burnout professores

26
REVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - Nº 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013 195 Avaliação e Interpretação do Mal-estar Docente: Um Estudo Qualitativo sobre a Síndrome de Burnout Mary Sandra Carlotto Psicóloga; Mestre em Saúde Coletiva (ULBRA-RS); Doutora em Psicologia Social (USC/ES); Professora da Faculdade de Psicologia e do PPG em Psicologia (PUCRS). Bolsista produtividade do CNPq. End.: Av. Mauá, 645/504-Centro-São Leopoldo-RS CEP: 93110-320 E-mail: [email protected]; mary.sandra@ pucrs.br Adolfo Pizzinato Psicólogo, Mestre em Psicologia Social e da Personalidade (PUCRS); Doutor em Psicologia da Educação (UAB/ES); Professor da Faculdade de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PUCRS). E-mail: [email protected]

Upload: simone-wski

Post on 18-Aug-2015

288 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Burnout Professores

TRANSCRIPT

REVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013 195 194 CLUDIA HENSCHEL DE LIMA, ADILSON PIMENTEL VALENTIM, CARLOS EMMANUEL DA F. ROCHAAvaliao e Interpretao do Mal-estar Docente: Um Estudo Qualitativo sobre a Sndrome de Burnout Mary Sandra CarlottoPsicloga;MestreemSadeColetiva(ULBRA-RS); DoutoraemPsicologiaSocial(USC/ES);Professora da Faculdade de Psicologia e do PPG em Psicologia (PUCRS). Bolsista produtividade do CNPq.End.:Av.Mau,645/504-Centro-SoLeopoldo-RS CEP: 93110-320E-mail: [email protected]; [email protected] PizzinatoPsiclogo,MestreemPsicologiaSocialeda Personalidade(PUCRS);DoutoremPsicologiada Educao(UAB/ES);ProfessordaFaculdadede PsicologiaedoProgramadePs-Graduaoem Psicologia (PUCRS).E-mail: [email protected] 196MARY SANDRA CARLOTTO, ADOLFO PIZZINATO, CLAUDIA FONTANA E MARIBEL DRESCHREVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013Claudia FontanaPsicloga (ULBRA/Canoas)Maribel DreschPsicloga (ULBRA/Canoas)ResumoProfessores esto expostos a diversos estressores ocupacionais que, se persistentes, podem levar Sndrome de Burnout. Trata-se de um estudo qualitativo, realizado com oito professores de ensino fundamental, em uma escola de Porto Alegre. O objetivo foiidenticaroconhecimento,ossintomas,oprocessoeas consequncias da Sndrome de Burnout nesses prossionais. As informaes foram obtidas atravs de entrevista semiestruturada constitudadeseisquestesnorteadoraseforamanalisados seguindo a tcnica de anlise de contedo. Os resultados revelam que os professores possuem informaes adequadas sobre a sndrome e tambm algumas distores ao identic-la como depresso. Apontam como sintomas aspectos comportamentais efsicos;ecomodeterminantesassinalamascaractersticas pessoais do professor, as condies e organizao de seu trabalho e a falta de recompensas. Quanto ao processo, referem ser lento e que culmina na incapacidade total de executar adequadamente sua funo. Como aes, sugerem acompanhamento pessoal, mudanas organizacionais e sociais.Palavras-chave: Sndrome de Burnout, Professores, Sade ocupacional.Evaluation and Interpretation of Discontents Teacher: A Qualitative Study about Burnout SyndromeeAbstractREVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013AVALIAO E INTERPRETAO DO MAL-ESTAR DOCENTE: UM ESTUDO QUALITATIVO 197 SOBRE A SNDROME DE BURNOUTTeachers are exposed to various occupational stressors which, if persistent, can lead to burnout syndrome. This is a qualitative study realized with eight elementary school teachers in a school in Porto Alegre. The purpose of this study was to verify the knowledge, the symptoms, the process and consequences of burnout syndrome in these professionals. The information was collected through semi-structured interview consisting of six guiding questions and was analyzed by the technique of content analysis. The results reveal that teachers have adequate information about the syndrome and also some distortions and they identify as depression. They point to behavioral symptoms and physical aspects, and as determinants indicate the teacher's personal characteristics, conditions and organization of work and lack of rewards.They refer be a slow process and that culminates in the complete inability to adequately carry out their function. Teachers suggest actions of individual counseling, organizational and social changes. Keywords: Burnout syndrome, Teachers, Occupational health. Evaluacin e Interpretacin del Malestar Docente: Un Estudio Cualitativo del Sndrome de BurnoutResumenLos maestros estn expuestos a diversos estresores laborales que,siespersistente,podranllevaralsndromedeBurnout. Este es un estudio cualitativo, llevado a cabo con ocho maestros de escuela primaria en una escuela en Porto Alegre. El objetivo fue identicar los conocimientos, los sntomas, el proceso y las consecuencias de estos profesionales sndrome de Burnout. La informacinseobtuvomedianteentrevistasemiestructurada constadeseistemasprincipalesyseanalizaronsiguiendola tcnica de anlisis de contenido. Los resultados muestran que los profesores tienen informacin adecuada sobre el sndrome y tambin algunas distorsiones para identicarla como depresin. Sealarcmoaspectosconductualesysntomasfsicos;y marcar las caractersticas personales como determinantes de la 198MARY SANDRA CARLOTTO, ADOLFO PIZZINATO, CLAUDIA FONTANA E MARIBEL DRESCHREVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013profesora, las condiciones y la organizacin de su trabajo y la falta de recompensas. En cuanto al proceso, se reeren a ser lento y que culmina en una incapacidad total para realizar su funcin adecuadamente. Palabras-clave:DSndromedeBurnout,maestros,salud ocupacional. valuation et Interprtation du Malaise de L'enseignement: Une tude Qualitative du Syndrome de BurnoutRsumEnseignants sont exposs divers facteurs de stress au travail qui, si persistante, pourraient conduire au Syndrome de l'puisement. Il s'agit d'une tude qualitative, ralise avec huit enseignants duprimairedansunecolePortoAlegre.L'objectiftait d'identier les connaissances, les symptmes, le processus et les consquences de ces professionnels, Syndrome de l'puisement. L'information a t obtenue grce l'entrevue semi-dirige se compose de six numros principaux et ont t analyss selon la technique d'analyse de contenu. Les rsultats montrent que les enseignantsontuneinformationadquatesurlesyndromeet aussi certaines distorsions pour l'identier comme la dpression. Souligner comment les aspects comportements et les symptmes physiques; et marquer des caractristiques personnelles comme dterminants de la professeur, les conditions et l'organisation de leur travail et l'absence de rcompenses. En ce qui concerne le processus, se reporter tre lent et qui culmine dans l'incapacit totale d'exercer sa fonction convenablement. Mots-cls: Syndrome de Burnout, Enseignants, Sant au travail. IntroduoREVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013AVALIAO E INTERPRETAO DO MAL-ESTAR DOCENTE: UM ESTUDO QUALITATIVO 199 SOBRE A SNDROME DE BURNOUTAdocnciaumaatividadecomplexaqueexigeinten-sa dedicao e envolvimento dos profssionais nela implicados (Carbonneau, Vallerand, Fernet & Guay, 2008). Ensinar uma pr-tica intelectual e moral com diversas contradies (Santoro, 2011). O impacto dos fatores estressantes sobre profsses que requerem condies de trabalho especfcas, com grau elevado de relao com o pblico, como a do professor, tem sido estudado em vrios pases sob a denominao de Sndrome de Burnout (SB). A SB a intensifcao da sintomatologia prpria do estresse, sendo consi-derada a etapa fnal de progressivas tentativas malsucedidas feitas pelo indivduo, em lidar com o estresse proveniente de uma va-riedade de condies de trabalho negativas (Kyriacou & Sutcliffe, 1978). Segundo Pines, Aronson e Kafry (1981) um estado de di-minuio do estado fsico, emocional e mental, caracterizado por cansao, sentimento de desamparo, desesperana, vazio emo-cional e pelo desenvolvimento de uma srie de atitudes negativas frente ao trabalho, vida e s pessoas. A SB um fenmeno psicossocial constitudo de trs dimen-ses: Exausto Emocional, Despersonalizao e Baixa Realizao Profssional. A Exausto Emocional caracteriza-se por uma falta ou carncia de energia e um sentimento de esgotamento emocional. A Despersonalizao ocorre quando o profssional passa a tra-tar os clientes, os colegas e a organizao de forma impessoal. A Baixa Realizao Profssional caracteriza-se por uma tendncia do trabalhador em se autoavaliar de forma negativa, sentindo-se in-satisfeito com seu desenvolvimento profssional, experimentando um declnio no sentimento de competncia e na sua capacidade de interagir com as pessoas em seu trabalho (Maslach, Schaufeli & Leiter, 2001). A SB em profssionais da educao resultante da inte-rao entre aspectos individuais e o ambiente de trabalho. Este ambiente no diz respeito somente sala de aula ou ao contexto institucional, mas sim a todos os fatores envolvidos nesta relao, incluindo os fatores macrossociais, como polticas educacionais e fatores socio-histricos da profsso docente (Carlotto, 2010). Estudo qualitativo realizado por Assis (2006), com professoras de sries iniciais, identifcou, como fatores de estresse e apontados como facilitadores do Burnout, as condies precrias e o excesso 200MARY SANDRA CARLOTTO, ADOLFO PIZZINATO, CLAUDIA FONTANA E MARIBEL DRESCHREVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013de trabalho, a falta de lazer, os baixos salrios, os confitos no tra-balho e entre o trabalho e a famlia. Estes foram apontados como aspectos que causam os sentimentos de insatisfao, desmotiva-o e frustrao, retratando condies de uma realidade escolar pouco estimulante para a rotina de trabalho docente. Outro estudo, tambm de delineamento qualitativo, desenvolvido com professo-res, por Santini e Molina (2005), descreve uma prtica profssional marcada por sentimentos negativos que comprometem a quali-dade do trabalho, acumulando, com o passar do tempo, reaes fsicas e emocionais. Para os professores, essas vivncias sub-jetivas de desgaste fsico e emocional acumuladas no trabalho traduziram-se em sentimentos depressivos e em fadiga crnica, indicadores da SB.O estresse ocupacional, alm de afetar o clima escolar e di-minuir o moral, impede a realizao dos objetivos educacionais e aumenta a probabilidade dos professores abandonarem sua pro-fsso (Yong & Yue, 2008). H repercusses importantes no sistema educacional, especialmente nos alunos e na qualidade da sua aprendizagem (Codeiro et al, 2003).Muitos esforos tm sido feitos para traar um perfl do educador suscetvel ao desenvolvimento de SB (Carlotto, 2011; Codo, 1999) e os fatores de estresse implicados nesse processo (Schwerdtfeger, Konermann & Schnhofen, 2008), principalmen-te a partir de investigaes de delineamento quantitativo, sendo ainda incipientes estudos qualitativos (Carlotto & Cmara, 2008). Assim, este estudo exploratrio de abordagem qualitativa bus-cou conhecer qual o nvel de conhecimento sobre Burnout, seus sintomas, seu processo de desenvolvimento, suas causas, suas consequncias e possibilidades de interveno sob a perspecti-va do professor. REVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013AVALIAO E INTERPRETAO DO MAL-ESTAR DOCENTE: UM ESTUDO QUALITATIVO 201 SOBRE A SNDROME DE BURNOUTMtodoParticiparam do estudo oito professores, de ambos os sexos, que desenvolvem suas atividades no ensino fundamental de uma escola pblica estadual. Como critrio de seleo, os professo-res deveriam j ter algum tipo de conhecimento sobre a Sndrome de Burnout. Assim, participaram sete mulheres e um homem com idades entre 27 e 62 anos, todos com formao superior ou cur-sando a mesma. Como instrumento de pesquisa, foi utilizada uma entrevista semiestruturada, guiada por um roteiro de questes, o qual per-mitia uma organizao fexvel e ampliao dos questionamentos medida que as informaes eram fornecidas pelo entrevistado (Duarte, 2004). Foi realizado um pr-teste a fm de verifcar a estru-tura e a clareza do roteiro, por meio de uma entrevista preliminar com dois professores de outra escola. As questes que compuseram o roteiro foram elaboradas de acordo com o modelo de Sackmann (1992) para investigaes de fenmenos psicossociais. Gil-Monte (2005) tambm utilizou o mesmo modelo em estudos de Burnout: Conhecimento sobre o fenmemo (defnio e nvel de conhecimento); Componentes descritivos (sintomas, sinais e critrios que, segundo os participan-tes, indicam que uma pessoa desenvolveu ou est desenvolvendo Burnout); Conhecimento axiomtico (desencadeantes da Sndrome de Burnout); Atribuies analtico-causais (descrio do processo de Burnout); Atribuies causais-normativas (possveis medidas e/ou recomendaes para melhorar a situao e prevenir a Sndrome de Burnout). Estas se constituram em categorias defnidas a priori (Bardin, 1980), elaboradas a partir de palavras-chave contidas nas prprias perguntas. Aps obteno da autorizao para a realizao do estudo junto direo da escola, foram agendadas as entrevistas com os professores que confrmaram disponibilidade em participar. A en-trevista foi realizada em sala especfca da escola, local escolhido pelos entrevistados, assegurando-se, dessa forma, questes per-tinentes ao sigilo. As entrevistas tiveram, em mdia, 40 minutos de 202MARY SANDRA CARLOTTO, ADOLFO PIZZINATO, CLAUDIA FONTANA E MARIBEL DRESCHREVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013durao e foram realizadas no ms de abril de 2009. As entrevis-tas foram gravadas e, posteriormente, transcritas na ntegra. Na sequncia, foram analisadas e os dados organizados em cdigos temticos, originados da leitura, que geraram categorias interpre-tativas das respostas dadas pelas participantes (Bardin, 1980). O destaque dado a fragmentos de discursos pressupe a apreenso do sentido desse fragmento na totalidade do pensamento do qual foi separado. A interpretao dos dados norteou-se pelos pres-supostos defendidos por Minayo (1993): X, Y e Z, bem como foi discutida com base na literatura sobre o tema. Buscou-se, ento, estabelecer uma compreenso contextual dos dados coletados, responder s questes norteadoras formuladas, ampliando o co-nhecimento sobre o assunto pesquisado de forma articulada ao contexto socio-histrico do grupo social investigado. Mais do que estudar o fenmeno em si, busca-se entender seu signifcado para os que o vivenciam (Turato, 2005).As classifcaes e os recortes dos relatos que originaram as codifcaes foram encaminhados a dois juzes, psiclogos pes-quisadores com conhecimento do tema em estudo, para posterior clculo de concordncia, ou seja, para verifcao da fdedignida-de das subcategorizaes realizadas pelos pesquisadores, a fm de evitar possveis vieses e legitimar o sistema categorial desen-volvido para esse estudo (Belei, Gimeniz-Paschoal, Nascimento & Matsumoto, 2008).A pesquisa teve autorizao do Comit de tica em Pesquisa da Universidade Luterana do Brasil. Foram realizados os procedi-mentos ticos conforme resoluo 196 do Conselho Nacional de Sade (CNS), no que diz respeito pesquisa com seres humanos (Brasil, 1997). Resultados e DiscussoTabela 1. Categorias e cdigos denidos atravs da Anlise de ContedoREVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013AVALIAO E INTERPRETAO DO MAL-ESTAR DOCENTE: UM ESTUDO QUALITATIVO 203 SOBRE A SNDROME DE BURNOUTCategoriasSubcategoriasConhecimentosobreo fenmeno (defnio e nvel de conhecimento sobre a SB)Componentes descritivos (sintomas, sinais e critrios para identifcar a SB)Conhecimento axiomtico (fatores desencadeantes da SB) Atribuies analtico-cau-sais (descrio do processo da SB de forma cronolgica)Atribuies causais-nor-mativas (possveis medidas para prevenir a SB)DoenaSintomas comportamentaisDepressoEstresse do professorSintomas fsicos e emocionaisDistanciamentoCaractersticas do professorRelao com o alunoOrganizao do trabalhoFalta de reconhecimentoSobrecarga de trabalhoConciliar trabalho e vida pessoalOcorre ao longo do tempoEmerge de forma agudaNo percebido pela pessoaCentradas no indivduoCentradas na organizao Conhecimento sobre o Fenmemo (Denio e Nvel de Conhecimento)Nos relatos dos entrevistados, identifcam-se contedos que originaram subcategorias quanto ao mbito de conhecimento da SB, expressos na forma de doena, depresso e estresse do pro-fessor. A SB, referida como doena, foi expressa pelo relato de uma das participantes, indicando uma adequada proximidade com 204MARY SANDRA CARLOTTO, ADOLFO PIZZINATO, CLAUDIA FONTANA E MARIBEL DRESCHREVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013seu conceito terico, embora mais reconhecido pela dimenso de exausto emocional. O reconhecimento de Burnout, enquan-to doena indica uma leitura apropriada da realidade do estresse ocupacional, tendo em vista que as leis brasileiras de auxlio ao tra-balhador j contemplam a SB no Anexo II que trata dos Agentes Patognicos causadores de Doenas Profssionais ao se referir aos transtornos mentais e do comportamento relacionados com o trabalho (Grupo V da CID-10) (Brasil, 2001). Mesmo reconhecida legalmente, fca clara a ideia da difculdade em realizar o adequado diagnstico devido s caractersticas do agravo, que no apresen-tam, em suas fases iniciais, sinais fsicos em seu adoecimento. J a identifcao de Burnout pela dimenso de exausto emocional, geralmente, ocorre porque aceitvel socialmente estar exausto em funo do trabalho e, em muitos casos, o trabalho exaustivo faz com que o profssional seja mais valorizado, sendo inclusive reforado pelos gestores institucionais. Ainda que no necessaria-mente seja o caso dos participantes, o discurso social de exausto legitimado por uma srie de comentrios abonatrios, que nem sempre consideram de fato as implicaes do sujeito no proces-so. A prpria legitimao do discurso de exausto coloca o sujeito em uma posio passiva, o desresponsabiliza do processo e com isso potencializa a sensao de impotncia. No entanto, identi-fcar a SB pela despersonalizao ou baixa realizao entra em desacordo com o que se espera de um bom profssional. Mesmo que o professor tenha sentimentos e comportamentos presentes nessas dimenses, difcil assumir a existncia de atitudes, no tra-balho, como no tratar seus alunos com afetividade ou ventilar a possibilidade de que o trabalho que desenvolve no o realiza pro-fssionalmente. Estas dimenses relacionam-se com a expectativa de pais, administrao escolar e sociedade em geral, fazendo parte do perfl idealizado do professor (Carlotto & Palazzo, 2006). Pode-se se observar o exposto no relato a seguir do P5: um estresse muito grande por parte de alguns profs-sionais, principalmente que trabalham com pessoas. um cansao, uma fadiga, uma falta de energia, a pessoa fca incapacitada de fazer as coisas. No que ela no queira, ela est incapacitada naquele momento. Fica di-fcil at para o mdico diagnosticar porque no uma REVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013AVALIAO E INTERPRETAO DO MAL-ESTAR DOCENTE: UM ESTUDO QUALITATIVO 205 SOBRE A SNDROME DE BURNOUTdoena que aparece com efeitos colaterais. No uma dor fsica, no um arranho, que tu vs, faz exame e vai dar positivo ou negativo. Para mim, um assunto muito delicado, porque no momento que tu est, no incio, pode ter vrios caminhos. Pode ser uma doena fsica ou emo-cional, psquica. (P5)A SB uma intensifcao da sintomatologia prpria do estresse, sendo considerada a etapa fnal das progressivas ten-tativas de lidar com as condies de estresse negativas (Kyriacou & Sutcliffe, 1978). O P7 exemplifca tal defnio quando refere:[...] isso, tempo e acmulo de situaes complicadas. (P7)Em outros dois relatos, percebe-se o emparelhamento de Burnout com depresso identifcando a dimenso de desperso-nalizao como consequncia: um estresse comparado ou confundido com a depres-so, s que mais forte. Quando a gente no quer acordar de manh, sente que tanto faz dar a aula ou no. isso que a gente passa a sentir tudo como um objeto, o aluno s mais um objeto. (P8) pior que um estresse, chega a dar uma mistura de es-tresse com depresso. (P7)EmboraaexperinciadeBurnouttenhaalgumarela-o com sentimentos de depresso, no so sinnimos (Bakker etal,2000;Maslach&Jackson,1981;Papastylianou,Kaila& Polychronopoulos, 2009). Alguns sintomas so os mesmos da depresso, no entanto, o indivduo com Burnout pode apresentar difculdades em uma esfera de sua vida e funcionar muito bem em outras, ao passo que, na depresso clssica, os sintomas se mani-festam em todas as situaes de sua vida (Farber, 1991; Maslach, Schaufeli & Leiter, 2001). Alm dessa questo, que pode ocorrer devido ao fato do correto diagnstico somente ser realizado em suas manifestaes mais graves, sendo a depresso uma delas, verifca-se a percepo de gravidade do quadro e das limitaes 206MARY SANDRA CARLOTTO, ADOLFO PIZZINATO, CLAUDIA FONTANA E MARIBEL DRESCHREVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013impostas pelo adoecimento. Outra fala identifca a SB como relacionada especifcamen-te atividade docente: Conhecia como estresse do professor. aquela coisa do desgaste do dia a dia que afeta teu trabalho, fam-lia, corpo. Esse conhecimento pode estar relacionado ao crescente espao que Burnout vem recebendo da mdia em geral, escolas, sendo pauta constante de debate e pesquisa por parte do sindi-cato de professores da regio, por exemplo.Componentes Descritivos (Sintomas, Sinais eCritriosqueindicamqueumaPessoa DesenvolveuouestDesenvolvendo Burnout)Quando questionados acerca dos indicadores de que um professor revelaria estar com Burnout ou desenvolvendo a mesma, verifca-se, nos relatos, a formao de trs subcategorias: sintomas comportamentais, sintomas fsicos e comportamentais e sinto-mas psquicos e emocionais. Frana (1987) divide os sintomas de Burnout em quatro categorias: fsicas, psquicas, emocionais e dis-trbios de comportamento. Fsicas: sensao de fadiga constante e progressiva associada a distrbios do sono. Dores de pescoo, ombros e dorso, crises de sudorese e cefaleia do tipo tensional. Tambm, podem ocorrer problemas gastrointestinais, perda de apetite, emagrecimento e diminuio de resistncia a infeces. Psquicas: diminuio da memria evocativa e de fxao e difcul-dade de concentrao. H uma reduo da capacidade de tomar decises, fxao de ideias e obsesso por determinados proble-mas, geralmente pouco importantes, havendo uma tendncia a ruminar pensamentos, gerando tenso e ansiedade. No, raras vezes, ocorre o pensamento de abandonar a profsso. Emocionais: desnimo, perda do entusiasmo e da alegria, sentimento de au-todepreciao e de culpa, pois, medida que o desempenho profssional e social diminui, tambm, diminui a autoestima e a REVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013AVALIAO E INTERPRETAO DO MAL-ESTAR DOCENTE: UM ESTUDO QUALITATIVO 207 SOBRE A SNDROME DE BURNOUTconfana em si mesmo. Distrbios do Comportamento: tendncia ao isolamento social, desinteresse pelas atividades ligadas ao tra-balho e ao lazer, difculdades de aceitar situaes novas, preferindo manter-se em uma rotina que, aos poucos, vai se tornando cada vez mais limitada, ocasionando um comportamento estereotipa-do e infexvel. Capacidade de iniciativa, absentesmo, incremento do uso de fumo, consumo de bebidas e de drogas tranquilizantes.Verifca-se que predomina a identifcao da sndrome pelas reaes comportamentais expressas nas falas, a seguir:Este professor no tem motivao pra fazer uma aula di-ferente, vontade de lanar desafos; ele no faz coisas novas porque no tem retorno do aluno. (P1)Desinteresse completo, apatia, irritabilidade, uma certa, uma certa no, bastante mesmo [...] A gente se sente muito desmotivada e a gente mesmo se questiona, o que estou fazendo vale pena? (P7)Desmotivada,irritada,semvontadedetrabalhar. Qualquer coisa melhor do que estar dando aulas. (P8)O desinteresse pelo trabalho tem sido apontado, por Pines e Aronson (1988), como importante desencadeador de Burnout, pois somente pessoas altamente motivadas podem desenvolver a sndrome. Pessoas com pouca motivao inicial em seu trabalho podem experimentar estresse, alienao, depresso, crises exis-tenciais, fadiga, mas no Burnout. Segundo os autores, a SB o resultado de um processo de desiluso, uma falha na busca de sentido para a vida de sujeitos altamente motivados para o traba-lho. A crescente perda de motivao pelo trabalho desencadeia o pensamento de desistir da profsso, sendo essa desistncia no necessariamente executada na sada comportamental do tra-balho, mas na forma de demisso psicolgica, isto , realizando seu trabalho abaixo do seu potencial. Esta, talvez, seja a reao mais devastadora e prejudicial a ambos, professor e comunida-de escolar. Tambm h relatos apontando combinao de sintomas f-sicos e emocionais:208MARY SANDRA CARLOTTO, ADOLFO PIZZINATO, CLAUDIA FONTANA E MARIBEL DRESCHREVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013Eu fco com dor de cabea, nuseas, tenso na coluna e tudo [...] a comeo a brigar em casa e achar um saco ter que ir pra escola. (P4)O professor geralmente fca mais agressivo, fca esque-cido. Dor de cabea, enxaqueca. (P6)Muito cansao, desnimo, pnico perante alguns mo-mentos, um nervosismo muito grande, tanto tu podes estar bem como no estar bem, pois o humor oscila v-rias vezes durante o dia. (P5)O distanciamento, dimenso importante para caracterizao da sndrome, fca evidente nos relatos que seguem:[...] tu vai de qualquer jeito, s marca presena, no se envolve. O aluno no te interessa nem um pouco. (S8)[...] no tem motivao, est fazendo uma coisa por fazer, tipo comer sem fome. Tu tens uma reao mecnica fren-te os alunos, tu larga de mo. (P6)O professor se distancia do aluno, pois esta at uma forma dele se proteger. tanto sofrimento, tanto desgas-te, que tu acaba por criar essa armadura. (P7)As pessoas se mobilizam no sentido de preservar sua in-tegridade fsica e psquica, endurecendo-se afetivamente, no se sensibilizando com os problemas insurgidos no trabalho, no se sentindo responsveis por eles, no se mobilizando em buscar so-lues, mas se defendendo de um ambiente que o agride (Santos, 2009). A utilizao de estratgias de enfrentamento de carter evi-tativo tem sido estratgia bastante relacionada ao desenvolvimento do Burnout (Carmona et al., 2006; Gil-Monte, 2005). Se, por um lado, o desligamento psicolgico e as estratgias evitativas atenu-am o sofrimento e retardam o surgimento da SB em sua fase mais grave, a da impossibilidade total para o trabalho; por outro lado, impedem o prazer no uso pleno do potencial que o trabalho tem, enquanto instncia de realizao e promoo de sade mental, ainda mais se considerarmos o papel que o trabalho desempenha REVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013AVALIAO E INTERPRETAO DO MAL-ESTAR DOCENTE: UM ESTUDO QUALITATIVO 209 SOBRE A SNDROME DE BURNOUTna constituio identitria do sujeito. importante destacar que o professor, mesmo apresentando sinais importantes de desgaste fsico, emocional e comportamental, que comprometem a quali-dade do seu trabalho e aceleram seu processo de adoecimento, permanece trabalhando.Conhecimento Axiomtico (Desencadeantes da Sndrome de Burnout)Quando indagados sobre as causas que levariam o professor a desenvolver Burnout, observou-se a formao de subcategorias, como: fatores atribudos a caractersticas do professor, organizao do trabalho, relao com aluno, falta de reconhecimento, sobrecarga de trabalho e conciliar trabalho e vida pessoal. A atribuio s carac-tersticas do professor evidenciada na seguinte fala: O professor na sua maioria muito jovem no conseguindo ter pacincia (P1). Essa colocao sugere o que se conhece como uma tendncia do trabalhador em atribuir a si e s suas caractersticas a responsabi-lidade pelo adoecimento. Essa questo importante, necessitando de esclarecimentos, uma vez que hoje est consolidado o conhe-cimento de que Burnout no um problema do indivduo, mas do ambiente social no qual ele trabalha (Maslach & Leiter, 1997, p. 18). Vrios estudos tm demonstrado a predominncia dos fatores orga-nizacionais como preditores da SB (Klusmann et al., 2008; Maslach, Schaufeli & Leiter, 2001).Neste sentido e j mais prximo, tratando-se de conhecimen-to atual, verifca-se atribuio de fatores provenientes da organizao do trabalho entre os agentes desencadeadores da SB, nos depoi-mentos dos professores entrevistados: um trabalho que tem muitas cobranas e tem gente que no consegue lidar com elas (P2, P3).Achoquepegarmuitascoisasprafazeraomesmo tempo, pegar muitas responsabilidades, tu pegas muitas 210MARY SANDRA CARLOTTO, ADOLFO PIZZINATO, CLAUDIA FONTANA E MARIBEL DRESCHREVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013coisas pra defender a parte monetria. (P6)Eu tenho este ano quase 400 alunos. Chega-se por trimes-tre a 3.013 trabalhos. Os alunos no entregam os trabalhos na data e o professor no consegue se organizar. (P2)[...] s vezes, falta de tempo pra voc ter pra ti mesmo. Falta de apoio pedaggico, com os alunos complicados, que a grande parte, enfm, so muitas coisas que agora nem lembro mais. (S7)Pessoas que esto atrs das mesas sem saber a realida-de. Eles querem nmeros, aproveitamento, efcincia, mas parece que trabalham ao contrrio: as salas lotadas, as escolas com pouco apoio. (P4)De acordo com Freudenberger (1974), comum haver inten-sa sensao de frustrao, em relao ao trabalho, decorrente da pressa em executar o mesmo por excesso de servio. Percebem-se, ento, sentimentos de frustrao e de impotncia frente aos estressores provenientes da organizao de trabalho e do quan-to no dispem de apoio e recursos para controlar os mesmos. evidente a presso, sobrecarga e o sentimento de incompreenso frente ao exerccio profssional. Segundo Woods (1999), a presen-a desses estressores decorrente do processo de proletarizao e da precarizao das condies de trabalho dos profssionais da educao. H uma preocupao em manter e promover a efcin-cia com reduo da amplitude de atuao do trabalho, as tarefas de alto nvel so transformadas em rotinas, aumento da subservincia a um conjunto de burocracia e poucas oportunidades de trabalho criativo. A esses aspectos adiciona-se a diversifcao de respon-sabilidades com maior distanciamento entre a execuo realizada pelos professores e o planejamento das polticas que norteiam seu trabalho, elaboradas por outras pessoas.A evoluo do contexto social fez com que se modifcasse o sentido das instituies educativas, com a consequente neces-sidade de adaptao mudana. Os professores, segundo Esteve (1999), adquiriram sua formao voltados para objetivos de um sis-tema projetado a um ensino de qualidade, tendo que atuar em outro REVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013AVALIAO E INTERPRETAO DO MAL-ESTAR DOCENTE: UM ESTUDO QUALITATIVO 211 SOBRE A SNDROME DE BURNOUTcenrio, no ensino de massa. Devido a essa massifcao, no possvel assegurar a todos os alunos o sucesso, tampouco um trabalho de acordo com sua formao. Os professores sofrem as consequncias da exposio a um crescimento da tenso no exer-ccio de seu trabalho, cuja difculdade aumentou fundamentalmente pela fragmentao da atividade do professor e pelo acrscimo de responsabilidades exigidas, sem que haja meios e condies ne-cessrias para responder adequadamente.Neste contexto, as mudanas tambm se fazem presentes na relao professor-aluno. Para muitos professores, essa rela-o, na qual se estabelece a busca do sucesso da aprendizagem, a principal razo de escolha da profsso e, geralmente, uma das principais causas de satisfao no trabalho, assim como sua insa-tisfao razo de desiluso e sofrimento.A tensa relao com o aluno tem sido apontada como um dos principais estressores que podem conduzir ao desenvolvimen-to de Burnout em professores (Carlotto & Palazzo, 2006; Yong & Yue, 2008):Teve um dia, aqui na escola, no incio do ano, eu estava grvida de sete meses, e uns alunos disseram que que-riam me dar uma gravata pra que eu perdesse o beb. Foi uma agresso psicolgica, eu no conseguia mais dar aulas direito, fcava de costas com medo. Pensava: nossa, elas vo me pegar. At hoje, quando lembro, me d uma emoo forte e fco triste, emocionada. (P8)Tem dias que tu no consegue dar uma aula e tem que brigar e brigar e no meu temperamento brigar. Tem pro-fessores que levam empurro, que so chamados de tudo. O professor se distancia de tudo quando o aluno come-a a lhe agredir. (P2)Cada um se fecha no seu mundo [professor e alunos], vive no seu mundo e meio que se digladiam, brigam, cada um tentando marcar seu territrio, os alunos no despeitam, desafam. (P7) 212MARY SANDRA CARLOTTO, ADOLFO PIZZINATO, CLAUDIA FONTANA E MARIBEL DRESCHREVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013A essas questes soma-se a indicao do sentimento de insa-tisfao no trabalho como uma das causas de Burnout, sendo esta relao j demonstrada de na literatura (Gil-Monte & Peir, 1997) e, sendo explicitada na opinio do P4:Acho que a insatisfao com seu prprio trabalho. Achar que no est fazendo bem. Mas tambm que no est fazendo melhor porque no tem um incentivo a mais. A gente faz um trabalho, elabora e diz: Vai ser o mximo! Mas os alunos no percebem como tal. Tu no v resposta tambm dos pais, dos alunos, da direo, ou das pesso-as que pagam a gente, o Estado. O aluno te diminui cada vez mais. O investimento que tu faz maior do que o que tu ganha, tanto de tempo como fnanceiro. (P4)Professores so comprometidos com o trabalho e se envol-vem intensamente com suas atividades, se sentindo desapontados quando no recompensados por seus esforos (Farber, 1991). Sentir que seus esforos no so proporcionais s recompensas obtidas e que futuros esforos no sero justifcados ou suportados tor-na-os vulnerveis ao Burnout. A fgura do professor, atualmente, diferencia-se em muito daqueles que inspiraram a opo docente, no gozo de prestgio e na valorizao do estatuto social de sua prti-ca. Ser professor, hoje, representa um grande desafo de resistncia e coragem, contrariando a viso tradicional de profsso segura e vantajosa, que j foi no passado (Moura, 1997). A falta de reconhe-cimento e valorizao verifcada na fala de P8, para a entrevistada, uma das causas de Burnout afalta de valorizao, no se sentir valorizado pelo que faz. Professor perde o valor. Eu acho que o que leva a desen-volver a sndrome no se sentir valorizado mesmo. (P8)Outra causa levantada o confito trabalho-famlia. De acor-do com Arroyo (2000), poucos trabalhos se identifcam tanto com a vida pessoal do sujeito como o do professor. Os tempos de escola, para o autor, invadem todos os outros tempos. A nova organizao do trabalho j no permite ao professor atender, no horrio acor-dado por contrato, todas as suas atribuies. Sendo assim, ocorre o confito entre o trabalho e vida pessoal (Carlotto, 2010), trazendo repercusses e questionamentos importantes na qualidade do tra-REVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013AVALIAO E INTERPRETAO DO MAL-ESTAR DOCENTE: UM ESTUDO QUALITATIVO 213 SOBRE A SNDROME DE BURNOUTbalho oferecido, sendo esses aspectos retratados no relato do P8:A pessoa no tem tempo pra lazer quando s trabalha, e nos fns de semana, no consegue se desligar dos alunos, dorme e acorda sem pensar em mais nada, quando no consegue fazer um trabalho bom com seus alunos, aplica as provas e a maioria vai mal, leva o professor a pensar em seu trabalho, se est passando corretamente. (P8)Esteve (1999) questiona se, com todas essas circunstncias indicadas pelos professores como causadoras de Burnout, no se estaria criando uma nova classe docente esmagada pela inutilida-de de seus esforos, sem iluso em sua tarefa, frustrada em sua vocao. Fatores que, no h dvidas, abrem portas para o desen-volvimento de Burnout. Atribuies Analtico-causaisNos relatos dos professores, quanto ao processo de Burnout, identifcam-se trs subcategorias: Burnout como processo que se desenvolve ao longo do tempo, ocorrncia de forma aguda e um processo no percebido pelo sujeito. A SB um processo paulatino e cumulativo, com incremento progressivo em termos de severida-de (Domench, 1995). Sua evoluo pode levar anos, at mesmo dcadas (Rudow, 1999).A compreenso, adequada realidade, de ser um processo lento, que se desenvolve ao longo do tempo, explicitada na fala a seguir: um processo gradual, a pessoa vai at criando ojeriza escola, pois ele no est sendo acolhido naquele espao, no est sendo bem tratado, e isso vai o afetando psico-logicamente. Ao longo do tempo, acontece a sobrecarga, como aquela metfora do balde que a gua vai pingando at transbordar [...] tu chega num ponto que tu se des-motiva totalmente, que tu fca doente. como um copo dgua, um pinguinho de cada vez. (P1)214MARY SANDRA CARLOTTO, ADOLFO PIZZINATO, CLAUDIA FONTANA E MARIBEL DRESCHREVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013Como uma reao aguda, verifca-se na seguinte colocao: o vulco em erupo. Est adormecido, mas pronto para explodir. (S3)J o fato da pessoa no perceber o processo de adoecimento fca claro na verbalizao, a seguir:Ao longo do tempo, a pessoa pensa que vai passar e no se d conta que o processo aumenta. Passa to rpido e no se percebe. Quando se d conta, j desenvolveu. (P8)Esse entendimento corrobora o j apontado na literatura. A SB difcilmente percebida nos estgios iniciais, o indivduo, geralmente, recusa-se a acreditar na possibilidade de estar acontecendo algo de errado com ele (Rudow, 1999). Essa questo importante, uma vez que difculta a atuao preventiva sobre o Burnout, demonstrando a importncia dos fatores de risco e sinais precoces de adoecimento. Atribuies Causais-normativas (Possveis Medidas e/ou Recomendaes para Melhorar a Situao e Prevenir a Sndrome de Burnout)Os relatos dos professores apontam para solues que envol-vem aes centradas no indivduo e aes centradas na organizao do trabalho. A subcategoria que envolve medidas centradas no indi-vduo representada nas falas a seguir:Acho que toda escola deveria ter um psiquiatra, um psic-logo, uma pessoa que acompanhe, que tenha o mnimo de conhecimento, que detecte, chame o professor e o enca-minhe, se for o caso. (S3)Quando o professor comea a se sentir exausto emocio-nalmente est na hora dele pedir uma licena, falar com a equipe da escola, solicitar todo o apoio. (S2) ter uma vlvula de escape. Dar aula bom, mas s vezes REVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013AVALIAO E INTERPRETAO DO MAL-ESTAR DOCENTE: UM ESTUDO QUALITATIVO 215 SOBRE A SNDROME DE BURNOUTtem coisa que tu gosta mais, mas no te d o retorno mo-netrio. Eu gosto de mexer na terra, dos meus bichos, so coisas que tu consegue escapar, botar a agressividade pra fora. Caminhar, academia, danar. (S6)A gente ter um pouco de tempo pra gente, n? Ajudaria ter alguma coisa que a gente pudesse se cuidar, algumas tcnicas de relaxao, meditao. Ter um trabalho com pro-fssionais da rea da sade mental, pra trocar umas ideias, clarear um pouco. (S7)As falas reforam o entendimento de Burnout como um pro-blema do indivduo, sendo, portanto, este o responsvel por sua resoluo. Esta viso, embora popular, errnea, pois a pessoa acredita que est passando por uma crise e acha que ela a nica responsvel pela resoluo da mesma (Maslach & Leiter, 1997). Esta compreenso deve ser clareada medida que exime a organiza-o de efetuar as mudanas necessrias para prevenir ou erradicar o Burnout. A ideia no menosprezar aes importantes relacio-nadas qualidade de vida de uma maneira em geral, mas alertar o professor que aes individuais no resolvem o problema, poden-do inclusive tornarem-se mais um estressor na sua j complexa e variada rotina de vida e de trabalho. As aes centradas na organizao so colocadas indicando a necessidade de apoio social, sendo esse aspecto uma importan-te causa de Burnout (Pines, Aronson & Kafry, 1981), principalmente oriundo de colegas de trabalho, pois estes proporcionam apoio in-formal de amizade, bem como emocional (Gil-Monte & Peir, 1997). preciso mais apoio no lado humano (P4). Respaldo dos colegas, das pessoas que percebem, que do um al. As pessoas tm que aprender a olhar as pessoas, aquela coisa do abrao, do dar um tudo bom? Como uma visita que se trata com carinho e mimos, tu deverias ser tratado assim na escola. (P5)J a colocao do P8 especifca importantes questes que dizem respeito organizao do trabalho em um sentido bastan-te amplo:216MARY SANDRA CARLOTTO, ADOLFO PIZZINATO, CLAUDIA FONTANA E MARIBEL DRESCHREVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013Acho que at sonho, um conjunto de coisas da direo, do governo, professores do Estado, que minha realida-de. Diminuir os alunos em sala de aula, mais limites, mais tempo pra planejamento. (P8)Destaca-se, nessa fala, que condies de trabalho legtimas, adequadas e necessrias adquirem, nesse contexto, projeo de sonho. Consideraes FinaisContedos importantes fguram nas entrevistas dos partici-pantes, caracterizando um entendimento claro de vrios aspectos da SB, mesmo sem nome-la explicitamente. Boa parte dos contedos das entrevistas organizam uma noo clara de aspectos concernen-tes s suas causas, sintomas e conseqncias, mesmo que nem sempre conseguindo identifcar os aspectos mais institucionais envolvidos no processo, caracterizando uma leitura predominante-mente individualista do fenmeno. Os resultados revelam tambm a necessidade de intervenes que possam ampliar e aprofundar o conhecimento atinente a esse importante fenmeno psicossocial, o qual acomete professores de todos os nveis de ensino, desse modo, agindo como forma de preveno, principalmente se pensarmos no mbito institucional de prtica docente. Os professores, com base na experincia e no conhecimento construdo a partir do exerccio profssional, podem contribuir so-bremaneira para propostas locais de interveno. Tais propostas, no entanto, devem privilegiar uma ao conjunta, entre professor e comunidade escolar, na busca de alternativas para possveis mo-difcaes, no apenas na esfera microssocial do trabalho e das relaes interpessoais que o envolvem, mas, tambm, na ampla gama de fatores macro-organizacionais que determina aspectos constitutivos da cultura organizacional e social na qual o docente exerce sua atividade profssional. REVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013AVALIAO E INTERPRETAO DO MAL-ESTAR DOCENTE: UM ESTUDO QUALITATIVO 217 SOBRE A SNDROME DE BURNOUTReferncias Arroyo, M. G. (2000). Ofcio de mestres: Imagens e auto-imagens. Rio de Janeiro: Vozes.Assis, F. B. (2006). Sndrome de Burnout: Um estudo qualitativo sobre o trabalho docente e as possibilidades de adoecimento de trs professoras das sries iniciais (Dissertao de Mestrado no publicada). Universidade Federal de Uberlndia, Uberlndia, MG.Bakker, A. B., Schaufeli, W. B., Demerouti, E., Janssen, P. P., Van Der Hulst, R., & Brouwer, J. (2000). Using equity theory to examine the difference between burnout and depression. Anxiety, Stress and Coping, 13(3), 247-268.Bardin, L. (1980). Anlise de contedo. Lisboa, Portugal: Edies 70.Belei,R.A.,Gimeniz-Paschoal,S.R.,Nascimento,E.N.,& Matsumono, P. H. V. R. (2008). O uso de entrevista, observao e vide gravao em pesquisa qualitativa. Cadernos de Educao, 30, 187-199.Carbonneau, N., Vallerand, R. J., Fernet, C., & Guay, F. (2008). The role of passion for teaching in intrapersonal and interpersonal outcomes. Journal of Educational Psychology, 100(4), 977-987.Carlotto, M. S. (2010). Sndrome de Burnout: O estresse ocupacional do professor. Canoas, RS: Editora da Ulbra.Carlotto,M.S.(2011).SndromedeBurnoutemprofessores: Prevalncia e fatores associados. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 27(4), 403-410.Carlotto,M.S.,&Cmara,S.G.(2008).Anlisedaproduo cientfca sobre Sndrome de Burnout no Brasil. Psico-PUCRS, 39(2), 152-158.Carlotto, M. S., & Palazzo, L. S. (2006). Sndrome de burnout e fatores associados: Um estudo epidemiolgico com professores. Cadernos de Sade Pblica, 22(5), 1017-1026.Carmona, C., Buunk, A. P., Peir, J. M., Rodrguez, I., & Bravo, M. J. (2006). Do social comparison and coping styles play a role in the development of burnout? Cross-sectional and longitudinal fndings. Journal of Occupational and Organizational Psychology, 218MARY SANDRA CARLOTTO, ADOLFO PIZZINATO, CLAUDIA FONTANA E MARIBEL DRESCHREVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 201379(1), 85-99.Codeiro, J. A. C., Gulln, I. G., Gala-Len, F. J. L., Lupiani, M. G., Bentez, A. G., & Gomes, A. S. (2003). Prevalencia del sndrome de Burnout en los maestros: resultados de una investigacin preliminar. Psicologa, 7(1). Recuperado de http://132.248.25.54/articulo12.htmlCodo, W. (1999). Educao: Carinho e trabalho. Petrpolis, RJ: Vozes.Domench, B. D. (1995). Introduccin al Sindrome Burnout en profesores y maestros y su abordaje terapeutico. Psicologia Educativa, 1(1), 1-16.Duarte, R. (2004). Entrevistas em pesquisas qualitativas. Educar em Revista, 24, 213-225.Esteve, J. M. (1999). O mal estar docente: A sala de aula e a sade dos professores. Bauru, SP: Edusc.Farber, B. A. (1991). Crisis in education. stress and Burnout in the American teacher. San Francisco, CA: Jossey-Bass.Frana, H. H. (1987). A sndrome de Burnout. Revista Brasileira de Medicina, 44(8), 197-199.Freudenberger, H. J. (1974). Staff burnout. Journal of Social Issues, 30(1), 159-165.Gil-Monte, P. R. (2005). El sndrome de quemarse por el trabajo (Burnout): Una enfermedad laboral en la sociedad del bienestar. Madrid: Pirmide.Gil-Monte, P. R., & Peir, J. M. (1997). Desgaste psquico en el trabajo: El sndrome de quemarse. Madrid: Snteses.Klusmann, U., Kunter, M., Trautwein, U., Ldtke, O., & Baumert, J.(2008).Teachers'occupationalwell-beingandqualityof instruction: The important role of self-regulatory patterns. Journal of Educational Psychology, 100(3), 702-715.Kyriacou,C.,&Sutcliffe,J.(1978).Teacherstress:Prevalence, sources, and symptoms. British Journal Educational Psychology, REVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013AVALIAO E INTERPRETAO DO MAL-ESTAR DOCENTE: UM ESTUDO QUALITATIVO 219 SOBRE A SNDROME DE BURNOUT48(2), 159-167.Maslach,C.,&Jackson,S.E.(1981).Themeasurementof experienced Burnout. Journal of Ocuppational Behavior, 2(2), 99-113.Maslach, C., & Leiter, M. P. (1997). The truth about Burnout: How organization cause, personal stress and what to do about It. San Francisco, CA: Jossey-Bass.Maslach, C., Schaufeli, W. B., & Leiter, M. P. Job Burnout. Annual Review of Psychology, 52(1), 397-422.Minayo. M. C. S. (1993). O desafo do conhecimento: Pesquisa qualitativa em sade. So Paulo: Hucitec.Ministrio da Sade. (1997). Diretrizes e normas para pesquisa envolvendosereshumanos.ResoluoCNS196/196. Recuperado em 30 de junho de 2009, da http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/1996/reso196.docMinistrio da Sade. (2001). Doenas relacionadas ao trabalho: manual de procedimentos para os servios de sade. Braslia, DF: Ministrio da Sade; OPAS/OMS. Recuperado em 10 julho 2010, dahttp://dtr2001.saude.gov.br/editora/produtos/livros/pdf/02_0388_M1.pdfMoura,E.P.G.(1997).Sadementaletrabalho:Esgotamento profssionalemprofessoresdarededeensinoparticularde Pelotas - RS (Dissertao de Mestrado no publicada). Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.Papastylianou,A.,Kaila,M.,&Polychronopoulos,M.(2009). Teachers Burnout, depression, role ambiguity and confict. Social Psychology of Education, 12(3), 295-314.Pines, A., & Aronson, E. (1988). Career Burnout: Causes and cures. New York, NY: The Free Press.Pines, A., Aronson, E., & Kafry, D. (1981). Burnout: From tedium to personal growth. New York, NY: Macmillan.Rudow, B. (1999). Stress and burnout in the teaching profession: Europeanstudies,issues,andresearchperspectives.InR. Vanderbergue & M. A. Huberman (Orgs.), Understanding and 220MARY SANDRA CARLOTTO, ADOLFO PIZZINATO, CLAUDIA FONTANA E MARIBEL DRESCHREVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE - FORTALEZA - VOL. XIII - N 1-2 - P. 195 - 220 - MAR/JUN 2013preventingteacherburnout:Asourcebookofinternational practiceandresearch(pp.38-58).Cambridge,England: Cambridge University Press.Sackmann, S. A. (1992). Culture and subcultures: An analysis of organizational knowledge. Administrative Science Quaterly, 37(1), 140-161.Santini,J.,&Molina,V.N.(2005).Asndromedoesgotamento profssional em professores de educao fsica: Um estudo na rede municipal de ensino de Porto Alegre. Revista Brasileira de Educao Fsica e Esporte, 19(3), 223-232.Santoro, D. A. (2011). Good teaching in diffcult times: Demoralization in the pursuit of good work. American Journal of Education, 118(1), 1-23.Santos, G. B. (2009). Os professores e seus mecanismos de fuga e enfrentamento. Trabalho, Educao e Sade, 7(2), 285-304.Schwerdtfeger,A.,Konermann,L.,&Schnhofen,K.(2008). Self-effcacyasahealth-protectiveresourceinteachers?A biopsychological approach. Health Psychology, 27(3), 358-368.Turato, E. R. (2005). Mtodos qualitativos e quantitativos na rea da sade: Defnies, diferenas e seus objetos de pesquisa. Revista de Sade Pblica, 39(3), 507-514.Woods,P.(1999).Intensificationandstressinteaching.In:R. Vanderbergue & M. A. Huberman (Orgs.), Understanding and preventingteacherburnout:Asourcebookofinternational practiceandresearch(pp.115-138).Cambridge,England: Cambridge University Press.Yong, Z., & Yue, Y. (2008). Causes for burnout among secondary and elementary school teachers and preventive strategies. Chinese Education and Society, 40(5), 78-85.Recebido em 21 de setembro de 2011Aceito em 20 de setembro de 2012Revisado em 02 de novembro de 2012