infernais vapores Parece que entre si travaram guerra.

    Para ns compassivo os olhos lana, Perdoa ao fraco lenho, atende ao pranto Dos tristes, que em ti pem sua esperana!

    s densas trevas despedaa o manto, Faze, em sinal de prxima bonana, Brilhar no etreo tope o lume santo!

    [148] O POETA LUTANDO CONTRA O INFORTNIO

    Apenas vi do dia a luz brilhante L de Tubal no emprio celebrado, Em sanguneo carter foi marcado Pelos Destinos meu primeiro instante:

    Aos dous lustros a morte devorante Me roubou, terna me, teu doce agrado; Segui Marte depois, e enfim meu fado Dos irmos e do pai me ps distante: Vagando a curva terra, o mar profundo, Longe da ptria, longe da ventura Minhas faces com lgrimas inundo:

    E enquanto insana multido procura Essas quimeras, esses bens do mundo, Suspiro pela paz da sepultura.

    [149] FEITO NA NDIA

    No etreo prado a lua apascentava Das estrelas o ntido rebanho, Quando o msero Almeno em clima estranho De negro bosque as sombras penetrava:

    Silncio em cujo horror, que a vista agrava,

  • Qual fantasma notvago me entranho! Sofre (dizia) os prantos, com que banho De um crime a ndoa, que o chorar no lava.

    Sofre os gritos... mas ai! que sem piedade Por entre folha e folha a luz procura Furtar-me o triste bem da escuridade!

    Onde te hei de escapar, oh sorte dura, Oh cruel, insofrvel claridade? J sei onde, j sei - na sepultura!

    [150] RESTAURAO DE PORTUGAL EM 1640

    Cesares, Viriatos, Apimanos, Vs, que brandindo vingadora espada, Tentastes sacudir da ptria amada O vil, o frreo jugo dos romanos:

    Surgi, vede-a no sangue de tiranos Inda piores outra vez banhada, E a nossa liberdade edificada No estrago dos intrusos castelhanos:

    Aos senhores do mundo armipotontes Arrancastes em blica porfia Parte do louro, que lhe honrava as frentes:

    Porm com milagrosa valentia Os vossos memorveis descendentes Fizeram mais - livraram-se num dia! [151] OFERECIDO EM MACAU EXCELENTSSIMA SENHORA D. MARIA SALDANHA NORONHA E MENEZES E SUAS FILHAS

    Musa chorosa, que por terra estranha To longe de teu ptrio ninho amado Andas errante, suspirando ao lado Da Saudade fiel, que te acompanha:

    Do cho, onde a lanaste, a lira apanha, E seja em brando som por ti cantado Um peito de virtudes adornado, A piedosa, a magnnima Saldanha:

    Louva os dons daquela alma excelsa e pura,

  • Que as tuas gastar mgoas penosas, Como a aurora desfaz a noute escura:

    Depois s lindas filhas melindrosas, Rivais da me dAmor na formosura, Tece capelas e festes de rosas.

    [152] EM LOUVOR DO GRANDE CAMES

    Sobre os contrrios o terror e a morte Dardeje embora Aquiles denodado, Ou no rpido carro ensanguentado Leve arrastos sem vida o Teucro forte:

    Embora o bravo Macednio corte Coa fulminante espada o n fadado, Que eu de mais nobre estmulo tocado, Nem lhe amo a glria, nem lhe invejo a sorte:

    Invejo-te, Cames, o nome honroso; Da mente criadora o sacro lume, Que exprime as frias de Lieu raivoso:

    Os ais de Ins, de Vnus o queixume, As pragas do gigante proceloso, O cu de Amor, o inferno do Cime.

    [153] GLOSANDO O MOTE: DAS ALMAS GRANDES A NOBREZA ESTA

    Ser prole de vares assinalados, Que nas asas da fama e da vitria Ao templo foram da imortal Memria Pendurar mil trofus ensanguentados:

    Ler seus nomes nas pginas gravados Dalta epopeia, delegante histria, No, no vos serve desplendor, de glria, Almas soberbas, coraes inchados!

    Ouvir com dor o miservel grito De inocentes, que um brbaro molesta, Prezar o sbio, consolar o aflito;

  • Prender teus voos, Ambio funesta, Ter amor virtude, dio ao delito, Das almas grandes a nobreza esta.

    [154] AO GRANDE AFONSO DALBUQUERQUE Tomando Mlaca em vingana da perfdia do rei do pas para com os portugueses

    Em bando espesso, em nmero infinito, Defende a ponte o brbaro malaio; Eis que entre horrores, mulo do raio, Albuquerque imortal voa ao conflito:

    Assim que assoma o claro chefe invicto, Terror da prole do feroz sabaio, Gela os netos de Agar frio desmaio, Os lusos soltam da vitria o grito:

    Vtimas so do portugus Mavorte Inda aqueles que mal na fuga alcana, Leva no ferro transmigrada a morte:

    Mas j sobre trofus o heri descansa, Havendo por seu brao ilustre e forte, A ptria, a natureza, os cus vingana.

    [155] A D. JOO DE CASTRO, SOCORRENDO E SALVANDO A FORTALEZA DE DIU

    Blasfema Rumeco, jura vingana Aos manes infernais, ao pai maldito, E contra Diu em pertinaz conflito As indstrias esgota, as foras cansa:

    Munido de magnnima esperana O portentoso chefe, o luso invicto, Dos venerveis muros infinito E brbaro tropel mil vezes lana:

    Feminina caterva as armas mede; Encurtando s do Rdope a memria Sobre hostil multido raios despede:

  • E quando finalmente a lsia glria V o extremo fatal e inda no cede, Eis Castro, eis a virtude, eis a vitria!

    [156] NA MORTE DO SENHOR D. JOS, PRNCIPE DO BRASIL

    Louca, cega, iludida Humanidade, Miservel de ti! No consideras Que o barro te gerou, como que espera Evadir-te geral fatalidade!

    P, que levanta o sopro da vaidade, Homem caduco e frgil, no ponderas Que teus bens, teus brazes, tuas quimeras Nenhum valor tero na eternidade?

    Ah! Volta, volta os olhos mais sisudos;