bom dia camaradas - ondjaki

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Uma Luanda dos anos 1980 com professores cubanos, escolas entoando hinos matinais e jovens de classe média é o cenário de Bom dia, camaradas. Do universo do romance também fazem parte as lembranças dos cartões de abastecimento, as desigualdades sociais e os conflitos entre modernidade e tradição.Através do olhar lírico de um garoto, o leitor é levado a uma Angola que acabou de se tornar independente e é obrigada a repensar as regras sociais e a questionar as causas da desigualdade. Ondjaki nos conduz aos pequenos acontecimentos do cotidiano que mostram como é preciso mais que um decreto para que as mudanças de fato aconteçam.Assim como em outros livros de Ondjaki, o mundo dos jovens e a descoberta da vida adulta e seus conflitos são retratados sem o tom irritadiço das militâncias nem a condescendência do lirismo excessivo. E Bom dia, camaradas é daqueles romances que atravessa as idades e pode ser lido tanto pelo jovem quanto pelo leitor maduro.A literatura de Ondjaki é especialmente atraente para o público brasileiro, que verá a língua portuguesa ganhar outros contornos e reconhecerá no escritor angolano muito da nossa melhor tradição literária.

TRANSCRIPT

  • Ondjaki

    Bom dia

    camaradas

  • ao camarada antnio

    a todos os camaradas cubanos

    tambm para esses meus incrveis companheiros

    escolares: bruno b., romina, petra, romena, catarina,

    aina, luaia, kal, filomeno, cludio, afrik, kiesse, helder, bruno viola,

    murtala, iko, tandu, fernando, mrcia,

    carla scooby, enoch, mobutu, felizberto, eliezer, guigu, filipe, man,

    vanuza, hlio, del, srgio cabeleira,

    e todos os outros que esto includos nestas vivncias

    mas cujos nomes o tempo me roubou [e os nomes

    verdadeiros que deixei nesta estria so

    para vos homenagear, s isso]

    ainda: ao jacques, pela oportunidade

    de me fazer rebuscar todo este sonho

    maria che, que ps o espanhol

    na boca dos camaradas professores cubanos

    ao rykard, que ayudou

    dada, seu mimo, sua peculiar reviso

    E tu, Angola:

    Sob o mido vu de raivas, queixas

    e humilhaes, adivinho-te que sobes,

    vapor rseo, expulsando a treva noturna.

    Carlos Drummond de Andrade

  • BOM DIA, CAMARADA LEITOR BRASILEIRO!

    A publicao no Brasil do romance Bom dia camaradas, do jovem escritor angolano

    Ondjaki, torna-se uma tima oportunidade para retomarmos um contato extremamente

    proveitoso que houve um dia: a ligao com a literatura africana de lngua portuguesa,

    continente que abriga a origem de boa parte da nossa rica bagagem cultural. No

    novidade que os escritores ditos regionalistas brasileiros influenciaram

    profundamente as geraes que iriam fundar as modernas literaturas nacionais africanas,

    particularmente as de Angola e Cabo Verde, mas poucos sabem que, fugindo censura

    da ditadura salazarista, alguns acabaram publicando obras suas no Brasil, como os

    angolanos Manuel dos Santos Lima e Castro Soromenho, ou por aqui se refugiaram,

    como Luis Romano, um dos fundadores da literatura caboverdiana em crioulo. Hoje,

    infelizmente, parco nosso conhecimento daquela literatura - o moambicano Mia

    Couto, o caboverdiano Germano de Almeida e o angolano Jos Eduardo Agualusa

    brilham solitrios.

    Ondjaki, que significa, na lngua nacional umbundu, guerreiro, embora nascido em

    1977, j tem construda uma slida carreira literria. Poeta (Actu sanguneu, de 2000, e

    H prendisajens com o xo, de 2002), contista (Momentos de aqui, de 2001, e E se

    amanh o medo, de 2004), romancista (O assobiador, de 2002, e Quantas madrugadas

    tem a noite, de 2004), esse Bom dia camaradas sua primeira investida na prosa de

    fico. Inicialmente publicado em Luanda, pelas Edies Ch da Caxinde, em 2000,

    apareceu em Portugal trs anos depois, ganhando em seguida traduo para o francs

    (pela editora sua La Joie de Lire, em 2004), espanhol (pela uruguaia Ediciones de la

    Banda Oriental, em 2005) e o alemo.

    A marca que assinala e diferencia a literatura de Ondjaki, e que se encontra

    caracteristicamente nesse belssimo Bom dia camaradas, o lirismo. Um lirismo que

    envolve tudo - mesmo os momentos de maior apreenso e incerteza - no vu da poesia,

    que a uns pode parecer ingenuidade, mas que com certeza utopia - essa ideia vaga e

    abstrata que modifica o mundo... Poesia que transparece nas epgrafes, nas vozes do

    brasileiro Carlos Drummond de Andrade e do angolano scar Ribas, e em frases, como

    no jardim havia umas lesmas que deviam ser mais velhas porque sempre acordavam

    cedo ou o abacateiro est a espreguiar-se, que se deixam colher fceis nas pginas

    deste romance.

    No raro, percebe-se nesse lirismo ressoar um curioso dilogo com a literatura

    brasileira - Guimares Rosa mostra-se na manufatura inusitada de novas palavras ou na

    vitalizao de outras, insufladas pelo sopro da fora potica; mas percebe-se tambm o

    leitor inteligente de Raduan Nassar e de Clarice Lispector, de Adlia Prado e de Manoel

    de Barros, e o ouvinte atento da msica popular brasileira, o fazedor Caetano Veloso

    em particular: tudo isso Ondjaki absorve e transforma em prosa originalssima.

    Falamos de lirismo e falamos de influncias. Falemos de temas. Bom dia camaradas,

    se no inaugura a fico da Angola ps-colonial, sem dvida instaura a prosa da Luanda

    de classe mdia ps-colonial. Estivemos acostumados a pensar em Angola - na frica,

    de maneira geral - como lugar do rural ou das disputas ideolgicas transmudadas em

    guerras. Se este tempo ainda no acabou - e no acabou - sem dvida se transformou.

  • H hoje, apesar de toda precariedade, uma sociedade que tenta se modernizar e uma

    cidade que se quer moderna: Luanda. E nela que transcorre a histria narrada por um

    menino no nomeado - que bem poderia ser a do prprio autor - vivendo numa Angola

    dos finais dos anos 80, ainda sob os eflvios da guerra fria - os cubanos, que l

    chegaram em 1975, permanecendo at 1991, so importantes personagens do livro.

    Ondjaki nos traz um convincente relato desses fundamentais anos de mudanas e

    esperanas. No mais a viso desamparada e repleta de culpas de alguns escritores

    portugueses - os tugas - que participaram da guerra colonial, nem tambm a viso

    militante dos escritores angolanos dos tempos heroicos de Agostinho Neto - mas a viso

    realista e pragmtica de uma classe mdia que tenta se erguer em meio ao caos. O

    menino, filho de um alto funcionrio do governo, tem um pajem - o camarada

    Antnio, cozinheiro e voz de uma certa camada popular -, estuda numa boa escola que

    tem professores cubanos, e desfruta de algumas benesses, como pegar boleia (carona)

    no carro do Ministrio e contar com telefone e geleira (geladeira) em casa.

    A histria, em si, aparentemente banal. O menino relata seu dia a dia de coisas

    desimportantes - como por exemplo, sua surpresa ao descobrir que os professores

    cubanos se espantavam com o fato de os alunos possurem calculadoras eletrnicas e

    relgios e a nsia com que se regalavam com a fartura de comida; ou o temor provocado

    pelo Caixo Vazio, uma lenda urbana da infncia; ou ainda os preparativos para um 1

    de Maio nacionalista e autorreferente.... No entanto, como toda boa literatura, no o

    que se conta o que importa, mas o como se conta: e aqui estamos em mos seguras.

    Ondjaki consegue manter viva a narrativa, pela capacidade incomum de conseguir

    manifestar-se pelo narrador-menino, sem que isso, em nenhum momento, soe artificial

    ou forado.

    E essa talvez seja outra grande contribuio de Ondjaki: lemos um texto em lngua

    portuguesa, mas num magnfico desvio do portugus-padro, um portugus no

    recheado de palavras e expresses angolanas mas pensado e escrito em portugus de

    Angola, algo que ns, brasileiros, bem conhecemos, pois embora falemos uma lngua

    que j no mais o portugus, continua, entretanto e por isso mesmo, sendo-o mais

    ainda... (Aqui vale o parnteses: muitas das palavras e expresses angolanas presentes

    em Bom dia camaradas sendo estranhas para ns, brasileiros, no o so para os

    portugueses, devido influncia das linguagens nascidas na grande comunidade

    expatriada angolana junto juventude lisboeta...)

    Enfim, Bom dia camaradas um desses livros que, no tendo sido escrito para um

    pblico especfico, acabar, com toda certeza, ampliando o leque, interessando tambm

    a esta vasta massa de leitores que o mercado hoje nomeia como jovens adultos - algo

    como aquele clssico indispensvel, Os meninos da rua Paulo, de Frenc Molnar:

    quantos de ns um dia passeamos pelas ruas de Budapeste, sofrendo com aquele bando

    de garotos numa Hungria do final do Sculo XIX? Pois assim se d tambm com esse

    Bom dia camaradas. Ao final, nos familiarizamos tanto com os personagens, seus

    anseios, seus sonhos que, como o narrador, sofremos com antecedncia a separao. A

    diferena, talvez, seja que a histria relatada aqui estabelece um arco de continuidade: o

    que ocorreu a cada um dos meninos podemos apenas imaginar, mas certamente sabemos

    que cumpriro o ciclo da vida, crescero, envelhecero, morrero - mas o romance,

  • bem, esse renasce a cada leitor que, abrindo suas pginas, l a primeira frase - Mas,

    camarada Antnio, tu no preferes que o pas seja assim livre?, eu gostava de fazer essa

    pergunta quando - ... e no para mais...

    Luiz Ruffato - escritor, autor de Mamma, son tanto felice e O mundo inimigo.

    I

    Tu, saudade, revives o passado,

    reacendes extinta felicidade.

    scar Ribas,

    Cultuando as musas

    Mas, camarada Antnio, tu no preferes que o pas seja assim livre?, eu gostava de

    fazer esta pergunta quando entrava na cozinha. Abria a geleira, tirava a garrafa de gua.

    Antes de chegar aos copos, j o camarada Antnio me passava um. As mos dele

    deixavam no vidro umas dedadas de gordura, mas eu no tinha coragem de recusar

    aquele gesto. Servia-me, bebia um golo, dois, e ficava espera da resposta dele.

    O camarada Antnio respirava primeiro. Fechava a torneira depois. Limpava as mos,

    mexia no fogo do fogo. Ento, dizia:

    - Menino, no tempo do branco isto no era assim...

    Depois, sorria. Eu mesmo queria era entender aquele sorriso. Tinha ouvido histrias

    incrveis de maus-tratos, de ms condies de vida, pagamentos injustos, e tudo mais.

    Mas o camarada Antnio gostava dessa frase dele a favor dos portugueses, e sorria

    assim tipo mistrio.

    - Antnio, tu trabalhavas para um portugus?

    - Sim, - sorria. - Era um senhor diretor, bom chefe, me tratava bem mesmo...

    - Mas isso l no Bi?

    - No. J aqui em Luanda mesmo; eu j tou aqui h muito tempo, menino... inda o

    menino no era nascido...

  • Eu esperava sentado por mais palavras. O camarada Antnio fazia l as atividades da

    cozinha, sorria, mas ficava calado. Todos dias ele tinha o mesmo cheiro, mesmo quando

    tomava banho, parecia sempre ter aqueles cheiros da cozinha. Ele pegava na garrafa de

    gua, enchia com gua fervida, voltava a pr na geleira.

    - Mas, Antnio, ainda quero mais gua...

    - No, menino, j chega - ele dizia. - Seno depois no almoo no tem gua gelada e

    a me fica chateada...

    Quando arrumava a garrafa de gua, e limpava a bancada, o camarada Antnio

    queria continuar com as tarefas dele sem mim ali. Eu atrapalhava a livre circulao pela

    cozinha, alm de que aquele espao pertencia s a ele. Gostava pouco de ter gente ali.

    - Mas, Antnio... Tu no achas que cada um deve mandar no pas? Os portugueses

    tavam aqui a fazer o qu?

    - ! Menino, mas naquele tempo a cidade estava mesmo limpa...Tinha tudo, no

    faltava nada...

    - Antnio, no vs que no tinha tudo? As pessoas no tinham um salrio justo,

    quem fosse negro no podia ser diretor, por exemplo...

    - Mas tinha sempre po na loja, menino, os machimbombos funcionavam... - ele s

    sorrindo.

    - Mas ningum era livre, Antnio... No vs isso?

    - Ningum era livre, como assim? Era livre sim, podia andar na rua e tudo...

    - No isso, Antnio - eu levantava-me do banco. - No eram angolanos que

    mandavam no pas, eram portugueses... E isso no pode ser ...

    O camarada Antnio a ria s.

    Sorria com as palavras, e vendo-me assim entusiasmado dizia esse menino!, ento

    abria a porta que dava para o quintal, procurava com os olhos o camarada Joo, o

    motorista, e lhe dizia: esse menino terrvel!, e o camarada Joo sorria sentado na

    sombra da mangueira.

    O camarada Joo era motorista do ministrio. Como o meu pai trabalhava no

    ministrio ele ajudava nas voltas da casa. s vezes eu aproveitava a boleia e ia com ele

    para a escola. Era magro e bebia muito, ento de vez em quando aparecia de manh

    muito cedo l em casa j bbado, e ningum queria andar no carro com ele. O camarada

    Antnio dizia que ele j estava habituado, mas eu tinha receio. Um dia ele deu-me

    boleia para a escola, e fomos a conversar.

    - Joo, tu gostavas quando os portugueses estavam c?

    - o qu, menino?

    - Sim, antes da independncia, eles que mandavam c. Tu gostavas desse tempo?

    - As pessoas dizem que o pas estava diferente... no sei...

    - Claro que estava diferente, Joo, mas hoje tambm est diferente. O camarada

    presidente angolano, os angolanos que tomam conta do pas, no so os

    portugueses...

    - isso, menino... - o Joo gostava de rir tambm, depois assobiava.

    - Tu trabalhavas com portugueses, Joo?

    - Sim, mas eu era muito novo... E estive no maqu tambm...

    - O camarada Antnio que gosta de falar muito bem dos portugueses... - provoquei.

  • - Camarada Antnio mais velho - disse o Joo, e eu no percebi muito bem aquilo.

    Ao passarmos por uns prdios muito feios, eu fiz adeus a uma camarada professora.

    O Joo perguntou logo quem era, e eu respondi: a professora Mara, ali o bairro dos

    professores cubanos.

    Ele me deixou na escola. Os meus colegas estavam todos a rir porque eu tinha

    chegado de boleia. Ns costumamos gozar sempre quem chega de boleia, por isso eu

    sabia j que eles iam me estigar. Mas at no estavam a rir s disso.

    - o qu? perguntei. O Murtala estava a contar uma cena que tinha-se passado na

    tarde anterior, com a professora Mara. - A professora Mara, mulher do camarada

    professor ngel?

    - Sim, essa mesmo... - o Helder disse a rir. - Ento ela hoje de manh, l na sala,

    tavam a fazer muito barulho ento ela quis dar falta vermelha no Clio e no Cludio...

    y... eles levantaram-se j pra ir refilar e a professora disse... - o Helder j no podia

    mais de tanto rir, ele tava todo vermelho - a professora disse: Ustedes queden-se ai,

    ou a ou qu!

    - Sim, e depois? - eu tambm j a rir s de contgio.

    - E eles se atiraram no cho mesmo...

    Rebentamos todos a rir. Eu e o Bruno tambm gostvamos de brincar com os

    professores cubanos, como eles s vezes no percebiam bem o portugus, ns

    aproveitvamos para falar rpido e dizamos disparates.

    - Mas ainda no sabes da melhor... - o Murtala chegou perto de mim.

    - O qu ento?

    - Ela tava a chorar e bazou pra casa!!! - o Murtala tambm estava a rir toa. - Deu

    borla s por causa disso!

    Ns tnhamos aula de Matemtica, era com o professor ngel. Quando ele entrou,

    estava chateado ou triste. Eu dei o toque no Murtala, mas no podamos rir. Antes de

    comear a aula, o camarada professor disse que a mulher dele estava muito triste porque

    os alunos tinham sido indisciplinados, e que num pas em reconstruo era preciso

    muita disciplina. Ele tambm falou do camarada Che Guevara, falou da disciplina e que

    ns tnhamos que nos portar bem para que as coisas funcionassem bem no nosso pas. A

    sorte foi que ningum queixou o Clio e o Cludio, seno com isso da revoluo eles

    tinham mesmo apanhado falta vermelha.

    No intervalo a Petra foi dizer ao Cludio que eles tinham de pedir desculpa na

    camarada professora, porque ela era muito boa, era cubana e estava em Angola para nos

    ajudar. Mas o Cludio no gostou nada de ouvir a Petra, e disse-lhe que s tinha

    cumprido a ordem dela, que ela tinha dito para eles se quedarem e ento eles atiraram-

    se para o cho.

    Todos gostvamos do professor ngel. Ele era muito simples, muito engraado. No

    primeiro dia de aulas ele viu o Cludio com um relgio no pulso e perguntou se o

    relgio era dele. O Cludio riu e disse que sim. O camarada professor disse: mira, yo

    trabajo desde hace muchos aos y todava no tengo uno, e ns ficamos muito

    admirados porque quase todos na turma tinham relgio. A professora de Fsica tambm

    ficou muito admirada quando viu tantas mquinas de calcular na sala de aula.

  • Mas no era s do professor ngel e da professora Mara. Ns gostvamos de todos

    os professores cubanos, tambm porque com eles as aulas comearam a ser diferentes.

    Os professores escolhiam dois monitores por disciplina, o que primeiro gostamos

    porque era assim uma espcie de segundo cargo (por causa do delegado de turma), mas

    depois no gostamos muito porque para ser monitor haba que ayudar a los

    compaeros menos capacitados - como diziam os camaradas professores, e tinha que

    se saber tudo sobre essa disciplina e no se podia tirar menos que 18. Mas o mais chato

    de tudo era que tinha mesmo que se fazer os trabalhos de casa porque era o monitor que

    controlava isso no incio da aula. Claro que ir dizer ao professor quem tinha feito a

    tarefa e quem no tinha feito, s vezes dava luta no intervalo, o Paulo que o diga quando

    lhe levaram no hospital com o nariz a sangrar.

    No fim da tarde a camarada diretora veio falar conosco. Ns gostvamos quando

    entrava algum na sala de aulas pois tnhamos que nos pr de sentido e fazer aquela

    cantoriazinha, que uns e outros aproveitavam j para berrar: bua taaardeeeee...

    camardaaaaa... diretoraaaaaaa.

    Ento ela veio avisar que amos ter uma visita-surpresa do camarada inspetor do

    Ministrio da Educao. Que ela sabia que ia ser por um destes dias mas que tnhamos

    que nos portar bem, limpar a escola, a sala, as carteiras, vir apresentveis (acho que

    foi isso que ela disse), e que o resto os professores depois explicavam.

    Ningum disse nada, nem ningum perguntou nada. Claro que s nos levantamos

    quando a camarada diretora disse ento at amanh, e este at amanh no era to

    ao calhas como isso, porque seria diferente ela dizer at para a semana, ento l nos

    levantamos e dissemos bem alto: ate... manh... camardaaaaaaaa...

    diretoraaaaaaaaa!

    ento tambm percebi que, num pas, uma

    coisa o governo, outra coisa o povo.

    Se, quando me acordavam, eu me lembrasse do prazer do mata-bicho assim de

    manhzinha, eu acordava bem-disposto. Matabichar cedo em Luanda, cuia! H assim

    um fresquinho quase frio que d vontade de beber leite com caf e ficar espera do

    cheiro da manh. s vezes mesmo com os meus pais na mesa, ns fazamos um

    silncio. Se calhar estvamos mesmo a cheirar a manh, no sei, no sei.

    O camarada Antnio tinha chaves de casa, mas s vezes eu estava na varanda e via-

    lhe ali sentado na zona verde. A minha me j tinha lhe dito para ele no vir to cedo,

    mas parece que os mais velhos tm pouco sono s vezes. Ento ele ficava ali nos

    bancos, s assim sentado. Quando ouvisse movimentos aqui em casa, ele aparecia

    devagar.

    - Bom dia, menino.

    - Bom dia, camarada Antnio... - eu esperava que ele fechasse o porto. - Hoje

    tambm estavas a muito cedo, Antnio...

  • - ... eu fico mesmo a sentado, menino... - sorrindo, ele. - A senhora j acordou?

    O camarada Antnio fazia aquela pergunta, mas eu no sei porqu. Ele sabia que a

    minha me era sempre a primeira a acordar. Se calhar no era para eu responder, mas eu

    s ia perceber isso muito mais tarde.

    - Hoje vieste de candongueiro, Antnio?

    - No, menino, vim a p mesmo; esta hora est fresco...

    - Desde o Golf at aqui, Antnio? - eu, em espanto.

    - Vinte minuto, menino... Vinte minuto...

    Mas no era verdade. O camarada Antnio gostava de dizer vinte minuto pra tudo.

    A gua j estava a ferver h vinte minuto, a me tinha sado h vinte minuto e faltava

    sempre vinte minuto para o almoo estar pronto.

    Fiquei na varanda. No jardim havia umas lesmas que deviam ser mais velhas porque

    sempre acordavam cedo. Eram muitas. Depois do mata-bicho, ficar assim na varanda

    com aquele fresquinho, ver as lesmas irem no sei aonde, aquilo dava-me sono outra

    vez. Adormeci mesmo.

    Sempre era o sol que me acordava. Era muito impossvel na minha varanda descobrir

    o stio para onde ele ia a seguir. A perna estava quente e dormente, eu tinha uma

    comicho muito chata. Cocei. Depois ouvi a voz do Antnio, vinda l da cozinha.

    - Tava a chamar, camarada Antnio? - cheguei cozinha.

    - Telefonou a tia do menino, menino...

    - Qual tia, Antnio?

    - A tia de Portugal.

    - , Antnio, poas... e nem me acordaste... Eu queria falar com ela.

    - Ela queria falar com o pai, menino... - sorrindo.

    - Ento..., queria falar com o pai mas falava comigo... E ela disse o qu?

    - No disse, menino... Falou s era pra dizer no pai que ela tinha ligado, parece vai

    ligar, hora do almoo...

    - Mas telefonou a que horas, Antnio, eu no ouvi o telefone...

    - Nem faz vinte minuto, menino...

    O cheiro da cozinha, o apito da panela, a movimentao do camarada Antnio, tudo

    me dizia que deviam ser onze horas. Ainda no tinha feito as tarefas de Matemtica e

    Qumica, e devamos almoar ao meio-dia e meia. Decidi que j no ia tomar banho, at

    porque havia Educao Fsica tarde, assim o banho ficava j para a noitinha.

    Subi, fui fazer os deveres, como dizamos antigamente. A minha me tinha-me

    ensinado que primeiro estuda-se a matria e depois que se faz a tarefa, mas quando eu

    no tinha tempo ia ver a matria e resolvia isso logo. O Cludio, o Bruno e

    principalmente o Murtala sempre faziam assim os deveres, e diziam que funcionava. J

    a Petra todos os dias estudava, metia raiva aquela mida, no dia seguinte j sabia a

    matria toda, ns quando tnhamos uma dvida durante uma prova sempre lhe

    perguntvamos.

    A minha me chegou. Primeiro vai cozinha ver se o almoo est bem encaminhado,

    depois que vai pendurar as chaves no chaveiro, vai subir, perguntar-me se tenho os

    deveres feitos e vai tomar banho. S se eu estiver enganado, mas costuma ser assim.

  • - Tu que falaste com a tia Dada? - deu-me um beijinho, foi para a casa de banho,

    abriu a torneira. (Eu sabia!)

    - No, eu tava a fazer os deveres... Foi o camarada Antnio.

    - Mas o Antnio disse que tu estavas na varanda.

    - Sim, estava na varanda a fazer os deveres.

    - Mas j vos disse que quando o telefone toca, vocs atendem, no fazem o camarada

    Antnio vir da cozinha para atender o telefone... - era outro tom de voz.

    - Mas ele veio to rpido, me, que eu nem tive tempo... - ela entrou no banho. O

    barulho da gua interrompeu a conversa. Ainda bem.

    O telefone tocou. Fui a correr, estava convencido que era a tia Dada. Eu no lhe

    conhecia, mas j tinha falado com ela muitas vezes ao telefone, ento era muito

    engraado, porque eu s conhecia a voz dela. Uma vez ela ps-me a falar com o filho

    dela, e passamos a tarde toda a rir, eu e as minhas irms, por causa da maneira como ele

    falava. Eu quase nem conseguia responder, estive quase pra me atirar no cho de tanto

    rir, at a minha me teve que dizer que eu estava com clicas na casa de banho. A

    minha tia dava menos vontade de rir, porque ela falava muito devagar, tinha assim,

    como dizem os mais velhos - e o Cludio no me pode ouvir a dizer isto -, ela tinha uma

    voz doce.

    Mas no era ela ao telefone. Era a Paula da Rdio Nacional, queria falar com a minha

    me. Eu disse que ela estava no banho, mas ela quis esperar. A Paula tambm era outra

    pessoa que tinha uma voz doce, eu gostava muito de ouvir a voz dela na Rdio, mas

    assustei-me na primeira vez que lhe vi, porque pensei que uma pessoa com a voz dela

    tinha que ser baixinha, e ela era alta. Quando ouvi a minha me dizer sim, vou

    perguntar se ele quer..., desconfiei que era qualquer coisa relacionada comigo.

    - Olha, a Paula vai fazer amanh um programa sobre o 1 de Maio e queria recolher

    depoimentos de pioneiros... Tu queres ir?

    - Depoimentos ir l falar, n? - eu, embora j soubesse.

    - Sim, preparas qualquer coisa e amanh ela vem te buscar para irem fazer uma

    gravao.

    - Mas para um programa?

    - Mais ou menos, acho que para passar no noticirio, uma mensagem das crianas

    para os trabalhadores.

    - Ento vou ter que fazer uma redao, me? Ai, isso j d muito trabalho...

    - No, no tens que fazer uma redao porque no te vo deixar ler a redao, so s

    algumas palavras...

    - Tu podes me ajudar?

    - Com o texto no, filho... Tu escreves o que quiseres, eu posso corrigir-te os erros,

    mas o texto tem que ser teu.

    - T bem. Quero ir conhecer a Rdio. Se calhar ela deixa-me ver os instrumentos

    todos...

    - Sim, talvez, tens que lhe pedir.

    Assim j era hora do almoo. As minhas irms chegavam da escola, o meu pai

    tambm chegava. A casa ficava mais barulhenta, mais o barulho do rdio na sala para

  • ouvir as notcias, mais o rdio do camarada Antnio ligado na cozinha, mais a minha

    irm caula que queria contar tudo o que se tinha passado na escola nessa manh. Ela

    sabia que tinha que se despachar porque quando fosse uma hora em ponto ia ter que

    parar o relato para deixar os pais ouvirem as notcias.

    Ns ficvamos um bocado aborrecidos com as notcias, porque era sempre a mesma

    coisa: primeiro eram as notcias da guerra, que no eram diferentes quase nunca, s se

    tivesse havido alguma batalha mais importante, ou a Unita tivesse partido uns postes. A

    j dava risa, porque todo mundo ia dizer na mesa que o Savimbi era o Robin dos

    Postes. Depois tinha sempre algum ministro ou pessoa do bir poltico a dizer mais

    umas coisas. Depois vinha o intervalo com a propaganda das Fapla Ah, verdade, s

    vezes tambm falavam da situao na frica do Sul, l do ANC, enfim, isso eram

    nomes que uma pessoa ia apanhando ao longo dos anos. Tambm se aprendia muita

    coisa, porque a propsito disso, por exemplo, do ANC, que o meu pai nos explicou

    quem era o camarada Nelson Mandela, e eu fiquei a saber que havia um pas chamado

    frica do Sul onde as pessoas negras tinham que ir para casa quando tocava a

    campainha s seis da tarde, que elas no podiam andar no machimbombo com outras

    pessoas que no fosse negras tambm, e at fiquei bem espantado quando o meu pai me

    disse que esse camarada Mandela j estava preso h no sei quantos anos. Foi tambm

    assim que percebi porqu que os sul-africanos eram nossos inimigos, e que o fato de ns

    lutarmos contra os sul-africanos significava que ns estvamos a lutar contra alguns

    sul-africanos, porque de certeza que essas pessoas negras que tinham um machimbombo

    especial para elas no eram nossas inimigas. Ento percebi que, num pas, uma coisa o

    governo, outra coisa o povo.

    Depois destas notcias, e destas conversas, vinha o desporto. Mas tambm era sempre

    o Petro ou o DAgosto que ganhava, bem, a Taag depois ainda melhorou uns coche, at

    deu 11 a 1 noutra equipa, coitados!, o Cludio estigou mal o Murtala no dia seguinte,

    acho que o Murtala at chorou. uma e vinte, quando os meus pais tomavam caf,

    desligaram o rdio. O telefone tocou e agora eu tinha a certeza que era a tia Dada.

    O meu pai que falou com ela primeiro, estava a apontar o voo e as horas, assim eu

    soube que ela devia estar para chegar. Depois ela comeou a falar com cada um,

    primeiro a minha me, depois a minha irm, e eu percebi que ela estava a perguntar se

    queramos qualquer coisa. O meu pai fez-me sinal para eu no pedir muita coisa, porque

    eu sempre pedia demasiados lpis de cor, ou blocos de carta, e ainda por cima bu de

    chocolate. Assim tive mais tempo para pensar, e vi que cada um s estava a pedir uma

    coisa.

    - Ests bom, meu querido... - a voz dela, doce, doce.

    - Tou sim, tia... Olha, quando que tu chegas?

    - Eu chego amanh, sabias?

    - No, no sabia, que bom... Ento queres me perguntar o qu que eu quero, no ?

    - Sim, filho, diz l... - ela sorrindo muito.

    - Bem, como s posso pedir uma coisa... - virei-me para o outro lado, e ningum

    ouviu o que eu tinha pedido.

  • Depois do almoo, os felizardos - como dizia a minha me - iam dormir a sesta. Eu

    e ela tnhamos aulas tarde, ela porque era professora e eu porque era aluno. s vezes

    ela dava-me boleia. Eu ia frente, punha o carro em ponto morto e ligava a ignio.

    Como no podia fazer mais nada, ficava s ali a imaginar j quando eu ia conduzir,

    ch!, eu ia zunir bu, sempre isso eu pensava, ento acelerava um bocadinho, para ouvir

    o barulho e ajudar na imaginao. Se a minha me ouvisse eu dizia: que o carro est

    frio..., desculpa mesmo toa, porque s duas da tarde em Luanda o carro s est frio se

    tiver gelo em cima. Chega-te para l..., disse a minha me enquanto ocupava o lugar

    do condutor. Depois, a meio do caminho:

    - Me...

    - Diz.

    - A tia Dada vai trazer prendas para todos? - espanto.

    - Se ela puder traz...

    - Mas eles so quantos l em casa dela?

    - Ela e os trs filhos. Porqu?

    - E como que ela vai trazer prendas para ns que somos cinco, e ainda perguntou

    tambm coisas para o camarada Antnio... O carto dela tem direito a isso tudo?

    Mas j estvamos a chegar esquina onde eu descia, e ela no teve tempo de

    responder. Deu-me s um beijinho e disse-me para eu pensar naquilo do 1 de Maio

    para a Rdio, porque era para o dia seguinte.

    Estava muito calor. Alguns colegas cheiravam muito a catinga, o que normal para

    quem tenha vindo a p para a escola. Ficvamos ali a conversar fora da sala, sempre

    com a esperana de que o professor no viesse. Era incrvel, como que ns queramos

    sempre acreditar que era possvel haver uma borla todos dias, porque se dependesse de

    ns, era isso que desejvamos. Como dizia a professora Sara, parece que vocs no

    sabem que a vossa misso estudar, talvez da aquela dica da caneta ser a arma do

    pioneiro. Ou ento ela dizia: no se esqueam que a escola a vossa segunda casa,

    mas isso era perigoso dizer ao Murtala, porque depois ele estava to vontade que

    adormecia na sala de aulas com a desculpa de estar no quarto dele.

    A conversa estava boa. O Bruno veio dizer, com aquela cara que s ele sabe fazer e

    toda a gente acredita mesmo, que havia um grupo de gregos que estava a assaltar

    escolas. Eu j tinha ouvido dizer qualquer coisa, mas pensava que era naquelas escolas

    mais distantes, l para o Golf. Mas o Bruno tipo que estava bem informado mesmo:

    - Ep, o filho da minha empregada que me contou. Ontem ele nem foi s aulas,

    veio com a me dele para a minha casa, e tinha bu de feridas...

    - , afinale? - um algum.

    - Y, aquilo foi mesmo a srio, tipo que eles so quarenta ou qu...

    - Quarenta?! - o Cludio estava a achar exagero. Mesmo os Za quando assaltavam

    no eram tantos.

    - Za? Za?! - continuava o Bruno, aquela cara sria s de de-vez-em-quando. - Za

    brincadeira ao p do Caixo Vazio... Olha, eles vm num camio, todos vestidos de

    preto; cercam a escola e ficam mesmo espera que os alunos saiam... Depois vo

    apanhando assim mesmo as pessoas a correr... quem for apanhado...

    - Hum... Acontece o qu? - Murtala, assustado, aqueles olhos de rato j bem acesos.

  • - Acontece o qu... Ali sai tudo: gamam mochilas, te chinam, violam midas e

    tudo, so bu eles, e nem a polcia vai l, ch, tambm tem medo...

    Quando a aula comeou, os rapazes estavam todos a pensar no Caixo Vazio. Cada

    um imaginava j estratgias de fuga, o Cludio de certeza ia comear a trazer o canivete

    dele pontimola, o Murtala que corria muito que estava safo, eu ia ficar atrapalhado se

    no meio da correria os culos cassem, o Bruno tambm; bem, as meninas, coitadas!,

    coitada da Romina que s de ouvir falar na estria j ia comear a chorar e ia pedir

    me dela para no vir na escola durante uma semana; a Petra tambm ia ter medo, mas

    estaria sempre mais preocupada com as aulas. Olhei para o Bruno: na carteira dele,

    muito agitado, ele suava na preparao de qualquer coisa. Primeiro pensei que ele

    estivesse a desenhar, mas depois senti o cheiro da cola. Antes do fim da aula, pediu

    Petra as canetas de feltro. Metia medo: tinha feito um caixo pintado de preto, com uma

    caveira bem horrorosa, e escrito a vermelho assim tipo sangue: Caixo Vazio Passou

    Aqui!

    No segundo tempo a professora Sara explicou que o camarada inspetor ia fazer a

    visita-surpresa nos prximos dias, que eles no sabiam quando mas que estava quase a

    acontecer. Explicou-nos tudo outra vez, como devamos cumprimentar, que no

    devamos fazer barulho, pediu at para virmos penteados, claro que isso era mais para o

    Gerson e o Bruno que nunca se penteavam (o Bruno disse-me que tinha-se penteado

    pela ltima vez quando tinha sete anos, mas acho que era balda), e raramente tomavam

    banho, isso devia ser verdade porque se notava pelo cheiro, tanto que ningum gostava

    de sentar com eles.

    A professora Sara depois ralhou a Petra por estar a fazer perguntas indiscretas.

    que a Petra queria perguntar, e perguntou mesmo, como que a visita do camarada

    inspetor ia ser surpresa se ns j sabamos que ele vinha, apesar de no sabermos o dia,

    e tambm j sabamos os temas que iam nos perguntar e que estava tudo preparado para

    essa surpresa.

    Enfim, a Petra de vez em quando tinha destas coisas, e depois ainda ficava triste

    porque ningum lhe apoiava e a professora tinha lhe ralhado. Bem feita, que pra no

    se armar em chica esperta e ver se fica um bocadinho menos agitadora.

    - Mas eu fao as compras que quiser desde

    que tenha dinheiro, ningum me diz que

    levei peixe a mais ou a menos...

    - Ningum? [...] Nem tem um camarada

    na peixaria que carimba os cartes quan-

    do levantas peixe quarta-feira?

    Acordei cedo e muito bem-disposto. Tinha duas coisas maravilhosas para fazer nesse

    dia: uma que ia ao aeroporto buscar a tia Dada, a outra que ia Rdio Nacional ler a

  • minha mensagem para os trabalhadores. Pensei que seria bom aproveitar umas coisas da

    redao que eu tinha feito sobre a aliana operrio-camponesa, que tinha tido cinco

    valores na prova de Lngua Portuguesa.

    Fui abrir a porta ao camarada Antnio, e claro que ele disse que tinha chaves e que

    no era preciso. Mas quando eu fazia isso, no sei como que ele no percebia,

    porque eu tinha alguma coisa para lhe dizer.

    - Bom dia, camarada Antnio - abri o porto pequeno.

    - Bom dia, menino - metendo a mo no bolso, a ver se era mais rpido e se ainda ia

    conseguir abrir a porta com a chave dele. - No preciso, menino, eu tenho chave...

    - Sabes onde que eu vou hoje, Antnio? - pensava que ele no sabia.

    - Ento, o menino vai no aeroporto buscar a tia.

    - E depois vou mais aonde?

    - Vem pra casa, menino...

    - No, no! Vou Rdio Nacional!

    - !, o menino vai falar na Rdio? - ele sorrindo, e fechando o porto com a sua

    chave.

    - Ainda no sei... Vou eu e mais dois midos de outras escolas, no sei se depois

    passam todas as mensagens.

    Fomos para a cozinha. J matabichou, menino?, mas eu queria era ainda falar

    daqueles assuntos da Rdio, j estava a imaginar o camarada locutor anunciar o meu

    nome, e os meus colegas tambm se calhar iam ouvir, e se os meus professores cubanos

    ouvissem?, ser que isso tambm d para misturar com a revoluo? Eu dava voltas

    cabea, estava feliz, tambm porque era dia de receber prendas, e finalmente ia

    conhecer a minha tia de voz doce, s esperava que ela no fosse muito alta. Come

    devagar, menino, isso faz mal, mas comer devagar como, se a Paula podia chegar a

    qualquer momento e eu tinha que estar pronto para ir Rdio Nacional de Angola!

    Fiquei de boca. Para j, na entrada, um camarada pediu o meu nome e apontou l

    numa folha e deu um carto que eu tinha que pendurar na camisa, tipo eu era j o

    camarada diretor da Rdio, gostei muito daquele estilo do carto, ch, s o poster!, tava

    a matar. Na entrada havia uma fonte de gua, e at tinha duas tartarugas vivas ali a

    passearem, eu at perguntei Paula como que elas ficavam ali assim, abandonadas,

    sem ningum a tomar conta.

    - Sem ningum a tomar conta? Como assim? - ela no tinha percebido.

    - Sim, ningum gama essas tartarugas?

    A Paula riu, mas riu porque no conhecia o Murtala, que tinha uma tcnica silenciosa

    de gamar mambos, mesmo que fossem animais. Uma vez quando fomos ao jardim

    zoolgico o Cludio apostou que ele no ia conseguir gamar nada do jardim, e quando o

    Murtala viu aqueles macaquinhos bem pquis, quis j agarrar um. O macaco lhe esticou

    uma lambisgoia do lbio que at saiu sangue. O Cludio comeou a rir bu, mas quando

    voltamos para a escola descobrimos que aquilo era s uma manobra do Murtala, o

    muadi queria mesmo era gamar o pitu do macaco, e comeou a nos rir no

    machimbombo quando ns tvamos bem fobados e ele tava a pitar aquelas amndoas

    bem duras. Coitado do Murtala, no dia seguinte ns que lhe rimos, ele tava com uma

  • diarrumba daquelas que o Bruno chama de diarrumba de cinco em cinco, depois

    percebemos que era minutos.

    Mas a Paula disse que tnhamos de ir andando, passamos por um corredor bem

    limpo, at fiquei burro, poa, afinal Luanda tem stios assim to bonitos? isso mesmo,

    a Rdio Nacional bonita, eu estava encantado, tinha pequenos jardins l dentro, eu at

    queria pedir Paula para ir ali brincar depois das gravaes, enquanto esperava pelos

    meus pais. O estdio era pequeno e tinha um mambo na parede parecia rolha da garrafa

    de vinho, bu giro. Tivemos muita sorte, eu e outros dois pioneiros, porque eles nos

    explicaram tudo, como que funcionavam as coisas, at nos deixaram fazer gravaes

    de brincadeira primeiro, depois a luz faltou e estivemos muito tempo espera que o

    gerador arrancasse. Para nos distrair a Paula fez uma brincadeira, que eu acho um

    bocado perigosa: disse que se quisssemos podamos dizer disparates durante cinco

    minutos. Primeiro todo mundo ficou calado, depois ela disse que era verdade mesmo,

    que podamos dizer, depois eu perguntei se ela ia dizer aos nossos pais, e ela jurou que

    no. Mas claro que os mais velhos nunca sabem bem aquilo que ns sabemos e quando

    ns comeamos a metralhar a brincadeira s durou um minuto, porque foram trinta

    segundos de rajada tripla e outros trinta para ela nos conseguir calar. Eu pensei que

    estava bem treinado, consegui em vinte e dois segundos dizer todos os disparates que

    conhecia, mesmo os piores de todos, e aproveitei os outros oito segundos para fazer

    misturas e combinaes daqueles que eu sabia com os que tinha acabado de ouvir, mas

    aqueles midos tambm eram poderosos, pra dizer a verdade.

    A luz voltou mais rpido que o tempo de arrancar o gerador. Ento fomos pressa

    gravar as mensagens antes que a luz fosse de novo. Quando eu ia tirar o meu papel com

    as coisas que tinha escrito, a Paula explicou-me que no era necessrio porque j

    tnhamos ali uma folha da redao com os textos de cada um. At foi mais fcil,

    porque aquilo j vinha batido mquina e tudo.

    Quando a gravao acabou, fomos l para o ptio. Estivemos durante algum tempo a

    fazer troca de disparates e de estigas. Aqueles midos no me aguentavam nas anedotas,

    mas tinham estigas que podiam fazer uma pessoa chorar. Ao contrrio das estigas da

    minha escola, aquelas eram muito curtas, muito simples, mas muito fortes. Foi com eles

    que aprendi aquelas: engoliste ccega, arrotaste gargalhada, quem acorda primeiro na

    tua casa que pe cueca, bebeste gua de bateria, comeaste a dar arranque ou a to

    famosa deste duas voltas no bacio, berraste Angola grande! Eles sabiam tambm

    bu de estrias de gregos e qu, e eu at ia perguntar sobre o Caixo Vazio, mas a Paula

    veio dizer que os meus pais j estavam espera.

    - Portaste-te bem? - a minha me.

    - Sim, portamo-nos todos bem. Os outros midos eram bem fixes... - abro a janela,

    ponho a cabea de fora, est calor.

    - Como que foi? Leste a tua mensagem?

    - Afinal no foi preciso, me.

    - No?

    - No, eles tinham um papel l na Rdio, com carimbo e tudo, j tinha l as

    mensagens de cada um. Eu li uma e eles leram as outras duas.

  • Estava muita gente no aeroporto c fora. sempre assim quando chega um voo

    internacional. Ao p da porta de sada das pessoas havia uma pequena confuso, vio os

    Faplas virem a correr, pensei j que ia sair tiro. Subi no cap do carro, espreitei por

    cima dos ombros daquelas pessoas todas.

    Estava muito calor, e lembro-me de ter sentido uma vez mais aquele cheiro assim

    generalizado de catinga. O tipo de cheiro muitas vezes tambm me dizia que horas

    eram... Mas aquele quente-abafado misturado com cheiro a peixe seco queria dizer, isso

    sim, que tinha chegado um voo nacional. No ia ao aeroporto muitas vezes, mas estas

    coisas todo mundo sabia, ou melhor, cheirava. Fingi que estava a limpar o suor da testa

    com a manga da t-shirt e aproveitei para cheirar o meu sovaco. Podia estar pior...,

    pensei.

    Subi no cap do carro, espreitei por cima dos ombros daquelas pessoas todas. At

    sorri: um macaco to bonitinho estava a saltitar no ombro de uma senhora estrangeira,

    enquanto um senhor, acho que era o marido, lhe tirava fotografias. O macaco delirava,

    dava saltos mortais na cabea da kota, fingia que lhe estava a catar piolhos, o marido

    dela, acho que era o marido, era um senhor muito branco mas estava muito vermelho de

    rir. De repente, um Fapla aproximou-se por trs, esticou uma bofa no macaco, coitado,

    ele saltou, deu duas cambalhotas no ar, ainda gritou, caiu no cho e desatou a correr.

    No consegui mais ver o macaco, comeou uma pequena confuso, o outro Fapla

    chegou perto do marido da senhora e tirou-lhe a mquina das mos. Dava para ouvir

    mais ou menos a conversa, o senhor estava a tentar falar portugus, o Fapla estava

    chateado, abriu a mquina assim de repente, tirou o rolo, deitou fora. A acho que a

    senhora comeou a chorar, mas perceberam que aquilo era a srio. Coitados, eles no

    deviam saber que em Luanda no se podia tirar fotografias assim toa. O Fapla disse:

    a mquina est detida por razes de segurana de Estado! Depois explicaram-lhes que

    no podiam estar a tirar fotografias no aeroporto, ele disse que s estava a fotografar o

    macaco e a mulher, mas o Fapla filipou e disse que a mulher e o macaco estavam no

    aeroporto e que nunca se sabia onde que aquelas fotografias iam parar. Desci do cap,

    s pensei ainda bem que no houve tiros, porque s vezes as balas perdidas matam

    pessoas, como me contava tantas vezes o camarada Antnio, que l no Golf,

    principalmente fim-de-semana, menino, havia pessoas que bebiam, davam tiros pro

    ar, e at uma vizinha dele j tinha morrido s de estar a dormir na esteira e uma bala ter

    lhe cado na cabea. Ela nunca mais acordou, disse-me o camarada Antnio.

    A tia Dada demorou bu para sair. A o meu sovaco j tava mesmo a cheirar mal, e

    eu que queria que ela me conhecesse assim bem cheiroso! Aquilo ali no tapete de

    receber as malas sempre demorava tanto, s vezes at desaparecia bagagem e no valia

    a pena ir refilar com ningum, era mesmo uma questo de sorte ou de azar, como dizem

    os mais velhos. Mas depois ela saiu, e quando se aproximou senti que ela tambm j

    tava bem transpirada, de modo que ficou empatado.

    Ela foi uma das poucas pessoas mais velhas que eu encontrei que no falou comigo

    como se eu fosse uma criana pateta, cumprimentou-me com dois beijinhos quando eu

    at estava habituado a dar um beijinho na cara dos mais velhos, e disse-me s assim:

    est muito calor, no achas?

  • Agora vou dizer: gostei muito do fato de ela no ser alta, mas o que eu gostei mesmo

    foi de ouvir a voz dela assim ao vivo, aquilo sim, podia-se dizer que era uma voz doce.

    Ajudas-me?, ela passou-me um saco que eu acendi logo as vistas: tinha bu de

    chocolate l dentro.

    medida que amos andando para o carro, vi que ela estava procura de qualquer

    coisa na bolsa dela, depois pousou os sacos, e perguntou-me: podes ir chamar aquele

    mido para eu tirar uma foto dele com o macaquinho? Olhei, fiquei contente. O

    macaquinho j estava outra vez contente, dava saltos mortais no ombro do menino,

    fingia que tava a catar piolhos na cabea dele, ou ento tava mesmo.

    - No podes, tia. No podes tirar fotografias quele macaco! - disse-lhe, enquanto

    arrumava o saco com os chocolates no lugar onde eu ia sentar.

    - No posso tirar uma fotografia quele macaquinho to inofensivo?

    - No, tia, no podes...

    - E porqu?

    - No sei se vais perceber...

    - Ento diz l - ela, sria.

    - No podes tirar fotografias quele macaco..., por razes de segurana de Estado, tia

    - eu, srio.

    Mas ela percebeu logo, porque olhou para os Faplas l ao longe, e guardou a

    mquina num instantinho. Sentou-se ao meu lado, e no disse nada no caminho at

    nossa casa, ficou s a olhar, depois abriu a janela e parecia que estava a fazer como eu

    fao de manh, a cheirar o ar.

    Encontramos o camarada Antnio no porto pequeno. Ele vinha muito todo a rir, tipo

    j conhecia a minha tia de algum lado. Claro que ele vinha com os cheiros do almoo j

    pronto, de certeza, eu tenho certeza mesmo, porque j no trazia o avental vestido, o que

    queria dizer que j estava a pr ou j tinha posto a mesa. Ora, quando ele punha a mesa,

    faltava vinte minuto para a comida estar pronta.

    Estava tanto calor que a primeira coisa que fizemos todos foi descalar as sandlias.

    A tia Dada subiu para o quarto onde ela ia ficar, depois foi tomar banho, devia estar

    cheia de calor porque tambm j estava muito avermelhada. Quando ela desceu para

    almoar, as minhas irms j tinham chegado a casa e tambm estavam a cheirar a

    catinga, enfim, no se pode fazer nada com este calor. Foram-se lavar rapidamente

    debaixo dos braos antes de nos sentarmos mesa.

    Por acaso, ou melhor, no foi por acaso, foi porque a tia Dada tinha chegado e tinha

    tanta coisa para contar, quase no ouvimos o noticirio. Eu queria que ela me contasse

    como tinha sido a viagem de avio, especialmente aquela parte quando o avio acelera

    bu parece que vai se partir todo. A minha irm mais nova depois piscou-me o olho,

    assim ela queria j era ver as prendas.

    Logo depois do almoo, porque ns pedimos muito, fomos para o quarto da tia Dada

    abrir a mala dela. Estava bem pesada e eu pensei que ela tinha trazido muita coisa para

    ns, mas o peso era por causa de tanta comida que ela tinha trazido, entre essa comida, a

    minha prenda.

    - Dada, o que isso? - a minha me, espantada.

  • - So batatas... O teu filho disse que tinha saudades de batatas! - ela, pegando nas

    batatas espalhadas no meio da roupa.

    A sorte que a tia Dada era muito simptica e trouxe, para alm das batatas, um

    monto de chocolates.

    s vezes, quer dizer, muito de vez em quando, aparecia chocolate l em casa, mas

    assim trs tabletes para cada um, acho que era a primeira vez que me acontecia. Eu

    fiquei logo a pensar naquela quantidade de coisas que ela tinha trazido, e eu estava

    mesmo a pensar que ela devia ter pedido a diferentes pessoas, com diferentes cartes de

    abastecimento, para comprar aquelas prendas, mas ela disse que no tinha carto

    nenhum, e que no era preciso isso. Como eu estava atrasado para a escola, pensei em

    deixar a conversa para mais tarde.

    Na escola, quela hora, fazia sempre muito calor, dava sono. Isso s me chateava

    porque em vez de ficarem a contar estrias, alguns colegas ficavam aquele tempo a

    dormir, enquanto os professores no chegavam. Mas l ao longe vi o Murtala chegar

    acompanhado do camarada professor ngel e da mulher dele. Perdi as esperanas que

    fosse haver borla.

    No fundo, at que tivemos uma tarde bem agradvel, estvamos a preparar as aulas

    como iam ser se o camarada inspetor aparecesse de surpresa, embora, como a Petra nos

    explicou no intervalo, j no podemos chamar aquilo de surpresa! O Cludio sempre

    tinha qualquer coisa para responder, e disse Petra que era uma surpresa que ns

    sabamos j, mas no quer dizer que deixasse de ser surpresa. Tambm ningum se

    interessou pela discusso, porque estvamos todos mais preocupados com a questo do

    Caixo Vazio, se eles iam ou no aparecer na nossa escola. O Murtala apostava que sim,

    porque eles tinham estado a semana passada numa escola ao p do mercado Ajuda-

    Marido, que j era bem perto da nossa. O Murtala desenhou na areia um mapa bem fixe,

    com o Largo das Heronas, o mercado, o Kiluanji, o Kanini e a nossa escola. Foi bom

    ele ter feito esse mapa e explicar-nos o que ele pensava que ia acontecer, porque mesmo

    ao lado o Cludio desenhou um mapa da nossa escolca e cada um disse logo ali quais

    eram as melhores hipteses de fuga, contando com o peso da mochila ou no, com o

    fato de eles nos perseguirem ou no, e at a possibilidade de os camaradas professores

    cubanos - com essas estrias de revoluo - quererem fazer trincheira e desafiar o

    Caixo Vazio.

    Depois de nos explicarem as matrias que poderiam ser perguntadas, os professores

    foram conosco orientar-nos nas limpezas, cada turma limpava a sua sala de aulas mais o

    corredor em frente, depois o ptio era dividido por cinco turmas, o ptio de dentro por

    outras trs, e as paredes ficavam assim mesmo como estavam. A Petra s dizia com ar

    de gozo que essa visita do camarada inspetor j tava a dar muito trabalho.

    Como acabamos as limpezas rapidamente e tinha ficado tudo mais ou menos bem

    limpo, a camarada diretora deixou-nos sair mais cedo, mas antes ainda fizemos

    formao e cantamos o hino. A Romina convidou alguns colegas e os camaradas

    professores para irem lanchar casa dela, porque o irmo dela fazia anos e no tinha

    convidados, ento a me dela disse que ela podia levar pessoas da escola. Quando vi a

    Romina falar com o Murtala achei logo m ideia, porque o Murtala era muito fobado e

    no tinha respeito a comer na casa dos outros.

  • A me da Romina mandou todo mundo ir lavar as mos, especialmente o Bruno e o

    Cludio que tambm tiveram que lavar os sovacos porque aquilo j era de mais.

    A mesa estava bem bonita: tinha croquetes, sandes, gasosas, fruta, bolo e torta,

    ficamos logo com gua na boca, todos com os olhos j to acesos que ningum deu os

    parabns ao mido. E quem tinha os olhos mesmo bem acesos era o camarada professor

    ngel, tipo nunca tinha visto tanta comida junta, dava gosto ver-lhe atacar o po com

    compota.

    Como tvamos a fazer muita confuso, e tambm j no aguentvamos comer mais

    porque a me da Romina no parava de trazer mais comida, a Romina ps um filme

    para vermos. Eu queria olhar para o ecr, mas no conseguia deixar de olhar para os

    camaradas professores cubanos, porque a cara deles, no sei se sei explicar, mais

    parecia a minha cara da primeira vez que vi televiso a cores na casa do tio Chico -

    gostei tanto que at fiquei meia hora a ouvir notcias em lnguas nacionais. A camarada

    professora Mara s faltava j babar, o que ela no fazia porque estava sempre de boca

    cheia a comer a compota de morango.

    Era um filme do Trinit, tava todo mundo bem entusiasmado, a vibrar mesmo, saa j

    palmas e tudo quando o artista esquivava bala. O Cludio disse: ch, eu tenho um tio

    Fapla que tambm esquiva bala!, mas acho que ningue acreditou, toda gente sabia que

    s o Trinit que sabia fazer isso. Quer dizer, talvez o Bruce Lin tambm soubesse.

    Assim, todos distrados, ningum reparou que o Murtala no estava a ver o filme

    conosco. Comeamos a ouvir uns barulhos estranhos, primeiro pensamos que era no

    filme. A Romina levantou mais o som, mas parecia que era doutro lugar. A Romina

    parou o vdeo. Toda a gente ficou s assim a tentar ouvir o silncio.

    Afinal o som vinha da cozinha.

    Tipo que estvamos com medo: levantamos todos devagarinho, passamos pela mesa

    que j no tinha comida mais nenhuma. O Cludio: eu num tavisei, Romina...

    Quando chegamos cozinha vimos que os pratos suplentes tambm j no tinham

    comida, as duas travessas com pudim s tinham um coche de molho, e a torta estava

    mesmo bem torta, s tinha duas fatias. Mas o barulho continuava e no se percebia de

    onde vinha. Algum chamou: Murtala... Murtala, ts aonde? O som ficou um

    bocadinho mais alto, assim a quebrar aquele silncio. A me da Romina ps as mos na

    boca e disse ai meu Deus!, e ns fomos todos de repente ver: atravessamos a cozinha,

    e chegamos ao outro lado da geleira. Da camisola amarela-rototota, a barriga enorme do

    Murtala podia se ver, bem inchada. O muadi tinha ficado preso e no conseguia

    abandonar o esconderijo. O Cludio comeou a rir toa.

    Depois de arrastar a geleira, o Murtala soltou-se e foi para a casa de banho vomitar

    tanto que foi preciso tirar cinco baldes de gua da banheira para acabar com aquele

    espetculo.

    Como tava a ficar escuro, os camaradas professores foram acompanhar o Murtala a

    casa. O Cludio s dizia: eu num tavisei, Romina? diz s seu num tavisei...

    Quando eu estava a chegar a casa, vi no porto do Bruno Viola um grupo de midos,

    fiquei logo curioso. Antes de entrar em casa, fui l ver o que era. Encontrei tambm um

    silncio que parecia que a nica pessoa que podia falar era a Eunice.

  • - Eram mais de cinquenta, tou-vos a dizer... Mais de cinquenta... - a Eunice, com voz

    de choro.

    - Eunice, desculpa l, mas tambm num preciso aumentar j assim - dizia o

    irmo do Caducho, mas tava com riso nervoso.

    - Ep, quem quer acreditar, acredita... A escola tava toda cercada, eu escapei por um

    triz.

    - Mas isso foi a que horas? - algum ps.

    - Foi h bocadinho mesmo, tvamos no ltimo tempo e comeamos a ouvir o barulho

    do camio a derrapar...

    - Era o Caixo Vazio?! - eu.

    - Era o Caixo Vazio, mas o camio estava cheio de homens... - a Eunice, a limpar as

    lgrimas. E eu na minha cabea imaginava o mapa do Murtala: o Ngola Kanini era

    mesmo ao lado da nossa escola, o prximo ataque s podia ser no Kiluanji ou no

    Juventude em Luta.

    - Tu viste o camio? Era um ural, n? - o Pequeno j a adiantar pormenores.

    - Eu no vi o camio, mas tenho colegas que viram. No camio que est o caixo...,

    um caixo de verdade, assim preto. Eles chegaram, uns comearam a saltar do camio

    e a cercar a escola, ns comeamos a lhes ver da janela, depois comearam a gritar.

    Quatro que ainda tavam em cima do camio abriram o caixo...

    - E tinha o qu l dentro? - Bruno Viola.

    - No deu para ver... Eu s corri... quando sa l fora vi bu de homens, mdia duns

    setenta...

    - Eram cinquenta, Eunice, cinquenta! - o Pequeno fez rir a malta.

    - Eram bu, pronto! Olha, comecei a correr, um ainda me agarrou aqui - mostrou o

    arranho -, mas eu s continuei a correr e ele por sorte me deslargou...

    - E a polcia no veio?

    - A polcia?! Achas...? A polcia tem medo deles... Estavam todos vestidos de preto,

    depois roubaram mochilas, e uma moa disse que ouviu gritos duma professora l

    dentro, parece que tava a ser violada...

    - Violada mesmo? - Bruno Viola, sempre assanhado, queria pormenores.

    - Sim, dizem que eles sempre violam as professoras, depois cortam a chucha e

    penduram no quadro... Amanh se tiver l uma chucha no quadro quer dizer que

    violaram... - a Eunice bazou, devia estar cansada do medo.

    Quando eu entrei em casa a minha tia disse que eu estava branco. que tambm me

    tinham dito j que eles violavam as professoras e matavam os professores, s ningum

    sabia o que eles faziam com os alunos que nunca mais apareciam, pelo menos esta era a

    estria que a filha da empregada do Bruno sempre contava, que tinham lhe contado num

    primo dela. Agora, claro, era mesmo tudo verdade, se a prpria Eunice tinha visto o

    camio com o caixo vazio, e se ela tinha arranho e tudo... Quer dizer que dentro de

    dias era a nossa escola, tinha que telefonar ao Cludio para ele levar o pontimola dele.

    O que me ps mais bem-disposto foi encontrar aqueles chocolates que a tia Dada

    tinha trazido, to bons, to bons, to bons!, que eu tive que comer as trs tabletes de

  • seguida antes que algum me viesse dizer que s podia comer quatro quadrados. Depois

    fui falar com a tia Dada:

    - Tia, no percebo uma coisa...

    - Diz, filho.

    - Como que tu trouxeste tantas prendas? O teu carto d para isso tudo?

    - Mas qual carto? - ela fingiu que no estava a perceber.

    - O carto de abastecimento. Tu tens um carto de abastecimento, no ? - eu, a

    pensar que ela ia dizer a verdade.

    - No tenho nenhum carto de abastecimento, em Portugal fazemos compras sem

    carto.

    - Sem carto? E como que controlam as pessoas? Como que controlam, por

    exemplo, o peixe que tu levas? - eu j nem lhe deixava responder. - Como que eles

    sabem que tu no levaste peixe a mais?

    - Mas eu fao as compras que quiser, desde que tenha dinheiro, ningum me diz que

    levei peixe a mais ou a menos...

    - Ningum? - eu estava mesmo espantado, mas no muito, porque tinha a certeza que

    ela estava a mentir ou a brincar. - Nem tem um camarada na peixaria que carimba os

    cartes quando levantas peixe quarta-feira?

    Depois a minha irm mais nova veio perguntar umas coisas de Matemtica, e eu

    lembrei-me que tinha de ir telefonar para algum a contar o mujimbo do Caixo Vazio.

    Claro que j estava a pensar em dizer que eram pra uns noventa ou cem, que tinham

    trazido trs camies cheios de caixes, e que nem todos os caixes estavam vazios, e at

    que eu achava que era nesses caixes que eles punham os midos que desapareciam.

    Mas estava to cansado que adormeci.

    Sonhei, claro, com o camio ural do Caixo Vazio a chegar na nossa escola, sonhei

    com os camaradas professores cubanos a nos ensinarem a cavar uma trincheira e a

    trabalhar com aks, e que quando eles iam nos agarrar porque as nossas metralhadoras

    no tinham balas, apareceu o Trinit com a polcia e prenderam todos.

    O sonho foi to barulhento e cheio de confuses e tiros, que a minha me teve que

    me acordar quase de manh a pedir-me para eu no dizer tantos disparates enquanto

    sonhava.

    - Mas porqu que essa praia dos sovi-

    ticos?

    - No sei, no sei mesmo... Se calhar ns

    tambm devamos ter uma praia s de

    angolanos l na Unio Sovitica!

    Acordei novamente bem-disposto porque ia praia com a tia Dada, as minhas irms

    tinham aulas, e eu era o nico que podia lha acompanhar. Isso tambm era bom porque

  • como amos estar s os dois, ia dar para lhe enfiar umas baldas que no tinha ningum

    ali para me desconfirmar.

    Bom dia, menino!, disse o camarada Antnio quando eu j estava a acabar o mata-

    bicho. Bom dia, camarada Antnio, tudo bem?, enquanto ele comeava a arrumar

    melhor os copos, mudavas os pratos de stio, abria a geleira e espreitava, abria a janela

    da cozinha, tudo s por hbito, no que aqueles gestos fossem para alguma coisa, no

    sei se j repararam que os mais velhos fazem muito isso.

    - Menino, hoje vai passear? - e continuava a mexer nas coisas.

    - Sim, vou com a tia Dada praia, o camarada Joo vai nos levar.

    - A tia trouxe prenda, menino? - ele tava a rir, assim queria perguntar se a tia tinha

    trazido prendas pra todos.

    - Tu ainda no falaste com ela, Antnio?

    - A tia tava a falar ainda com o pai, ainda no falei bem...

    - Hum... - eu sorri. - Acho que ela trouxe-te uns sapatos bem bonitos...

    Samos com o camarada Joo. Ele no apareceu bbado porque tinha respeito pelas

    pessoas que no conhecia bem, e era chato dar logo m impresso no primeiro dia, quer

    dizer, acho que foi isso, porque at veio com uma balalaica toda bem engomada, tipo j

    queria que a tia tambm lhe desse uma prenda. Estvamos a descer a Antnio Barroso.

    - Ts a ver ali, tia? - apontei para a rotunda que se via l em baixo.

    - Sim...

    - Ali a piscina do Alvalade! - o camarada Joo comeou j a rir, ele sabia o truque.

    - Mas no vejo piscina nenhuma, filho...

    - No vs porque estamos longe, mas quando chegarmos l j vais sentir.

    O carro aproximou-se da rotunda e teve que afrouxar por causa dos buracos. Havia

    bu de gua assim a escorrer no passeio, os midos tomavam banho nos buracos e no

    stio onde a gua saa tipo a fonte luminosa da Ilha que nunca chegou a funcionar. O

    carro tipo tava a dar soluos.

    - Agora j vs, n, tia? - eu ria, ria.

    - aqui?

    - Sim, esta a piscina dois do Alvalade.

    Passamos no Largo da Maianga e eu s tava a rezar para que o camarada sinaleiro

    estivesse l. Aquele camarada mandava poster: dum chapu azul bem bonito, luvas

    brancas tipo casamento, cinto que vinha do ombro, cruzava frente e s acabava j

    junto da pistola, ch, camarada sinaleiro tambm podia dar tiro! e ele tava l mesmo. A

    minha tia no disse nada, mas eu reparei que ela ficou impressionada a olhar para ele,

    acho que em Portugal no h camaradas sinaleiros assim posterados.

    Depois subimos, pedi ao camarada Joo para passar no Hospital Josina Machel, que a

    minha tia pensava que se chamava Maria Pia, eu at escapei j rir, percebi que aquele

    devia ser o nome que os tugas davam ao hospital, mas tambm, poas, dar j nome de

    pia num hospital estiga. Descemos a Praia do Bispo, a avenida tinha acabado de ser

    arranjada porque h pouco tempo o camarada presidente tinha passado por ali, e como o

    camarada presidente passa sempre a zunir, com motas e tudo, normalmente as estradas

    so asfaltadas por causa disso, h muita gente que gosta que o camarada presidente

  • passe na rua deles porque num instantinho desaparecem os buracos e s vezes at

    pintam os traos da estrada.

    - Tia... Portugal j tem um fogueto?

    - No, no tem, filho.

    - que ns temos, e no do tempo dos portugueses, no penses... - apontei para a

    esquerda, onde se podia ver o Mausolu. - Quer dizer, ainda no t pronto, mas t

    quase...

    Quando passamos mesmo na esquina, o Maxando estava na porta, com as barbas dele

    enormes, o penteado rasta, e aquela cara que metia medo, eu no sei porqu, coitado,

    porque ele at estava sempre a sorrir e falava muito bem com a Tia Maria e com a Av,

    mas ns tnhamo muito medo dele.

    - Mas porqu que vocs tm medo desse Maxando? - a minha tia, olhando ainda para

    ele, ele a sorrir.

    - Dizem que ele fuma muita liamba, tia.

    - Mas ele faz mal a algum?

    - No sei, tia, mas tambm ele tem um jacar em casa, isso j no normal! - eu.

    - Um jacar?

    - Sim, ele tem um jacar l no quintal dele.

    - Mas como? Um jacar?

    - Sim, tia, um jacar, daqueles muito compridos. Ele tinha um co, o co foi

    atropelado por um militar, e como o militar no tinha um co para lhe devolver, lhe

    arranjou um jacar - isto era verdade, todos da Praia do Bispo sabiam.

    - E dorme onde esse jacar? Est preso?

    - Sim, t sempre preso, dorme l mesmo na casota do co - parece que a minha tia

    no queria acreditar.

    - filho, tu j viste esse jacar?

    - Eu nunca vi, tia, mas toda gente sabe que ele tem l o jacar..., s que o jacar dele

    s gosta de ver o Maxando... S ele que lhe d de comer, sabes...

    Passamos na fortaleza, entramos na marginal. Eu bem vi que toda aquela zona estava

    cheia de militares, mas pensei que fosse alguma reunio l em cima no palcio. A

    marginal tinha Faplas com metralhadoras e obuses e de repente comeamos a ouvir as

    sirenes. Deve ser o camarada presidente que vai passar, eu avisei, talvez lm em

    Portugal seja diferente e ela no saiba. O camarada Joo encostou o carro

    imediatamente no passeio, travou, desligou, ps ponto morto e saiu do carro. Eu sa

    tambm do carro, s que a tia Dada nunca mais saa. Eu vi l longe os mercedes a virem

    bem lanados e estava preocupado porque a tia Dada nunca mais saa do carro. Como j

    era tarde pra dar a volta, e nunca se podia correr nestas situaes, falei-lhe pela janela:

    - Tia, tia!, tens que sair do carro, rpido.

    - Mas sair do carro porqu? Eu no quero fazer chichi! - ela estava mesmo sentada,

    impressionante, e ainda estava a rir.

    - Mas isto no para fazer chichi, tia, tens que sair do carro e ficar paradinha a fora,

    aqueles carros pretos so do camarada presidente.

    - filho, no preciso, ele vai passa do outro lado.

  • - Dona Eduarda, por favor, sai s do carro... - o camarada Joo falava tipo tava com

    febre.

    - Tia, a srio, sai do carro agora! - quase gritei.

    Estava sol. A minha tia saiu do carro, deixou a porta aberta. Fiquei mais descansado,

    embora ela parecia que no estava em sentido. O pior foi que quando os carros j

    estavam mesmo perto, ela ps a mo dentro do carro para apanhar o chapu. Tia,

    no!, gritei mesmo. Acho que ela se assustou e ficou quietinha. Passaram as motas,

    depois dois carros, mais um, e no ltimo que tinha as janelas todas escuras acho que ia o

    camarada presidente. Depois ainda tive que lhe dizer para ficar quieta que s podamos

    voltar para o carro passado um bocado. O camarada Joo tava a transpirar a srio.

    Entramos no carro.

    - filho, que cerimnia!

    - Pois... Escapaste ver a cerimnia de tiros que ia haver se algum Fabla te visse a

    mexer, parecia que tavas a danar, ainda por cima ias pr o chapu...

    - Mas sempre que o presidente passa vocs tm que ficar em sentido? - ela estava

    mesmo espantada.

    - No bem em sentido, mas tens que sair do carro para verem que no ests armada

    ou que no vais tentar alguma coisa... - eu parece que tambm tinha ficado a transpirar.

    - Ah sim...?

    - Ah pois, e assustei-me mesmo quando vinhas buscar o chapu porque os carros j

    tavam demasiado perto e podiam pensar que vinhas apanhar outra coisa qualquer...

    O camarada Joo nem estava a conseguir assobiar. Claro que podia no ter

    acontecido nada, mas claro que tambm podia ter acontecido qualquer coisa.

    Continuamos em direo s praias, o mar tava picado, um bocadinho picado, ento

    ficava assim daquela cor que no d para descobrir se verde, se azul, se qu. De

    que cor est o mar, tia?, eu queria ver se ela ia dizer verde ou azul, porque as minhas

    irms sempre viam o mar azul, nunca conseguiam ver o verde do mar. Est escuro...,

    est verde..., ela percebeu que havia truque na pergunta. Joo, tu achas qu?, mas o

    camarada Joo s riu, a eu j sabia que ele no queria participar na conversa.

    - Ento vou-te dizer um segredo, tia...

    - Diz l, filho.

    - O mar est verzul! - eu ria, ria.

    Fomos dar a volta quase l no fundo, at onde se podia ir de carro; vimos as

    barricadas. Isto o que ?, a minha tia perguntou ao camarada Joo. quartel... um

    quartel, ele respondeu. Tinha militares soviticos a guardar a entrada, os soviticos

    sempre faziam cara de maus, todos esbranquiados por mais sol que apanhassem,

    muitas vezes ficavam assim tipo lagostas.

    - Podemos ficar j aqui, no? - ela.

    - No, aqui no podemos, tia... Vamos l mais para ao p da rotunda.

    - Mas no podemos ficar aqui, nesta praia to verzul - ela sorriu para mim.

    - No, tia, aqui no se pode. Esta praia to versul dos soviticos.

    - Dos soviticos? Esta praia dos angolanos!

    - Sim, no foi isso que eu quis dizer... que s os soviticos que podem tomar

    banho nessa praia. Vs aqueles militares ali nas pontas?

  • - Vejo sim...

    - Eles esto a guardar a praia enquanto outros soviticos esto l a tomar banho. No

    vale a pena ir l que eles so muito maldispostos.

    - Mas porqu que essa praia dos soviticos? - agora sim, ela estava mesmo

    espantada.

    - No sei, no sei mesmo. Se calhar ns tambm devamos ter uma praia s de

    angolanos, l na Unio Sovitica...

    O camarada Joo deixou-nos na praia, ele vinha nos apanhar mais tarde, antes da

    hora do almoo. Estendemos as toalhas, fomos tomar banho, mas eu acho a gua da Ilha

    sempre um bocado fria, claro que a minha tia disse que estava uma maravilha.

    Nadamos, depois voltamos s toalhas:

    - Tia, em Portugal, quando o vosso camarada presidente passa, vocs no saem do

    carro?

    - Bem, eu nunca vi o presidente passar l, mas garanto-te que ningum sai do carro,

    alis s vezes nem se percebe que o presidente vai num carro.

    - Hum!, no acredito, ele no tem as motas da polcia pra avisar? No pem militares

    na cidade?

    - No, militares no pem. s vezes, se uma comitiva muito grande, convocam a

    polcia para afastar o trnsito, mas coisa muito rpida, o presidente passa e pronto.

    Claro que os carros se afastam, tambm obrigatrio, mas porque ouvem as sirenes,

    percebes?

    - Sim.

    - Mas quando, por exemplo, o presidente sai ao domingo, vai a casa de algum amigo,

    j no leva a polcia, s vezes at vai a p - ela estava mesmo a falar a srio, isso que

    me deixou impressionado.

    - O vosso presidente anda a p? - at desatei a rir. - Ep, tenho que contar essa aos

    meus colegas!, ainda querem estigar os presidentes africanos... Presidente em frica,

    tia, s anda j de Mercedes, e prova de balas.

    Abrimos o saco com as sandes. A minha tia no tinha muita fome, mas depois de

    nadar e correr, uma pessoa fica sempre fobada. Comi mesmo com vontade, ela ainda me

    avisou se eu ia ter apetite para o almoo, apetite nunca falta, tia, no te preocupes, eu

    respondi j tipo mais velho. Depois a tia Dada me perguntou coisas de Luanda, como

    era na escola, se eu gostava dos professores, o que aprendamos, como eram os

    professores cubanos, etc. E achei muito engraada a cara de espanto que ela fez quando

    lhe contei que ali em Luanda havia muitos bandidos, mas que era uma profisso

    perigosa.

    - Uma profisso perigosa, dizes tu... E porqu?

    - Ento, tia, muito arriscado... - comecei j a explicar. - Se o assalto corre bem, no

    h makas, s lucro no dia seguinte. Mas se te apanham, ai u!, a j a tua sade t em

    risco!

    - Makas problemas, no?

    - Sim, maka problema, assunto, tambm pode ser maka grossa, ou maka s...

    - E essa dos bandidos, que maka ?

  • - isso que tou ta explicar... Se for apanhado maka grossa mesmo!

    - Porqu?

    - Ento, tia, por exemplo, no bairro do Cludio, apanharam um bandido, coitado, s

    gostava j de gamar candeeiros, pronto, devia ser l o negcio que ele tinha no Roque

    ou qu... y... Apanharam o muadi, lhe deram tanta porrada, tanta porrada, mas tanta

    porrada, que no dia seguinte ele voltou l procura da orelha, tia!

    - Da orelha? - ela coou a orelha.

    - Sim, ele tinha perdido a orelha l, o Cludio mesmo que foi lhe mostrar onde

    que tava a orelha, porque eles tinham visto a orelha logo de manh, mas no mexeram a

    pensar que era feitio!

    - Ai, meu Deus... - ela, impressionada.

    - Mas espera... Vou te contar j outras estrias, mais quentes...

    - Mais quentes? - esse era o problema de falar com pessoas de Portugal, havia

    palavras que eles no entendiam.

    - Sim, mais quentes, quer dizer... Olha, por exemplo, ali na Martal quando apanham

    um bandido, ele at pensa que vai ser bem tratado.

    - Porqu?

    - Porque na Martal ningum bate nos bandidos. Alis, h l um senhor mesmo, acho

    que at mais velho, que quando ele aparece, a confuso acaba. Bem, claro que quando

    apanham o bandido, logo assim na hora, ele ainda tem que aguentar umas chapadas, uns

    pontaps, mas depois chega esse senhor, ningum mais toca no bandido.

    - Ento fazem o qu?

    - Espera, j vais ver... Fica para as cenas dos prximos captulos... - mas ela fez uma

    cara estranha.

    - Cenas dos prximos captulos?! Como assim?

    - Calma s, tia... - fui tirar uma gasosa do saco, abri, dei um golo. - Ento esse kota

    chega, diz a toda gente para ir dormir. S vo j alguns homens com ele, levam o

    bandido para um quintal tambm a, e l do a injeo. E o bandido a para mesmo.

    - A injeo?! Mas esse tal kota enfermeiro? - eu at tive que desatar a rir com

    vontade.

    - Enfermeiro daonde, tia? Qual enfermeiro esse?! A injeo que lhe do com

    gua de bateria! O muadi para logo ali.

    - Para? Para de fazer o qu?

    - Para!, para mesmo, stop, apaga, campa! Ele morre, tia!

    A tia Dada j no quis mais comer a sandes dela, acho que tinha ficado maldisposta

    com a estria ou qu.

    - Mas isso verdade, filho? - ela se calhar queria que eu dissesse que no.

    - At posso te mostrar um colega meu que vive nesse bairro, tia!

    Peguei na sandes dela, perguntei se ela queria; ela no queria, comi! Mas como ela

    estava impressionada j nem lhe contei o que andavam a fazer no Roque Santeiro

    quando apanhavam ladres, coitados, punham s o pneu, petrleo, e ainda ficavam ali a

    ver o homem a correr dum lado pro outro, a pedir para lhe apagarem. No sei, h quem

    diga que nessa altura de queimarem os ladres com pneus os assaltos diminuram, mas

  • isso j no posso confirmar. Ela tambm no sabia que em Moambique cortavam

    dedos.

    - Cortam os dedos todos? - ela j queria se assustar outra vez.

    - No, tia, cortam um de cada vez. Um assalto, um dedo, percebes?

    Para a conversa ficar mais ligeira, tambm lhe contei algumas estrias que eu sabia

    de bandidos que se safavam, como aquele que estava na Praia do Bispo a ser perseguido

    por um polcia, depois algum gritou agarra ladro! e um outro polcia pensou que

    esse polcia fosse o ladro e lhe vuzou um tiro das costas, o bandido fugiu e ainda tava a

    rir.

    - Quer dizer, h muitos tipos de bandidos ento, esse foi um sortudo.

    - Ah pois, mas tambm h os azarados... Olha, no prdio do Bruno...

    - filho, essa estria tambm acaba assim muito mal?

    - No, no, acho que esta tu aguentas - ela riu. - No prdio do Bruno, um bandido

    tava a assaltar o quinto andar, e tem um kota no sexto andar que quem trata desses

    mambos; telefonaram pra ele, ele acordou, saltou por um buraco que h mesmo no sexto

    andar e caiu em cima do bandido, s que o muadi, com o susto, desata a correr para as

    escadas, s que, qual o azar dele?, tambm j tinha l um guarda espera dele...

    - E ele como que fez? Agora no me vais dizer outra vez cenas do prximo

    captulo, vais?

    - No, no h intervalo... Ele liga o turbo, salta e atira-se do quinto andar!

    - E morreu?

    - Nem pensar! Caiu, tipo que tava morto, s demorou dois segundos na pausa, olhou,

    levantou bem fixe, s tava a coxear, mas a correr, tia, tou ta dizer: coxos, aleijados,

    pessoa em cadeira de rodas, aqui em Angola so os que vuzam mais...

    - Ento ele safou-se, no?

    - Ep, nada!... V s o azar do indivduo - achei que aquela palavra ficava bem -,

    tava a passar um carro da polcia, foi apanhado, o Bruno disse que at ficou com pena

    dele, poa, j tava quase a fugir... Mas assim, o azar persegue uma pessoa.

    Quando o camarada Joo veio nos buscar, o calor j tava insuportvel. Olhei para as

    rvores, os pssaros estavam l sentadinhos, no se mexiam, tambm deviam estar a

    suar. Do outro lado da rua havia barracas a vender peixe seco, esse sim, quanto mais

    ficasse ao sol, melhor. Aquele cheirinho abriu-me o apetite, h quem no goste, mas eu

    acho que o peixe seco cheira muito bem, parece sumo concentrado de mar.

    J a voltar para casa, passamos no Largo do Kinaxixi, porque eu queria que a tia

    Dada visse o blindado que estava l em cima.

    - Tia, em Portugal tem um blindado assim pendurado num largo?

    - No, acho que no tem...

    - Pois aqui tem! Este largo o Largo do Kinaxixi - apresentei.

    - Mas antigamente no era este blindado que estava aqui em cima, sabes? - ela

    olhava para o blindado com ateno, ia tirar uma fotografia mas eu disse-lhe que era

    melhor no, porque ainda estavam muitos Faplas ali na rua.

    - Era outro blindado? Maior ou mais pequeno? - eu no sabia que aquele j era o

    segundo blindado.

  • - No, no percebeste...

    - Ento?

    - Ali havia uma esttua.

    - Uma esttua? Qual esttua?

    - A esttua da Maria da Fonte - ela parecia ter a certeza.

    - No sei, tia... Aqui em Luanda normalmente s temos fontes, assim mesmo a sair

    gua com fora, quando rebenta algum cano... - o camarada Joo tava a rir.

    Quando chegamos a casa estavam espera de ns para almoar. Tava a dar inveja: as

    minhas irms ainda tinham bu de chocolate, isso sempre acontecia, eu era o primeiro a

    acabar as coisas.

    A minha tia foi-se lavar, no sei porqu, at dizem que a gua salgada faz bem

    pele, para qu ir logo a correr tomar banho? J na minha casa tambm tm muito essa

    mania, toda hora j banho, banho, acho que no preciso, se calhar basta de dois em

    dois dias, ou coisa assim. As minhas irms dizem que os rapazes so sempre assim, no

    gostam de tomar banho, mas eu tenho uma colega que s toma banho uma vez por

    semana, isso tambm porque na casa dela a gua s vem uma vez por semana, ento

    eles enchem a banheira e depois tm que poupar a gua durante a semana toda.

    - Correu tudo bem, filho? - a minha me veio me dar um beijinho.

    - Tudo bem, sim - dei-lhe tambm um beijinho. - E vimos o camarada presidente

    passar, na marginal.

    - Ahn...

    - Mas a tia Dada tipo que queria levar um tiro...

    - Porqu? - o meu pai perguntou.

    - Ento... Ela no sabia que tinha de sair do carro, depois ainda escapou meter a mo

    no carro para tirar o chapu mesmo quando o camarada presidente ia passar... - sentei-

    me. - A sorte que os Faplas no viram nada...

    Eram dez para a uma . O meu pai ligou o rdio, mas ainda estava s a dar msica.

    Fechei as portas, as janelas, liguei o ar condicionado, ou ar concionado, como ns

    dizamos. Senti o cheiro da comida vir da outra sala, era peixe grelhado de certeza

    absoluta.

    - Me...

    - Diz, filho.

    - Tu sabias que em Portugal o presidente sai assim na rua sem guarda-costas, e vai

    comprar o jornal?

    - Sim, filho, se h condies de segurana para isso.

    - Bem, pelo menos ao domingo deve haver, porque a tia Dada disse que o presidente

    portugus ao domingo sempre vai comprar o jornal a p... Mas isso verdade mesmo,

    me?

    - Se verdade o qu?

    - Que ele no pe militares na rua para sair de casa? Vai assim sozinho... E se tiver

    bicha no stio de comprar jornal? - comecei a rir. - A me uam se ele fica mesmo

    espera...

  • Fomos almoar.

    Eu queria saber se tinha havido problemas nas outras escolas, se o Caixo Vazio

    tinha aparecido perto da escola da minha irm mais velha, porque, segundo o mapa do

    Murtala, acho que a escola dela vinha a seguir. Ela disse que no, que tinham visto um

    camio e comearam a gritar, mas os professores no deixaram ningum sair das salas, e

    ainda bem porque era s um camio que ia a passar em direo ao quartel. Mas, claro,

    como que eu no tinha pensado nisso, eles nunca iriam de manh l na escola da

    minha irm, de manh eles deviam estar a dormir, por isso que tinham ido escola da

    Eunice da parte da tarde, e tambm j tinham ido ao Mutu-Ya-Kevela noite.

    Quando cheguei escola, mal via a cara da Romina, percebi logo que havia qualquer

    coisa. Estavam todos c fora, de mochila nas costas, ningum queria entrar na sala.

    - Mas o qu? - perguntei.

    - L na sala... - a Romina, quase a chorar.

    - L na sala tem qu? - tambm me deu um medo.

    - Tem uma mensagem.

    O Cludio e o Murtala me pegaram pelos braos, mesmo eu sem querer ir, iam-me

    empurrando, entramos na sala. Olha ali!, me disseram, enquanto olhavam nervosos l

    para fora, em direo ao Kiluanji, que ficava junto estrada que vinha do mercado

    Ajuda-Marido, de onde eles iam vir, segundo o Murtala. Mas olho aonde?, eu no

    estava a ver nada. Ali!, apontaram de novo.

    A parede tinha mil e uma inscries, a caneta de feltro, giz, lpis de cor, sangue,

    guache, tudo e mais alguma coisa, e eles queriam que eu olhasse para ali - mas depois

    reconheci a frase: Caixo Vaziu pasar aqui, hogi, s cuatro da tarde! Estremeci.

    - Mas Bruno... - a Petra vinha l com a teoria dela. - Esse hogi no quer dizer que

    seja hoje mesmo, ningum sabe desde quando que isso est a!

    - Est a mesmo desde hoje mesmo! - o Bruno estava nervoso tambm. - Se no

    como que nunca tnhamos visto? Diz l, tu j tinhas visto isso a, minha espertinha?

    - a Petra ficou calada.

    - Bem... - disse o Cludio. - O problema vai ser convencer os professores que isso

    verdade.

    - Pois ... - a Romina que j no tinha mais unhas para roer, eu tive que lhe dizer que

    ela j ia fazer sangue.

    - Eles nunca acreditam, mas depois so os primeiros a correr... - continuou o Cludio.

    - O qu que vamos fazer?

    - Segundo as minhas contas, ainda podemos apanhar uma falta coletiva... Se todos

    estiverem de acordo, ningum vai aula - disse a Petra.

    - Mas isso no to simples, Petra... - eu. - Mesmo se faltarmos aula das quatro,

    imagina que eles vm atrasados, ou chegam mais cedo, como que vai ser?

    - Ah, verdade...

    - Bom, ento s temos uma hiptese...

    - E qual ento? - o Bruno, enquanto olhava para o muro, devia estar a procurar o

    stio mais baixo pra saltar.

    - Aceitamos ir s aulas, mas toda a gente fica com as mochilas nas costas... Qualquer

    coisa, salva-se quem puder..., quer dizer, quem correr!

  • A Romina tinha lgrimas nos olhos. Fiquei com pena dela, eu quase que sabia o que

    ela estava a pensar: s vezes, quando havia assim situaes de perigo, ela no se

    conseguia mexer, ficava s parada. E ela sabia que ia mesmo ser como o Cludio estava

    a dizer, se houvesse alguma coisa, todo mundo ia desatar a correr, ningum ia querer

    saber dos outros, era sempre assim. O Murtala estava to nervoso que no dizia nada, eu

    nem contei nada da estria da Eunice para no deixar a malta mais nervosa,

    principalmente a Romina.

    No primeiro tempo ainda tiramos os cadernos, escrevemos normalmente, mas

    estvamos bem atentos. Quem sentava perto da janela, principalmente o Bruno, o

    Filomeno e o Nucha, j nem ficavam sentados, toda hora a espreitar. Vimos um camio

    que todo o mundo pegou nas coisas e queria comear a levantar, a camarada professora

    Sara at se assustou, no percebeu o que se estava a passar, mas quando j amos abrir,

    o Murtala disse: no h maka, esse camio do prdio do Partido. Respiramos fundo,

    mas todo mundo ficou j com a mochila nas costas.

    A camarada professora Sara era muito boa, como viu que ningum tinha vontade,

    aproveitou s para explicar os pormenores do desfile do dia seguinte, mas tambm ela

    no sabia grande coisa, tinham-lhe dito ltima da hora que a nossa escola tinha sido

    convocada. Ela s nos disse pra irmos fardados, limpos, pra no esquecermos do leno

    da OPA, e quem quisesse podia trazer cantil. A concentrao era ali na escola s sete e

    meia, depois amos a marchar para o Largo 1 de Maio. Isto queria dizer que amos

    marchar com os trabalhadores e outros alunos, e que amos ver o camarada presidente

    sentado l na tribuna.

    No intervalo a dica do Caixo Vazio foi passada para outras turmas. Um professor

    zairense da sala 2 arrumou as coisas dele e no deu aula; segundo o Murtala, aquilo

    significava ou que ele era esperto ou que ele sabia muito bem a que horas vinha o

    Caixo Vazio. Os corredores estavam bem cheios, ningum tinha deixado as mochilas

    na sala, e havia mesmo quem j estivesse sentado nos muros, espera de um sinal de

    poeira ao longe, a indicar que o camio estava mesmo a vir.

    O Cludio no tinha trazido o pontimola, o Murtala tinha vindo de sandlias o que ia

    lhe dificultar a corrida, a Romina e a Petra estavam de saia, isso s podia facilitar as

    violaes, o Nucha v l que tinha a correia nos culos, ia dar para correr, mas eu, com

    o suor e a massa dos culos toda torta, estava-se mesmo a ver que os culos iam cair

    durante a corrida. Assim, tirei os culos, pus no bolso, o mundo ficou todo com falta de

    nitidez, mas no faz mal, pensei, fixei um ponto colorido que era a rvore atrs do

    muro que eu tinha escolhido pra saltar, agora s tenho que ser rpido, e no cair na

    correria. Cair era o pior, toda gente sabe disso, quando se cai os outros pisam, ningum

    para pra ver, ningum mais vai te salvar, vais ser pisado por aqueles midos todos a

    correr, e se estiveres consciente, o prprio homem do Caixo Vazio que vais ver a

    sorrir, se calhar com um canivete na mo.

    - Ests a pensar em qu? - a Romina, com a voz a tremer.

    - R... - pus os culos pra lhe ver melhor. - No prximo tempo, sentamos juntos, ali

    na carteira junto porta. Se houver alguma coisa, desatamos a correr...

    - Est bem, est bem... - ela estava mesmo nervosa. - E corremos pra onde?

    - Ts a ver aquela rvore cambuta ali?

  • - Y, tou a ver...

    - Samos a correr da sala, se estiver muita gente ali no corredor saltamos logo os

    arames em frente sala, corremos praquele canto onde tem o buraco, e se conseguirmos

    atravessar rapidamente a avenida, chegamos ali no prdio do Partido, a eles j no nos

    fazem nada...

    - T bem, t bem...

    - S no podemos cair, R, no podemos cair...

    - E se cairmos?

    - No podemos cair... Tem cuidado porque os mais velhos vo nos empurrar, s

    temos de correr em direo ao muro... - voltei a guardar os culos.

    O camarada professor de Qumica entrou na sala, e ainda por cima tinha trazido as

    calas dele de militar. Isso no era nada bom, porque podia dar raiva nos homens do

    Caixo Vazio. O Cludio deu-me o toque, encostou as mos na cala para me chamar a

    ateno, mas eu j tinha pensado nisso.

    - Pero qu es lo que pasa? Nadie ha trado los cuadernos hoy? - ele comeou a

    escrever o sumrio.

    - No isso, camarada professor. que hoje vamos ter uma visita...

    - Una visita? Es hoy la visita sorpresa del camarada inspector? - ele olhou para as

    calas gastas dele.

    - No, camarada professor - disse o Cludio. - Parece que outra visita, t ali

    escrito... - apontou para a parede.

    - Dnde, ah arriba? - fazia esforo com a vista para ler. - Y qu es eso del Caixo

    Vazio?

    - um problema, camarada professor, um problema... - a Petra, tambm com medo.

    - Pero es por eso que tienen esa cara? Estn muertos de miedo... Pero por qu?

    - Eles so do Caixo Vazio, camarada professor, nunca ouviu falar?

    - No me importa si son del Caixo vaco o del Caixo lleno... Esto es una

    escue