bose e einstein: do nascimento da estat¶‡stica qu^antica a ... · ^exito com um g¶as de...

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Revista Brasileira de Ensino de F´ ısica, v. 27, n. 2, p. 271 - 282, (2005) www.sbfisica.org.br Hist´oriadaF´ ısica Bose e Einstein: Do nascimento da estat´ ısticaquˆantica `acondensa¸c˜aosemintera¸c˜ ao I (Bose and Einstein: From the birth of quantum statistics to the condensation without interaction I) ılvio R. Dahmen 1 Instituto de F´ ısica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil Recebido em 19/11/2004; Aceito em 12/1/2005 Em 1924, motivado por um trabalho de S. Bose sobre a radia¸c˜ao do corpo negro, A. Einstein escreveu uma erie de trˆ es artigos acerca das propriedades termodinˆamicas de um g´as ideal quˆantico. No segundo destes ar- tigos, publicado em janeiro de 1925, ele previu o fenˆomeno da “condensa¸c˜ao” dos ´atomos n˜ao interagentes no estado fundamental a partir de uma certa densidade cr´ ıtica do g´as, fenˆomeno este que veio a ser posteriormente conhecido como Condensa¸c˜ ao de Bose-Einstein (CBE). Neste primeiro artigo discuto detalhadamente o trabalho de Bose e as implicac¸c˜ oes do m´ etodo por ele desenvolvido sobre o trabalho de Einstein. Em um artigo posterior discutir-se-´a o trabalho de Einstein. Palavras-chave: mecˆanicaestat´ ıstica,condensa¸c˜ ao de Bose-Einstein, hist´oria da F´ ısica. In 1924, motivated by a work of S. Bose on the black-body radiation problem, A. Einstein wrote a series of three articles where he derived the thermodynamic properties of an ideal quantum gas. In the second article, published in January 1925, Einstein predicted the “condensation” of the noninteracting atoms into the ground state after a certain density threshold had been reached. This phenomenon came to be known as Bose-Einstein Condensation (BEC). In this article, the first of a sequel, I discuss Bose’s paper in detail and the implications the method he developed had on Einstein’s work. In a forthcoming article Einstein’s contributions will be discussed. Keywords: statistical mechanics, Bose-Einstein condensation, history of Physics. 1. Introdu¸c˜ ao Em 1924 o jovem f´ ısico indiano Satyendra Nath Bose enviou a Albert Einstein uma c´opia do trabalho intitu- lado Planck’s Law and The Light Quantum Hypothesis no qual ele obtivera a F´ormula de Planck para a ra- dia¸c˜ ao do corpo negro 2 . Na carta enviada, Bose solici- tava a Einstein que, em julgando seu trabalho merit´orio, providenciasse para que seu artigo fosse publicado na Zeitschrift f¨ ur Physik, da qual Einstein era editor 3 . Ciente da importˆancia do trabalho de Bose, Einstein traduziu-o e fˆ e-lo publicar, acrescentando ao final de sua tradu¸c˜ ao o coment´ ario: “... A dedu¸ ao de Bose para a f´ormula de Planck se me afigura como um importante avan¸co. O m´ etodo aqui utilizado produz tamb´ em uma teoria quˆantica do g´as ideal, como mostrarei em outro lugar” . Einstein veio de encontro a esta promessa com uma s´ erie de trˆ es artigos nos quais aplicava o m´ etodo de Bose a um g´as de mol´ eculasmaci¸casn˜aointeragentes. Mas em que consistia este m´ etodo e porque, na vis˜ao de Einstein, ele representaria um avan¸co? O problema da radia¸c˜ ao t´ ermica do corpo negro pode ser colocado, sem qualquer sombra de d´ uvida, entre os mais importantes na hist´oria da evolu¸ ao da F´ ısica, pois ele deu in´ ıcio a revolu¸c˜ aoquˆantica. Como bem frisou o historiador da ciˆ encia J. Renn em artigo recente [1], a supera¸c˜ ao de paradigmas na ciˆ encia se d´a quando problemas de ´areas fronteiri¸ cas da ciˆ encia cl´assica se chocam – no caso do corpo negro, a eletrodinˆamica de Maxwell e a termodinˆamica – e ent˜ ao, para que esta supera¸c˜ ao seja concretizada, uma mudan¸ ca na estruturas dos chamados n´ ıveis de conheci- mento se faz necess´aria. Conceitos antigos devem ser 1 E-mail: [email protected]. 2 Este trabalho havia sido rejeitado pelo peri´odico inglˆ es Philosophical Magazine. Cf. A. Pais, op. cit.. Ele foi publicado em Zeit. Phys. 26, 178 (1924), sob o t´ ıtulo Plancks Gesetz und die Lichtquantenhypothese. 3 A carta de Bose inicia-se assim: “Respeitado Sr., tomei a iniciativa de enviar-lhe o artigo incluso para sua aprecia¸ c˜ao. Estou ansioso por saber o que o Sr. acha dele. O Sr. ver´a que arrisquei-me a deduzir o coeficiente 8πν 2 /c 3 na lei de Planck independente- mentedaeletrodinˆamicacl´assica.”. Copyright by the Sociedade Brasileira de F´ ısica. Printed in Brazil.

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Page 1: Bose e Einstein: Do nascimento da estat¶‡stica qu^antica a ... · ^exito com um g¶as de part¶‡culas n~ao maci»cas, a extens~ao de suas id¶eias a um g¶as de part¶‡culas

Revista Brasileira de Ensino de Fısica, v. 27, n. 2, p. 271 - 282, (2005)www.sbfisica.org.br

Historia da Fısica

Bose e Einstein: Do nascimento da estatıstica quantica

a condensacao sem interacao I(Bose and Einstein: From the birth of quantum statistics to the condensation without interaction I)

Sılvio R. Dahmen1

Instituto de Fısica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, BrasilRecebido em 19/11/2004; Aceito em 12/1/2005

Em 1924, motivado por um trabalho de S. Bose sobre a radiacao do corpo negro, A. Einstein escreveu umaserie de tres artigos acerca das propriedades termodinamicas de um gas ideal quantico. No segundo destes ar-tigos, publicado em janeiro de 1925, ele previu o fenomeno da “condensacao” dos atomos nao interagentes noestado fundamental a partir de uma certa densidade crıtica do gas, fenomeno este que veio a ser posteriormenteconhecido como Condensacao de Bose-Einstein (CBE). Neste primeiro artigo discuto detalhadamente o trabalhode Bose e as implicaccoes do metodo por ele desenvolvido sobre o trabalho de Einstein. Em um artigo posteriordiscutir-se-a o trabalho de Einstein.Palavras-chave: mecanica estatıstica, condensacao de Bose-Einstein, historia da Fısica.

In 1924, motivated by a work of S. Bose on the black-body radiation problem, A. Einstein wrote a series ofthree articles where he derived the thermodynamic properties of an ideal quantum gas. In the second article,published in January 1925, Einstein predicted the “condensation” of the noninteracting atoms into the groundstate after a certain density threshold had been reached. This phenomenon came to be known as Bose-EinsteinCondensation (BEC). In this article, the first of a sequel, I discuss Bose’s paper in detail and the implications themethod he developed had on Einstein’s work. In a forthcoming article Einstein’s contributions will be discussed.Keywords: statistical mechanics, Bose-Einstein condensation, history of Physics.

1. Introducao

Em 1924 o jovem fısico indiano Satyendra Nath Boseenviou a Albert Einstein uma copia do trabalho intitu-lado Planck’s Law and The Light Quantum Hypothesisno qual ele obtivera a Formula de Planck para a ra-diacao do corpo negro2. Na carta enviada, Bose solici-tava a Einstein que, em julgando seu trabalho meritorio,providenciasse para que seu artigo fosse publicado naZeitschrift fur Physik, da qual Einstein era editor3.Ciente da importancia do trabalho de Bose, Einsteintraduziu-o e fe-lo publicar, acrescentando ao final de suatraducao o comentario: “. . . A deducao de Bose para aformula de Planck se me afigura como um importanteavanco. O metodo aqui utilizado produz tambem umateoria quantica do gas ideal, como mostrarei em outrolugar” . Einstein veio de encontro a esta promessa com

uma serie de tres artigos nos quais aplicava o metodo deBose a um gas de moleculas macicas nao interagentes.Mas em que consistia este metodo e porque, na visaode Einstein, ele representaria um avanco?

O problema da radiacao termica do corpo negropode ser colocado, sem qualquer sombra de duvida,entre os mais importantes na historia da evolucaoda Fısica, pois ele deu inıcio a revolucao quantica.Como bem frisou o historiador da ciencia J. Rennem artigo recente [1], a superacao de paradigmas naciencia se da quando problemas de areas fronteiricas daciencia classica se chocam – no caso do corpo negro,a eletrodinamica de Maxwell e a termodinamica – eentao, para que esta superacao seja concretizada, umamudanca na estruturas dos chamados nıveis de conheci-mento se faz necessaria. Conceitos antigos devem ser

1E-mail: [email protected].

2Este trabalho havia sido rejeitado pelo periodico ingles Philosophical Magazine. Cf. A. Pais, op. cit.. Ele foi publicado em Zeit.Phys. 26, 178 (1924), sob o tıtulo Plancks Gesetz und die Lichtquantenhypothese.

3A carta de Bose inicia-se assim: “Respeitado Sr., tomei a iniciativa de enviar-lhe o artigo incluso para sua apreciacao. Estouansioso por saber o que o Sr. acha dele. O Sr. vera que arrisquei-me a deduzir o coeficiente 8πν2 /c3 na lei de Planck independente-mente da eletrodinamica classica.”.

Copyright by the Sociedade Brasileira de Fısica. Printed in Brazil.

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272 Dahmen

reavaliados e a eles dada uma nova interpretacao. Umnovo edifıcio e erigido sobre estruturas pre-existentes.Esta perspectiva pode ser bem ilustrada no trabalhode Planck: com sua teoria para a radiacao da cavi-dade do corpo negro ele conseguiu uma formula queinterpolava os resultados experimentais de O. Lummer,E. Pringsheim, H. Rubens e F. Kurlbaum de maneiramuito precisa. A teoria de Planck, que foi construıdasobre uma brilhante combinacao dos tres pilares fun-damentais da Fısica do seculo XIX – a mecanica, atermodinamica e a eletrodinamica – deixa transpare-cer o trabalho de um mestre. Porem, ao final de seutrabalho, Planck se viu obrigado a introduzir a ideiada quantizacao da energia de troca entre a radiacao eas paredes do corpo negro, criando assim a ideia doquantum de energia, algo ate entao impensavel dentrodos canones da fısica classica. Faltou a Planck porem opasso crucial da interpretacao, na medida em que sendoele um fısico de formacao classica, a hipotese da quan-tizacao da energia parecia antes um mal necessario enao um princıpio fundamental [2]. Alguns anos maistarde, mais precisamente em 1916, Einstein publica umtrabalho intitulado Zur Quantentheorie der Strahlung(Acerca da Teoria Quantica da Radiacao) no qual, no-vamente, o problema do corpo negro volta a tona [3].Usando ideias de sua revolucionaria teoria dos Quantade Luz de 1905 bem como dos trabalhos de Bohr de1913, Einstein conseguiu, a menos de um fator indeter-minado, reproduzir os resultados de Planck usando aentao recem-criada mecanica quantica. Mas esse fatorindeterminado era justamente uma peca fundamentalna equacao de Planck e Einstein entao se viu obrigado arecorrer a um argumento classico para conseguir ajustarsua equacao. Quando Bose envia sua carta oito anos de-pois, junto a ela vai uma nova teoria: considerando quea radiacao nada mais era que um gas de fotons e por-tanto passıvel de um tratamento segundo os metodos damecanica estatıstica de Maxwell, Boltzmann e Gibbs,Bose reformulou, de maneira inovadora, as leis destaciencia de modo a nela incorporar as ideais da mecanicaquantica e reproduzir, assim, o resultado de Planck semrecorrer a quaisquer elementos da fısica classica. Eins-tein percebeu de imediato a importancia do trabalho deBose. E nao apenas isso: se o metodo de Bose tiveraexito com um gas de partıculas nao macicas, a extensaode suas ideias a um gas de partıculas com massa naointeragentes deveria ser nao apenas factıvel mas algoinevitavel – uma teoria quantica do gas ideal! Logona introducao do segundo artigo da serie de tres quepublicou, Einstein afirma: “. . . Se a deducao de Bosepara a Formula da Radiacao de Planck for consideradaseriamente, nao se podera entao passar ao largo de talteoria para o gas ideal . . .” [4].

Vistos em conjunto, os trabalhos de Bose e Einsteinrestringiram-se assim nao apenas na reproducao de umresultado ja conhecido (no caso de Bose) ou na extensaode um metodo a um problema diferente (no caso de

Einstein), mas antes sim em dar a mecanica estatısticauma nova roupagem conceitual, mudando os alicercessobre os quais esta ciencia estava fundada.

No presente trabalho discuto detalhadamente o tra-balho de Bose na forma de um preludio ao segundoartigo de Einstein, que e o objetivo principal deste es-tudo e que sera discutido detalhadamente em um artigosubsequente [5].

A pergunta que devemos nos fazer porem e aseguinte: por qual motivo seria este segundo artigo deEinstein tao relevante e, na opiniao de muitos histori-adores da ciencia, o mais importante dos tres artigospor ele escritos sobre o tema, a ponto de se tornar ofoco de nossas atencoes? Baseado nas equacoes deduzi-das no primeiro artigo, Einstein preve que, ao atingiruma certa densidade crıtica, ocorrera uma condensacaodas partıculas nao interagentes no estado fundamen-tal, a chamada Condensacao de Bose-Einstein (CBE),de maneira analogo aquela pela qual um gas real departıculas interagentes se condensa [6]. Mas por seruma “Condensacao sem Interacao” o fenomeno pre-visto por Einstein so pode ocorrer devido a um meca-nismo fısico inteiramente novo e que, posteriormente,entendeu-se como sendo de origem puramente quantica:o surgimento de correlacoes entre as partıculas emfuncao das propriedades de simetria da funcao de ondado sistema. Nos ultimos anos este tema tem se tornadocada vez mais relevante: em 1995 os grupos de W. Ket-terle no MIT e de E.A. Cornell e C.E. Wiemann noJILA lograram criar condensados a partir de vapores desodio e rubıdio, confinados em armadilhas magneticas eesfriados a temperaturas extremamente baixas, da or-dem de nanokelvin [7, 8]. A importancia destes ex-perimentos se deve nao apenas ao estado-da-arte dastecnicas experimentais empregadas, tecnicas estas quetiveram um grande avanco na decada de 80, como o res-friamento optico e as armadilhas opto-magneticas [9]:ela se deve ao fato que estes experimentos mostraram,pela primeira vez e de maneira inequıvoca, a existenciade condensados. Embora o tema ja fosse antigo e naomuito tempo apos o trabalho de Einstein Fritz Londontivesse argumentado que a superfluidez do 4He repre-sentaria uma manifestacao da CBE, a “certificacao”experimental da presenca de um condensado na fase su-perfluida do helio so foi obtida em 1995 [10]. Seja pornos remeter a questoes fundamentais da fısica quantica,seja por suas possıveis aplicacoes experimentais, e cadavez maior o numero de artigos na area e tambem o deestudantes que logo nos semestres iniciais dos cursos deFısica entram em contato com o assunto. Para aquelesinteressados em estudar a CBE o artigo de V. Bagnato[9], onde os aspectos teoricos e experimentais sao dis-cutidos de maneira detalhada, e um excelente pontode partida. Ha tambem exposicoes em um nıvel maisavancado como o artigo de revisao de A. Leggett [11]ou mais recentemente de A.F.R. de Toledo Piza [12]. Otema tambem ja ha muito faz parte dos livros-texto de

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mecanica estatıstica, como por exemplo no livro de K.Huang, que traz um extenso capıtulo sobre o assunto[13]. Porque entao mais um artigo?

O presente trabalho busca propiciar um estımuloaqueles que queiram aprender acerca do tema atravesde uma perspectiva diferente: o da discussao, passo apasso, dos trabalhos originais de Bose e Einstein e aexploracao da analogia entre a CBE e a condensacaoem um gas interagente. Einstein, embora de maneirasucinta, recorre a esta analogia para explicar o novofenomeno. Este paralelo e extremamente interessantepor permitir explorar as similaridades entre a Fısicados CBE’s e a condensacao real de um gas interagente.A grande maioria dos textos modernos sobre o assuntointroduz o tema da CBE de uma maneira totalmente in-dependente e sem chamar a atencao para esta analogiaentre os formalismos das duas teorias. E importantenotarmos aqui que a teoria de Einstein e anterior asprincipais teorias de condensacao e foi ela em grandeparte responsavel pelo surgimento destas [14, 15, 16].Tambem, a crıtica de G.E. Uhlenbeck sobre o fatoda CBE estar possivelmente relacionada a um recursomatematico do qual Einstein lancara mao, quando naodeveria te-lo feito, deu inıcio as discussoes que levarama um melhor entendimento do problema de transicoesde fase em mecanica estatıstica [17].

Este artigo nao e um tratado sobre a historia daFısica, e nem o autor tem a pretensao que ele o seja. Noentanto os trabalhos de Bose e Einstein marcam a uniaoentre a mecanica estatıstica de Boltzmann, Gibbs eMaxwell com a mecanica quantica de Planck, Einstein eBohr e assim o nascimento daquilo que hoje chamamosde mecanica estatıstica quantica. Optou-se deste modopor uma abordagem que segue, ao menos cronologica-mente, o descobrimento da CBE. Com vistas a tornaro trabalho mais acessıvel, este estudo foi dividido emdois artigos que, embora voltados ao mesmo tema, po-dem ser lidos independentemente. No presente trabalhoconcentramo-nos em Bose, em particular nos pontosonde seu metodo desviou-se daquele de seus predeces-sores. A leitura nao requer um conhecimento previode mecanica estatıstica, motivo pelo qual os metodossao explicados de maneira detalhada. Para aqueles jafamiliarizados com estes metodos e interessados direta-mente na CBE, sugere-se iniciar a leitura pelo segundoartigo, onde discutimos diretamente a contribuicao deEinstein, a polemica levantada por Uhlenbeck e a teo-ria de condensacao em gases interagentes. Ali tambemdiscute-se em detalhe esta analogia em seus aspectosfısicos e matematicos.

O presente artigo esta assim dividido: iniciando porPlanck na secao 2, discutimos sucintamente o trabalhosobre a radiacao do corpo negro que serviu de motivacaoa Bose. A secao 3 contem o corpo principal do trabalho:discute-se inicialmente a crıtica de Bose a Planck e Eins-tein e, na sequencia, sao discutidos os pontos-chave dotrabalho de Bose. Finalizamos o artigo com algumas

consideracoes gerais na secao 4.

2. Prologo: Planck, Einstein e a ra-diacao do corpo negro

O ano de 1900 marca nao apenas o final de um seculo noqual grande parte da Fısica dita classica foi firmementeestabelecida em seus aspectos mais fundamentais comotambem representa a data do nascimento da mecanicaquantica, que viria definir os rumos da Ciencia do seculoque estava por iniciar. A Fısica estava entao assentadafortemente sobre tres pilares: a mecanica (fısica dosmeios ponderaveis), a eletrodinamica (fısica do eter)e a termodinamica (fısica do calor). A mecanica es-tatıstica de Maxwell, Boltzmann e Gibbs ja surgira nohorizonte, mas nao tinha ate entao granjeado o sta-tus que hoje possui. O sucesso da fısica classica eratanto que, em 1903, M. Michelson afirmou, perempto-riamente, que “. . . As leis fundamentais mais impor-tantes e os fenomenos basicos foram ja todos descober-tos e estao de tal forma estabelecidos, que a possibi-lidade de serem colocados de lado por novas descober-tas parece estar muito distante. Devemos buscar nossasproximas descobertas na 6a. casa decimal ” [18]. Haviano entanto duas grandes questoes que a fısica classicanao conseguira responder: o problema do comporta-mento do calor especıfico dos solidos a baixas tempera-turas e a questao da radiacao do corpo negro. Esteultimo problema, sua historia e os trabalhos de Planckforam discutidos em um excelente artigo de N. Studart,publicados nesta revista por ocasiao do centenario doprimeiro artigo de Planck [2]. Discutiremos aqui apenasalguns detalhes relevantes aos trabalhos de Einstein eBose.

Em 1859 Gustav Robert Kirchhoff mostrara quehavia uma importante relacao entre o coeficiente deemissao e absorcao de radiacao eletromagnetica deum corpo em equilıbrio termodinamico a uma dadatemperatura T : sendo eνdν a energia emitida porunidade de area e tempo no entorno de uma frequenciaν e aν o chamado coeficiente de absorcao, Kirchhoffprovou que a razao entre eν e aν independia das carac-terısticas fısicas do corpo e era funcao apenas da tem-peratura T e da frequencia ν. Em outras palavras,para diferentes corpos de coeficientes e

(1)ν , e

(2)ν , . . . , e

(n)ν

e a(1)ν , a

(2)ν , . . . , a

(n)ν valia a relacao

e(1)ν

a(1)ν

=e(2)ν

a(2)ν

= . . . =e(n)ν

a(n)ν

. (1)

Se imaginarmos um corpo ideal (hipotetico) tal quetoda a radiacao sobre ele incidente seja absorvida(aν = 1 e portanto o nome “corpo negro”), entaopelas consideracoes de Kirchhoff teremos

e(1)ν

a(1)ν

=e(2)ν

a(2)ν

= . . . =e(negro)ν

1= e(negro)

ν , (2)

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ou seja, a razao entre os coeficientes e numericamenteigual ao coeficiente de emissao de um corpo idealizado- uma constante universal. O argumento impecavel deKirchhoff, segundo o qual se (2) nao fosse verdadeirapoder-se-ia entao construir um perpetuum mobile do se-gundo tipo (em outras palavras, um dispositivo que vi-olasse a segunda lei da termodinamica), deu inıcio auma serie de trabalhos cujo objetivo era o de deter-minar as propriedades fısicas deste corpo padrao que,embora idealizado, podia ser bem aproximado por umacavidade metalica revestida de platina. Aqui uma dasgrandezas de interesse (por ser proporcional ao espec-tro de radiacao emitido) e a funcao de distribuicaoρ (T, ν), definida como a densidade volumetrica deenergia da radiacao de frequencia entre ν e ν + d ν,dentro da cavidade. Determinar esta grandeza paratodo o espectro possıvel de frequencias e temperaturastornou-se um dos principais problemas da epoca. As-sim, em especial a partir de 1896, atraves de uma seriede medidas experimentais realizadas no Physikalisch-Technische Reichsanstalt de Berlin por O. Lummer, E.Pringsheim, H. Rubens e F. Kurlbaum foi possıvel de-terminar, de maneira inequıvoca, a dependencia de ρem T e ν (esquematicamente representada pela curvasolida na Fig. 1). Pelo lado teorico, havia dois resul-tados que se aplicavam aos limites de altas e baixasfrequencias respectivamente

ρ(T, ν) = α ν3 e−βνT Lei de Wien-Planck (3)

ρ(T, ν) =8π ν2

c3kBT Lei de Rayleigh-Jeans (4)

Nestas expressoes α e β eram constantes ajustaveis e ce kB representavam a velocidade da luz e a constantede Boltzmann, respectivamente. Estas duas leis poremnao eram capazes de explicar o regime de frequenciasintermediarias.

ν

ρ (

ν, Τ

)

Wien-Planck Experimental

Rayleigh-Jeans

Figura 1 - Representacao esquematica da forma da curva experi-mental para a densidade de energia da radiacao do corpo negroρ(ν, T ) para um T fixo e as respectivas aproximacoes de Wien-Planck (altas frequencias) e Rayleigh-Jeans (baixas frequencias).

Nao obstante a boas interpolacoes, a formula deWien-Planck era insustentavel do ponto de vista teorico

em funcao de premissas adotadas, alem de levar auma divergencia para o regime de baixas frequencias(a famosa catastrofe do infravermelho). Embora, sob oponto de vista teorico, a deducao de Rayleigh e Jeansestivesse assentada sobre bases mais solidas, a lei seaplicava somente ao regime de baixas frequencias e leva-va tambem a uma divergencia. Coube a Planck deduzira formula que tinha por limites os resultados acima eque interpolava corretamente a curva experimental. Otrabalho de Planck, baseado num modelo mecanico emque ele tratava as paredes do corpo negro como formadode grande numero de osciladores interagindo com a ra-diacao eletromagnetica, levou-o a concluir pela quan-tizacao das energias de troca (absorcao e emissao) entreos osciladores e o campo eletromagnetico, algo ate entaoinimaginavel segundo os canones da fısica classica.

O argumento de Planck para chegar a uma curvaque interpolasse os resultados experimentais baseou-seem uma combinacao de mecanica, eletrodinamica e ter-modinamica. Da primeira veio o modelo das paredesdo corpo negro formadas por osciladores harmonicos(“ressonadores”) que interagiam com a radiacao eletro-magnetica segundo a teoria de Maxwell. Da ter-modinamica Planck faz uso do conceito de equilıbriotermodinamico entre os osciladores e a radiacao na cavi-dade, que lhe permite tecer consideracoes sobre a maxi-mizacao da Entropia do sistema. A chave final vemda mecanica estatıstica classica, que Planck usa pararelacionar a entropia dos osciladores com a da radiacaoeletromagnetica e portanto com a densidade de energiaρ desta ultima.

O primeiro passo foi a equacao, obtida por Planckem 1899, que relacionava a densidade de energia de ra-diacao ρ (ν, T ) com a energia media dos osciladoresU(ν, T ) na forma

ρ (ν, T ) =8πν2

c3U(ν, T ) (5)

onde ν representava agora nao apenas a frequencia daradiacao mas tambem a frequencia de oscilacao dos“ressonadores” lineares que formavam as paredes docorpo negro. Comparando esta relacao com as Eqs. (3)e (4) e possıvel isolar T de modo a obter uma relacao dotipo T = T (U). Mas da termodinamica sabemos queT−1 = ∂S/∂U e portanto e possıvel calcular a entropiados osciladores por meio de uma integracao e chegar aexpressao

S = − U

βνln

U

Aeν. (6)

para o caso em que utilizamos a Lei de Wien-Planck.Nesta equacao A = αc3/8π, e e a base do logarıtmoneperiano. Como ja mencionado, para um sistemaem equilıbrio termodinamico a entropia S deve sermaxima e sua concavidade (dada pela derivada segundade S com relacao a U) deve ser negativa, para que

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Bose e Einstein: Do nascimento da estatıstica quantica a condensacao sem interacao I 275

o equilıbrio seja estavel. Derivando entao a Eq. (6)Planck obteve

∂2S

∂U2 = −constante

U. (7)

Aplicando o mesmo metodo a formula de Rayleigh-Jeans obtem-se

∂2S

∂U2 = −constante

U2 . (8)

Se o corpo negro e a radiacao estao em equilıbrio ter-modinamico, entao a questao que se coloca e a de quemaneira podemos combinar estas duas formulas, umavez que, embora se apliquem a diferentes regimes defrequencia, ambas devem estar conectadas continua-mente. Planck propoe em seu primeiro artigo uma ex-pressao que interpola estes dois resultados na forma

∂2S

∂U2 = − 1

U(U + b), (9)

onde b e uma constante a ser determinada. Integrandoa expressao acima e utilizando a Eq. (5) chega-se final-mente a

ρ =B

eβT − 1

. (10)

Havia ainda duas constantes a serem determinadas (Be β) e para isto Planck recorre a mecanica estatısticade Boltzmann atraves da aplicacao da famosa relacaoS = kB lnΩ, que relaciona a entropia (uma grandezamacroscopica) com o numero de microestados con-dizentes com os vınculos do sistema. Este calculo leva-nos a famosa formula de Planck para a densidade deenergia da radiacao do corpo negro

ρ (ν, T ) =8πν2

c3

ehν

kBT − 1, (11)

onde ε = hν representava a energia de um osciladorde frequencia ν e h uma constante por ele chamadade Wirkungsquantum (quantum de acao). Planckentao conclui que os osciladores so poderiam emitir ouabsorver pacotes de energia que fossem multiplos destaconstante fundamental. Surgia assim na Fısica a quan-tizacao da energia.

3. Bose e a busca por um caminho logi-camente justificavel

Entre o trabalho de Bose e Planck ha um hiato depouco mais de duas decadas. Nao obstante a formula dePlanck reproduzisse os resultados experimentais obser-vados, sua deducao era, em grande medida, baseada emelementos da fısica classica. Pela perspectiva de Bose,a deducao da formula de Planck nao era assim “sufi-cientemente justificada do ponto de vista logico” . Com

relacao a Einstein, Bose fala em seu artigo sobre a ex-cepcionalmente elegante deducao do fısico alemao e daincorporacao, por parte daquele, das ideias da mecanicade Bohr em sua logica, nao deixando porem de apontaro fato que ao final de seu trabalho Einstein se vira obri-gado a recorrer a um argumento classico para chegarao resultado correto. Para melhor entender a questaopodemos percorrer rapidamente o passos seguidos porEinstein neste trabalho, que se resumem a cinco:

(1) Discretizacao dos nıveis de energia dos osciladores(moleculas): Einstein empresta, da teoria deBohr, o fato que do ponto de vista da mecanicaquantica, moleculas podem estar em qualquerum dos estados discretos Z1, Z2, . . . , Zn aos quaisestao associadas energias discretas ε1, ε2, . . . , εn

(“... excetuando-se o movimento translacional ede orientacao”).

(2) Distribuicao de estados dos osciladores: se os os-ciladores nas paredes do corpo negro estao emequilıbrio termodinamico com a radiacao, entaoa distribuicao canonica de Boltzmann e Gibbspara estados do sistema se aplica e leva a umafrequencia relativa Wn de moleculas no estado Zn

dada por Wn = pn exp (−εn/kB T ) onde pn “...pode ser chamado de peso estatıstico do estado e eum numero caracterıstico da molecula, quer dizer,de seu n-esimo estado quantico e independente datemperatura”.

(3) A hipotese da troca de energia por radiacao.Uma molecula pode passar de um estado Zm

para um estado Zn de tres modos, a saber: a)pela emissao espontanea de radiacao, que ocorrecom uma probabilidade, por unidade de tempo,dada por dW = An

mdt; b) pela emissao in-duzida pelo campo eletromagnetico cuja taxa deocorrencia depende da densidade de energia ρ daradiacao e portanto dW = Bn

mρdt; ou, final-mente, c) pela absorcao de radiacao com taxadW = Bm

n ρdt. Os parametros Anm, etc. nao

sao explicitados por Einstein mas representamsimplesmente “...uma constante caracterıstica dacombinacao dos ındices sob consideracao. ” .

(4) No equilıbrio termodinamico ha uma distribuicaoestacionaria de estados Zn e isto so e possıvelse as taxas com as quais as moleculas absorvemenergia (Einstrahlung) sejam iguais, em media, asoma das taxas de emissao induzida e emissao ex-pontanea (Austrahlung). Em outras palavras

pne−εn/kBT ρ Bmn =

pme−εm/kBT (ρ Bnm + An

m) . (12)

Alem disso, argumenta Einstein, se no limite deT → ∞ a densidade de energia do campo ρtambem vai a infinito, entao segue da equacaoque pnBm

n = pmBnm.

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276 Dahmen

(5) Quantizacao da energia absorvida ou emitida:Einstein toma emprestado da teoria de Bohr aexpressao que relaciona a diferenca da energia en-tre nıveis dos osciladores a frequencia ν do fotonemitido ou absorvido, ou seja εm − εn = hν.

Com estes hipoteses e uma simples manipulacaoalgebrica de (12), segue que a densidade de radiacaoe dada pela expressao

ρ =An

m/Bnm

eεm−εn

kBT − 1. (13)

Esta relacao e muito semelhante a formula de Plancka nao ser pelo numerador indeterminado. Mas, comoEinstein argumenta, em nao havendo uma teoria maiscompleta da interacao da radiacao com a materiaque permitisse determinar este numerador, fazia-senecessario tomar o limite de baixas frequencias em (13)e compara-la com a expressao classica de Rayleigh-Jeans. Com isto chega-se em An

m/Bnm = 8πν2/c3. Esse

argumento classico e justamente o ponto que levou Bosea propor uma nova teoria, pois “. . .Contrariamentea estas teorias [de Einstein e Planck] a hipotese doquantum de luz combinada com a mecanica estatıstica(desenvolvida de modo a satisfazer as necessidades damecanica quantica) parecem suficientes para deduziresta lei independentemente da teoria classica”. Boseescreve entao aquele que seria, nas palavras de Abra-ham Pais, o quarto e ultimo dos artigos radicais davelha teoria quantica: uma teoria da radiacao do corponegro livre de elementos classicos [19].

3.1. O artigo de Bose e os metodos da mecanicaestatıstica

O ponto chave do trabalho de Bose e tomar a radiacaocomo sendo um gas e portanto passıvel de analise pelasleis da mecanica estatıstica. No entanto, a maneiracomo ele emprega os metodos de Boltzmann, Maxwelle Gibbs e totalmente inovadora e para que melhor en-tendamos os pontos onde Bose desvia-se de seus ante-cessores e necessario que facamos uma rapida discussaodestes metodos.

Podemos dizer em poucas palavras que a mecanicaestatıstica tem, entre seus principais objetivos, explicara fısica macroscopica a partir da fısica dos constituintesmicroscopicos da materia. Estes, por sua vez, estao su-jeitos as leis da mecanica e portanto suas interacoesserao funcoes dos graus de liberdade do sistema - porexemplo, considerando moleculas monoatomicas e des-prezando graus de liberdade internos como o spin, aevolucao temporal de uma partıcula sera funcao das tresvariaveis de posicao (x, y, z) e das tres projecoes domomento ~p ao longo dos eixos ordenados (px, py, pz).Deste modo, para aplicar os conceitos da mecanica auma partıcula e buscar com isso entender o comporta-mento de um sistema formado por um numero N de

partıculas gigantesco (da ordem do numero de Avo-gadro ≈ 1023), se faz necessario recorrer a conceitos es-tatısticos, uma vez que e simplesmente impossıvel, doponto de vista matematico, e impraticavel, do pontode vista numerico, tratar de um sistema de equacoesque envolvam um numero de variaveis da ordem deN . Para efeitos de calculo se mostrou conveniente as-sim introduzir um espaco de dimensao igual ao numerode graus de liberdade de uma partıcula (6-dimensionalno exemplo anterior), tal maneira que cada ponto Pdeste espaco representa uma possıvel estado de umapartıcula. Um conjunto de N pontos neste espaco,tambem chamado de espaco de fase ou espaco-µ, re-presentara assim uma possıvel configuracao de posicoese momenta das N partıculas que compoem o sistema erecebe o nome de microestado (ou Complexo) [20].

Um microestado no espaco-µ representa, para cadainstante de tempo t, um estado dinamico do sistema.Do ponto de vista macroscopico no entanto, o sistemae caracterizado por um pequeno numero de variaveistermodinamicas – como volume, pressao e tempera-tura – que representam o conjunto mınino de variaveisnecessarias a uma completa descricao do sistema. Naoe difıcil convencer-se que se a um sistema associamosassim um macroestado observavel, havera um grandenumero de microestados distintos P1,P2,P3, · · · PNque representem todos o mesmo estado observavelmacroscopico, afinal devera haver diferentes maneirasde distribuir pontos pelo espaco-µ sem que isso resulteem qualquer mudanca macroscopica observavel dentrode uma precisao experimental pre-estabelecida. Maisdo que isso, se nosso sistema estiver sujeito a vınculos,e. g. volume ou energia constantes, havera regioes doespaco-µ inacessıveis, por serem os pontos a elas asso-ciados nao condizentes com os vınculos impostos. Cen-trais a este metodo sao assim as perguntas: se variosmicroestados correspondem a um mesmo macroestado,quantos deles havera? E havera entre eles algum maisimportante, no sentido que havera uma probabilidademaior do sistema passar mais tempo em um microes-tado especıfico? A esta ultima pergunta responde-secom um postulado fundamental da mecanica estatısticado equilıbrio, o chamado postulado das probabilidadesiguais a priori: todos os microestados (distribuicoes depontos no espaco-µ) condizentes com os vınculos aosquais o sistema esta sujeito sao igualmente provaveis.A primeira pergunta respondemos simplesmente calcu-lando o numero de microestados possıveis.

Visando facilitar este calculo, imaginemos um gas deN partıculas livres e energia E constante. O primeiroproblema que temos e o de calcular as regioes permiti-das do espaco-µ, um problema complicado se, usandoum jargao matematico, considerarmos que este espacoe uma variedade contınua, quer dizer ha um numeroinfinito de pontos em qualquer pequeno volume queescolhermos. Esta questao inclusive era um dos pon-tos centrais dos opositores do metodo de Boltzmann

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Bose e Einstein: Do nascimento da estatıstica quantica a condensacao sem interacao I 277

pois argumentavam que esta propriedade do espaco-µlevaria irremediavelmente a divergencias. Assim, paraefeitos de calculo e conveniente dividir o espaco-µ empequenas caixas de volume dx dy dz dpx dpy dpz detal maneira que partıculas dentro desta caixa possuemem media todas a mesma energia - em outras palavras,descrevemos o sistema por um conjunto de nıveis dis-cretos e enumeraveis ε1, ε2, · · · . Para Boltzmann naohavia uma justificativa convincente para fazer isto, ape-nas uma argumentacao a posteriori baseada no sucessodo metodos. A pergunta inicial adquire entao um outrocarater: quantas (e quais) sao as possıveis maneiras dedistribuir as N partıculas por entre os nıveis ε1, ε2, · · ·de tal maneira que

E =∑

i

Ni εi

N =∑

i

Ni ? (14)

Esse foi o problema com o qual se deparou Bose. Sea radiacao e um gas de fotons onde podemos assumirque N0 deles possuam uma energia hν0, N1 a energiahν1 e assim por diante, de quanta maneiras podemosdistribuir os fotons de tal modo que a energia total Eda radiacao valha

E =∞∑

s=0

Nshνs = V

∫ρ dν ?

Pela formula podemos ver que calcular a distribuicao depossıveis valores dos Ns’s e o mesmo que calcular a den-sidade volumetrica de energia ρ de Planck. Em outraspalavras, Bose reduziu o problema de Planck a um pro-blema de mecanica estatıstica de um gas de partıculassem massa.

Ha no entanto um detalhe sutil no metodo de Boltz-mann e de importancia fundamental pelas suas im-plicacoes no trabalho de Bose: a Eq. (14) so faz sentidose houver uma relacao unıvoca entre a energia de umapartıcula e a enumerabilidade de uma celula, ou sejase a cada celula i pudermos associar uma energia εi

unica. Se uma partıcula se encontra na i-esima celula,sua contribuicao a energia total sera sempre εi inde-pendentemente da ocupacao das outras celulas. Isso soe possıvel se a energia E puder ser escrita como umasoma de termos que sejam funcoes de coordenadas emomenta de uma partıcula apenas, como esta implıcitoem (14). No metodo de Boltzmann, termos que depen-dam de coordenadas de mais de uma partıcula devemser excluıdos, o que significa que podemos tratar apenaspartıculas nao interagentes [21].

A solucao encontrada por Bose foi totalmente novae, pelo que podemos depreender da analise de A. Pais[19], ele a fez sem ter nocao da radicalidade de sua ideia:Bose trocou a independencia estatıstica de partıculaspela independencia estatıstica de estados, criando as-sim um metodo que pode ser estendido para sistemas

interagentes. Voltaremos a este ponto nas proximassecoes em virtude tambem de Einstein ter uma secaocompleta sobre esta questao em seu artigo sobre a CBE.Resumindo, Bose se viu face-a-face com os seguintesproblemas:

(1) calcular os possıveis nıveis de energia entre asfrequencias ν e ν + dν, determinando assimos possıveis estados onde podemos encontrar osfotons;

(2) determinar as possıveis distribuicoes de fotons porentre estes nıveis, ou seja, combinacoes de dife-rentes conjuntos N0, N1, . . . condizentes com acondicao de energia E fixa;

(3) achar quais distribuicoes correspondem aoequilıbrio termodinamico.

Discutiremos a seguir detalhadamente cada um destespassos, uma vez que em seu primeiro artigo Einsteinsegue, do ponto de vista formal, os mesmos passosde Bose, introduzindo porem, onde necessario, impor-tantes modificacoes fısicas.

3.2. Passo 1: O volume do espaco-µ e sua dis-cretizacao

Os fotons de Bose podem ocupar um volume V , que e ovolume da cavidade do corpo negro. Se, como Einsteinmostrara em seu trabalho sobre o efeito fotoeletrico,pudermos associar a um foton de frequencia ν um mo-mento hν/c, entao os momenta px, py e pz devem satis-fazer

px2 + py

2 + pz2 =

h2ν2

c2, (15)

uma vez que a radiacao dentro da cavidade do corponegro e isotropica. Em outras palavras, os valores demomenta condizentes com a condicao |~p| = hν/c estaosobre a superfıcie de uma esfera de raio hν/c. Portantoo volume do espaco de fase para aqueles estados defrequencia entre ν e ν +dν e o volume da casca esfericaentre as esferas de raio hν/c e h(ν +dν)/c devidamentemultiplicado por V ,

∫dx dy dz dpx dpy dpz = V 4π

(hν

c

)2h dν

c. (16)

Se faz necessario ainda calcular o numero possıvel de es-tados dentro deste volume, ou seja, discretiza-lo. Semuma argumentacao convincente Bose diz que isto sefaz dividindo o volume acima por uma volume elemen-tar h3 pois “nada definitivo pode ser dito a respeitodo metodo de dividir o volume do espaco de fase destamaneira ” alem do que temos que multiplicar o resul-tado por 2 devido a polarizacao dos fotons! Vale lem-brar que o conceito de polarizacao do foton ainda eradesconhecido e Bose simplesmente afirma que que “paralevar em conta a polarizacao [da luz] parece necessario

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278 Dahmen

multiplicar este numero por 2 para obter o numero . . .de celulas. . .”. Chega-se assim entao ao numero As decelulas no espaco-µ

As =8π V ν2 d ν

c3. (17)

E no mınimo impressionante constatarmos que Bose es-tava correto em sua contagem, pois pelo que podemosdepreender da leitura de seu texto, ele parecia naosaber justificar as escolhas feitas. Podemos encontraresta deducao em livros-textos de uma forma um poucomodificada: se a um foton dentro da cavidade de vo-lume V = L3 associarmos um campo eletrico, entaono equilıbrio e com condicoes periodicas de contornoteremos ondas estacionarias de vetores de onda ~k taisque

~k =2π

L~n , (18)

onde ~n e um vetor cujas componentes assumem os valo-res 0,±1,±2, . . .. Assim, o numero possıvel de mo-menta entre a casca esferica de raios k e k + dk vale

4πk2 dk(2πL

)3 , (19)

onde 2π/L representa assim o incremento nos valoresde k. Multiplicando esta equacao por 2 para levarem conta os dois estados de polarizacao de um fotone usando a relacao p = ~k = hν/c entre momento e onumero de onda k do foton, recuperamos a expressao(17) de Bose. A Fig. 2 ilustra esta contagem para umcaso bidimensional.

Figura 2 - Discretizacao do espaco de vetores de onda (kx, ky),onde o numero de estados e dado pelo numero de valores permi-tidos (pontos) entre os cırculos de raio k e kdk.

3.3. Passo 2: O numero de microestados

Para entender a contagem de microestados de Bose,recorramos novamente a um gas ideal composto por N

partıculas. Cada uma delas pode ocupar um estado deenergia εi dentro de um possıvel conjunto εk de ener-gias discretas, de tal maneira que haja N1 partıculas noestado de energia ε1, N2 partıculas no estado de energiaε2 e assim por diante, tal que a Eq. (14) seja satisfeita.

Quais as possıveis distribuicoes Nk =N1, N2, · · · condizentes com (14)? Primeiro e pre-ciso lembrar que na mecanica classica as partıculassao distinguıveis pois, como enfatizou Boltzmann, epossıvel reverter as equacoes de movimento (elas saosimetricas por reversao temporal) e em princıpio co-nhecer o passado de cada uma delas (suas posıcoes emomenta iniciais), distinguindo-as portanto em funcaode sua historia. Imaginemos um problema mais sim-ples: de quantas maneiras diferentes e possıvel arranjarum grupo de N pessoas numa fila indiana? A analisecombinatoria nos da a resposta: peguemos a primeirapessoa - por ser primeira, nao temos outra opcao quenao a de iniciar a fila por ela e portanto ha apenas 1lugar onde coloca-la. Ja a pessoa de numero 2 poderaser colocada em 2 diferentes posicoes: antes ou depoisda primeira. Para a terceira havera 3 possıveis lugares:antes das outras duas, a frente delas, ou no meio. As-sim, estendendo o raciocınio veremos que ha N − 1posicoes para a (N − 1)-esima pessoa e N posicoespara a N -esima, de modo que o numero total de filasindianas diferentes sera

W = 1 × 2 × 3 × · · · × (N − 1) × N = N ! (20)

Mas no caso particular de Boltzmann, partıculas podemocupar o mesmo lugar na fila (ou seja, ao inves de umafila indiana, temos uma fila brasileira!). Fisicamenteisso quer dizer que partıculas podem ter uma mesmaenergia εi e portanto ha um numero Ni de partıculasque podem todas estar na mesma posicao εi. Isso im-plica que todas as Ni! diferentes combinacoes geradaspelas permutacoes destas partıculas correspondem a ummesmo estado e portanto o numero de combinacoesdeve ser reduzido por um fator de 1/Ni!. Logo deve-mos fazer a substituicao W → W/Ni!, o que nos leva,quando consideramos todos os possıveis Ni, a expressaofinal

W =N !

N1!N2! · · · =N !∏s Ns!

. (21)

W representa o numero de diferentes combinacoes deN partıculas de tal modo que N1 delas se encontremna celula de energia ε1, etc. . Esta grandeza e tambemchamada de probabilidade termodinamica, embora naoseja uma probabilidade, por ser > 1. No entanto onome se deve ao fato que W e proporcional ao “volume”do espaco-µ e a probabilidade do macroestado ser rea-lizar fisicamente e, na interpretacao de Boltzmann,dada pelo produto deste volume por uma probabilidadedefinida de modo apropriado. Por uma questao de rigo-rosismo historico ha uma detalhe que devemos conside-rar mas que, para os resultados que nos interessam, naotem maiores consequencias: originalmente Boltzmann

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Bose e Einstein: Do nascimento da estatıstica quantica a condensacao sem interacao I 279

introduziu uma contagem de nıveis onde cada partıculapoderia ocupar um so nivel - a chamada estatıstica fina- em contraposicao a estatıstica grossa de Gibbs (es-tatıstica do espaco-Γ [22]) que foi utilizada por Bose.Consiste simplesmente em dividir o espaco-µ em celulasω1, ω2, · · · onde agora uma partıcula em ωA tem umaenergıa media EA [23].

Podemos agora discutir a mudanca radical de Bose.Particionando o espaco em celulas (estados) Bose colo-cou a seguinte pergunta em seu artigo:

sendo p0s o numero de celulas vazias, p1

s onumero de celulas que contem um foton e assimpor diante, o numero de possıveis distribuicoes decelulas (e nao de partıculas) e entao

As!p0

s!p1s! . . .

, (22)

de tal modo que Ns = 0×p0s+1×p1

s+2×p2s+. . .

representa o numero de fotons na casca esfericapreviamente determinada. A grandeza As =∑

r prs representa o numero total de celulas na

casca e e uma constante. A probabilidade ter-modinamica W do estado definido por todos ospr

s vale deste modo

W =∏s

As!p0

s!p1s! . . .

. (23)

Aqui Bose, em uma so tacada, introduz tres conceitosfundamentais: primeiro, ao permitir que mais de umfoton possa ocupar o mesmo estado, ele acaba por in-troduzir o conceito de partıculas que podem ocuparum mesmo estado quantico e que receberam poste-riormente o nome de bosons, em sua homenagem (ooutro tipo de partıcula, descoberta 3 anos depois ebatizada de fermion, nao pode ocupar o mesmo es-tado quantico de outro fermion. Todas as partıculasda natureza pertencem a uma ou outra categoria).O segundo ponto importante e a contagem estatıstica- dividir os possıveis arranjos As! pelas permutacoespi

s - e o mesmo que dizer que as partıculas sao in-distinguıveis, diferentemente da mecanica estatısticaclassica de Boltzmann, onde cada partıcula, por teruma historia, e distinguıvel [24]. Depois, ao tomar aprodutoria sobre todos os s ele esta dizendo que os es-tados sao estatısticamente independentes (a probabili-dade de eventos nao correlacionados e dado pelo pro-duto das probabilidades). Como ja mencionado, paraBoltzmann, que tratou do gas ideal, a independenciaestatıstica valia para as partıculas, uma vez que elasnao eram correlacionadas por nao interagirem. Ao tirara independencia estatıstica das partıculas e atribuı-lasa estados, Bose permite que seu tratamento continuevalido nos casos em que haja interacao entre partıculas.Chegamos entao ao ultimo passo no trabalho de Bose:a determinacao da configuracao mais provavel.

3.4. Passo 3: A distribuicao mais provavel e osvınculos

Na fısica de Boltzmann e uma premissa basica o fatoque as moleculas se movem de maneira totalmenta de-sordenada, movimento este no qual, no caso de um gas acondicoes normais de temperatura e pressao, a partıculatem uma velocidade da ordem de 103 a 104 cm.s−1.Experimentalmente qualquer medida de uma grandezamacroscopica requer um tempo finito durante o qual, sepensarmos em termos do espaco-µ, um grande numerode configuracoes terao se realizado e o resultado denosso experimento representara uma media temporalsobre os macroestados correspondentes. Por outro lado,do ponto de vista de calculo, introduzir uma dinamicana distribuicao de pontos do espaco-µ para em cimadisto calcular medias temporais e algo nao apenas difıcilmas desnecessario: imaginemos que seja possıvel subs-tituir essa dinamica por um grande numero de copiasdo espaco-µ de tal modo que esse grande numero deespacos representem as configuracoes que o espaco-µpossa ter em diferentes tempos. Se estas duas aborda-gens forem equivalentes, entao fazer uma media tem-poral sobre a evolucao de um sistema e matematica-mente equivalente a imaginar um conjunto ou ensemblede sistemas e fazer a media sobre o conjunto. Esta ea chamada Hipotese Ergodica da mecanica estatıstica ea validade de tal afirmacao ainda nao e um problemade todo respondido. Admitida a hipotese, a perguntaque se coloca entao e a seguinte: qual seria, dentro doconjunto, a distribuicao mais provavel de microestados?No equilıbrio termodinamico sabemos que as grandezastermodinamicas do gas serao aquelas para as quais aentropia e um maximo. Mas sendo as grandezas fısicasmacroscopicas representadas por medias no ensemblede espacos-µ, e preciso determinar a relacao entre aEntropia e os microestados uma vez que, conhecendo aEntropia, as grandezas termodinamicas de interesse po-dem ser dela obtidas. Aqui esta o cerne da mecanica es-tatıstica de Boltzmann, que descobriu a famosa formula

S = kB ln W , (24)

que relaciona a entropia termodinamica com o numerode microestados de um sistema fısico [25]. Nestaequacao kB e a constante de Boltzmann. Maximi-mar a entropia significa entao maximizar (24) sob ascondicoes impostas pelos vınculos – e isto se faz me-diante a conhecida tecnica matematica dos multipli-cadores de Lagrange.

Mas a restricao na verdade e sobre o numero de es-tados (o numero de celulas As na Eq. (22) e fixo) eisso nao implica que o numero de fotons seja necessa-riamente fixo. Bose acaba por introduzir deste modoa nao conservacao de fotons. Repetindo seus calculos

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280 Dahmen

temos assim

ln W = ln∏s

As!p0

s!p1s! . . .

=∑

s

ln As!

−∑

s

∑r

ln prs! (25)

Utilizando a Formula de Stirling para grandes numeros

ln N ! ' (N +

12)ln N (26)

chegamos finalmente a

ln W ≈∑

s

As ln As −∑

s

∑r

prs ln pr

s. (27)

Facamos agora as variacoes. Para isto temos

δE = 0 = δ(∑

s

Nshνs)

=∑

s

δNs hν (28)

δNs = 0 = δ(∑

r

rprs)

=∑

r

rδprs (29)

Para a variacao de ln W vale

δ ln W = 0 = δ(∑

s

As ln As)

−δ(∑

s

∑r

prs ln pr

s)

=∑

s

δAs(ln As + 1

)

−∑s,r

δprs(ln pr

s + 1)

=∑

s

∑r

δprs(ln pr

s + 1)

. (30)

No ultimo passo por ser As uma constante sua variacaoe nula. Pelo metodo de multiplicadores de Lagrange,considerar a variacao (30) sujeita as variacoes (28)e (29) significa somarmos as tres equacoes com osvınculos devidamente multiplicados por parametros deajuste que, seguindo Bose, chamaremos de 1/β e λs.O primeiro da conta da constancia de E. O segundo,que Bose introduz por imaginar ser Ns tambem umaconstante, e na verdade desnecessario, como discutimosabaixo. Obtemos assim

∑s

∑r

[δpr

s(1 + ln pr

s + λs)

+δpr

srhνs

β

]= 0

Igualando o termo entre chaves a zero temos, com umasimples manipulacao algebrica, o resultado

prs = e−(λs+1)e−

rhνβ = Bse−

rhνβ (31)

Da relacao As =∑

r prs temos porem

As =∑

r

Bse−rhν

β = Bs(1− e−

hνβ

)−1

−→ Bs = As(1− e−

hνβ

). (32)

Na passagem da primeira equacao para a ultima usa-mos o resultado da soma de uma progressao geometricade razao. Para o valor de Ns e E obtemos de modoanalogo as expressoes

Ns =∑

r

rprs

=∑

r

rAs(1− e−

hνβ

)e−

rhνβ

= As e−hνβ

1− e−hνβ

; (33)

E =∑

s

Nshνs =∑

s

∑r

rprshνs

= As(1− e−

hνβ

)e−

rhνβ hνs . (34)

Levando em conta (17) chegamos a expressao para aenergia

E =∑

s

8πhνs3V

c3

e−hνβ

1− e−hνβ

dνs , (35)

e para a entropia S = kB ln W temos

S = kB

[E

β−

∑s

As(1− e−

hνβ

)]. (36)

Por outro lado, da termodinamica sabemos que∂S∂E = 1

T e portanto daı concluımos que

β = kBT . (37)

Finalmente

E =∑

s

8πhνs3V

c3

1

ehνs

kBT − 1dνs , (38)

que e a formula de Planck. Bose conclui assim a tarefaa qual se propusera: deduzir a equacao de Plancksem recorrer para isso a quaisquer elementos da fısicaclassica.

Como ja mencionado, a introducao da condicao deNs constante e totalmente irrelevante [19]. Dizer queo numero de celulas As numa regiao no entorno de dνs

e constante, como faz Bose em seu artigo de maneiraexplıcita, nao implica que o numero de fotons seja cons-tante, como podemos ver pela expressao para Ns abaixoda Eq. (22). Isto significa que se tomarmos λs = 0nos calculos acima chegaremos ainda a Eq. (38). Emoutras palavras, para um sistema onde o numero departıculas nao e conservada o potencial quımico µ deveser nulo uma vez que λs = βµ. E o que ha de tao espe-cial nos fotons para que isso ocorra? Sendo a energia deum foton inversamente proporcional ao comprimento de

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Bose e Einstein: Do nascimento da estatıstica quantica a condensacao sem interacao I 281

onda (cf. ıtem (5) da secao III) fotons de comprimentode onda infinitamente longos tem energia proxima dezero e portanto podemos adiciona-los ao sistema semincorrer numa divergencia da energia total E.

A imposicao de Einstein de que o numero total N demoleculas de um gas seja conservado e o ponto fulcral deseu trabalho, por ser ela a condicao sine qua non paraa ocorrencia do fenomeno da condensacao. A carac-terıstica fundamental deste fenomeno e a existenciade uma populacao macroscopica de partıculas no es-tado fundamental: a quase totalidade das partıculas vaipara o estado de menor energia, deixando os estados demaior energia despopulados a tal ponto que a razao en-tre N0 e o numero N total aproxima-se de 1 quando atemperatura vai a zero. Ao abrir mao desta condicao, ofenomeno deixa de existir – motivo pelo qual nao existeuma condensacao de Bose-Einstein para fotons.

4. Conclusoes

O trabalho de Bose lancou as bases sobre as quais foipossıvel construir uma mecanica estatıstica que incor-porasse, em seu bojo, a entao recem-criada mecanicaquantica. Entre seus desdobramentos, o artigo de Eins-tein sobre a termodinamica de um gas ideal quanticofigura entre os mais importantes, pois nele foi pre-visto o fenomeno da condensacao das partıculas no es-tado fundamental. A assim chamada Condensacao deBose-Einstein em vapores de metais alcalinos (tantoatomicos quanto moleculares) e hoje um fato experi-mental solidamente estabelecido e entre suas futurasaplicacoes poderıamos vislumbrar a criacao de “lasersde materia” [7] ou ainda a possibilidade de utilizar con-densados emaranhados nos protocolos de swapping emcriptografia quantica [26]. A condensacao e seus desen-volvimentos atuais serao detalhadamente discutidos emum artigo posterior [5].

Referencias

[1] J. Renn, Die Physik vom Kopf auf die Fusse gestellt:Wie Einstein die Spezielle Relativitatstheorie fand,Phys. Journal 3, 49 (2004). A traducao deste artigopode ser encontrada na RBEF 27, 27 (2005).

[2] N. Studart, RBEF 22, 523 (2000).

[3] A. Einstein, Zur Quantentheorie der Strahlung, Verh.Deut. Phys. Ges. 18, 318 (1916). Einstein publicoumais dois artigos na sequencia: Mitt. Phys. Ges. Zurich16, 47 (1916); Phys. Zeitschr. 18, 121 (1917). Na re-alidade o problema do corpo negro esteve sempre pre-sente, sendo que durante os anos entre o trabalho dePlanck e o de Einstein, varios artigos sobre esse assuntoforam publicados.

[4] A. Einstein, Quantentheorie des einatomigen idealenGases II, Sitz. Ber. Preus. Akad. Wissens. 3 (1925).A versao em Portugues pode ser encontrada na RBEF27, 113 (2005).

[5] S.R. Dahmen, RBEF 28, 283 (2005).

[6] Vale a pena lembrarmos que um gas nao interagenteclassico - o gas ideal - nao se condensa. Classicamente acondensacao so pode ocorrer mediante o aparecimentode uma interacao, diferentemente do caso quantico.

[7] W. Ketterle, Rev. Mod. Phys. 74, 1131 (2002).

[8] E.A. Cornell and C.E. Wieman, Rev. Mod. Phys. 74,875 (2002).

[9] V. Bagnato, RBEF 19, 11 (1997).

[10] P. Sokol em Bose Einstein Condensation, editado porA. Griffin, D.W. Snoke e S. Stringari (Cambridge Uni-versity Press, Cambridge, 1995). Aqui p. 51. A dis-cussao sobre a teoria do helio superfluido pode ser en-contrada em A.L. Fetter and J.D. Walecka, QuantumTheory of Many-Particle Systems (Dover Publ. Inc.,Mineola, 2003), p. 481-495.

[11] A. J. Leggett, Rev. Mod. Phys. 73, 307 (2001).

[12] A.F.R de Toledo Piza, Braz. J. Phys. 34,3B, 1102(2004).

[13] K. Huang, Statistical Mechanics (John Wiley and SonsLtd., New York, 1988), caps. 12, secao 3.

[14] R. Becker und W. Doring, Ann. Physik 24, 719 (1935).

[15] J.E. Mayer, J. Chem. Phys. 5, 67 (1937).

[16] B. Kahn and G.E. Uhlenbeck, Physica 5, 399 (1938).

[17] G.E. Uhlenbeck, Over Statistische Methoden in de The-orie der Quanta, Tese de doutorado, Leiden, 1927.

[18] A.A. Michelson, Light Waves and Their Uses, p. 23 e24. Reproduzido em G. Holton, Thematic Origins ofScientific Thought. Kepler to Einstein (Harvard Uni-versity Press, Cambridge, 1973).

[19] A. Pais, Subtle is the Lord...The Science and Life of Al-bert Einstein (Oxford University Press, Oxford, 1982).Os capıtulos relevantes ao trabalho aqui apresentadosao o 4, secoes c e d, e o 23.

[20] O termo espaco-µ foi introduzido em [23] por ser µ aprimeira letra da palavra molecula no alfabeto grego.O termo Complexo, no original alemao Komplexion, ede Boltzmann.

[21] E necessario que haja colisoes entre partıculas, de modoque elas possam trocar energia e momento e assimdar origem a uma distribuicao dinamica de pontos noespaco-µ. No entanto podemos contornar a condicao denao interacao imaginando que a energia nas colisoes epequena quando comparada a energia total do sistemae ocorrem num intervalo de tempo infinitesimal.

[22] O termo espaco-Γ foi introduzido em [23] por ser Γ aprimeira letra da palavra gas no alfabeto grego.

[23] Os termos estatıstica fina e grossa vem do alemao feinee grobe Statistik e foram introduzidos por Paul e Ta-tiana Ehrenfest em seu famoso tratado sobre os fun-damentos da mecanica estatıstica, onde aparecem pelaprimeira vez na secao 23. Cf. P. und T. Ehrenfest, En-zyklopadie der Mathematischen Wissenschaften, Bd.4,2, Abh. 28 (vol. 4, tomo 2, tratado 28), Teubner,Leipzig (1911). Este extenso trabalho foi publicado naforma de livro, em ingles, com o tıtulo ConceptualFoundations of the Statistical Approach to Mechanics,Cornell University Press, Ithaca, (1959).

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[24] Inclusive esta distinguibilidade e a origem do famosoParadoxo de Gibbs da mecanica estatıstica classica:ao calcularmos, pelos metodos classicos, a entropia damistura de dois gases ideias, somos levados a dois re-sultados diferentes caso estejamos misturando gases desubstancias quimicamente diferentes ou iguais. Em ou-tras palavras, a entropia dependeria da historia dosgases. Gibbs foi assim obrigado a introduzir um fatorde 1/N ! nas suas equacoes para obter um resultado

correto, fator este que vem da indistinguibilidade departıculas em nıvel quantico.

[25] Esta formula, na sua notacao original S = kB lnΩ estagravada na lapide de Boltzmann no Cemiterio Central– o Zentralfriedhof – de Viena.

[26] A.P. Hines, R.H. McKenzie and G.J. Milburn, Phys.Rev. A 67 (2003), 013609.