caderno de estudos introducao as sonoridades do cinema

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1 UNIVERSIDADE FUMEC-FCHS PROPIC – 2012/2013 Curso: Publicidade e Propaganda CADERNO DE ESTUDOS Introdução às sonoridades do cinema: história, conceitos, paradigmas e experimentações Coordenador: Prof. Rodrigo Fonseca e Rodrigues Aluno bolsista: Bernardo Sze Belo Horizonte - 2013

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UNIVERSIDADE FUMEC-FCHS

PROPIC – 2012/2013

Curso: Publicidade e Propaganda

CADERNO DE ESTUDOS

Introdução às sonoridades do cinema:

história, conceitos, paradigmas e experimentações

Coordenador: Prof. Rodrigo Fonseca e Rodrigues

Aluno bolsista: Bernardo Sze

Belo Horizonte - 2013

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Sumário

Introdução.....................................................................................................................03

I – Os sons do cinema: breve sobrevoo histórico........................................................05

1 – Os primórdios da tecnologia do cinematógrafo e o kinetófono................................07

1.1 - A conquista da sincronicidade audiovisual............................................................11

1.2 – A Golden Age hollywoodiana e o advento da televisão.......................................21

1.3 - As inovações tecnológicas: o sistema óptico-sonoro, a fita magnética e o sistema

Dolby Stereo....................................................................................................................22

1.4 - O som no cinema sob a égide da informática audiovisual.....................................24

II – Som, ruído, música e silêncios no cinema: aproximações conceituais..............26

2. - Sonoridades diegéticas, meta-diegéticas e extra-diegéticas....................................28

2.1 - Paradigmas e reinvenções na edição sonora do cinema, segundo Walter Murch...30

2.2 - Sons e ruídos como elementos realistas e expressivos...........................................35

2.3 - A música e o cinema...............................................................................................41

2.3.1 - As ligações iniciais entre a música e o cinema...................................................54

2.3.2 - A concepção musical cinematográfica.................................................................59

2.4 – As sonoridades reinventaram o silêncio no cinema?..............................................65

2.5 - As aventuras sonoras de cineastas experimentalistas..............................................68

2.5.1 - As conexões cinematográficas entre a visualidade e a escuta, segundo Robert

Bresson............................................................................................................................76

Epílogo............................................................................................................................78

Referências.....................................................................................................................80

Anexos.............................................................................................................................88

3

Introdução

As matrizes curriculares de cursos que, além da própria graduação em Cinema, abarcam

disciplinas teóricas ligadas às artes do audiovisual e do cinema, nem sempre almejam

contemplar com suficiência, nos seus planos de conteúdo, uma abordagem mais detida

sobre a criação das sonoridades e os diferentes regimes da escuta na história do fazer

cinematográfico. Nos cursos de Publicidade e Propaganda, Jornalismo, Design, Belas

Artes, entre outros, a disciplina que aborda conceitos de cinema e vídeo é usualmente

ministrada em um período de tempo insuficiente para percorrer o desenvolvimento de

uma prática cultural e artística complexa, há mais de um século. Pode-se afirmar sem

temeridade que o cinema se tornou um dos setores mais abrangentes da cultura no

século XX e que persiste neste século, afetando e sendo afetado por diversas expressões

audiovisuais. Ele aglutina muitos saberes, tanto na gramática de sua realização quanto

em seus modos de compreensão conceitual. O assunto é muito vasto e não há uma

especialização é possível em toda a gama de conhecimentos que compõe a arte do

cinema: historiografia, conceitos de imagem (percepção, semiótica, memória visual,

iconografia), filosofia da arte, linguagem, fotografia, artes cênicas, teoria e composição

musical, design sonoro, regimes de escuta, tecnologias do audiovisual, além de

abordagens em comunicação midiática, indústria cultural, marketing, jornalismo

cultural etc. Em nosso caso específico - a trilha sonora dos filmes - que engloba a

concepção musical, os diálogos e as falas, os sons e ruídos de todas as naturezas, as

técnicas de captação e de edição sonoras e as maneiras de consubstanciação audiovisual

no cinema, será o objeto deste Caderno de Estudos. A nossa proposta, de um modo

didático, tentará tornar o estudo da trilha sonora uma das chaves para se compreender

um pouco melhor, no âmbito específico da formação do profissional em Publicidade e

Propaganda, os princípios criativos, o pensamento teórico e a experiência estética do

cinema. Iremos problematizar paradigmas e experimentações da trilha sonora e da sua

escuta na história do cinema, mencionando técnicas e invenções artísticas implicadas

em situações exemplares de sonorização fílmica. Apoiado em um breve escopo

historiográfico e em certos parâmetros conceituais, o texto procura demonstrar as

possibilidades de reinvenção dos papéis da trilha sonora em produções emblemáticas do

cinema. É por este prisma que nos dedicamos a entender os modos pelos quais diretores,

roteiristas, montadores e fotógrafos precisam trabalhar estreitamente com músicos,

4

sonoplastas, designers, editores, engenheiros e técnicos de som, no intuito de

explorarem novas maneiras pelas quais um filme pode afetar a sensibilidade e a

imaginação do espectador.

Tentaremos compreender, na Parte I, de que modo ocorreu a assimilação, tanto pelos

profissionais quanto pelo espectador, da música, do som e do ruído no processo de

sedimentação de paradigmas formais para a trilha e a edição sonoras nos filmes, bem

como de codificação de pressupostos técnicos para engenheiros de som, editores e

designers sonoros (no Brasil, sonoplastas) no decorrer da história do cinema. O papel

das tecnologias sonoras dentro da cultura cinematográfica será considerado no trabalho

de compreensão das formas de articulação do universo da cultura da escuta com o das

imagens. Na Parte II, iremos abordar conceitualmente, a partir de exemplos de

procedimentos no trabalho da trilha sonora encontrados em filmes paradigmáticos, as

relações entre som, música, silêncio e imagens nos filmes. Tendo em mente o cinema

como uma arte sonora, em seus aspectos técnicos, perceptivos e estéticos, serão

examinadas as modalidades criativas de integração entre sonoridades, narração e

imagem na profícua história do cinema. Não será factível esta abordagem sem examinar

e, mesmo que de modo breve e descritivo, a contribuição específica do som e da música

para a construção do imaginário cultural da modernidade e contemporaneidade,

repertório sonoro-imagético que abarca o cinematógrafo, o macrocinema, as vanguardas

modernistas, a televisão, a videoarte, entre outras novas manifestações do

genericamente chamado “audiovisual”.

5

Parte I

A trilha sonora do cinema: um breve sobrevoo histórico

Pode parecer estranha a afirmação de que não há escuta uma natural, tal como não há

também uma visão que seja estritamente natural. Na história do som, do ouvido

humano, da faculdade de ouvir e das práticas de escuta remetem a contextos culturais

heterogêneos, mas sob a égide de certas forças sociais dominantes. Estas forças podem

ser apontadas, nestes últimos séculos, como o capitalismo, a ciência moderna, a

tecnologia, que constituem condições de possibilidades para a emergência de regimes de

escuta. E as técnicas de ouvir estão relacionadas a uma acomodação do ato de escuta, de

suas relações com outras práticas cultivadas e a uma intervenção tecnológica, fundada

numa razão científica dos séculos XVIII e XIX. Pode-se ilustrar esta ideia com a frase

de Sá e Costa: “A pré-história dos meios de comunicação de massa e da mediação

musical demonstra como os meios de reprodução sonora que hoje são pensados como

díspares, telefone, rádio, toca-discos, remetem, na sua origem, a um conjunto de

problemas comuns.” (SÁ; COSTA, 2012, p.15)

Quaisquer questões acerca da integração entre ficção, música, som e linguagem devem

se anteceder, obviamente, a muito antes do advento do cinema. Recorde-se do papel do

coro no teatro grego, da música nas festividades pagãs, nos dramas litúrgicos medievais,

no melodrama no Renascimento, nas peças de teatro musical, óperas, ballets, comédias

musicais e teatros de revista, vaudevilles, music hall. Em todos os eventos do gênero,

concorda-se a respeito de que sons inseridos às imagens fornecem uma experiência mais

“completa”, mais holística do que apenas duas dimensões (luz e sombras). Doane

(2012) nos diz que o cinema apresenta um espetáculo composto de elementos

discrepantes – imagens, vozes, efeitos sonoros, música, literatura, os quais a mise en

scène organiza e endereça ao corpo do espectador, receptáculo sensorial dos vários

stimuli. Música, narrativa e imagens podem, assim pensadas, ser separadas como

entidades autônomas, porém, juntas criam maiores intensidades e nuances para a

experiência do que a mera soma entre si.

6

O cinema, vislumbrado historicamente, tornou-se um “monumento” cuja gramática

programou nossa experiência cultural e motivou diversas invenções do audiovisual, há

mais de um século. Através da tecnologia da modernidade e de um código narrativo

culturalmente sedimentado, ele trouxe novos modos de percepção e compreensão da

realidade. Os hábitos ligados aos filmes afetaram, de algum modo, a nossa experiência

com a arte e nos acostumaram, como um real processo de aculturação, a diferentes

ritmos sensoriais, mnemônicos, imaginativos, corporais e sociais.1 Como Jean Jacques

Carrière (1995) afirma, o cinema foi uma arte que fez uso de tudo o que veio antes dele,

mas se formou, antes de tudo, a partir de si mesmo. O cinema inventou a si mesmo e

imediatamente se copiou, se reinventou e logo forçou caminho no mundo das ideias, da

imaginação, da memória e dos sonhos. Num curto período de alguns anos,

empiricamente, em cima de fracassos e de vitórias elaborou-se a mais surpreendente das

gramáticas a partir da linguagem de imagens, olhares e sons. Como não há nenhuma

gramática clara ou permanente, esta linguagem se expandiu constantemente, se

modificou, se adaptou à inconstância dos gostos, permitindo ver aquilo que nunca havia

sido visto. Através da repetição de formas, do contato cotidiano com todos os tipos de

plateias, esta linguagem tomou forma e se expandiu, de tal modo que nem nos atinamos

mais que a capacidade de assimilá-la já faz parte do nosso sistema de percepção.

Antes de adentrarmos nas questões específicas do som nos filmes, vale dizer que o

cinema sempre se interessou pelo invisível. São os ritmos que nos afetam, o que se

move em nosso corpo, as nossas sensações, tudo o que está em jogo não apenas no

cinema, mas em qualquer expressão da arte. Germaine Dulac nos fala que o filme

integral com o qual todos os diretores sonham é uma “sinfonia visual”, feita de imagens

ritmadas, que somente podem ser coordenadas e convertidas para a tela pelo trabalho do

artista.

A trilha sonora cinematográfica se estabeleceu por meio de incontáveis agenciamentos

de sonoridades: efeitos sonoros, ruídos, sons ambientes, a concepção musical, os

1 A valorização dos efeitos tecnológicos na modernidade transtornou o nosso regime de visão, modificando todo modo de percepção do espaço e do tempo: as fantasmagorias de Robertson, o diorama de Daguerre (1822), a primeira exposição de fotografia, em Paris (1959), a primeira projeção de cinema (1895), a primeira película sonora (1928), o Technicolor (1937), a televisão e o Eastmantcolor (filme negativo em cor) em 1951. Nos anos 70, populariza-se a TV em cores (1968). A videosfera se iniciou com esta invenção. Da fotografia (celuloide) ao cinema (película química), da televisão (tubo catódico) ao vídeo (fita magnética) e ao computador (algoritmos numéricos) transcorreu-se um século e meio.

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diálogos, o canto e a voz (estes últimos que serão reservados para o próximo Caderno

de Estudos), que envolvem técnicas de captação do som e de sua edição (pós-produção),

acolhidos sob o termo soundtrack (no Brasil, trilha sonora; em Portugal e Espanha,

banda sonora, na Itália, colonna sonora e na França, bande sonore). A trilha sonora se

cria em mútua simbiose com o roteiro, a decupagem, a encenação, a imagem capturada,

os planos e a montagem.

Em sua história, o cinema tornou-se uma arte que incorporou diversos saberes: a

narrativização com seus elementos textuais (história, narração, roteiro, enredo,

diálogos); os elementos visuais (ponto de vista, enquadramentos, campo e fora-de-

campo, planos, sequências, montagens); e as sonoridades, em sua natureza diversificada

(música, ruído, efeitos sonoros, atos de fala, silêncios). A importância da trilha sonora

se estabeleceu como uma arte na mobilização da escuta face ao fluxo plástico de uma

ideia narrada. E como uma arte coadjuvante do cinema, ela se estabeleceu,

historicamente, por meio dos diversos agenciamentos técnicos e estéticos entre música,

efeitos sonoros, ruídos, sons ambientes e voz, em mútua simbiose com a narrativa e a

imagem. No que diz respeito à percepção do tempo fílmico, nosso hábito como

espectadores nos permite restabelecer uma ordem cronológica desejada pelo diretor, que

nos ajuda com reintroduções da trilha sonora ao longo da narrativa.

Para uma trilha sonora se tornar factível é preciso, primeiramente, uma simbiose entre a

sensibilidade do diretor, do músico e do sound designer num trabalho fílmico. A música

e a sonoplastia cooperam intimamente entre si em prol da força enunciativa, plástica e

cênica de um filme. Elaborar a trilha musical e a ambientação sonora de um filme é

fruto de uma realização coletiva e envolve muitas negociações durante todo o seu

processo de criação. É um trabalho que precisa ser planejado desde o roteiro, projetado

na pré-produção, ser executado, gravado ou sintetizado, ter a sua conexão audiovisual

delineada na montagem, definida na edição de som e finalizada na mixagem e

masterização (pós-produção). É importante frisar que, no processo geral de produção do

filme, todas as suas etapas são operações intimamente interdependentes.

1 – Os primórdios da tecnologia do cinematógrafo e do kinetófono

8

“Cinematógrafo” é uma designação que abarca um conjunto de aparelhos ligados à

captação de recriação de imagens em movimento, a partir de fotogramas. Surge no

contexto histórico da segunda metade do século XIX. Neste período conhecido como o

início da modernidade, experimenta-se um surto dinâmico de inovações. A chamada

revolução tecno-científica (ou Segunda Revolução Industrial) descobre novas

modalidades de energia e vincula-se aos grandes complexos industriais e ao capital

financeiro. Inaugura-se uma era de máquinas, com a eletricidade, o automatismo, a

aceleração na produção e nos transportes. Inventam-se o motor à explosão, o telégrafo,

o telefone, o fonógrafo, o cinematógrafo, o cabo submarino. A ciência mergulha no

âmago da matéria e nos confins do universo. Descobre-se o elétron. A psicanálise

explora as dimensões oníricas e do inconsciente. Encontra-se no gene o núcleo

elementar da vida. Aparecem a mecânica quântica, a física atômica, as geometrias n-

dimensionais e a noção de quarta dimensão, com amplas repercussões culturais,

mudanças de mentalidade e dos ritmos de percepção da realidade. Surgem movimentos

modernistas e novas correntes da filosofia.

O cinematógrafo era uma novidade que, primeiramente, surgiu como uma atração

espetacular da imagem em movimento. Desde o seu início, foi considerado antes uma

arte do movimento, mais do que da imagem. Basta lembrar o significado do termo kino,

que deu origem ao seu nome. A ideia mestra da era moderna, o movimento foi o

primeiro laço, a primeira ponte entre o som e o cinema. Os primeiros filmes eram como

cartões postais animados: vistas do mundo, filmes de trucagem, para mágicas, ou filmes

científicos sobre o movimento do homem e dos animais. Alguns anos depois, passou a

ser denominado como “cinema” e, progressivamente, tornou-se uma verdadeira

máquina de contar histórias.2 A partir de 1903, os filmes começam, todavia, a enfrentar

o desafio de se tornarem ficcionais, narrativos, passando a ocorrer, entre tendências

2 O termo “cinema” não deve ser confundido com “cinematógrafo”, seu antecessor. A passagem da atração visual cinematográfica para o cinema se deu com a conquista de uma linguagem ficcional, estabelecida em termos de narratividade e seus respectivos métodos de representação, tais como: consistência mimética, verossimilhança, a linearidade causal e a constituição de um espaço-tempo diegético, além de paradigmas como tomadas, enquadramentos, planos, continuidade da montagem, efeitos especiais etc. O cineasta Robert Bresson (1901-1999) rejeitava, em suas anotações, a palavra “cinema” porque esta trazia de volta uma conotação de “teatro filmado”, preferindo ele utilizar o termo “cinematógrafo”, ao qual definia como “uma escrita com imagens em movimento e sons”. Para Bresson, não há casamento do teatro com o cinematógrafo sem o extermínio dos dois. A utilização dos meios do teatro leva fatalmente ao pitoresco do olhar e do escutar. (BRESSON, 2008, p. 76)

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múltiplas e conflitantes, uma tipificação sistemática da maneira adequada para se

construírem enredos e formas de filmá-los. As técnicas de câmera e a encenação

conquistaram maior ênfase dramática. Neste processo, o público foi se educando, se

familiarizando com estruturas mais complexas, que exigem disposições diferentes da

memória, da atenção e das expectativas diante da tela.3

O que predomina no cinema mundial é, como bem se sabe, a ficção construída pela

narração que, sob durações convencionadas (curta, média e longa metragens), conta

uma história, situando-a num certo universo de memórias, um suporte imaginário,

cultural, linguístico – chamada de “diegese” – estruturada pelos recursos de roteiro

(screenplay), como o drama, o enredo, o argumento e a intriga.4 A arte da narrativa

fílmica passou a consistir, a partir de 1906, em se apresentar uma história em certa

ordem e com certo ritmo, compreendendo imagens, palavras, menções escritas, ruídos e

música, mas ainda sem sincronismo audiovisual tecnicamente executado.5 E, desde que

houve essa passagem gradual do cinematógrafo para um cinema ficcional, a composição

musical e a sonoplastia passaram a integrar-se intimamente à concepção do filme.

Desde cedo que os vendedores de filmes também entregavam, juntamente com a

película, um guia que permitia que o dono da sala de exibição saber quais eram os

acessórios necessários para uma sonorização eficaz, além de fornecer indicações sobre

os comentários e diálogos. Além do mais, nos primeiros anos de cinema não se

possuíam recursos de amplificação suficientes para preencher o som de uma sala de

espetáculos, tampouco alto-falantes capazes de suportar a amplificação sem gerar

distorções.

3Para o cinema narrativo clássico, a realidade deve se expressar sozinha na tela e o espectador tem uma ilusão, não a de estar em contato com uma narração, mas de ver uma realidade diante da qual permanece como um voyeur escondido na sala escura, modelando as sensações e os pensamentos do outro sem ter de agir de verdade. (grifo nosso) 4 Cf. em Aumont et al: A narração é um ato narrativo produtor que engloba o conjunto da situação na qual ela toma lugar e sintetiza um modo complexo de enunciação. A ordem narratívica, por isto, não se deixa decifrar apenas com o próprio desfile do filme, pois também é feita de anúncios, lembranças, correspondências, deslocamentos e saltos temporais. É o que se denomina “diegese”: o ambiente autônomo da ficção, o mundo verossímil de motivações no qual se inscreve a história contada. O universo diegético é tudo o que a história evoca ou provoca para o espectador, a série das ações, o seu contexto, seja geográfico, histórico ou social. A diegese é, portanto, mais ampla que a história. (AUMONT, 1995, p.115) 5 O longa metragem aparece só depois de 1910.

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Curiosamente, a proposta de união audiovisual na era da cinematografia não se deu, em

seus primeiros passos, como uma tentativa de sonorizar a imagem em movimento, mas

foi justamente o contrário. Em 1857, Léon Scott de Martinville, tipógrafo francês que se

dedicava ao registro das palavras apresentava o Phonoautographe, aparelho que captava

os sons por uma concha acústica, fazia-os vibrar numa membrana ligada a um estilete,

criando marcas em um cilindro de vidro escurecido por fuligem, com manivela. Alguns

anos antes da primeira projeção cinematográfica (1895), Thomas Edison havia

patenteado, em 1877, o fonógrafo.6 Ele não suspeitava, naquele momento, que este

invento teria uma importância na conquista de uma autonomia do seu registro para as

mensagens de natureza sonora. Edison o encarava o fonógrafo como algo incompleto,

necessitando de um complemento visual da informação auricular. Logo pensou em

maneiras de registrar fotograficamente imagens sincronizadas ao som gravado no

cilindro do seu aparelho. Eadweard Muybridge, inventor do “fusil fotográfico” chegou a

discutir com Thomas Edson acerca da possibilidade de se usar o processo de gravação

sonora (o fonógrafo) para acompanhar o seu protótipo de projetor, chamado

zoopraxiscópio. Em 1892, Edison patenteava o kinetófono (ou quinetofone) que era um

fonógrafo acoplado a um kinetoscópio (ou kinetógrafo), já criado em 1891, que poderia

gerar imagens para acompanhar e complementar os registros sonoros. Este dispositivo

também foi chamado de cinetofone ou fonocinetoscópio. Surgia, desta forma, uma

espécie de fonógrafo óptico. O kinetoscópio de Edison era, por assim dizer, um cinema

em escala individual: foi criado para mirar as imagens através de um visor e ouvir os

sons através de cones. Em 1895, Laurie Dickson tenta uma experiência de captação de

imagem com o cinetógrafo, ligado a uma captação do som no fonógrafo. Ele interpreta

no violino um ritornelo do compositor francês Jean-Robert Planquette. Este ensaio

marca o primeiro filme sonoro da história.7 Dickson toca em frente a um funil que serve

para captar o som, registrado em disco de cera. O filme passa depois no cinetoscópio,

que contém dos lados um fonógrafo elétrico que começa a funcionar quando se

desenrola a fita da imagem. As tentativas infrutíferas de perfeito sincronismo entre som

e imagem em movimento levaram Edison e Dickson a perceberem que a alternativa

mais viável era registrá-los em dispositivos separados e, a partir daí, tentar resolver este

problema da sincronização entre os dois.

6 Em 1877, Charles Cros criava o paleófono. 7 Ironicamente, o cinematógrafo nasceu sonoro e perdeu o som com a generalização das salas de exibição.

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Em 1889 Emile Reynaud desenvolveu, com o seu Théatre Optique, com um cinema de

animação com “tiras”, dotado de um engenhoso sistema de sincronização com efeitos

sonoros de diversos tipos. Entre 1902 e 1910 Edison, Pathé, Zecca, Henry Joly e Léon

Gaumont tentaram diferentes combinações entre fonógrafo e projetor de filmes, mas

nenhum logrou sucesso para exibições públicas (STEPHENSON, 1989, p. 174) Para

incluir a música às exibições, tentou-se inicialmente agregar um gramofone por trás da

tela, prática que logo foi abandonada por ter um alcance de volume sonoro muito baixo.

As tentativas de outros cientistas começaram a aparecer para resolver as questões do

audiovisual: em 1903, Eugene Lauste inventou um método de fotografar as ondas

sonoras e de restituir o som pela projeção do filme sobre uma célula de selênio. Léon

Gaumont esboçou o seu cronofone. Lee De Forest optou por pesquisar uma leitura

óptica do som e também desenvolveu técnicas de amplificação sonora. Nas buscas de

sincronizar filme e disco, se experimentaram vários dispositivos, tais como o

camerafone, o cinefone, o fonoscópio, o picturefone e o vivafone. Tecnicamente, porém,

não conseguiam harmonizar os dois medium, além do mais, nem o público parecia ainda

aceitar a existência do som e da voz no cinema de forma tão marcada. Houve

frustrações e muitos prejuízos para as produtoras e financiadores, durante as tentativas

desses projetos.

A sincronização ainda se perdia muito facilmente, os arcos voltaicos produzidos na

iluminação produziam uma incômoda vibração que o fonógrafo registrava, o volume do

som era baixo e os ruídos do aparelho projetor se sobrepunham às falas e músicas.

Como sincronizar tantos aparelhos desprovidos de um padrão fixo de rotação? Quando

as câmeras eram movidas à manivela, a cadência, na hora de captar as imagens, era dada

pelos cameramen e, posteriormente, os projecionistas, no momento da exibição, jamais

conseguiam reproduzir as mesmas velocidades. E mesmo com a chegada das câmeras

elétricas, não havia ainda uma velocidade efetivamente padronizada. Entre 1906 e 1924,

Lee De Forest irá transformar os inventos de vários cientistas, entre eles Lauste, em um

dispositivo audiovisual completo, com amplificação e sincronização. Batizado como

Phonofilme, o sistema de som óptico de Lee De Forest, que permitia incorporar a faixa

sonora na película, deu alento às tentativas de sincronizar imagem e som, começando a

levantar a necessidade de se criar um rigor no inter-relacionamento entre “trilha de

som” e “trilha de imagem” em uma totalidade audiovisual.

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1.1 – A conquista da sincronicidade audiovisual

A invenção do cinema com som gravado, amplificado e sincronizado gerou o que

Michel Chion nomeia como “síncrono-cinematógrafo audiovisual” (2010). O fenômeno

do som gravado permitiu que esta arte cinematográfica (que fixava o movimento) se

convertesse em arte cronográfica (que fixa o tempo). O cinema sonoro passa a montar,

segundo Chion, não apenas movimentos e ritmos, mas valores temporais absolutos.

(CHION, 2010, p. 66) O desejo de sonorizar o cinema com música, voz e ruídos de

todas as naturezas procurava, desde os seus primeiros anos, conjugar as noções de

continuidade espacial e temporal a serem interiorizadas pelos espectadores, de modo a

acrescentar maior ilusão e emoção às projeções. Para uma perspectiva atual, a impressão

que se tem é a de que o cinema só começou, de fato, com a sua sonorização, tão

habituadas que estão as audiências com as narrativas com diálogos e trilha sonora.

Não se pode desprezar outro impulso decisivo para a pesquisa e métodos de

sincronização de imagem e som e para a rápida passagem de realização de filmes

sonoros e falados: a concorrência do rádio, que teve um papel importante

desempenhado pelo seu desenvolvimento como promotor de utilização de sons nos

filmes. A tecnologia desenvolvida para o crescimento do rádio encontrou aplicação

paralela na solução de alguns problemas do cinema sonoro. Afinal, foram as indústrias

do setor telefônico e radiofônico a elaborar os sistemas de reprodução e ampliação do

som que tornaram possível a evolução do cinema sonoro. O meio radiofônico

familiariza o ouvinte com a experiência de escutar a domicílio, por um alto-falante,

músicas, os dramas radiofônicos, radionovelas pontuadas por uma música dramática

amiúde escrita ou arranjada exclusivamente para ela, remetem à tradição do melodrama

e propõem uma fórmula distinta à do cinema mudo: não é mais um contínuo musical,

mas uma alternância entre palavra e música escutadas pelos alto-falantes.

A produtividade da narrativa foi se tornando a meta industrial do cinema e começava

uma corrida em busca do modelo ideal de sonorização. Em 1924, os irmãos Warner

entraram no ramo das exibições cinematográficas e compraram a Vitagraph. Em

13

parceria com a Western Electric, empresa que estava desenvolvendo sistemas de

sincronização entre som e imagem, e em colaboração com a Bell Telephone

Laboratories, investiram nas pesquisas de sincronização entre o som e a imagem. Em

1926, se constituiu a Vitaphone. A meta era estabelecer uma velocidade padrão: 24

fotogramas por segundo e 33 1/3 rotações para o disco de 40/6 cm. Em 1926 patenteou-

se o Sound-on-Disc da Vitaphone. Em pouco tempo a Warner Bros apresentava o

Sound-on-Film. Equipava-se o aparelho de projeção e o fonógrafo com motores

sincronizados que impulsionavam a máquina na mesma velocidade. Estes mecanismos

eram similares: dois motores rodavam comandados pela mesma engrenagem elétrica

que garantia o sincronismo. Uma espécie de volante regulador tentava prevenir todo o

sistema de alterações na velocidade de projeção. Como as películas tinham de 10

minutos (para garantir o sincronismo), as cabines dos cinemas foram equipadas com

dois projetores, para evitar interrupções. A primeira projeção do sistema Sound-on-disc

da Vitaphone aconteceu em 1925 e consistia em cinco peças de jazz band. A sessão

inaugural da Movietone, da Fox, em 1927, incluía artistas de vaudeville tocando e

cantando. Em fevereiro deste mesmo ano a Vitaphone exibiu em sua melhor sala de NY

uma sessão de gala com o filme Don Juan, mas a novidade estava nas curtas sequências

musicais que antecediam o filme: concertos com vozes e efeitos sonoros de espadas e

sinos, perfeitamente sincronizados, com movimentos dos lábios e dos instrumentos. A

sua aceitação pelo público permitiu antecipar o sucesso da nova era do “fonógrafo

visual”. 8 Na projeção de Don Juan (1925) os alto-falantes foram colocados no fosso da

orquestra e aos lados da tela, mas a voz soava igual em qualquer plano. Para Chion

(2010) trata-se de um processo de “imantação espacial”, fenômeno mental que faz com

que localizemos a fonte do som no ponto aparente de sua procedência. O sistema de

filmagens com várias câmeras simultâneas adotado pelo diretor permitia variar os

ângulos das tomadas sem obrigar a uma complexa prática de montagem de som, na

época bastante difícil. Ouvir a orquestra em alto volume foi, no entanto, uma

experiência nova.

8 A indústria do cinema, na época representada pelas chamadas “Big Five” (MGM, Paramount, Universal, First National e Producers Distributing Corporation) haviam firmado um acordo em 1927 onde afirmavam não se comprometer com nenhum tipo de sistema de som. Mas todas mudaram de opinião tão logo o sistema se mostrou adequado ao padrão de cinema narrativo clássico.

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Como marco divisório na história do cinema, estreou em 6 de outubro de 1927 o filme

The jazz Singer (O cantor de Jazz), de Alan Corland, estrelado pelo cantor de vaudeville

Al Jolson. A Warner havia comprado os direitos desta peça de Sam Raphelson. É

interessante assinalar que só o protagonista alcançou uma representação perfeitamente

sincronizada entre os movimentos da boca e a música em que ele dublava a si mesmo.

Al Jonson interpretou, entre o canto e a gestualidade, diante de um microfone de

estúdio, para além das exigências de qualquer narrativa de ficção, Dirty hands, dirty

faces. O sucesso foi, no entanto, absoluto entre público e mídia. O sincronismo

efetivamente funcionara. 9 O público, a partir de então, não queria mais saber de filmes

mudos e a sonorização foi a solução para a crise no cinema que vinha o assombrando

desde 1920. 10 Passou-se de ora em diante a anexar a trilha pós-gravada aos filmes

mudos.

A transformação de cinema mudo em sonoro se dá mais ou menos rapidamente,

segundo os países, de acordo com seus equipamentos, sua situação geográfica, política,

econômica etc. A sonorização dos filmes provocou uma grande mudança de gerações

entre os profissionais do cinema, atraindo para a sua produção jovens atores, diretores,

técnicos e especialistas nos novos saberes que a realização cinematográfica agora

demandava. Com a difusão do cinema sonoro, músicos de orquestra são despedidos em

massa e fabricantes de instrumentos também se ressentem da nova tecnologia.

Movimentos e manifestações hostilizam as gravações, chamando-as de “música em

conserva”.

Depois de numerosas avarias nas projeções e que perturbavam as sessões, logo se

concluiu que o mais funcional método de sincronização seria o registro do som na

própria película. A Fox Film Corporation, enquanto isso, investia no Movieton; e um

consórcio europeu pesquisava um sistema chamado Tri-Ergon. O Movietone que

permite fotografar o som numa película de cinema e juntá-la à fita ao longo dos

fotogramas do filme. Para o som, qualquer variação de velocidade traduzia uma

indesejável variação de afinação. Em 1929, a RCA lançou o Photophone, sistema

9 Os filmes de gangsters foram exemplos de gêneros que se desenvolveram a partir da sonorização do cinema. Estes precisaram do som para emplacar, não só pela fala, que trazia o ritmo do linguajar das ruas, mas pelos efeitos, tais como rajadas de metralhadoras, pneus cantando no asfalto, motores dos carros em fuga etc. 10 Na França, os filmes mudos passaram a ser sonorizados a partir de 1930.

15

chamado de “densidade fixa”: o gravador é equipado com um galvanômetro com

espelho, que oscila em função das variações da intensidade da corrente vibratória

emitida pelo microfone. O espelho é iluminado por uma luz forte, que é reenviada na

direção de uma objetiva que registra no filme de 35mm a amplitude da iluminação

recebida. Este processo tem a vantagem de não se alterar em relação à velocidade.

Nasce assim a pista óptica. O som e os fotogramas figuram agora no mesmo suporte. 11

Ainda não havia tecnologia para desenvolver um sistema portátil de captação de som e

microfones enormes eram escondidos nos cenários. Eram enormes as limitações dos

microfones a carbono e condensador usados, pois não direcionais, eram muito sensíveis

ao vento e a outros ruídos ambientes. O peso e o alto consumo de energia dos aparelhos

de gravação sonora ótica, até os anos cinquenta, impediram captar o som em ambientes

externos, a menos que houvesse um caminha especialmente equipado. Os magnetofones

(gravadores de fita magnética) portáteis viabilizariam as tomadas sonoras externas, mas

estes só surgiriam nos anos cinquenta. Na impossibilidade de rodar a cena

externamente, por conta da ineficiência dos microfones, determinados procedimentos de

estúdio foram se aprimorando para facilitar a recriação de um espaço novo e sob

controle. As técnicas de projeção de fundos pré-filmados (backprojections) são um

exemplo de como esse modelo hollywoodiano de reconstrução da realidade baseou-se

em princípios surgidos com práticas sonoras. Essa mesma técnica de projeção seria uma

consequência da prática anterior de filmar determinada cena com um acompanhamento

musical em playback, dada a dificuldade de registrar devidamente o som de uma

execução musical no momento da filmagem.

O som obrigou a invenção das mesas de montagem motorizadas. O isolamento acústico

e o desenvolvimento de novos materiais de absorção sonora foram tão importantes

quanto as tecnologias de gravação e reprodução. Novos materiais passam a revestir

prédios com uma dupla função: evitar o ruído externo e diminuir o excesso de

reverberação. A reverberação torna-se um elemento incômodo na medida em que o

cinema passa a depender de uma melhor compreensão do que era falado nos filmes. O

Radio City Music Hall, inaugurado em 1932, em Nova Iorque, foi construído segundo

um ovo modelo eletroacústico, priorizando o som amplificado pelas novas tecnologias,

11 O Vitaphone caiu em desuso com o sistema óptico de registro sonoro (vide ilustrações nos Anexos).

16

em detrimento de uma arquitetura que obedecesse a leis de dispersão acústica de sons

naturais. A ideia era casar o som com a imagem de modo a fazer a tela parecer viva aos

olhos da plateia. A dimensão espacial do som monofônico era capaz de simular uma

profundidade. A aparente origem do som podia ser movida para frente e para trás, mas a

dimensão lateral permanecia ausente devido ao fato de que não há expansões laterais da

reverberação ou do ruído ambiental. Tanto no mono como no estéreo, contudo, a

localização dos alto-falantes é planejada para assegurar que a plateia ouça um som o

qual é precariamente coincidente com a imagem. O espaço em questão não é o da sala

de projeção, mas o “espaço ficcional da diegese”, tudo o que está na tela, no extracampo

e no imaginário do espectador.

Antes das gravações de áudio em separado e da possibilidade técnica de se fazer o

dubbing, ou seja, a sobreposição de vários sons numa só faixa e o balanceamento da

música e dos sons com os diálogos, que só foram conquistados em 1931, qualquer

edição posterior cortaria a música já gravada. A técnica de sonorização, por seu turno,

avançou em duas direções: a invenção da fita magnética e portabilidade, possibilitando

gravar o som diretamente; e o desenvolvimento das técnicas de pós-sincronização e de

mixagem, possibilidade de substituir o som gravado diretamente e de acrescentar a esse

som outras fontes sonoras. O cinema sonorizado passou efetivamente a predominar só a

partir de 1934, com a conquista da sincronização e das tecnologias de pós-edição. Foi

Gianni Bettini quem difundiu, neste caso, o potencial musical do fonógrafo para fins

audiovisuais. Ele aperfeiçoou o sistema de microfonia, dotando-o de um micro-

diafragma capaz de registrar frequências sonoras mais sutis. Para La Petite Lili, de

Cavalcanti, o compositor Darius Milhaud concebeu uma orquestração especialmente

adaptada às exigências do microfone. Com estas novas técnicas de captação, registro,

edição, mixagem e sincronização audiovisual, a inclusão da música ficou mais

exequível e menos onerosa. Os anos 30 e 40 foram tempos em que se passou a testar o

que funcionava ou não nos filmes sonoros. Uma relação em que o som deve estabelecer

uma base sólida de compreensão do que acontece na ação para que a imagem possa

alternar-se em cortes, elipses, transições entre planos etc.

O cinema sonoro inventou sons in (cuja fonte participa da cena) e off (extracampo), que

transformaram o cinema. O som off, fora de campo, que fornece novas possibilidades na

maneira de construir um plano e de conduzir uma narrativa. Permite, através de uma

17

focalização do ouvido do público, destacar uma ação secundária ou amplificar uma ação

principal. Ficou evidente que, no cinema falado, o espaço em off teve muito mais vida

por causa do som. O potencial evocativo do som apareceu ligado sobretudo ao potencial

do espaço em off. O homem que ri, por exemplo, foi realizado inicialmente sem som

sincronizado, mas recebeu a sonorização posterior de Paul Leni, para ser, em seguida,

relançado. O filme assumiu uma lógica de unidade temporal pelo som contínuo que foi

criado, reintegrando o processo da montagem. A utilização do som em off irá refletir na

concepção da divisão de planos e em sequências montadas, que abre caminho para o

cinema posterior.

Em 1930 o sonoro total no cinema se impôs. Os filmes mudos recentemente produzidos

são apressadamente municiados por trilhas sonoras, com sonorização e música. O filme

se tornou uma arte elaborada, trazendo uma multiplicidade de percepções que o domínio

da visão não alcançava. Diferentes tipos de sons, como música, ruídos, diálogos

passaram a coexistir com imagens capturadas. De fato, houve uma revolução a partir de

1926, mas seus resultados não foram na direção que se esperava. Juntamente com o

advento do cinema tecnicamente sonorizado criou-se uma polêmica a respeito do papel

da palavra, do ruído e da música na narrativa. Muitos historiadores afirmam que o som

eletromecânico poderia ter se juntado às imagens em movimento muito antes, mas por

fatores econômico-técnicos (altos custos e deficiências quanto ao tamanho dos

equipamentos) e ideológicos (a linguagem do cinema se desenvolvera sem contar com a

interferência do som e não precisava desta). Eisler e Adorno (1981) diziam, por exemplo,

que a música no filme foi usada na projeção de filmes mudos, primeiramente, para abafar o

ruído do projetor (esconder do espectador o estranho fato de que o prazer dele é acompanhado

por uma máquina). Para muitos estudiosos e artistas, o som foi recebido como

instrumento de degenerescência do cinema. O invento de De Forrest deveria ser usado,

segundo esses autores, somente no cinema documental, para a ciência ou o registro de

alguma atividade artística. Modernistas e vanguardas europeias se opuseram ao cinema

sonoro. Germaine Dulac via o cinema como uma arte necessariamente muda e Antoine

Artaud afirmava que o cinema sonoro adotava, contraditoriamente, convenções

antiquadas da narrativa. As emoções suscitadas pelo som, segundo o diretor René Clair,

não estariam à altura daquelas oferecidas pelas imagens, uma vez que os sons eram

meros artifícios divertidos que deturpavam um propósito original da arte

cinematográfica. Ainda para outros pensadores como Gilber Seldes, o cinema sonoro

18

representava uma regressão aos modelos teatrais, sendo o cinema uma arte

essencialmente de percepção visual. Rudolf Arnheim (1938) alegava que havia uma

total incompatibilidade entre os dois media e que, com o intuito de atrair a audiência,

forçavam-se ambos a lutarem entre si, em vez de captar a unidade de suas forças.12

A colocação hierárquica do visível acima do audível não é típica do cinema, mas

caracteriza uma ampla faixa da produção cultural. Para certos teóricos e diretores, o

cinema sonoro já seria desde sempre uma vocação, até então suspensa apenas por falta

de meios técnicos. O autor Bela Bálázs afirmou, nesta época, que tal união era apenas

um fenômeno passageiro e uma catástrofe sem precedentes na arte do cinema. Mas

depois ele assumiu que seria impossível e sem sentido um retorno ao cinema mudo.

Mais tarde ele passou a se interessar, como muitos outros autores, pelas possibilidades

dramáticas do som, pela importância acústica da natureza e da intimidade das vozes: o

cinema deveria dar expressão e recriar a “grande orquestra da vida” (BÁLÁZS, 1978, p.

163). Ele aludia acerca das possibilidades dramáticas do som - e do silêncio -, além do

que a intimidade do som que nos faria perceber diferentemente os sons do mundo. A

sua teoria da montagem sonora afirmava que o cinema sonoro havia afetado a

expressividade da interpretação cinematográfica. Autores que compartilhavam de suas

ideias diziam que, em vez de o som ser absorvido por uma indústria repleta de

representações teatrais adaptadas para o cinema, esse deveria ser empregado para

colaborar com a desenvolvida linguagem cinematográfica da montagem. A falta de

qualquer som na montagem da banda sonora passa a ser considerada um tabu.

O som tornou-se um instrumento de ampliação e potencialização das imagens, como

uma espécie de recriação do cinema. Para Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov, cineastas

russos que redigiram, em 1928, a conhecida Declaração sobre o futuro do cinema

sonoro, em Contraponto orquestral, o processo criativo do cinema ganhou, com a trilha

sonora, um novo caráter, pois os sons surgiram como agentes de metamorfose

12 Arlindo Machado (1995), como outros estudiosos, critica toda definição essencialmente visual do cinema, aquela sob a qual um filme sem som continua sendo um filme e de que o estatuto do cinema não se altera em decorrência da existência ou não de uma trilha sonora. O cinema, desde quando se tornou prevalentemente narrativo e que seu formato de longa-metragem se impôs como um modelo dominante, o som teve de passar, inevitavelmente, por esse crivo. Por essa perspectiva majoritária, os sons no cinema só poderiam ser considerados “cinematográficos” quando referidos a uma fonte de emanação de imagens, algo como um suplemento que não altera a natureza do cinema.

19

audiovisual, condicionando o próprio procedimento da montagem, preceito fundamental

em toda realização fílmica:

“...o som, tratado como novo elemento da montagem, introduzirá novos meios de enorme poder para a expressão e a solução das mais complicadas tarefas ante as impossibilidades de superá-las através do método cinematográfico que só trabalha com imagens visuais”. (EISENSTEIN; PUDOVKIN; ALEXANDROV apud SANTANA; SANTANA, 2012, p. 288)

Os autores adeptos da sonorização fílmica negam, obviamente, que a imagem no cinema

falado seja independente do som, além do que, em relação à imagem, não se pode

concluir automaticamente que o som seja seu subordinado. Mesmo no cinema de

narrativa, o som se estende geralmente do princípio ao fim do filme e nunca está

ausente: é no mínimo, som ambiental. Não se trata de defender a autonomia de uma

determinada matéria sensorial, defendem os autores, mas sim a de desenvolver uma

reflexão sobre a heterogeneidade do cinema. Isto porque o som carrega consigo o

potencial de por à mostra a heterogeneidade material do médium e as tentativas de

conter este risco afloraram numa suposta “ideologia da unidade orgânica”.

Rick Altman, também contrário aos argumentos de realizadores de filmes silenciosos

para preservarem a pureza de sua mídia poética, aponta quatro falácias em relação ao

som do filme: 1) histórica, situando a imagem como anterior ao som na experiência do

cinema; 2) ontológica, que determina a natureza do cinema como puramente imagética;

3) reprodutiva, que aponta o som como mera reprodução da realidade; 4) nominalista,

que vê na heterogeneidade do material sonoro um empecilho para o ordenamento da

linguagem cinematográfica. (ALTMAN, 1980, p. 15)

A realização do cinema sonoro enfrentou, no seu início, muitas dificuldades técnicas

iniciais. Por estranho que possa parecer, para alguns estudiosos, houve certo retrocesso

na qualidade dos filmes. As transformações impostas ao material sonoro em suas várias

etapas, desde a captação do acontecimento original até sua reprodução em uma sala de

cinema. Toda uma nova tecnologia no setor começava, entretanto, a se desenvolver,

com câmeras encerradas em cabines com vidros, para que o ruído dos motores não

vazasse. Os estúdios, de ambientes ruidosos, tornaram-se espaços de profundo silêncio.

A gravação direta, até então como o único recurso, fazia com que a inserção de música

20

ao vivo nos filmes se tornasse muito caro. Os músicos eram posicionados para tocarem

nas filmagens e qualquer mínimo erro arruinaria a cena. 13

A gramática do cinema, daí por diante se popularizou por dois caminhos distintos, que

no futuro iriam se mesclar, com a era dos musicais: o da narrativa ficcional,

dramatúrgica, com a presença constante dos diálogos; e o começo de um novo gênero, o

jazz short, que deu ao cinema sonoro daqueles anos o nome de “fonógrafo visual”. Os

auditórios de exibição de cinema passaram a simular a tradicional sala de concertos

musicais. Ainda não havia, como hoje, uma multiplicidade de câmeras, gruas, carrinhos,

movimento permanente, bem como não se apresentavam recursos mise en scène. A

tomada era dada em um só plano fixo. Este momento assistiu ao apogeu das big bands,

gênero jazzístico dançante conhecido como swing, com a multiplicação de salões de

baile, que se convertem nos cenários dos jazz shorts. Dizia-se que o jazz era como

“música para os olhos”. Os curtas da Vitaphone duravam em média dez minutos,

contemplando de 3 a 4 peças, com pouca ou nenhuma narração. Em 1937, com o jazz

short Hi de Ho, de Roy Mack, o cinema acrescenta aos seus recursos retóricos, a

sincronização audiovisual, os cortes sincopados (plasmados às síncopes do jazz), a

fotografia produtora de clima.14 É considerada como obra-prima do gênero um jazz

short de1944, Jammin’ the blues, de Gjon Mili, com fotografia de Robert Burks. A este

respeito, voltaremos a falar na página 80.

Outro exemplo interessante foi o primeiro desenho animado sonoro, Steamboat Willie,

de 1928, que revelou a força da música como elemento da estrutura e do ritmo visual da

narrativa. Doze anos depois, em 1940, produz-se a animação de maior duração,

Fantasia, de James Algar e Samuel Armstrong, da Disney, à moda de um poema

sinfônico, mais um filme-ballet que um musical, a partir de trechos das obras de Paul

Dukas, Bach, Stravinsky, Beethoven e Tchaikovsky.15 Nesta produção, o som foi

gravado em oito pistas ópticas, posteriormente reduzida para 3 pistas, em uma película

de 35mm, em Technicolor. O sistema foi batizado como fantasound. Em 1950, surgem

13 No seu Método de gravação com multimicrofones para GPO, Ken Cameron define didaticamente uma extensa gama de sonoridades que se vincula a um trecho de um filme hipotético. 14 A sofisticação chegava à própria apresentação de abertura dos curtas, com pesquisas sobre animação geométrica de Vicking Eggeling e Hans Richter. 15 “Poema sinfônico” é uma ópera sem palavras.

21

dispositivos como o Cinemascope e o Cinerama, com reprodução magnética em 4

canais.

Com o cinema sonoro, surge uma descontinuidade perceptiva para o espectador, pela

coexistência da escuta musical, da escuta causal ou anedótica e da escuta linguística. O

movimento sonoro vive do movimento da própria imagem e se criam ritmos ópticos a

partir de ritmos sonoros. No campo estético, novos critérios tiveram então de ser criados

para se construírem pontes entre o que se via e o que se ouvia. Além do mais, o ruído

organizado pode se converter em música, a palavra coletiva converter-se em rumor de

fundo e o canto poderia atuar no lugar da palavra e da música.

1.2 - A Golden Age hollywoodiana e o advento da televisão

Na “era de ouro” hollywoodiana – a Golden Age – durou vinte anos, depois que o

cinema já estava tecnicamente afastado do primeiro cinema silencioso, mas começou a

declinar com o aparecimento da televisão. Produziam-se neste período, em média, 500

filmes por ano. O oligopólio era detido pelas megaempresas Warner Bros, MGM,

Paramount, RKO, 20TH Century Fox, Universal, Columbia e United Artists. A

prosperidade da indústria cinematográfica instaurou uma fórmula de organização

econômica: o studio system. Os estúdios passaram a fabricar tudo em suas dependências

e o cinema se tornou um trabalho de equipe. O Departamento de Música possuía o seu

plantel de músicos contratados: compositores, songwriters, orquestradores, pianistas de

ensaio, músicos de orquestra, regentes, coreógrafos, copistas, conferentes de provas,

editores (também chamados de music cutters), especialistas em gravação, todos sob a

supervisão do executivo musical. Compositores e músicos tiveram de se adaptar para

trabalhar sob este sistema, sujeitos aos constrangimentos da época, aos desejos

conservadores e à relutância dos executivos dos estúdios de cinema contra novas ideias

e experimentações.

O crivo pelo qual a fase da Era de Ouro hollywoodiana se declina, a partir de 1950, foi

o acesso dos espectadores norte-americanos à televisão. A televisão surgiu como um

gênero de “rádio ilustrado”, um rádio com imagens. Ela se desenvolveu a partir da

22

estrutura profissional e idiomática do rádio, mas quando surge, absorve para si a ideia

do fonógrafo visual. A transmissão ao vivo de espetáculos musicais foi o primeiro

gênero genuinamente televisivo e, logo depois, veio o jornalismo. Se há uma grande

marca distintiva entre o cinema e a televisão, ela está no papel diferenciado que o som

joga em cada meio.16

O fato de não ter recursos para gravação e edição num primeiro momento tornava

impossível a TV concorrer com o cinema no terreno da narrativa e da ficção. Nos

seriados que ela produz, só o faz com os meios oferecidos pelo cinema. Naquela

ocasião, a televisão era apenas um veículo do cinema. A televisão oferecia ao público,

entretanto, no conforto de suas casas, entretenimentos que desmotivavam a maioria do

público a saírem com tanta assiduidade para assistir aos filmes nas salas de exibição. Os

Estúdios resistiram o quanto puderam a esta novidade midiática que se apresentava

como a grande ameaça a um período de lucros exorbitantes gerados pelo hábito cultural

de se frequentar semanalmente o cinema. É óbvio que houve demissões nos estúdios e a

dinâmica da produção cinematográfica sofreu uma grande alteração. Os produtores de

cinema se tornaram independentes e todo o processo produtivo do filme foi

fragmentado e terceirizado.

1.3 - As inovações tecnológicas do som nos anos setenta: o sistema Dolby Stereo

Nos anos sessenta surgiu o som magnético para o cinema, incrementando a qualidade

sonora, uma vez que certas faixas de freqüência puderam ser realçadas e gerar uma nova

dinâmica sonora, com a possibilidade de se contrastarem altas intensidades e

amortecimentos de ruídos de fundo. Surgiu o termo High Fidelity, designando “alta

fidelidade” sonora, que é uma noção errônea, pois seria, de fato, uma alta definição do

som. Mas os espectadores muitas vezes não podiam apreciar os efeitos desta nova

sonorização, pois ainda não havia muitos cinemas especialmente adaptados para as

exigências tecnológicas do som magnético. As limitações acústica deste período, com as

monopistas criavam, por conseguinte, uma unidade de som para o filme.

16 O segundo estágio do cinema falado não teria nascido sem a televisão, mas foi preciso que o cinema lhe desse uma lição pedagógica.

23

Na década de setenta, surgiu o novo sistema Dolby, que realçava, dava densidade e

plenitude, inibia e aumentava o espectro das frequências sonoras reproduzidas. Ao

propiciar uma faixa dinâmica mais expandida e uma definição profunda de detalhes

sônicos, qualquer mínimo som musical, qualquer ruído minúsculo e sons da fala, como

sussurros e a própria respiração, poderiam ser redimensionados ou alterados. Utilizado

inicialmente como um modo de reduzir os ruídos causados pelas sucessivas etapas de

tratamento do som nos processos de gravação e finalização, o Dolby A foi usado em

Orange Clockwork (Laranja Mecânica), dirigido por Kublick, em 1970. Muitas

transformações ocorreram no som de cinema desde que o sistema Dolby se tornou o

padrão, usado agora para dar ao som uma nova presença. A precisão do Dolby apresenta

sons discretamente, acentuando o silêncio entre eles. Essa intimidade e a intensidade

emocional de silêncio apresentam um desafio para os cineastas acostumados a contar

com o diálogo contínuo ou com a música onipresente. Os baixos Com o Dolby, a

pulsação e os graves da música conseguiram uma presença até então desconhecida e

extrapolaram os limites da tela. E se, no som óptico e magnético o agudo era “cortado”

a 8.000 hertz, o som Dolby permitiu chegar a 12.000 hertz.17 Este sistema também

ampliou a coloração orquestral sem encobrir os diálogos ou ruídos, que adquirem uma

importância que jamais tiveram. 18

Os aparelhos de mixagem passam a permitir um grande controle sobre o estabelecimento de

relações entre diálogo, música, efeitos sonoros. Quando o Dolby foi lançado como parte da

promoção da ópera-rock Tommy (Ken Russell, UK, 1975), a sala de cinema deveria ser

tratada como um espaço acústico novo, que deveria ser preenchido e reforçado. Filmes

como o primeiro Star Wars (George Lucas, EUA, 1977), são exemplos dessa estética

de "plenitude" e "densidade sonora". No entanto, isto não foi inventado, em todos os

aspectos, pelo Dolby. Alguns filmes anteriores, como THX (George Lucas, EUA,

1971), devem muito ao editor de som Walter Murch. A Lucasfilm desenvolveu assim

um padrão de reprodução sonora criado por Tomlison Holman, em 1983, também

chamado de THX. A nova tecnologia multipistas também permitia o recurso da

17 Apenas como um parâmetro ilustrativo, é válido mencionar que a nota mais aguda de um piano soa a 4.000 Hertz. 18 A partir das novas tecnologias sonoras e de estudos da psicoacústica, deu-se uma conscientização de que o som é vibração sentida também na pele e nos ossos.

24

justaposição de sons sem uma fusão entre estes. Na série Star Wars, onde o mundo dos

efeitos sonoros (os bips por exemplo, do pequeno robô R2D2 ou o ruído singular dos

disparos das naves, o som de seus propulsores, das espadas-laser) criados por Ben Burtt,

são deliberada e radicalmente diferentes da música sinfônica de John Williams.

1.6 – O som no cinema sob a égide da informática audiovisual

É importante ressaltar que o nível geral de complexidade cresceu intensamente nas

últimas décadas. Desde o advento do sistema Dolby Stereo até a mixagem

computadorizada, nos anos 1980, além dos vários formatos digitais, nos anos 1990,

crescimento que se acelera continuamente.19 A partir dos anos oitenta, não apenas no

tratamento digitalizado da imagem, mas igualmente do som, as operações de captação,

registro, edição, mixagem e de design sonoro (construção e síntese de sonoridades

inauditas, a partir de sintetizadores FM e, nos anos noventa, com softwares pelos quais

se podem projetar todos os parâmetros do som e criar outros inéditos) se expandiram de

um modo vertiginoso na criação da trilha sonora para filmes.

No cinema digital, cuja imagem também alcançou simulações de objetos sem referência

na realidade visual, muitas vezes o som é empregado para dar verossimilhança a essas

imagens inexistentes no mundo natural, de modo a ancorar a memória do espectador

num universo de repertórios que o mantenha conectado à narrativa. Ou, pelo caminho

inverso, criaram-se sonoridades sem precedentes para causar estranhamento a imagens

convencionais. O refinamento de sonoridades chegou a ponto de nos afetar, com um

simples roçar de pele, o farfalhar de um tecido, o som do coração, uma bolha de ar que

se rompe na superfície da água (como em Minority Report, 2002, de Steve Spielberg). O

mais leve atrito, tudo se torna penetrante e distribuído pelo ambiente, de tal maneira que

aguça ainda mais a nossa sensibilidade auditiva perante o universo fílmico. A tendência

do tratamento sonoro do cinema nas últimas décadas parece ser a de buscar ao máximo

a separação entre os sons: sua distribuição em várias pistas, sua precisão, as diferenças

contrastantes e os hiatos de silêncio entre eles etc. Dos anos noventa em diante, com um

19 Apesar do nome “estéreo”, o Dolby Stereo era produzido em 4 canais: centro, direita e esquerda, atrás da tela, além do surround.

25

progressivo grau de realismo e, mais recentemente, com um nível espantoso de ultra-

realismo, com a motion capture e a captura de performance, tudo no audiovisual se

digitalizou. Surgiram, daí em diante, termos como “cinema híbrido” e “cinema

expandido”.

Murch nos diz que, há sessenta anos atrás, não seria incomum para um filme inteiro

necessitar apenas de quinze a vinte efeitos sonoros. Hoje, conclui o editor, esse número

poderia ser de centenas ou milhares de vezes maior. O nível geral de detalhe, definição

e “nível hormonal” de som e imagem cresceu exponencialmente, mas ao custo de uma

complexidade muito maior durante a preparação do filme. A consequência disso, para a

dimensão do som, é que durante a gravação final, há momentos em que o equilíbrio

entre diálogo, música e efeitos sonoros irá tornar-se um emaranhado tão complicado que

mesmo o mais experiente dos diretores, editores e mixadores pode ficar sobrecarregado

pelas escolhas que tenha que fazer.

26

Parte II

Sonoridades e ruídos, música e silêncios no cinema: conceitos, paradigmas e

experimentações

Existem três tipos essenciais de som cinematográfico: ruídos, identificáveis ou não;

música e diálogos. Tentaremos compreender de que modo ocorreu a assimilação da

música, do som, da voz, do ruído e dos efeitos sonoros no processo de codificação da

gramática cinematográfica. Nos tópicos seguintes serão apresentadas as ideias de

diretores, compositores e teóricos do cinema a respeito do papel da música, dos sons e

das vozes na arte cinematográfica, a fim de estabelecer uma trilha sonora organicamente

coerente para o filme. Na sequência de discussões sobre integração entre som e imagem

no audiovisual, abordar-se-ão a expressão do silêncio fílmico, as experimentações

sonoras do cinema, os musicais e as modalidades da inserção das canções nos filmes e

as diversas funções da música cinematográfica.

Antes iremos descrever algumas das potencialidades do cinema em matéria de som. A

natureza totalmente diferente do som em relação à imagem tem influência considerável

na composição, montagem, dramaturgia do cinema sonoro. A dominância da narrativa

ficcional na maioria dos filmes impôs, como já vimos, pontos gramaticais ao fazer

cinematográfico. Uma das estratégias mais contundentes a se afirmarem no cinema

talvez tenha sido a chamada “transparência mimética” conquistada especialmente pelos

recursos da montagem. E tal como ocorreu com a montagem de planos, a música

também deveria tornar-se “transparente”. Em outras palavras: no processo de

sedimentação do cinema narrativo clássico, a música e os sons passaram a atuar de um

modo pelo qual a audiência, em termos de uma consciência estrita de escuta, mal se

dava conta deles. E muitas vezes tudo é feito de modo que mal prestamos atenção ao

processo artificial pelo qual a trilha sonora atua “naturalmente” sobre a nossa

percepção. As sonoridades tornaram-se, portanto, um elemento insubstituível da

representação fílmica. Se aceitarmos que a natureza ficcional do cinema, cuja

diegetização limita o alcance e a autonomia do gesto sonoro, a trilha sonora procura se

adequar para ajudar a tornar a ficção mais expressiva. As sonoridades destinam-se, para

27

muitos autores, a facilitar o entendimento da narrativa e a criar certa atmosfera de

imersão do espectador. 20

Há, tecnicamente, dois tipos de matéria sonora: o som direto e o som reconstituído pela

mixagem. Compositores e editores de som passaram gradativamente a vislumbrar a

grande eficácia que a música e a sonoplastia poderiam ter para intensificarem a força da

imagem e da palavra. Estão, há muito, consolidados incontáveis paradigmas estéticos e

pressupostos técnicos para compositores e sound designers na produção

cinematográfica, mas a concepção da trilha sonora varia muito de acordo com o filme.

Os créditos que aparecem na abertura e, mais detalhadamente, ao final do filme,

demonstram também a subdivisão do trabalho que envolve toda a composição da trilha

sonora. A parte musical aparece geralmente com a designação da composição, da

direção, da supervisão e da edição musicais, de pesquisa de repertório, além de outras

informações, como: edição de efeitos, de ruídos de sala, de diálogos, gerência

operacional, engenheiro de som, assistente de estúdio, microfonista, som direto,

mixagem, técnicos de sonorização, designers de efeitos sonoros e consultores Dolby.

Como já se disse na Parte I, especificamente no tópico a respeito do cinema sonoro, as

possibilidades de inter-relacionamento estrutural entre os materiais sonoros e entre o

espaço sonoro e o espaço visual são evidentes. A presença sonora pode opor-se à

presença visual, no que concerne à oposição provocada pelo distanciamento do tema

visual e a proximidade do tema sonoro, podendo produzir um efeito surpreendente.

Outro aspecto do som e, de maneira particular, da música, é que ambos atuam sobre o

tempo da imagem, ou melhor, sobre o tempo pelo qual percebemos a imagem. Esta

temporização perceptiva se dá mediante uma cadeia sonora que injeta um tempo a uma

certa imagem que por si mesma não coincidiria forçosamente com o som. Os três

elementos da trilha sonora, que pertencem respectivamente ao campo da fala, do ruído e

da música podem inscrever esta imagem num desenvolvimento temporal, dar-lhe uma

20 O alto-falante era primeiramente posicionado atrás da tela. Apesar de o som parece ser emanado de um ponto focal, o som não está emoldurado da mesma maneira que a imagem. De certa maneira, o som envolve o espectador.

28

duração, um ritmo e também criar uma antecipação sobre a imagem. Esta antecipação se

incorpora a nossa percepção da imagem.

2 - Sonoridades diegéticas, meta-diegéticas e extra-diegéticas

É preciso, desde já, estabelecer algumas distinções entre a natureza do som e da música

diante da realidade da imagem cinematográfica, de acordo com a intenção do diretor. O

ponto de vista e o ponto de escuta são um exemplo disto: conseguimos imaginar o que

está fora do campo visual na tela a partir de indícios que o quadro nos dá, porém, entre

um som emitido dentro do campo e um som emitido fora do campo, o ouvido nem

sempre consegue estabelecer a diferença. Podemos, contudo, abstrair sons que vêm de

lugar nenhum (música que não pertence à história, ou voz off). Isto constrói em nós uma

recepção mais analítica da cena, mediada mais por um tipo de espião do que por uma

testemunha como espectadores. A faixa-som (outro termo para designar a trilha sonora)

é, por isso, muito útil para ajudar a imaginação do espectador a conceber o que espera

ver de fora para dentro do campo. O fora de campo é, para a expressão cinematográfica,

um espaço acolhedor para os sons nômades. 21

Tal como dizemos “ponto de vista” em relação ao posicionamento da câmera na

composição do plano cinematográfico, existe também o “ponto de escuta”, que designa

a relação entre a imagem, o som e o espectador. No estudo do cinema se fixaram quatro

modalidades básicas de sonoridades: diegética, extra-diegética e meta-diegética.22

Vamos às definições e exemplos respectivos de cada modalidade. A música ou sons

diegéticos são aqueles escutados por todos, tanto os personagens do filme quanto o

público. Podem ser distinguidos como onscreen, quando sua fonte é visualizada; e

21

Certos ruídos, quando sincronizáveis com a imagem, podem suscitar novas ligações entre as imagens e toda a trilha sonora do filme a qual, por esta razão, sai imperceptivelmente do espaço em off para entrar no espaço visual. O vínculo orgânico que se estabelece entre esses dois aspectos da trilha sonora – os ruídos funcionais e a música, quando o diretor e o editor de som se dão à experimentação. O agenciamento musical dos ruídos em off, em certos filmes autorais, fizeram dos sons onscreen (dentro de campo) sincronizados com a imagem mesclarem-se intimamente com elementos musicais em off, associando estes últimos aos ruídos através de uma semelhança mútua de timbres.

22 No que diz respeito à fonte do som, Michel Chion faz opor a “zona acusmática” (invisível) à “zona visualizada”: quando o plano a integra, torna-se visualizada, quando não a inclui, pode-se pensá-la como zona acusmática. (CHION, 1994, pp 71-72)

29

offscreen, quando não se pode ver de onde eles vêm. Pode-se exemplificar como

onscreen a música das cenas de um concerto, música tocada em um bar, no rádio em

ambientes domésticos, às vezes uma peça executada por um dos personagens ou, como

caso singular, músicas tocadas por dj’s de alguma rádio, que são escutadas por todos e

pela audiência. Há também os sons ambientes, que o espectador escuta com uma certa

vantagem sobre os personagens, como paisagem sonora urbana, os sons bucólicos de

uma região campestre, o rumor de um estádio de futebol etc. A música e os sons extra-

diegéticos são aqueles que só a audiência os escuta. Os exemplos são incontáveis, uma

vez que é o modo mais recorrente de uma trilha sonora: a composição musical, a voz em

off do narrador, os efeitos sonoros etc. 23

Pode-se definir de maneira mais nuançada as categorias de sons em um filme, de acordo

com os pontos da emissão e da audição: 1 – sons diegéticos: sons reais (percebidos

pelos personagens) e sons imaginários (sonhados ou imaginados pelos personagens:

também chamados de meta-diegéticos). Os sons reais podem ser divididos em objetivos

(quando se vê a sua fonte; e a câmera coincide com o ponto de vista) e subjetivos

(quando o espectador escuta o som como se fosse o personagem, por exemplo: quando

ouve a voz ao telefone ou o som de suas batidas cardíacas). Os sons imaginários são

alucinações, sonhos, sons lembrados ou vozes interiores. 2 – sons não-diegéticos:

quando a fonte sonora está fora da cena e nem pode ser presumida como fora de campo,

tampouco corresponde aos sons imaginados. Podem ser designados como tais a trilha

musical original, música pré-existente, música gestual e ambiência sonora.24 Há outras

aptidões muito conhecidas da música, como a ampliação do espaço concreto sugerido

pelos sons, dentro ou para fora do campo visual mostrado no filme.25

23 Cf. em Planificação e Montagem, de Luiz Nogueira: “a fonte do som é diegética quando é inerente à ação mostrada. O som diegético é constituído pelos ruídos ou barulhos inerentes à ação e pelos diálogos, podendo ser in (reconhecemos na imagem a fonte sonora do que ouvimos) ou off (não reconhecemos essa mesma fonte). Quanto ao som não-diegético, ele é constituído essencialmente pela voz-off, a música e outros efeitos sonoros”. (NOGUEIRA, 2010, p. 80) 24 Chion designa “música diegética” como aquela que pertence à ação; e “não-diegética” aquela que emana de uma fonte imaginária, não presente à ação. Para evitar divergências quanto ao termo diegese, ele prefere empregar os termos “música de tela” e “música de fundo”. (CHION, 2010, p. 193) 25 Um “enquadramento sonoro” se definirá, de acordo com Deleuze (1999), pela invenção de atos de fala, de música ou até mesmo de silêncio que devem extrair-se do contínuo audível dado pelos ruídos, sons, falas e músicas.

30

2.1 - Paradigmas e reinvenções na edição sonora do cinema, segundo Walter

Murch

É interessante abordar o papel do trabalho de integração sonora do editor a partir de

uma rápida análise do processo de elaboração do roteiro. A edição sonora implica um

trabalho de combinação dos três tipos de som (fala, sons/ruídos e música) entre si e com

a própria decupagem. 26 As fases de roteirização se dividem em: argumento, tratamento

(incipt), pré-roteiro e roteiro final. A escrita do roteiro observa tradicionalmente um

método de separação em duas colunas na transcrição: na coluna da esquerda são

anotações relacionadas à parte visual e, na direita, as relativas à trilha sonora (diálogos,

vozes, música etc.). Este método é o resultado típico da chamada “decupagem clássica”,

que tende a produzir, graças à integração da trilha sonora, uma impressão de unidade e

continuidade da cena, mesmo diante da extrema fragmentação construída por uma

sequência de planos com ângulos e composição variados. O trabalho de decupagem

depende, portanto, do efeito de unidade que advém do plano sonoro, que dá a impressão

de continuidade, fluidez e ligação entre as cenas decupadas pelo processo de

roteirização.

No que tange aos problemas encontrados pelo trabalho de edição sonora, esta exige, por

assim dizer, uma composição “musical” total de todos os elementos que integram a

trilha sonora, da mesma forma que a natureza da imagem projetada na tela exige uma

preocupação constante com a organização plástica, também totalizante. O editor deve

ter em conta a noção de que, entre o microfone e o ouvido, existe uma oposição

semelhante à não-seletividade da câmera em relação à seletividade natural do olho

humano. Isto significa que conseguimos facilmente abstrair os ruídos que atravessam

nossa audição e ainda assim ouvir outros. Na prática, um microfone precisa gravar cada

ruído separadamente para restituir toda a mistura de sons. No caso de uma cena em um

carro, por exemplo, onde coexistem os sons do motor, do meio externo, do vento, da

música no rádio e da conversa entre seus ocupantes, é preciso que se grave o som 26 Segundo o Dicionário teórico e crítico de cinema, de Jacques Aumont e Michel Marie, o termo “decupagem” começou a ser usado em cinema na década de 1910 com a padronização da realização dos filmes, e designa o "roteiro decupado" ou "roteiro técnico" como último estágio do planejamento do filme, em que todas as indicações técnicas (posição e movimento de câmera, a lente a ser utilizada, os personagens e as partes do cenário que estão em quadro, etc.) são colocadas no papel, para organizar e facilitar o trabalho da equipe.

31

ambiente e as palavras separadamente, equilibrando o conjunto na mixagem. No

cinema, tomadas improvisadas podem ser inteiramente pós-sincronizadas em estúdio e

tomadas meticulosamente encenadas podem receber uma ambientação sonora gravada

ao vivo. E um dos princípios da gravação em estúdio é o silêncio ambiente, um vazio

que se povoa depois com sons, de forma a simplificar ao máximo a apreensão do espaço

em off. A distância aparente entre a fonte sonora e o microfone ou o alto-falante é

determinada pela associação de efeitos sonoros dos quais a ressonância ou o eco são os

mais importantes.

Walter Murch (1995) editor que revolucionou a estética sonora do cinema moderno,

afirma, acerca da premissa ficcional do cinema narrativo, que o público, diante de um

filme, está primariamente envolvido com a história e é a maior tarefa do editor de som,

antes de tudo, construir algo que sirva à narrativa. Nestas circunstâncias ficcionais, um

sound designer deve, a respeito da escolha de sons, sempre se perguntar: quais devem

predominar quando não podem ser todos incluídos simultaneamente? Quais devem

permanecer em segundo plano e quais devem ser eliminados? Para Murch, criador do

conceito de musical dust, procedimento que funde a música com o som global, criando

um escala de matizes, a serviço da ideia do diretor, diz que a trilha sonora de um filme

nos parecerá equilibrada e interessante se for feita com uma distribuição proporcionada

de elementos de um espectro sonoro. Para dar conta desta questão a respeito do

processo de edição sonora para filmes, Murch cunhou uma expressão conceitual que

designa a meta deste espectro: “clareza densidade – densidade clara”. O espectro

sonoro, para o editor de som. Oscila entre o parâmetro da “densidade” (camadas

sobrepostas de sons) ao parâmetro daquilo que pode ser ouvido discriminadamente, a

“clareza”.27

Murch começa por distinguir o som em duas naturezas: “som codificado” (a fala) e

“som incorporado” (a música). O “som codificado” atua simplesmente como um veículo

através do qual se produz um significado. A música é, no entanto, diferente: é o “som 27 Murch nos diz que, de sessenta anos para cá, o nível geral de detalhe, definição e “nível hormonal” de som e imagem cresceu exponencialmente no cinema, mas ao custo de uma complexidade muito maior durante a preparação do filme. A consequência disso, para a dimensão do som, é que durante a gravação final, há momentos em que o equilíbrio entre diálogo, música e efeitos sonoros irá tornar-se um emaranhado tão complicado que mesmo o mais experiente dos diretores, editores e mixadores pode ficar sobrecarregado pelas escolhas que tenha que fazer. A tendência do tratamento sonoro do cinema nas últimas décadas parece ter alcançado produzir uma separação nítida entre os sons, com a distribuição em várias pistas e equalizações, gerando “hiatos” muito sutis de silêncio entre as frequências. Isto permite a criação de texturas sonoras, sem, no entanto, confundir os sons em convibração.

32

incorporado”, ou seja, experienciado diretamente. Qualquer significado que se atribua a

uma música só ocorre se este for a posteriori incorporado pelo ouvinte ao próprio som.

É claro que há certos sentidos de linguagem tornados implícitos em determinadas

músicas. Na medida em que esse código implícito vai se transformando num elemento

importante da música, esta tende a se direcionar para o extremo (lingüístico) do espectro

sonoro da trilha. Estas distinções têm uma função básica de classificar conceitualmente

a edição de sons para filmes. A maioria dos efeitos sonoros se encontra, conforme

Murch, a meio caminho entre música e fala, como “centauros-sonoros”, metade língua,

metade música. Às vezes um efeito sonoro pode ser quase puramente musical, mas não

se denomina abertamente como música, porque não é melódico. De qualquer forma

pode nos afetar musicalmente. E outras vezes um efeito sonoro, diz Murch, pode

transmitir “pacotes de sentido” que são quase como palavras.

Para lidar com as diferenças de percepção do “som codificado” versus “som

incorporado” e para que a experiência da escuta se torne simultaneamente “densa” e

“clara”, Murch afirma que as camadas devem estar uniformemente distribuídas pelo

espectro conceitual da trilha sonora. Densidade e clareza simultâneas só podem ser

atingidas, conforme o autor, por certos subterfúgios de pós-produção. Na mixagem

final, a combinação de certos sons irá adquirir um caráter correspondentemente

diferente, dependendo de qual região do espectro eles pertencem. Alguns sons irão

sobrepor-se, transparente e efetivamente, enquanto outros tenderão a se interferir

destrutivamente e se “bloquear”, resultando numa mixagem embolada e confusa. Para

que as pessoas entendam cada palavra dita num filme, é melhor eliminar, por princípio,

a competição entre quaisquer outros sons que possam estar ocorrendo ao mesmo tempo.

É o que Murch chama, metaforicamente, de “sanduíches de som”: uma camada de

diálogo, duas camadas de tráfego, uma camada de buzinas de automóveis, de gaivotas,

de multidão, de passos, ondas quebrando na praia, apitos de nevoeiro, motores externos,

trovões distantes, fogos de artifício e assim por diante. Tudo soando ao mesmo tempo.

O problema é que mais cedo ou mais tarde (na maioria das vezes mais cedo) esse tipo

de colocação de camadas em excesso, acaba soando como a confusão de sons entre as

estações de rádio (“ruído branco”). O problema com o ruído branco é que, como luz

branca, não há muita informação para se extrair. Ou melhor, há tanta informação

embaralhada que é impossível para o cérebro separar tudo de novo. Você ainda ouve

33

tudo, tecnicamente falando, mas é impossível escutar o que quer que seja, para apreciar

ou até mesmo distinguir cada elemento individualmente.

O editor de som deve também se perguntar: há limites para a quantidade de sons que

pode ser sobreposta e ainda assim eles reterem suas identidades originais? Murch

responde com outro interessante conceito definido por ele: a “sobreposição harmônica

não-musical”. Ele baseia-se na ideia de que a trilha sonora de um filme, assim como a

própria música, é dependente da mesma habilidade do compositor de sobrepor sons (ou

notas), criando novos “acordes”, sem transformá-los, contudo, em algo confuso. As

sonoridades de um filme, tais como ambiências e efeitos e que não são apenas musicais,

mesmo assim se prestariam, no entender de Murch, como um exemplo de “sobreposição

harmônica” similar ao que acontece na acústica musical. 28 Ao empregar esta metáfora

oportuna (“sobreposição harmônica”), Murch vai criando camadas de um mesmo som,

uma de cada vez, dando uma espécie de “panorama geológico da paisagem sonora” do

filme. Os detalhes podem sobrecarregar o ouvido, mas nem por isso nos dão uma

sensação de totalidade, ou o todo está completo, mas sem detalhes convincentes. Sob o

ponto de vista criativo, é preciso procurar, simultaneamente, a clareza, que vem de uma

discriminação dos elementos individuais (as notas), e a densidade, que vem de uma

sensação do todo (o acorde). Murch nomeou um método que desenvolveu como “lei dos

dois-e-meio”. Apoiado na dualidade direita-esquerda dos hemisférios do cérebro

humano, ele a desdobrou e passou a adotar cinco camadas ao invés das duas-e-meia

originais. Cinco camadas, para Murch, é também o máximo que pode ser tolerado pelo

público e, mesmo assim, desde que se mantenha um senso de clareza dos elementos

individuais que estão contribuindo para a mixagem. É preciso tentar captar a energia do

conjunto. Ele exemplifica: 1 - uma camada de diálogo; 2 - uma camada de música; 3 -

uma camada (lingüística) de efeitos (ex.: passos); 4 - uma camada (musical) de efeitos

(ex.: atmosferas climáticas); 5 - uma camada de “efeitos centauros” (híbridos, entre o

ruído, o som e música), equilibrados por igual. Cinco camadas são, portanto, um limiar

que não deve ser ultrapassado sem reflexão, da mesma maneira que não se deve 28 Toda nota que soa é uma sobreposição de uma série de convibrações chamadas de “harmônicos”. A frequência fundamental (a mais grave) da nota Lá, por exemplo, vibra a aproximadamente110 ciclos (hertzianos). Mas ela também vibra em múltiplos exatos daquela vibração fundamental: 220, 330, 440, 550, 660, 770, 880, etc. Essas co-vibrações, os “harmônicos”, modulam-se juntamente com a frequência fundamental. Então, quando a nota lá soa, o que se ouve é um acorde. A fundamental é, no entanto, quase duas vezes mais forte que todos os seus harmônicos soando juntos. A identidade – ou timbre – de uma voz ou de um instrumento é ligeiramente diferente em cada um deles. Esta diferença é o que nos permite distinguir os diferentes tipos de vozes e de instrumentos.

34

ultrapassar certos limites de intensidade. A densidade conceitual é, por isto, algo que

deve obedecer às mesmas regras de intensidade dinâmica.

O exemplar Apocalipse Now (Francis Ford Coppola (EUA, 1979), filme no qual Murch

trabalhou como editor de som, é repleto de experimentações no âmbito da edição da

trilha sonora. Seguindo o seu método da “sobreposição harmônica”, todas as suas

camadas sonoras foram listadas em ordem de importância, mais ou menos da mesma

forma que, segundo ele, se arranjariam os grupos instrumentais numa orquestra. Murch

conta que, no primeiro ensaio da mixagem final, tudo pareceu desmoronar na grande

avalanche de ruído, fundindo-se numa algazarra tosca, quando todos os sons foram

tocados juntos. Noutra cena de um ataque de helicópteros a uma aldeia vietnamita,

havia mais de cento e setenta e cinco pistas sonoras separadas apenas para essa parte do

filme. Começou por uma procura do ponto de equilíbrio em que deveriam haver sons

interessantes o suficiente para adicionarem sentido e ajudar a história, mas não tantos a

ponto de eles não se prejudicarem mutuamente. Começava então a se perguntar: qual

será o som mais dominante da cena? Para enfatizar a ideia inerente ao roteiro, a primeira

coisa a se fazer foi a mixagem dos diálogos, que deveria ser isolada de quaisquer

elementos que pudessem competir com as falas. Os sons diegéticos, como os dos

helicópteros, disparos das metralhadoras etc. compuseram a segunda camada sonora.

Foi necessário “quebrar” o som em pedaços menores, em grupos mais fáceis de

manipular, chamados de “pré-mix” (no caso, foram seis camadas, de mais ou menos 30

canais cada). Murch comenta que primeiramente se monitoraram as duas pré-mixes, a

dos diálogos e a dos helicópteros. A obra de Richard Wagner, Cavalgada das

Valquírias, que soava dos amplificadores dos próprios helicópteros (com a intenção do

comandante em assustar os habitantes da aldeia), tornou-se então o terceiro som mais

dominante da cena. Todos os momentos desta seção tornaram-se, depois de muitas

experimentações, igualmente fluidos, como se fosse um truque de ilusionismo pelo qual

as camadas fossem desaparecendo e reaparecendo conforme o foco dramático do

momento. 29

29 A respeito do significado singular que o termo “sonoplastia” adquiriu para alguns diretores e editores de som no Brasil, estes defendem que a concepção e a execução de toda a trilha sonora não se dão apenas no nível da montagem, mas também no nível da filmagem, na medida em que as estruturas sonoras pré-concebidas podem determinar certos componentes visuais.

35

Em The Conversation (1974), outro importante filme de Coppola, anterior a Apocalypse

Now, certas frases adquirem sentidos diversos conforme o contexto em que são

reescutadas. Murch consegue fazer com que a palavra se converta em suporte de

variações de natureza musical, adquirindo tanto um valor musical quanto um valor de

diálogo. Sob o pretexto da trama da narrativa, o ato de voltar a ouvir uma frase já

gravada debilita seu valor semântico e põe em relevo a curva da entonação, a palavra

por si mesma, seu ritmo.

2.2 - Sons e ruídos cinematográficos como elementos realistas ou expressivos

Um filme é, antes de tudo, um conjunto de ritmos. E o som, de sua parte, integra este

conjunto como um elemento dinamizador do ritmo visual, assumindo um papel de

condutor rítmico para a imagem em movimento. São, em grande medida, os ruídos que

fazem o ambiente propício à credibilidade de uma situação narrativa, ou seja, que

restituem a autenticidade de um mundo. O som tecnologicamente controlado na

produção do audiovisual permite então incrementar, no caso do cinema narrativo, a

impressão de autenticidade, o sentimento de credibilidade material e estética da sua

imagem. Podem-se distinguir os sons-palavra, sons-discurso/diálogo, sons texturais,

sons-ruído, entre outros. Uma ambientação sonora assegura uma continuidade no plano

da percepção e unidade orgânica do filme. Além do mais, sonoridade contribui para o

sentido da imagem e estimula a imaginação. O som celebra o gesto e se revela

delineador, não classificador, dos discursos imagéticos e textuais. Os sons-ruídos são

fundamentais para se criar a textura sonora adequada para uma determinada situação,

emoção ou universo. Os ruídos, por sua vez, constroem grande parte do naturalismo

fílmico. Podem apoiar significados de ordem simbólica, por meio de associações

regidas por hábitos culturais. É possível também usar os ruídos dramaticamente, para

criar clima, reforçar emoções e significações.

Obviamente, antes do cinema sonoro, ainda não havia meios para reproduzir

tecnologicamente os diálogos nem os ruídos do ambiente encenado. Os ruídos das cenas

eram reconstituídos a partir de cascas de coco (para os cascos dos cavalos), chapa

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metálica (para trovoadas), ventiladores com tira de cartolina (para os motores de

automóveis) etc. Depois do sucesso dos filmes falados, o ruído do mundo passou a

aparecer filtrado, domesticado, disciplinado, mais discreto e, por sua vez, a orquestra

assumia parte de sua função, com uma linguagem estilizada, por exemplo, sons

imitando ruídos. Durante os anos trinta, a maioria dos problemas ligados à sonorização

foi temporariamente solucionada, sacrificando, no entanto, o ruído, que era o elemento

sonoro mais difícil de gravar e reproduzir. Os sons síncronos, captados durante as

filmagens, raramente são de boa qualidade e, há muitas décadas, cada ruído é

usualmente esmiuçado e gravado nas melhores condições, substituídos por “sons

autônomos”. O som de uma arma de fogo, por exemplo, para soar com volume e tornar

verossímil o disparo, é necessário amplificá-lo ou substituí-lo por um som artificial,

mais plausível e convincente.

O ruído, mesmo quando tratado simbólica ou musicalmente, pode ser justificado de

modo realista quando a gente vê a sua fonte emissora. O oposto também pode exercer

grande força expressiva a um filme, quando pensamos em planos de imagem e planos

sonoros: a nossa sensação de que a legibilidade do som é tão variável quanto a da

imagem pode ser ilustrada, ao exemplo de um primeiríssimo plano sonoro de uma gota

de água caindo em uma pia, que pode ser, para o ouvido, tão dificilmente identificável

quanto, na tela, um primeiríssimo plano de articulação do polegar de uma mulher. Desta

indefinição muitos efeitos podem ser auferidos. Ou se, em certo plano, não vemos nada,

a não ser, por exemplo, uma mão que segura uma flor ou coisa do gênero e, de repente,

ouvimos sons diferentes neste mesmo plano da mão, pensamos, mesmo não vendo, que

a mão que segura a flor se encontra num lugar bastante diferente. Este tipo de mudança

oferece oportunidades para vários efeitos num filme. Da mesma maneira que o

movimento de profundidade é obtido pelo travelling de eixo da câmera, o som pode

também sofrer efeitos de distanciamentos e aproximações por meio do “travelling

sonoro”, no caso, obtido pelo movimento dos microfones.

Em O Testamento do Dr. Mabuse, de Fritz Lang (1933), um novo efeito pôde ser

extraído: a música, em muitos momentos, teve uma presença apenas sonora, mas que se

revelou insólito para afetar o ritmo das imagens. Lang emprega, em vários filmes,

“raccords de ruídos”. Tal como o raccord na imagem é empregado como um recurso

transicional da montagem de planos, com a intenção de ritmar o fluxo da ação, os ruídos

37

podem ser passíveis de exercer um papel transicional entre os planos e, por conseguinte,

criar passagens e ritmos numa cena ou entre cenas. Numa transição de cenas, um tic tac

de uma máquina infernal se converte, graças à montagem, num ruído rítmico que

produz um homem que golpeia um ovo com sua colher.

O cineasta Eric Rohmer é um notável exemplo nos modos experimentais de utilização

do som no filme. Para este diretor, a economia de recursos funciona como um método

de trabalho e ele aprecia a inventividade que essa condição impõe. Em suas películas,

nota-se a presença sutil e econômica do som. Rohmer buscava uma autenticidade pelo

som, pela ambientação sonora real, a neutralidade no clima sonoro, quase como um

documentário. Para o cineasta, o trabalho do som é um dos elementos de ancoragem do

filme à realidade de uma determinada época ou de um determinado lugar. Por isto ele

escolhia lugares e horários de filmagem em função da qualidade do som desejada e

segundo os seus objetivos preferia captar o som direto, chegando a adotar microfones de

lapela para os atores. Curioso era seu método de julgamento quanto à melhor tomada de

um plano ou sequência. Em caso de dúvida, o diretor se pautava na escuta dos sons,

ainda no local da filmagem.

Na maioria dos casos, adota-se um registro do som essencialmente naturalista, cuja

preocupação é cumprir as premissas da verossimilhança (por exemplo: passos surdos

num corredor vazio, o repicar de um relógio, o farfalhar de um vestido, sons de pássaros

etc.). Em si mesmo, diz o diretor russo Andrei Tarkovsky (2008), o som nada acrescenta

ao sistema de imagens do cinema, pois não tem ainda nenhum conteúdo estético. Para

ele, é impossível, no cinema, imaginar uma reprodução naturalista dos sons do mundo:

o resultado seria uma cacofonia. Qualquer coisa que aparecesse na tela teria de ser

ouvida na trilha sonora, mas essa cacofonia significaria apenas que o filme não recebeu

nenhum tratamento sonoro. É possível, igualmente, que o ruído seja utilizado como

perturbação da verossimilhança. Pode tentar-se ampliar os sons naturais, isolá-los do

seu contexto, acentuá-los ou mesmo escolher um som e excluir todas as circunstâncias

incidentais do mundo sonoro que existiriam na vida real. Um diretor também pode

preferir dificultar, por razões estéticas, a decifração do som, passando-o pela distorção,

defasando-o ou criando contrapontos entre este e a imagem.

38

Houve, nas últimas décadas, muitas outras experimentações pelas quais a visualidade e

as sonoridades tiveram suas fronteiras borradas. Nos anos setenta, o também diretor

russo Andrei Tarkovsky criava táticas para induzir no olhar uma certa atrofia, o que

acabava por produzir uma sensação mais incisiva do som e, consequentemente, exortava

o trabalho da imaginação. O cineasta adotava este mesmo método em relação à música.

Tarkovsky (1989) afirmava que os sons do mundo visível refletido na tela, quando

removidos, ou ainda quando esse mundo era preenchido com sons exteriores que não

existem, ou se os sons reais fossem distorcidos de modo que não mais correspondessem

à imagem, poderiam adquirir outra ressonância. Há, portanto, efeitos sonoros que só se

percebem quando entram em contradição com o que vemos.

Isto exemplifica um fato singular do cinema: em muitos casos, o trabalho de um

engenheiro de som equivale à criação do músico e, muitas vezes, os sons recompostos

têm mais a ver com música do que com o registro banal de ruídos. Um dos grandes

documentaristas mundiais, o brasileiro Alberto Cavalcanti já nos anos trinta asseverava

que os ruídos eram quase sempre esquecidos do som do cinema, por duas razões:

culturais, que desvalorizavam esteticamente estas sonoridades; e técnicas, por causa dos

problemas de gravação e de equilíbrio sonoro dos ruídos. Ele era contrário ao uso

abusivo dos diálogos e a favor do som não sincronizado, principalmente das palavras e

dos ruídos. Para o diretor, os ritmos e tonalidades do ruído são tão indispensáveis

quanto os diálogos, a música e a imagem, pela sua capacidade de afetar emocionalmente

o ouvinte. Os ruídos devem ser aproveitados por suas qualidades tonais e seus efeitos

dramáticos. Suas alturas e qualidades tímbricas, tonais e rítmicas produzidos por sinos,

aves, trens, navios, carros, mar, chuva, cavalos conferem perspectiva e profundidade a

ambientes, pontuam passagens, incitam a imaginação do espectador. Cavalcanti defende

a funcionalidade do ruído e exorta a intenção expressiva do seu uso. Ele também dizia

que a justaposição de efeitos sonoros exige uma grande dose de imaginação. Dos ruídos

desses dependem a própria sucessão final das imagens. Todo filme necessita tanto de

“momentos de respiração”, de interrupções do som, como de amplificação da

sonoridade regular da realidade. Para além de ampliar o universo da cena para o fora de

campo, sons indeterminados e não sincronizados, quando explorados, têm o potencial

para estimular a imaginação do espectador, por seu poder de sugestão e eficácia no

efeito dramático de uma cena. A indefinição tímbrica, com suas qualidades

inconclusivas, podem provocar inquietação. Muitas vezes o diretor, em parceria com o

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compositor, harmonizavam as alturas dos ruídos com a música e faziam uma nota

musical nascer de um ruído ou vice-versa: o ruído se transformando em música e a

música se concluindo em ruído, surgindo e desaparecendo de maneira orgânica. Isto se

justifica porque, a partir de certa duração, de certo nível de organização e de presença,

um conjunto de sons pode se impor num filme como um momento musical.

Bresson também descobriu e optou pelas possibilidades rítmicas, musicais, dos ruídos e

das palavras nos diálogos. Ele procurava sempre vislumbrar “imagens raras” que os

sons provocam em nós e que são pura sugestão. Invisíveis, estas são recriadas pela

imaginação do espectador. Ele criou, pouco a pouco, uma sofisticada “partitura sonora”,

muitos deles despojados de imagem que os respaldam, emitidos fora do quadro e

abrindo possibilidades imaginativas. Ele procurava, como Cavalcanti anteriormente o

fizera, um valor rítmico para o ruído, reorganizando ruídos ainda não organizados

como, por exemplo, de uma rua, uma estação etc., para recolocá-los, um por vez, no

silêncio, dosando ritmicamente a sua mistura. O apito de uma locomotiva, dizia

Bresson, pode imprimir em nós a visão de toda uma estação de trem: “Um grito, um

ruído. Sua ressonância nos faz adivinhar uma casa, uma floresta, uma planície, uma

montanha. Seu eco nos indica as distâncias.” (BRESSON, 2008, p. 79) Por fim, Bresson

almejava construir, com os ruídos, uma espécie de realidade musical, como ele o diz: “É

preciso que os ruídos se tornem música.” (BRESSON, 2008, p. 116) Para o cineasta, as

imagens deixam de ser “chapadas” quando abandonam a música e voltam a irradiar

ruídos, ventos, chuvas, buzinas, sirenes, o crepitar de chamas, como ele designava, a

inesgotável “partitura de sons”.

São inúmeras as possibilidades de emprego expressivo das sonoridades, muitas das

quais se tornaram paradigmáticas (ou até clichês) na composição da trilha sonora para

filmes. A criação de metáforas é um exemplo (o som de um rio a acompanhar um

pranto), ou de metonímias (o som de um trem a acompanhar uma mala de viagem), de

sinédoques (uma canção que evoca uma memória) entre outros recursos linguísticos. Os

sons tornam-se também componentes essenciais nas abstrações fantásticas no cinema,

como no caso da ficção científica ou de animações. Com os efeitos sonoros, evidencia-

se a simulação do aspecto sonoro de um evento, ou a integração sonora num efeito

especial visual para acentuar-lhe o caráter de uma visão extraordinária. Um exemplo

instigante pode ser citado: valendo-se de música produzida com sintetizador, Vittorio

40

Gelmetti, no filme Il Deserto Rosso (Deserto vermelho) dirigido em 1964 por M.

Antonioni, explorou sonoridades eletrônicas, procurando despertar na escuta

indefiníveis passagens entre a música, os sons e ruídos, todos os elementos atuando

juntos, neste contexto, como sonoridades do inconsciente. Muitas vezes, uma gravação

saturada do som - e da música - não é apenas um erro, mas pode ser antes uma estética

sonora no filme.

Um dos momentos de importante inovação no redimensionamento da música, da trilha

sonora - e do silêncio - no cinema se deu com Once uppon a time in West (Era uma vez

no Oeste) de Sergio Leoni, lançado em 1968. Contando com a célebre parceria entre o

sonoplasta Eros Bacciucchi e o compositor Enio Morricone, o filme atesta uma

verdadeira osmose entre a planificação das imagens, os sons e a música. Nos

quinze minutos do início do filme, os ruídos de fundo na paisagem, nota-se como

sons incidentais (sons de grilos e insetos produzidos artificialmente) que se estancam e

provocam uma suspensão das sensações em curso. E redimensiona o silêncio repentino

compartilhado entre os personagens (e espectadores). Em certos momentos, ocorre a

fusão entre o apito do trem e a harmônica do protagonista, que re-inscreve a importância

da música incidental amalgamada aos sons não-musicais. Afirma-se também que

Morricone, curiosamente, executava no piano as músicas das cenas enquanto as

filmagens decorriam. Este filme é um marco na história da trilha sonora do cinema, uma

vez que a música passa a adquirir uma nova importância e um papel distinto. Por

exemplo, os sons de cordas (violinos) que se assemelham a sons ferroviários, além do

som do tiro final que, como se disse, se funde ao apito ferroviário, denuncia que o trem,

ao chegar ao oeste como insígnia do progresso, na realidade seria o verdadeiro vilão do

filme.

A tendência do tratamento sonoro do cinema nas últimas décadas parece ter alcançado

produzir uma separação nítida entre os sons, com a distribuição em várias pistas e

equalizações, gerando “hiatos” muito sutis de silêncio entre as frequências. Isto permite

a criação de texturas sonoras, sem, no entanto, confundir os sons em convibração. Um

exemplo pode ser notado em The right stuff (Os eleitos), de Phillip Kaufman (1983),

premiado por sua edição sonora, numa cena em que o protagonista se depara, montado a

um cavalo, com o jato de turbinas ligadas, enquando soa a composição musical.

41

Blade Runner (Ridley Scott, EUA, 1982) é um exemplo de filme que tenta recuperar a

ideia de uma unidade orgânica de todos os sons. Trata-se de uma produção sonora

completamente circundada por uma orquestração de ruídos, efeitos de ambiência e de

voz, criada por editores e engenheiros de som. Foi bem sucedido por causa da relação

analógica entre o teor dos sons eletrônicos com o ruído e a música sintetizada de

Vangelis. Constrói-se uma textura que vai de ritmos amplos sobre notas profundas, de

percussões eletrônicas, aos ritmos mais rápidos em notas altíssimas.30 O triunfo da

concepção rítmica do filme como um todo, e também por causa da concepção

integradora na mistura orgânica dos sons obtida por Graham Hartstone.

Apoiados nas palavras de André Gide após ter assistido ao musical Hallelujah!, dirigido

por King Vidor, em 1930, finalizamos este tópico:

“No que diz respeito ao complemento da música, do canto, dos coros, gritos e intejeições da multidão, todo ele se confunde, da maneira mais acertada, com os movimentos de conjunto, até ao ponto em que não podermos imaginar este filme privado do elemento musical, que faz de Hallelujah! uma espécie de sinfonia, com seus allegro, andante, largo, presto agitato, onde a própria palavra se mescla ao todo como um elemento rítmico a mais.” (apud CHION, 2010, p. 86)

Podemos finalmente auferir, tendo a frase de Gide como pretexto, que no pensamento

da expressão cinematográfica não se concebem binariamente som e imagem como

entidades separadas, pois o que mais conta na experiência de um filme é a sua

consubstanciação de ritmos.

2.3 – A música e o cinema

Discursar a respeito da música no cinema diante da enormidade do repertório

acumulado nestes cento e poucos anos, é um problema bastante controvertido, pois

trata-se de uma questão que não é apenas musical, mas também cinematográfica. E a

obstinada presença da música nos filmes rompe com a concepção de que o cinema é

30 O termo utilizado em inglês para designar um zumbido contínuo, na forma de uma nota eletrônica sustentada no grave, é drone. Este modo sonoro é recorrente muito no filme Blade Runner.

42

autossuficiente. Tal empreitada exige, por pressuposto, uma variedade de competências

necessárias para este estudo e não se pode impor diretrizes arbitrárias para abordar o

tema. As formas de coexistência entre música e cinema não são codificadas e não há

regras precisas. Todos os modos de integração passam por experimentações e são muito

empíricas, ou seja, há tentativas, frustrações, surpresas e fórmulas sempre provisórias. O

cinema sonoro, com a sua música, tornou-se uma forma de arte híbrida, realizada por

opções tomadas em conjunto, portanto, nunca é definitiva e não existe uma fórmula

universal. A maioria de suas inovações não parte, obviamente, de convenções. Afinal, a

arte não avança apenas por seus sucessos, mas por suas experiências e insatisfações.

Neste momento da digressão do Caderno de Estudos, serão apresentadas diferentes

concepções estéticas formuladas por músicos, realizadores ou teóricos de ambas as

áreas de criação e pensamento.

A música, como se sabe, não descreve objetos. Quanto, porém, do pensamento humano

permaneceria sem expressão se não tivéssemos a música? Ela é, de fato, uma expressão

não verbal, afetiva, direta, imediata. As notas não fazem emergir um discurso musical se

não existir a percepção de uma intenção de organização no âmbito dos próprios sons.

Béla Bálázs nos chama a atenção para um aspecto importante, apesar de pouco

considerado ao se abordar o problema da escuta musical. O autor comenta a respeito do

que Henri Bergson (apud BÁLÁZS, 2008, p. 94) ) nos diz: uma melodia é composta de

notas isoladas que se sucedem umas às outras, em sequência, no tempo. Entretanto, uma

melodia não possui dimensão no tempo na medida em que a primeira nota só se torna

um elemento da melodia porque ela se refere à próxima e porque se coloca numa

relação definida a todas as outras notas, sendo que a última nota já está presente na

primeira como um elemento criador da melodia. E a última nota completa a melodia

somente porque a ouvimos a primeira nota junto com ela. Em suma, as notas de uma

melodia possuem uma duração real, mas a linha melódica coerente não possui dimensão

no tempo fenomênico, não surge gradualmente no fluxo temporal, mas já existe como

uma entidade completa assim que a primeira nota é tocada.

Muito já se perguntou a respeito do que a música de cinema acrescenta à plástica e à

narrativa de um filme. E, se a resposta é sim, indaga-se se há, por conseguinte, uma

música específica para os filmes, que a distinga da música “autônoma”. Abordar a

música cinematográfica, desde já, levanta um problema terminológico, pois quando

43

escutamos um fragmento de música num fragmento de película, o que se mobiliza nem

sempre pode ser tomado como “música completa”. A música cinematográfica, em sua

falsa evidência, seu caráter frequentemente fragmentário, desagregado e invisível, nem

sempre nos permite saber ao que devemos nos atentar. A sua passagem para a tela

provoca uma metamorfose, a ponto de ela tornar-se “música do filme”.

Fellini não relutava em dizer que a música era como elemento secundário na narrativa,

componente de apoio. Já o cineasta Eric Rohmer, seguidor do pensamento de André

Bazin, alegava que há, desde a sua natureza, um confronto, uma rivalidade entre música

e filme. O cinema se expressa no tempo e não no movimento, podendo ser, em

determinados planos, comparado à beleza da música. A “musicalidade da imagem”

seria, para Rohmer, mais importante. Robert Bresson proferia não mais querer a música

de acompanhamento, de apoio, de reforço em seus filmes. A música e o deleite musical

isolam, para o diretor, o filme da vida própria do filme. Em outros termos: a música

toma todo o espaço e desvaloriza a imagem à qual ela se junta. O cineasta exclama:

“Quantos filmes remendados pela música! Inunda-se um filme de música. Impede-se de

ver que não há nada nessas imagens.” (BRESSON, 2008, p. 43) 31 Por outro lado,

Bresson era um grande admirador da música, tanto que o atesta ao dizer que um filme

deve ter, ao mesmo tempo, a precisão e a imprecisão da música, portadora de mil

sensações possíveis, imprevisíveis.

A música fílmica desempenha seu papel dentro de um conjunto. É algo que se apresenta

com outro aspecto (fragmentado), com outra função e com outra lógica, num outro

contexto diferente ao da obra estritamente musical. A música atua nos filmes como

elemento e como meio, como mundo e como tema, como metáfora e como modelo,

podendo todas as suas diferentes atuações coincidirem numa mesma película. Um

aspecto crucial nesta discussão é a natureza e o caráter intermitentes da música no filme

(ao menos no cinema sonoro). Paradoxalmente, a música no cinema conserva o seu

papel de essência irredutível: um embrião rítmico ou uma célula melódica mínima

persistem em reinvidicar uma vida autônoma. Há, por essa natureza movente que se

31 Para Bresson, a generalidade da música não corresponde à generalidade de um filme. Ela é uma exaltação que impede as outras exaltações. (BRESSON, 2008, p. 43)

44

distingue do movimento das imagens, uma essência antinaturalista da música. Por tal

razão, não podemos “condená-la” ao naturalismo, mesmo quando ligada ao cinema.

No caso do cinema, com as múltiplas formas de aderência da música à narrativa fílmica,

não se pode impedir que o som afete a imagem. A música, que não tem valor narrativo

em si e que não significa eventos, torna-se um elemento da narração apenas pela sua co-

presença com imagens, sons, diálogos e vozes. E recusar a possibilidade de utilização

da música é privar-se, um tanto arbitrariamente, de um material que, se bem utilizado,

pode enriquecer incontestavelmente a obra cinematográfica. Todos os elementos

sonoros, inclusive a música, o silêncio, devem formar um contínuo, como característica

intrínseca da imagem visual. A música acrescenta, por sua força concreta, uma imagem

imediata às imagens mediadas, que representam indiretamente o todo e que se torna

capaz, pela inclusão musical, de uma apresentação direta, incomensurável pela via da

representação imagética. Apesar de haver muita continuidade rítmica entre as imagens

que não é, por exemplo, uma ilusão criada estritamente pela música, esta impõe ao olho

sempre uma orientação diferente. A música é, no universo concreto do filme, que

também escapa às leis do real, aquilo que parece existir de maneira independente do que

vemos. Não podemos sustentar que a música acompanha a imagem, já que ela capta e

sublinha uma frase de um diálogo, um olhar, um efeito de montagem, um movimento,

uma inflexão do roteiro, portanto, algo não forçosamente visual. É preciso, antes de

tudo, admitir uma margem de estilização para a música no cinema, porque ela tem

múltiplos papéis e se torna, dependendo do filme, um meio, o tema, a protagonista ou

uma ferramenta. Além do mais, toda música filmada sofre uma narrativização, no que

resulta difícil uma atenção ao próprio discurso musical.

A música irriga o filme: quando incorporada a este, torna-se parte de uma complexa

rede de ritmos, sensações, informações verbais, cinéticas, visuais. E, graças à natureza

rítmica do cinema, um conjunto de elementos pode passar do som à imagem, do real ao

imaginário; a música aparece como um material privilegiado nesta circulação. Ela

ressoa e se eleva – ao menos depois do cinema sonoro - além de onde não alcançam as

palavras. A música co-estrutura o filme: contribui, junto com outros elementos,

compassando a forma geral da película pelo lugar determinante de suas intervenções. O

seu emprego funde a descontinuidade da montagem: a continuidade auditiva parece

homogeneizar a descontinuidade visual, espacial ou temporal, evitando a dispersão

45

criada pelas numerosas elipses temporais e mudanças de cenário. Já é bem sabido que,

ao unir todos os planos, a música reforça a impressão global de uma ação única. Através

da planificação, geram-se níveis sonoros muito diversos que, em contrapartida, tendem

a quebrar a continuidade dramática de uma cena.

A denominada “música cinematográfica” pode também criar, conforme a habilidade do

compositor e do diretor, uma bolha de liberdade que a separa das simples funções de

nexo e concatenação entre cenas. Dito de outro modo: a sua importância e seu papel em

relação aos outros elementos da ação, do diálogo, do ruído é modulável e desligado de

qualquer regra de coerência diegética, verossímil, realista. Pode dar-se, em

contrapartida, que trilha musical, mediante seus ritmos, passe a governar toda a imagem.

Por isto é um erro pensar que o próprio cinema tenha uma vocação naturalista ou

realista, antes acolhendo uma transfiguração do real, papel geralmente delegado à

música. A música também sugere um espaço que a imagem não pode ou não quer

apresentar; às vezes reconstrói um espaço que os sons e ruídos realistas não alcançam

expressar.

A música permite inclusive que o que persiste de naturalismo no cinema sonoro não

seja asfixiante. Por seu próprio lirismo, ela permite refletir a duração. A música também

afeta o tempo e o movimento de qualquer filme. Ela ajuda a estruturar o tempo de uma

sequência cinematográfica, não só pelas pulsações rítmicas, mas pelo fenômeno de

expectativa de suas cadências. Sem a música, o tempo do filme seria menos misterioso,

menos imprevisível, porque ela tem a particularidade de poder criar um fora do tempo

no tempo, um tempo entre parênteses, de suspendê-lo provisoriamente. A música é

capaz de abarcar em sua própria duração, a ação do filme. No interior desta duração, a

música introduz uma espécie de estilização, por contração ou dilatação do tempo.

O cinema é tratado como singular, mas os filmes e as músicas continuam plurais. Ele é

sabidamente uma arte na qual todas as músicas possuem direito de cidadania e, mesmo

no interior de uma mesma obra, estilo e épocas diferentes se mesclam e coexistem.

Coexistem num mesmo filme música popular e música erudita.32 Ambos os tipos de

música podem encadear-se e sobrepor-se livremente, enfrentar-se ou se separar. Uma

32

Como em The Jazz Singer, filme no qual Tchaikovsky se alterna com canções populares.

46

música kitsch pode, por exemplo, ser muito interessante num filme, por razões

cinematográficas. Pela via desse chamado melting pot sonoro e musical que é o cinema,

para Chion (2010), gente que nunca ouviu música atonal no rádio ou em concerto acaba

por captar alguns de seus acentos durante algum drama dos anos cinquenta. Ouvintes de

clássico, por seu turno, descobriram o rock; ouvintes do pop são postos em contato com

compositores eruditos. Costuma-se dizer que o grande público que não suporta a música

atonal pela rádio, se adapta bem a ela no marco de um filme, que seria um mérito do

cinema. Subsiste, obviamente, o risco de que estas músicas se dispersem do espetáculo

a quem as conhece previamente, que pode exasperar-se ao reconhecê-las.

No universo de estratégias convencionadas para sonorizar a imagem em movimento e

tudo o que vem com ela, fixaram-se historicamente táticas interessantes para se

mobilizarem nossos processos mnemônicos, emocionais e compreensivos face ao fluxo

plástico da narrativa. Afinal, na concepção musical cinematográfica, a escolha dos

materiais, técnicas e estilos de composição passa a provocar uma mudança na atitude do

compositor. Trata-se, obviamente, de um contexto particular de composição. O artista

deve analisar constantemente a interação de sua proposta de composição à concepção

original do filme para controlar o resultado como um amálgama entre ficção, imagem,

música, fala e silêncio. Sobre esta questão, sabe-se que, sem a música no cinema, estaria

ausente também o silêncio (esta questão será abordada adiante).

A música deve ser prevista desde a decupagem, juntamente com a iluminação, o

cenário, para inserir-se harmoniosamente no contexto visual como coadjuvante da

analogia cênica. Por tal razão, não é raro na história do cinema, diante desta necessidade

de integrar as sonoridades à visualidade, certos diretores se tornarem compositores dos

próprios filmes, como Charlie Chaplin, John Carpenter, Clint Eastwood e Eric Rohmer,

ou diretores e compositores trabalharem em parceria por muitos anos, como Sergio

Leoni e Enio Morriconne, Alfred Hitchcock e Bernard Herrmann, Frederico Fellini e

Nino Rota, Andrei Tarkovsky e Eduard Artemiev, Claude Chabrol e Pierre Jansen,

Blake Ewards e Henry Mancini, Eisenstein e Prokofiev, David Lynch e Angelo

Badalamenti.

O pensamento criativo musical, quando cooptado pela idéia cinematográfica, precisa

sofrer uma reviravolta em relação à composição estrita. É preciso que o compositor

47

decida, continuamente, se e como o componente musical pode ou não pode fazer para

condicionar a apreensão de conteúdos, elucidar ou mascarar, acompanhar ou reafirmar,

sublinhar ou ilustrar aspectos narrativos, expressivos e emotivos do filme. Os diretores

do período áureo do cinema hollywoodiano andavam constantemente se perguntando

qual seria afinal a função ideal da música nos filmes: a ilustração (sugerir estados

psicológicos, emoções, paisagens etc.), a redundância (reforçar uma ação, um gesto,

uma situação dramática etc.) ou como fazer para que o som e a fala não sejam mera

redundância do que se vê; e o contraponto (contradizer, de modo expressivo, o que

estava sendo mostrado)? Kracauer (1997 apud SANTANA; SANTANA, 2012, p. 291)

definia três funções básicas da música no cinema: música de acompanhamento, música

real e música como núcleo do filme.33 O célebre manifesto soviético já propunha que o

som remetesse a uma fonte extracampo, sendo assim um “contraponto visual” e não o

duplo de um ponto de vista: o ruído de botas, por exemplo, seria mais interessante

quando não fossem vistas.

Ao invés de procurar simultaneidade entre o drama e os movimentos da música, Sergei

Eisenstein pensava que a trilha musical deveria ser “contrapontística”. Para o diretor, a

conquista do sonoro e do musical no cinema consiste em exprimir o todo de duas

maneiras incomensuráveis, não correspondentes. O movimento afetivo de um

personagem ou grupo seria expresso diretamente na música, mas em contraste, em

conflito ou até em desarmonia com o movimento das imagens visuais.

Para o autor Philippe Arthuys, a música de cinema deve ser abstrata e autônoma, não

um pleonasmo musical, mas um verdadeiro “corpo estranho” na imagem visual, um

pouco como um “cisco no olho”, e deve acompanhar algo que está no filme, sem ser

mostrado nem sugerido. Há uma relação, obviamente, mas não se trata de uma

correspondência que nos mantenha no plano da imitação. É uma reação do “corpo

estranho” musical com as imagens visuais totalmente diferentes, ou antes uma interação

independente de qualquer estrutura comum.

33 Hanslick já defendia, antes do cinema (em 1854), que a representação do sentimento não é o conteúdo da música e que o belo musical possui uma autonomia estética, uma vez que a música não seria capaz de suscitar sentimentos específicos.

48

Em vez de “contraponto musical”, Chion prefere chamar de “efeito não-empático” ou

de “dissonância” para se referir à música indiferente à ação e que pode gerar um

“contraste dramático” ou flutuações poéticas resultantes dessa assincronia entre imagem

e som. (CHION, 2010, p. 233) São estes termos, para o autor, mais adequados do que

“contraponto”, que antes supõe uma confrontação de duas cadeias, a visual e a sonora,

ao longo de uma certa duração. Em certos filmes surgem efeitos interessantes de, por

exemplo, uma música festiva que soa independente da situação dramática, ou de uma

música incisiva para uma imagem passiva. Na película de Arthur Penn, Four Friends,

de 1982, ocorrem momentos de música estirados sobre imagens agitadas, gerando um

trabalho rítmico extremamente preciso. Contradições também podem ser extraídas entre

o movimento no interior dos planos e o ritmo criado pela montagem. Nos anos sessenta

e setenta torna-se recorrente uma variante desse fenômeno, chamado unrelated score, de

música sem uma relação precisa com a ação e que, às vezes, parece reinar sobre as

imagens, tal como o tema de Francis Lai para Um homme, une femme, 1966, de Claude

Lelouch. A utilização de música “estranha”, em contrapartida, nem sempre é uma

solução milagrosa, porque essa pode reforçar estereótipos que só produzem efeitos

particulares, sem desempenhar com isto nenhum papel estruturador ou certos sinais para

a memória, como um separador formal no fluxo da narrativa.

A natureza singular que a música passa a adquirir no cinema remete a necessidades

historicamente consolidadas na sua integração à concepção específica de uma ficção

cinematográfica. A música no cinema pode ter a capacidade de sugerir, contradizer,

preparar, denunciar, surpreender e emocionar, de gerar efeitos narrativos, de suspense

ou apaziguamento temporário. Ela enfatiza emoções particulares sugeridas na narrativa,

marca-a referencialmente, realiza conotações, além de operar como recurso de

continuidade, ou mesmo quando um som ou certa música antecedem propositalmente a

cena que virá a seguir. A trilha sonora pode igualmente aludir a um estado sentimental

de uma personagem ou de uma coletividade, sugerir pressentimentos ou assumir uma

espécie de função retórica. Com ela também se pode evocar uma época histórica,

indicar um contexto cultural, uma hora do dia ou uma estação do ano, bem como

direcionar a atenção para algum detalhe em especial.

Numa perspectiva convencional de abordagem da música cinematográfica, alguns

autores reduzem o seu papel a funções consolidadas por paradigmas estáveis. Não

49

raramente encontrarmos em bibliografias sobre trilha musical no cinema afirmações tais

como: a música intervém num filme para assegurar funções de pontuação dramática,

réplicas de efeito, tempos de parada da palavra e da ação, entradas e saídas de

personagens, monólogo interior, mudanças de iluminação, à semelhança do que ocorre

no teatro.34 Claudia Gorbman (1987) é uma autora conhecida por abordar a música na

narrativa cinematográfica a partir de suas funções. A escolha dos materiais, técnicas e

estilos de composição passa a ser dependente da eficácia que a música vai ter em

cumprir as suas funções. Para autora, a trilha musical não deve ser percebida

conscientemente, mas altera a percepção dos eventos mostrados. A música, de acordo

com a autora, participa efetivamente de um filme: na estrutura narrativa fílmica, na

organização das partes do filme, dos encadeamentos de sequências. A composição

musical, para ela, explica, sublinha, imita ou enfatiza ações e cria climas, ambientes,

sugere atmosferas, estados de humor e choques afetivos, evoca personagens e

atmosferas, acompanha movimentos e constrói conteúdos dramáticos, emotivos e

expressivos. Gorbman afirma que o som fílmico tem a função de reforçar o efeito

imagético e textual, como um coadjuvante da analogia cênica. No tradicional cinema

narrativo, a música teria como função principal atuar sobre as ações narrativas, sem

estar em primeiro plano, definindo um universo dramático que envolva emocionalmente

o espectador e ajude a transformar a enunciação em ficção.35 A autora sugere para o

estudo da música cinematográfica as investigações psicanalíticas sobre a natureza das

nossas relações com os sons, pressupondo que as nossas primeiras experiências

remetem a uma inefável e pré-verbal ligação com a música. E o objetivo da partitura

clássica para filmes seria, para Gorbman colocar os ouvidos e os olhos do espectador

em harmonia com as relações sonoras atávicas do seu ego, numa integração às emoções

propostas pelo espetáculo cinematográfico.

A música, para a autora, também teria a função de ligação entre planos e sequências

(bonding) e de ancoragem (ancrage) evitando desconfortos narrativos causados pelas

elipses da montagem. Há, uma propriedade denotativa da música, quando esta vincula

firmemente o significado pretendido à imagem. Estas são enumeradas pela autora como:

34 Existe uma continuidade possível entre a música vinculada à cena, a música que pontua e comenta a ação, e a música de transição (os chamados “interlúdios”). 35 Os próprios instrumentos musicais utilizados, segundo Gorbman (1987), não são neutros, pois remetem a muitas referências culturais, históricas ou estéticas.

50

1) invisibilidade (o aparato técnico da música, quando não escutada pelos personagens,

não deve ser visível); 2) inaudibilidade (a música deve ser subordinada aos veículos

primários da narrativa, como diálogos ou a imagem, não devendo ser ouvida

conscientemente); 3) significante de emoção (a música de filmes pode determinar

"climas" específicos e enfatizar emoções particulares sugeridas na narrativa, mas é, em

primeiro lugar, um significante específico da emoção); 4) marcação narrativa,

subdividida em: referencial (a música proporciona marcações referenciais e narrativas)

e conotativa (a música "interpreta" e "ilustra" eventos narrativos); 5) continuidade (a

música proporciona continuidade rítmica e formal entre tomadas, em transições entre

cenas, preenchendo "vazios"); e 6) unidade (através de repetição e variação do material

musical e da instrumentação, a música pode ajudar na construção da unidade narrativa e

formal).

Outro autor que mantém esta primazia “funcionalista” da música cinematográfica é

Johnny Wingstedt. Ele discrimina e categoriza seis diferentes classes de funções para a

música nos filmes: emotiva, informativa, descritiva, “de guia”, temporal e retórica. A

função emotiva descreve um sentimento de uma personagem, estabelece

relacionamentos entre personagens, acrescenta credibilidade, ludibria os espectadores,

sugere atmosferas psicológicas e cria pressentimentos.36 A função informativa se

subdivide em três categorias: 1) comunicar significado, esclarecer situações ambíguas,

comunicar pensamentos não verbalizados, reconhecer ou confirmar a interpretação pelo

espectador; 2) comunicar valores, evocar uma época, um contexto cultural, indicar

status social (usado em certos casos de música para propaganda); e 3) estabelecer

reconhecimento através da associação entre sons e alguma personagem ou mesmo

algum produto. A função descritiva contextualiza, estabelecer a atmosfera do ambiente

(em um sentido abstrato como a hora do dia ou estação do ano) ou descreve uma

atividade física, um gesto. A função de guia é tanto indicativa (direciona a atenção,

focaliza o detalhe), quanto de mascaramento (esconde perturbações sonoras de

diferentes origens). A função temporal cria continuidade e define estrutura e forma,

cujas características estruturais da música são aproveitadas na construção e fluxo

narrativos. E a função retórica, que se destaca da narrativa e comentá-la, faz

36

Uma melodia que soa enquanto dois amantes que correm um para o outro tornou-se um arquétipo fixado por Claude Lelouch, como em Un homme, une femme, 1966.

51

julgamentos de valores, toma partidos e realiza colocações políticas e filosóficas.

Wingstedt ressalva, contudo, que a música opera tipicamente em vários níveis, atuando

em diferentes dimensões paralelas e pressupõe, por parte do compositor, uma

consciência da necessidade e da função da música no filme e de que soluções precisam

ser dadas a determinadas sequências, objetivando o processo de escolha de material e

procedimentos a serem usados na composição.

O cinema trivial aplica estas e muitas outras fórmulas, como apoiar-se na música para

dilatar, por distanciamento e aproximação (volume sonoro ou travelling sonoro de

eixo), certas perseguições.37 Muitas vezes a música é levada a imitar certos ruídos,

voltando aos antigos métodos do teatro. Também se utiliza amiúde o leitmotif, recurso

criado pelo compositor Richard Wagner, usado em suas obras operísticas, como a

reiteração de um tema musical ou um timbre específico para indicar um personagem do

roteiro.38 As fórmulas sinfônicas wagnerianas presentes dos anos trinta aos anos

quarenta deixaram-nos, entretanto, com um estigma: o da “era dos clichês”.39 Buñuel,

nesta época, já tratava de evitar qualquer efeito de catálise emocional, de precipitação

de significados propiciados pelo uso da música. Seria, segundo ele, o mesmo que dizer:

“agora podem chorar...”.

Outras maneiras de se valer mais sutilmente da força de evocação da música pode ser

observada em alguns filmes, quando ocorre uma pontuação narrativa (stinger): um

acorde particular, um tremolo dramático, uma célula breve ou um silêncio súbito que,

isolados do discurso musical, pontuam, sublinham, assinalam uma revelação, um

contratempo, um momento. Um filme poderá recriar ou despertar a emoção contida em

um simples acorde maior, um ostinato rítmico elementar, uma escala tocada pelos dedos

37

Em Der Letzte Mann, de 1926, dirigido por Murnau, a câmera tenta dar uma ideia da trajetória do som, que vai da campana de um instrumento de metal até a habitação do segundo piso onde o está escutando o personagem. 38

Em casos excepcionais, a aproximação de temas musicais a personagens, que relaciona cinema e ópera, cria uma força emotiva que ultrapassa os estereótipos, como é o caso do já mencionado Once upon a time in West, de S. Leoni, 1969. 39

O recitativo instrumental wagneriano é o modelo privilegiado nos primeiros tempos do cinema. Como se costumava dizer: “Tudo está em Wagner e Wagner está em tudo!” Empregada de diversas maneiras, a sua peça Cavalgada das Walkirias, soa em Birth of a nation, de Griffith, em 1915; no filme Oito e Meio, dirigido por Fellini, de 1963; Il mio nome è nessuno, de 1973, por Tonino Valeri; e no célebre Apocalypse Now, de 1979, por Coppola. O papel de estímulo sensorial que o relaciona com efeitos físicos esperados já era perseguido por outros compositores de óperas como Gluck ou Berlioz.

52

de um principiante ou um mesmo tema repetido sob várias formas. Igualmente no

recurso do flashback cinematográfico (quando a narrativa remete ao passado, seja por

lembrança de um personagem, seja por retroações temporais explicativas), a música

passa a ser, retroativamente, parte da ação, principalmente quando recebe um tratamento

sonoro que altera a sua qualidade de definição. A música pode ser executada, por

exemplo, com efeitos de reverberação, saturação, rotação lenta ou acelerada, distorções,

ecos etc. Um modo de grande poder expressivo é a criação de um plano sonoro

“macroscópico”, a exemplo do enquadramento das vibrações da corda da guitarra, como

se dá em Paris, Texas (1984), de Wim Wenders.

Há ainda muitas interessantes realizações nas quais as características estruturais da

música são aproveitadas na construção e no fluxo da narrativa. A gama de recursos

musicais no cinema abarca outras estratégias: a utilização de cadências harmônicas para

criarem suspensão, tensão ou acomodação psicológica; o cromatismo e o atonalismo

para provocarem sensações mais nuançadas ou de instabilidade (situações de caos

psicológico, por exemplo). A música de Claude Debussy teve uma grande importância

no cinema. Suas ideias harmônicas e modais, vagas, com duplicações de motivos, jogos

de fluxo e refluxo, ritmo fluido, sua indecisão tonal se revelaram aptas para

acompanharem tanto o espetáculo vivo da natureza quanto filmes de suspense. Sua

música se encaixa à arte do mistério, que é o cinema. Além do mais, seu estilo ajuda a

evitar sentimentalização de situações, limitando-se a inscrever a cena num clima

poético. Jerry Goldsmith, compositor de Alien (1979) dirigido por Ridley Scott, utiliza o

vocabulário de Debussy para expressar a angústia, a apreensão, o vazio, a solidão do

cosmos, o clima de expectativa. Sua escala de tons inteiros foi empregada para gerar

uma sensação de empatia para com as forças da natureza, em especial, na ambientação

orquestral de paisagens bucólicas.

Bernard Herrmann, a despeito de sua marca de veemência musical, assumia a sua dívida

com Debussy. Ele dizia buscar antes no ritmo, oposto ao expressionismo e

sentimentalismo da melodia, o fundamento de uma estética objetiva, dinâmica e sem

pathos da música cinematográfica tradicional. A música cinematográfica deve-se

apoiar, segundo Herrmann diz, nos ritmos da vida, em lugar de amoldar-se às flutuações

de um discurso ou matizes do sentimento. Para o compositor, ela deve se desembaraçar

de elementos meramente subjetivos e que se torne realista, mas não por meios

53

dramáticos, sob uma matéria plástica da imagem uma matéria sonora impessoal, por

uma misteriosa alquimia de correspondências. Bernard Herrmann conclui que a música

do cinema precisa nos fazer perceber o ritmo interno da imagem sem traduzir seu

conteúdo sentimental. Os violinos da antológica “cena do chuveiro”, em Psicose, da

trilha musical composta por Bernard Hermann inauguraram no cinema novas

concepções para o idioma da composição cinematográfica. A trilha de Psicose, escutada

separadamente, é monótona, mas funciona perfeitamente dentro do filme. Neste filme, o

compositor opta pelo emprego simultâneo de duas tonalidades (bitonalismo: um tom

maior e outro menor, soando juntos) num mesmo trecho musical, cuja indecidibilidade

alude à esquizofrenia do protagonista. Em Taxi Driver, 1975, de Scorcese, Herrmann

engendrou todos os temas a partir de uma célula mínima: uma fórmula de segunda

maior descendente.40

Há muitos outros estratagemas dinâmicos, como alterações no andamento rítmico ou na

volumetria/intensidade dos sons (crescendos e decrescendos), glissandos, trêmulos e

rufos. Os recursos de timbragem (a chamada “paleta sonora”) são extremamente

importantes, pois podem contextualizar uma época, caracterizando a sonoridade dos

instrumentos de um dado momento histórico, além de sugerir estados de humor ou

dramáticos. 41 Recursos técnicos e formais são constantemente reinventados na música

para filme, tais como o seu surgimento inesperado, a sua interrupção abrupta ou

momentânea, o retardamento deliberado do processo de reconhecimento da fonte

sonora, a alteração artificial do timbre por meio de técnicas de manipulação eletrônica

etc. 42

Muitos cineastas se valem de melodias específicas para cada um dos personagens ou

dos seus estados de espírito, chegando a tornar-se a música efetivamente uma

40 Diz-se que era um hábito do compositor frequentar incógnito às pré-estreias de filmes nos quais ele havia trabalhado e, após a exibição, perguntar às pessoas da audiência se haviam gostado da trilha sonora. Diante da resposta recorrente de que estas não se lembravam da música no filme, o compositor se sentia feliz, pois o efeito desejado de dar força à narrativa fílmica tinha sido alcançado. 41 Os sons eletrônicos, por exemplo, quando ainda não eram comuns, puderam evocar a estranheza nos filmes futuristas e de ficção científica. (grifo nosso) 42 Michel Chion aponta na música a capacidade de antecipar conteúdos da narrativa e da imagem, ao dizer que toda vez que ouvimos a introdução instrumental que já fora executada nos créditos iniciais, sentimos que algo importante está para acontecer.

54

“personagem” da história. Funcionavam como tipos de retornos de frases melódicas

para reforçar a resposta emocional. O denominado underscoring, também “efeito circo”

ou efeito mickeymousing, ainda é excessivamente empregado no cinema e ocorre

quando uma música constitui um correspondente sincrônico a um gesto que ganha este

rótulo por remeter aos recursos utilizados nos seus desenhos animados, que tentavam

mimetizar, em termos sonoros, as peripécias das imagens. O cinema clássico também

insistia em espacializar os elementos sonoros, oferecendo-lhes correspondentes na

imagem, para garantir um efeito biunívoco, redundante, entre imagem e som (chamado

de discurso duplo), quando a música não propriamente descreve, mas enfatiza um gesto,

um deslocamento, um olhar, uma réplica. De uso bastante recorrente, existem os

ostinatos (cadências rítmicas pulsantes) que podem provocar ansiedade, a exemplo da

trilha de Jaws (1975), de Steven Spielberg, sempre que o animal se aproxima.

2.3.1 - As ligações iniciais entre a música e o cinema

A lanterna mágica, o teatros de marionetes, a ópera, o ballet, o teatro de feira, o

melodrama, o cabaret já haviam criado formas e modos de integração da música com a

imagem. Ela já acompanhava as imagens projetadas em movimento e os diálogos com

ritmos musicais, acordes ou melodias, tal como a música já conduzia os números de

mágica. Nas peças de Shakespeare também já se encontravam canções. As salas de

teatro, na virada dos séculos XIX para o XX, se converteram em salas de cinema, de

modo que os conjuntos que tocavam anteriormente para o teatro se viram levados a

tocarem basicamente músicas para os filmes. A tendência do cinema francês em limitar

o quanto possível a intervenção musical nos filmes estaria, no começo, ligada aos

modelos do teatro clássico que não deixam lugar para a música nem para canções.

Muito antes do som sincronizado, a música já se integrava, entretanto, às projeções do

cinematógrafo. Aliás, é interessante observar que a música de cinema era tocada ainda

fora da sala e serviam para atrair o público e fazê-lo entrar! As soluções iniciais foram

execuções instrumentais ao longo da exibição. Havia, por exemplo, pianistas e outros

instrumentistas que adaptavam peças eruditas e populares da época e, não raramente,

improvisavam enquanto a projeção estava em curso. Como o cinema, em seu começo,

55

era exibido em vaudevilles, ambientes já naturalmente musicais, cantores e

instrumentistas tocavam enquanto se exibia o filme, buscando estes compatibilizarem

som e imagem. Os músicos tentavam acompanhar o que acontecia na tela de acordo

com o que parecia ser apropriado ao ritmo e à intensidade emocional das imagens

visuais. Há também relatos do uso dos fotoplayers, que eram pianos adaptados, dotados

de ruídos e efeitos especiais diversos.43

A música tocada nas projeções era quase sempre sequencial, ou seja, constituída por

uma sucessão de fragmentos distintos, cada um com um tempo bem caracterizado,

obedecendo a certo sistema de repetições, de cadências que permitiam, mediante pontes,

transições ou rupturas com outra sequência musical, propondo uma tonalidade, um

ritmo, um clima e o ambiente musical imediatamente diferentes. O caráter sequencial

era necessário em função da natureza flutuante e ainda não normalizada do ritmo de

projeção. A forma sequencial nas comédias, por exemplo, era uma soma de episódios

relacionados com uma intriga geral, que implica uma música do mesmo tipo. A

concepção musical levava em conta – a exemplo do “baixo contínuo”, pontos de apoio,

de fios condutores rítmicos para reforçar o jogo de ritmos visuais que se construíam

para os olhos. Esta prática visava a criar um sentimento de continuidade e de

estabilidade que faz com que prestemos atenção consciente à música e que possamos

nos concentrar no que vemos.

Com o processo de reprodução, de distribuição e do aumento dos espaços para

exibições de filmes, novas soluções foram surgindo, como peças orquestrais adaptadas

para as cenas projetadas. Eram formas arbitrárias de sobrepor a música às imagens,

como um sistema de ilustração fácil cujo objetivo era dar maior intensidade às

impressões criadas por cada episódio. O procedimento, em geral, era o diretor fornecer

um guia para os exibidores dos cinemas, com indicações para cada momento do filme,

sugerindo trechos de obras clássicas de acordo com as situações encenadas. Desde 1900,

Thomas Edison passava a publicar algumas “sugestões para música”. S. M. Berg e Max

Winkler chegam a catalogar 300 composições para acompanhar as cenas dos filmes

exibidos na época. Surgem os Cue sheets e os kinothecks. Os Cue sheets eram

distribuídos semanalmente para a estreia de cada novo filme. Esta partitura facilitava o

43 Surgiu, posteriormente, o órgão Wurlitzer, com um grande número de efeitos para certos ruídos da cena.

56

trabalho de fragmentação e ilustração musical para os pianistas e diretores de orquestra.

Nos EUA, esta prática começou nos anos dez (a partir de 1910). Os pioneiros de música

compilada para cinema foram Hugo Riesenfeld, David Mendonza e Erno Rapee. Irving

Talbot elaborou compêndios de fragmentos com durações apropriadas para as cenas.

Ainda subsistiam, contudo, alguns problemas de encadeamento instantâneo de uma cena

a outra. Começaram a surgir os fakebooks para orientarem os músicos quanto à música a

se empregada em cada cena do enredo: J. S. Zamelcnik editou The Sam Fox Moving

Picture Music (1913), Giuseppe Becce lançou o Kinobibliothek (ou Kinothek), em 1919;

e Erno Rapé criou, em 1924, um conhecido fakebook chamado Motion Picture Moods

for organists and pianists direcionado para 52 situações cênicas, tais como eventos da

natureza, combates heróicos, aparições noturnas, cenas românticas, humores e situações

dramáticas, caçada, tema de amor, busca incansável, alegria, felicidade, mistério,

monotonia, cantigas de ninar etc. Por exemplo: para cenas de horror, Opus 55 de Grieg,

para cenas humorísticas, Opus 10 N. 2 de Tchaikovsky, para estados de impaciência,

Opus 102, N.1 de Mendelssohn e por aí adiante. O diretor do cinema assistia a peça

várias vezes e a demarcava sob o repertório do livro. Havia o problema das transições,

apesar das dicas de aceleração e desaceleração para sincronizar-se com as cenas, porque

os maestros criavam cada um as suas e a eficácia variava segundo a habilidade de cada

condutor. Em um manual para pianistas e organistas de cinema publicado em 1920, a

primeira função designada para a música que acompanha os filmes é a de “refletir o

clima da cena no espírito de quem escuta e de despertar mais fácil e intensamente no

espectador as cambiantes emoções da história em imagens”. Os autores completam as

listas de atmosferas (sinistra, alegre, ligeira) com categorias tais como: natureza, temas

relativos ao amor, luz, atmosferas graciosas, elegíacas, solenes, de festa, exóticas,

comédia, velocidade, valsas, iminência de uma tragédia, consequências de uma tragédia,

morte, batalha, tempestade, personagens malvados, jovens, anciões etc. Se fala inclusive

de “música neutra”.44

Estas coleções musicais tiveram uma repercussão direta sobre a estética cinematográfica

ao gerar clichês musicais, relacionando estilos com gêneros cinematográficos. Fizeram

com que o universo cinematográfico fosse inundado de fragmentos de música sinfônica

44 A respeito da prática dos Cue sheets, ainda hoje há discos e CD’s de música pronta para ser inserida nos filmes, como dança medieval, horror, música espacial etc.

57

com características românticas, impressionistas e nacionalistas, de um conjunto de

opções de caráter ilustrativo e figurativo, sem interesse conceitual ou formalista. Pode-

se dizer que a escuta da audiência foi se formando por associações entre situações

dramáticas e respectivas sonoridades musicais. As partituras musicais são às vezes

anexadas a este guia e adaptadas segundo o tamanho e o luxo das salas de cinema. As

orquestras completas eram reservadas às exibições de prestígio ou aos lançamentos de

filmes.

Nos tempos do cinema mudo era corrente que música fosse gravada na filmagem para

ajudar a criar uma atmosfera, a inspirar o ritmo de uma cena, a favorecer a concentração

da equipe e a guiar o gesto e a expressão dos atores. Com a execução musical durante as

filmagens, a interpretação do cinema mudo não se desenvolvia ao ritmo da declamação

das palavras, mas ao ritmo da música. Os gestos dos atores se desenvolviam de uma

forma mais dilatada, parecidas com os da ópera.45 Há também relatos de utilização de

um caminhão com músicos que tocavam durante a filmagem de uma cena de

perseguição. Era inclusive uma responsabilidade do músico que produzisse música

apropriada para acompanhar cenas de perseguição e permitisse ao espectador identificar

quem era o herói e o vilão.

O caráter do cinema mudo repousa sobre a presença contínua de um elemento exterior:

a música. Com sua partitura musical sem interrupção, o cinema mudo é uma espécie de

espetáculo lírico, onde a voz figura pelos gestos. Com a chegada do vitaphone, a música

necessitou de certo tempo para encontrar seu lugar, tendo de renegociar seu lugar entre

os diálogos e ruídos que, desde então, se poderiam escutar realmente. Isto criou novos

problemas e novas respostas. Neste período de transição, adotam-se fórmulas mistas.

Uma delas era a prática da orquestra se revezar com a gravação.

Com o advento do sincronismo sonoro no cinema, os debates teóricos sobre a trilha

sonora também passaram a contrastar conceitualmente os lugares simbólicos de onde a

música provinha: musique de fosse (do fosso da orquestra) e musique d’écran (dos alto-

falantes por detrás da tela). Se dá, neste caso, um esforço para multiplicar e explorar

45 Alice Guy, considerada a primeira cineasta da história, realizou entre 1900 e 1907 as chamadas “fono-cenas”. Seguem o estilo da ópera, por seus roteiros e ingredientes. Serão muito utilizadas no filme mudo, orientando-se rumo ao uso de cenários históricos e exóticos, sensualidade, paixão, trama e detalhes pitorescos.

58

situações que dão lugar a uma música de cena, de tela (aquela cuja fonte sonora pode

ser vista). Ocorre uma tentativa de síntese entre o dramatismo musical do cinema mudo

e o naturalismo do cinema sonoro. A coabitação sobre a pista sonora de ruídos, diálogos

e música obrigará a remodelar o emprego desta última.

O cinema sonoro obrigou a se redefinir o lugar da música no universo realista

audiovisual e sua nova constituição. Já nos anos trinta e quarenta, as técnicas, as

práticas, as estéticas e os gêneros podem ser muito diferentes, inclusive dentro de um

mesmo país. Na orquestração dos os filmes americanos há mais abundância de ritmos

fluidos, líricos, recitativos entrelaçados aos diálogos, no afã de fundir elementos da

música, ruídos e palavras onde se relacionem harmoniosamente. A música no cinema

americano foi posta sob um modelo estável, configurada sob uma fórmula unificada,

educada, suave e lírica, com entradas e saídas da música organizadas, para não se

romper a impressão de continuidade. A música se torna presente em termos de

minutagem e em segundo plano de atenção, como uma ponte entre palavras em ritmo

recitativo e ações físicas, sublinhando-as discretamente, como para a subjetividade dos

personagens (interior) e paisagens (exterior).

Com as convenções inicialmente assentadas, passa a ocorrer uma subordinação da

escrita da partitura em relação à narração e à duração das sequências e uma estreita

sincronização da partitura em relação à ação de certas cenas. No que tange aos aspectos

operacionais destes condicionamentos da música nos filmes, o compositor recebe

geralmente as referências a respeito de como e quando acentuar musicalmente as cenas.

Há inúmeros casos em que a composição musical é afetada pela irregularidade métrica

de uma cena. O compositor deve então fazer desta irregularidade um gesto musical

natural e, ao mesmo tempo, singular. Para tanto, é preciso observar o pulso e não o

compasso musical, para que a música seja percebida de forma fluida. Correta

sincronização fez com estes gestos rítmicos se tornassem comuns nas trilhas sonoras.

Muitas vezes os compositores se valem de um recurso, o “compasso de amálgama”, de

andamento e tempo irregulares, com a finalidade de “forçar” sutilmente as frases

melódicas ou movimentos harmônicos para que não fiquem truncados com as mudanças

nas cenas (sync points: pontos de interesse dramático) sem, contudo, afetar os limites de

tolerância do espectador. Isto porque, quando se realiza uma mudança sobre um ritmo

que é constante, produzem-se efeitos de atração inevitáveis, provocando a busca de um

59

acento rítmico. É comum também o emprego da anacruse (iniciar uma frase melódica

antes do primeiro tempo do compasso).46

2.3.2 - A concepção musical cinematográfica

No século XIX, as já mencionadas pantomimas luminosas de Émile Reynaud eram

acompanhadas por uma música original para piano, composta por Gaston Paulin. Desde

então, todas as projeções de filmes passaram também a ser acompanhadas, geralmente,

por uma improvisação que um pianista fazia junto ao palco. O princípio comercial que

já orientava a produção cinematográfica também adotou a utilização, por seu caráter

atrativo, de músicas conhecidas, canções da moda, melodias populares, valsas de

repertório, músicas de gênero etc. Poucos longa-metragens do período do cinema mudo

não incluíam cenas de dança popular, de baile, de ballet clássico, de festa campestre, de

café, de concerto, de revista, music-hall, ópera, de número de circo, de cerimônia

religiosa, de canção ou regozijo popular em torno de um instrumento. No cinema mudo,

as músicas originais não chegavam a 1% da produção global de filmes.

A primeira trilha musical encomendada para um filme, na história do cinema, foi à

Camille Saint-Saens, compositor clássico, consagrado compositor de óperas e músicas

orquestrais. A composição de um nome reconhecido no meio da música erudita daria

uma certa dignidade de Film d’Art ao cinema, ainda considerado um espetáculo

popularesco, naquela época. O filme era L’assassinat Du duc de Guise, de 1908. A

música era muito pouco comprometida, porém, com a sua dinâmica fílmica. Por isto, a

primeira composição considerada como inaugural na arte estrita da trilha musical foi de

Ildebrando Pizetti, para o filme de Giovane Pastroni, Cabíria, em 1913. Esta

composição, chamada Sinfonia do Fogo, para grande orquestra, passou a servir como

modelo para muitos filmes que vieram em seguida. Mesmo a despeito dos fragmentos 46 Os métodos de sincronismo entre música e imagens mais empregados na história do cinema foram o Clock Sync (técnica simples que emprega o uso de cronômetros), o Punch & Streamer, sistema baseado em marcas visuais na película onde o diretor da orquestra seguia enquanto se gravava a música e o Click Track (a sincronização pela claquete, que fazia coincidir os pontos de sincronização com os pulsos da claquete). Atualmente utilizam-se softwares como o Digital Performer, além de nomenclaturas como MX in e MX out: (MX) diferencia a música das diferentes pistas sonoras, tais como o diálogo (DX) e os efeitos acústicos (FX).

60

de Gluck recortados por Pizetti, esta trilha musical possui uma grande vitalidade. Em

1915, Pietro Mascagni compôs a trilha musical para Rapsodia Satânica, de Nino

Oxilia.

O uso de fragmentos musicais no cinema foi aceito como uma necessidade atávica,

neste novo meio de produção ficcional. Devido a sua complexidade, no entanto, os

diretores ainda se debatiam com as dificuldades e a carência de métodos conceituais e

expressivos para se pautarem no fazer cinematográfico. Em Intolerância (1915), W.

Griffith empregou músicas previamente compostas para a sua narrativa, mas o efeito

não se aproximou, ao menos em todos os momentos do filme, da atmosfera desejada.

Imagens amenas de animais domésticos conviviam, por exemplo, com movimentos

sonoros orquestrais densos e expressionistas. Em outra cena, uma composição do

período romântico sonorizava anacronicamente tomadas de época que figuravam os

primórdios do cristianismo, em Jerusalém. Como não havia sincronismo entre som e

imagem, ainda não era possível fazer uma edição da trilha e não havia um modo de se

alterar a condução da música que ilustrava as cenas. Mais tarde, ciente da importância

da integração entre música, narrativa e imagem, Griffith passou a supervisionar de perto

a partitura original, quando a encomendou para Broken Blossoms, em 1919. No filme

O gabinete do Dr. Caligari, também do mesmo ano e que hoje é uma película

emblemática do movimento chamado Expressionismo Alemão, o diretor Robert Wiene

encomendou uma partitura original à Giuseppe Becce, mas esta não passava de um

pastiche de músicas românticas conhecidas.

Nos anos vinte, muitos compositores renomados são cooptados pelo cinema. Darius

Milhaud cria a trilha musical para o filme A desumana, de Marcel L’Herbier (1924).

Em 1924, Erik Satie fornece uma música original para Entreact, de René Clair, e

Florent Schmitt compõe para o filme Salammbo, de Pierre Marodon. Arthur Honegger,

em 1927, assina a música de Napoleão, de Abel Gance. O compositor Paul Hindemith

colaborou no filme experimental de Hans Richter, 1928: Vormittagspuk. Alexandre

Nevsky, de Eisenstein, recebe a música de Prokofiev. O diretor instruiu o compositor,

ao dizer que era preciso que a imagem e a música formassem um todo, captando um

elemento comum ao visual e ao sonoro, que seria o movimento ou a vibração. Em

muitos filmes mudos de Lang, Murnau, Walsh e Eisenstein se incorpora uma “música

original” que só é executada em público em circunstâncias privilegiadas. Este era um

61

fator sentido pelos compositores: unicamente as grandes salas podiam ter uma orquestra

suficientemente importante para executar a música original para um filme. Nas cidades

pequenas, o filme projetar-se-ia com uma adaptação qualquer e a partitura

desapareceria.

Quando o cinema se tornou sonoro e falado, alguns teóricos concordam que este chegou

mesmo a abusar da música de fundo, mas esta reforça a posição privilegiada que sempre

teve no cinema. Ela continuará a fazer parte da história, indissociável do espetáculo,

igualmente se liberta e se desenvolve amplamente. Para Bálázs, o filme falado rejeitou,

entretanto, a antiga música de programa, herdeira do teatro musical e que ainda persistia

no cinema mudo. Passou-se a preocupar, por conseguinte, com uma concepção

específica para a música de filme e, com isto, condicionou-se também a experiência de

escuta da audiência. O autor da trilha original passa a ser considerado, com justiça, um

dos autores do filme, o com o diretor e o roteirista.47 Fato é que poucos compositores

estritamente musicais deram obras ao cinema, mas muitos autores de música de filme

sentiriam orgulho nas suas composições narrativas.

O período do cinema sonoro coincide com a perseguição anti-semita na Europa durante

os anos entre-Guerras e com as dificuldades econômicas logo após a Segunda Guerra

Mundial, que fez muitos músicos europeus com esmerada formação clássica e

experiência com a ópera migrarem para os Estados Unidos e passarem a contribuir com

o vocabulário musical para filmes. Por seus recursos harmônicos e melódicos, o

romantismo musical europeu do século XIX ainda era mais familiar para os

espectadores desta época. É um consenso atribuir às orquestrações que perduraram ao

longo das primeiras décadas o fato de essas se inspirarem no repertório erudito dos

compositores românticos. O compositor húngaro Miklos Rosza, doutor em música e

apaixonado por musicologia, foi pioneiro no estudo de contextos históricos para

incorporar instrumentos, temas e recursos de época para ambientar o filme. Isto pode ser

atestado em seus trabalhos, como El Cid, Ben-Hur e Quo Vadis. Por experimentação

empírica, contudo, cenas sem música às vezes surtiam efeitos inesperados para o

diretor. O contrário também podia acontecer. Um fato desta ordem e interessante na

47 O perfil do compositor, nas produções cinematográficas contemporâneas, também se alargou e atualmente temos exemplos de Dj’s, como Amon Tobin, que passam a assinar trilhas musicais, como em Taxidermia (Hungria, 2006, György Palfi) e de músicos engajados com a composição de trilhas para games, vídeos, instalações multimídia e mesmo vinhetas ou peças publicitárias.

62

história do cinema se passou justamente com Rosza, em The Lost weekend (1945). O

diretor não queria nenhuma música na cena em que o protagonista, numa crise de

alucinação alcoólica via um morcego comer a cabeça de um rato em um buraco da

parede, reagindo com horror àquela imagem. Na estreia do filme, o efeito dramático

esperado para a cena não ocorreu e deu-se justamente o contrário do previsto pelo

diretor, pois a audiência ria às gargalhadas! O compositor foi procurado às pressas para

criar um trecho musical para esta sequência, de modo que o filme fosse novamente

exibido.

No filme Casablanca, de 1941, marca a história da concepção musical cinematográfica,

pois o tempo, nesta história, é conduzido com maestria: a música se encarrega

completamente da narração, desde os créditos iniciais, a música situa o marco

geográfico, depois o marco histórico, depois a ambientação particular. Toda a partitura

do filme é um mosaico de ecos e citações, reminiscências.

Ao final dos anos cinquenta e início dos anos sessenta, se assiste à moda do jazz e a

uma espécie de triunfo da melodia, que já não está cuidadosamente ancorada em um

motivo sóbrio, mas se desprende para ser ouvida e retida na memória. A música que se

escutava no filme tinha uma relação com o repertório musical discográfico que os

personagens consumiam e dançavam. Para alguns cinéfilos e críticos, isso era uma

heresia absoluta. De fato, não se trata de uma renovação do cinema pelo jazz, pelo rock

ou pela canção pop, mas antes uma renovação da própria sonoridade, dos instrumentos,

do espaço musical: a guitarra elétrica, a vocalização, a harmônica, o assovio, efeitos

sonoros criados por sintetizadores (gimmicks) etc. O compositor Lalo Schifrin é quem

mostra, com especial desenvolvtura neste contexto, a importância expressiva e estética

que se atribuirá ao timbre, a novas sonoridades nos filmes.

Um caso singular e bastante comentado na história do emprego de música preexistente

na trilha sonora cinematográfica foi o que se deu com 2001: A Space Odyssey (1969),

para a qual Stanley Kubrick solicitou a seu antigo colaborador Alex North, que

compusesse a trilha sonora para a película. Como é comum inserir-se alguma música no

copião (denominada temporary tracks ou música provisional, provisória, geralmente

tirada da fonoteca do diretor ou do montador) para ajudar no trabalho da montagem e

edição, antes de receber a trilha original, o diretor acabou por optar por músicas do

63

repertório clássico, neoclássico e modernista, compostas por Johann Strauss (Danúbio

Azul), Richard Strauss (Also Sprach Zaratustra) e Gyorgy Ligeti (Lux Aeterna) que

figuravam provisoriamente, para empregá-las, na abertura, numa cena em que a nave

flutua no espaço e no aparecimento do enigmático monólito encontrado pelos

hominídeos, respectivamente.48 Apesar da contundente utilização musical, há muitas

passagens de ação que não têm música ou esta apenas intervém em sequências sem

palavras, a fim de liberar uma afetividade retida nas palavras, o que permite uma

presença obtusa e enigmática do filme. Alex North, contrariado, acabou por aproveitar a

sua composição em outro filme.

A partir de 1975, com as tecnologias, se abrem novas possibilidades para a música e, ao

mesmo tempo, para a tendência que se passou a denominar “retrô”, atestada pelo

retorno do cinema épico e pela recriação de um cinema de emoções coletivas, que busca

um recomeço diante dos desenganos do cinema experimental, underground, do “cinema

novo” dos anos sessenta e setenta. Denominado como neo-sinfonismo, a grande música

sinfônica ressurge nos filmes americanos e nota-se um refluxo de modas musicais dos

anos vinte, trinta e cinquenta. Ocorrem, neste contexto, misturas de estilos sinfônicos

clássicos com efeitos eletrônicos (inspirados nas pontuações sonoras de videojogos),

com temas musicais ostensivos, reconhecíveis, personalizando cada personagem

(leitmotiv). Tais procedimentos são também sintomáticos de uma necessidade de se

criar um tipo de espetáculo cinematográfico apto para convocar o público infanto-

juvenil, que estava se convertendo no principal cliente das salas de exibição. Afinal, era

preciso atrair a mesma audiência dos concertos de rock para as salas de cinema. Para

tanto, seria estratégico criar uma nova ritualização da sessão de cinema.

Surgem, nesta época, os gêneros “ópera-rock” (Jesus Christ Superstar, de 1970, por

Andrew Lloyd Webber; Tommy, de 1975, por Ken Russell, Godspell, de 1973, por

David Greene; e Hair, de 1979, por Milos Forman, são alguns exemplos conhecidos) e

os filmes ligados à discoteca. A relação música/palavra/imagem no filme de disco music

se caracteriza por uma espécie de independência rítmica da música e pela percepção da

música como unidade à parte, que soa do mesmo modo como numa discoteca. A música

geralmente predomina sobre a imagem e solicita a adesão do público. Muitos filmes

48 A título de outro exemplo, em certos momentos do seu filme Stalker (1979), Tarkovsky inseriu trechos incidentais de peças do repertório da música clássica, como a Nona de Beethoven e o Bolero de Ravel.

64

americanos das últimas décadas passaram a adotar como música – em certas produções,

de um modo surpreendente - uma seleção de títulos populares de hip hop ou rock.

A escuta da audiência foi se formando, num processo gradual, por associações

condicionadas entre situações dramáticas e respectivas sonoridades musicais. A cultura

musical dos espectadores e a sua familiaridade com um sistema musical permitem o

acesso aos efeitos de sentido dependentes da música tonal, que dá acesso à percepção de

equilíbrios (acordes perfeitos) que acompanham, por exemplo, momentos de felicidade,

ou de tensões (acordes dissonantes) frequentes em certos momentos de incerteza ou

suspense numa narrativa.

Nos anos cinquenta sente-se uma abertura a temas mais audaciosos, sociais, sexuais,

psicológicos ou psicoanalíticos e sobre a juventude, assuntos para os quais se tenta

recobrir com uma música que evoque este universo cultural, com sentimentos mais

complexos. Um novo planejamento do papel da música no cinema é fator de renovação

de concepções e novas composições, mais dissonantes, atonais, eletroacústicas passam a

se incorporar às tramas cinematográficas. A pesar de conservarem o sistema do

leitmotiv e a utilização da música como inflexão, ponte, indicador psicológico, os novos

diretores e compositores musicais recorrem a uma linguagem mais complexa, flutuante,

com sonoridades de jazz, em relação a estados mais atormentados do personagem.

Após os anos cinquenta, o estilo de composição para filmes, também empurrado pelas

tendências televisivas, sofre muitas mudanças. No processo anterior de popularização

do cinema, situações e estados emocionais vividos pelos personagens deveriam ser

facilmente assimilados. Não havia, por conseguinte, muito foco para atender ou atrair

uma audiência culta ou intelectualizada. Filmes com pontos de vista filosóficos ou

políticos eram minoria e as ideias dos compositores modernos ainda não eram

incorporadas ao cinema hollywoodiano. Para os compositores e profissionais ligados à

sonoplastia, a televisão abriu as comportas para novas experimentações estéticas e

funcionais de sonorização e música nos programas televisivos. Daí em diante, com o

mercado profissional gerado pela televisão, começaram a sobressair novos compositores

americanos neste ramo até então dominado por músicos europeus. Aos poucos, se

descobriu que a música, buscando vibrações perdidas entre as notas, para além da

melodia, encontrou outras regiões menos comuns. Um exemplo seria a música atonal,

65

que não era aceita pela audiência em concertos, podia ser muito bem aceita em filmes.

O dodecafonismo, por exemplo, de complexa exigência para a escuta, foi extraindo

valores dramáticos e expressivos de suas dissonâncias e polirritmias, passando

gradualmente a ser, tais como o minimalismo e a música eletroacústica, incorporado no

cinema.49 Noel Burch (1992) explica, a este respeito, que a música tonal, com suas

formas pré-estabelecidas, com polaridades harmônicas, pode representar uma

continuidade autônoma, paralela à imagem, se executada entre ruídos e diálogos. Já a

música dodecafônica, com sua liberdade rítmica, utilizando todos os timbres que os

clássicos consideram vulgares, parece mais apropriada à interação orgânica com os

elementos sonoros reais e com a imagem filmada. Da mesma maneira, o convívio da

audiência com a televisão e seus respectivos hábitos de escuta musical, a partir dos anos

cinquenta, fomentaram a inclusão eventual da folksong, do jazz moderno e do rock nos

filmes.

2.4 - As sonoridades reinventaram o silêncio no cinema?

Não se pode recusar o fato de que há circunstâncias num filme ficcional em que a

música, os sons, ruídos ou mesmo os diálogos podem ser abolidos. De um modo geral, o

silêncio não é apenas a ausência do som. Sabemos que sem o silêncio não poderíamos

sequer nos comunicar, pois apesar de ele ser uma forma ilocutória no discurso, opera

justamente como um elemento de elipse no contraponto da conversação verbal. São as

potências mudas de antes ou depois da fala. O silêncio é, em igual medida, um elemento

retoricamente decisivo em diversas situações nas quais ele adquire múltiplos

significados. Ademais, recordemo-nos de tantas coisas que dizemos sem falar, que

mostramos sem exibir. Parece que o homem, no entanto, teme a ausência de som, como

49 O dodecafonismo é um sistema de composição que utilizada sem a hierarquia do sistema tonal (que pressupõe o “magnetismo” de uma nota fundamental – a tônica – em torno da qual se articulam os intervalos de terça e quinta, seguidos dos demais intervalos. Ao utilizar igualmente das doze notas da escala (todos os sete tons diatônicos mais os cinco cromáticos: sustenidos e bemóis), o dodecafonismo gera um desarme constante de nossas expectativas de escuta, condicionados que estamos ao sistema tonal. Através do sistema tonal, certas regras de probabilidade condicionam a atenção do ouvinte pela expectativa de determinadas resoluções de desenvolvimentos sobre a tônica, o centro gravitacional da música tonal. A situação de suspense é típica do tonalismo, obrigado a romper o tédio da probabilidade. É um jogo de inibições e de reações emotivas que gera um o círculo estímulo - crise - tendência que surge - satisfação sobrevinda - restabelecimento da ordem.

66

se o silêncio fosse uma escuridão auditiva. Cortando o silêncio com os sons, ele se sente

livre.

Na história do cinema, antes do advento da trilha sonora sincronizada, existia um

universo sonoro nas salas de exibição. Houve um longo período, no qual os filmes

sonoros (falados e com música) parecem ter corrido do terror do silêncio. Diretores

acreditavam ter a música uma atribuição de dar ao espectador a sensação de uma

duração efetivamente vivida e, caso seja a sua intenção, libertá-lo do “peso do silêncio”.

A chegada do som também trouxe a chegada do silêncio, tanto como um recurso de

expressão quanto nos modos diferentes de apreensão da audiência, cuja atenção aos

sons fazia com que os espectadores ficassem absortos e silenciosos diante da tela. É por

esta razão que Bálász (1978) afirmou que o cinema falado e musical inventaram o

silêncio, que silenciaram muitas coisas. Ele foi um dos primeiros autores a identificar

um papel importante do silêncio na expressão estética dos filmes sonoros, ao dizer que o

uso criterioso do silêncio pode atuar, em certos momentos, como um poderoso

contraponto expressivo. Períodos de silêncio geram, de fato, um efeito de suspensão ou

podem mesmo contribuir para o próprio realce dos sons. O silêncio, como ele dizia, tem

o poder de amplificar os ínfimos gestos. Além do mais, o silêncio cinematográfico

também poderia sugerir ambiguidade em uma história ou de um personagem.

Cinema agora busca dominar a arte do silêncio. Não existem dois silêncios iguais.

Podem-se comparar dois silêncios, tanto quanto dois pintores podem comparar dois

pretos e dois brancos. No cinema se faz distinção entre diferentes “cores” do silêncio:

silêncio na pista de som, silêncio campestre, silêncio produzido no estúdio etc. Cria-se o

silêncio num momento, no estúdio, quando o engenheiro de som pede alguns minutos

de silêncio. Ele grava este silêncio, vai usá-lo para alguma coisa, ainda não sabe para

quê. Esse silêncio absoluto não existe na natureza e só pode ser obtido num estúdio

hermeticamente fechado. No elogiado filme Sunrise, de Murnau, lançado em 1927,

revelava-se um silêncio que era, na realidade, povoado de ruídos, de mil vibrações que

emanavam da imagem.

Alberto Cavalcanti (apud PELIZZARI e VALENTINETTI, 1995) afirmava, por seu

turno, que todo filme necessitava de certos “momentos de respiração”, com necessárias

interrupções do som. Robert Bresson, que sempre buscou construir seu filme sobre o

67

branco, o silêncio e a imobilidade, passou a adotar uma trilha sonora basicamente

composta de ruídos e silêncios. Em suas notas, ele relembrava a si mesmo sobre a

necessidade de se encontrar, em seus filmes, um parentesco entre imagem, som e

silêncio, buscando a certeza de ter esgotado tudo o que ele conseguia comunicar antes

pela imobilidade e pelo silêncio. Só então o cineasta experimentava a inclusão do

movimento e do som. Em suas próprias palavras: “Foi somente há pouco e pouco que

eu suprimi a música e utilizei o silêncio como elemento de composição e como meio de

transmitir emoção.” (BRESSON, 2008, p. 106). Bresson preferia as táticas de lentidão e

de silêncio às táticas de velocidade e de ruído. Há, no entanto, dois tipos de silêncios

por ele empregados num filme: o silêncio absoluto e o silêncio obtido pelo “pianíssimo

dos ruídos”. (BRESSON, 2008, p. 42) 50 O diretor ainda cita outro modo de explorar o

silêncio, por meio do que ele chamou de “silêncio musical”, alcançado por um efeito de

ressonância: uma última sílaba ou o último ruído perduram como uma nota musical

sustentada. O diretor afirmava que o silêncio tem o poder de amplificar os ínfimos

gestos e dizia sempre optar por silenciar a música em seus filmes quando o foco

estivesse na ação ou no suspense. Bresson menciona uma frase emblemática de John

Milton (1608-1674) que, em Paraíso Perdido, livro IV, proclamou: “O silêncio foi

agraciado”. (apud BRESSON, 2008, p. 49) De fato, o cinema moderno resiste ao ato de

fala e impõe, quando nos apresenta o solilóquio silencioso no qual um rosto pode se

expressar com as gradações mais sutis de significado sem, no entanto, parecer artificial.

No meio de uma conversação há sempre um jogo de traços mudos. Somos então levados

a perceber o solilóquio silencioso e sentir a diferença que existe entre este solilóquio e a

conversação audível.

A força expressiva do silêncio passou a ser explorada com maior recorrência a partir dos

anos sessenta, com a implementação do som magnético e da tecnologia Hi-Fi. O

surgimento destas técnicas incrementou a qualidade sonora dos filmes, uma vez que

certas faixas de freqüência puderam ser realçadas e gerar uma nova dinâmica acústica,

de contrastes sutis entre intensidades e do amortecimento do ruído de fundo.

Redescobre-se uma realidade diferente para o silêncio: um novo silêncio que envolve

50 Em Vivre sa vie (1962), de Jean-Luc Godard, o silêncio torna-se um instrumento de fragmentação entre as partes da sua história. Alfred Hitchcok preferia substituir a linguagem verbal por outros sons, para suscitar valores contraditórios para o silêncio. Michelangelo Antonioni, em Blow Up (1966, Reino-Unido/Itália), desenvolveu um estilo na estética do silêncio: o silêncio fotográfico.

68

palavras e ruídos isolados, dando qualidades singulares a algumas cenas. No início do

filme West Side Story (EUA, Robert Wise, 1961), o ruído ínfimo dos dedos estalados

pelo bailarino produz, na primeira cena, um efeito único, porque enfatiza o silêncio

ameaçador que paira entre as duas gangues rivais. Ingmar Bergman, no filme O silêncio

(1963), utiliza uma língua desconhecida que permite fazer ainda mais sensível o ritmo e

a sonoridade da palavra. Igualmente, os gritos das ruas também soam como timbres e

cores.51 Esta observância em relação ao silêncio propicia sutilezas nas modulações de

atmosfera, de ritmo e de humor dos personagens, bem como das mudanças do tempo

narrativo. Outro momento de inovação do papel do silêncio no cinema se deu com Era

uma vez no Oeste, de Sergio Leoni (1968). Contando com a célebre parceria entre o

sonoplasta Eros Bacciucchi e o compositor Enio Morricone, nos quinze minutos do

início do filme, nota-se como os sons de grilos e insetos (produzidos artificialmente) se

estancam e provocam uma suspensão das sensações em curso, redimensionando o

silêncio repentino compartilhado entre personagens e espectadores. Outro exemplo

notório é 2001: a Space Odissey (1969), Stanley Kubrick usa frequentemente uma

ambiência sonora muito rarefeita, que sublinha o silêncio entre os personagens e, às

vezes, ele arrisca um silêncio absoluto, por exemplo, quando o computador Hal

telecomanda o assassinato de Frank Poole. Esses momentos de silêncio, no caso do

filme de Kubrick, podem ser interpretados, de acordo com Michel Chion (1997), como

a tradução de outro silêncio: o pensamento. Pensamentos não são ouvidos. Para o autor,

esta obra é também um filme sobre o poder de dissimulação e da mentira: todos os

personagens dissimulam coisas uns dos outros e a linguagem no filme incorpora a

dissimulação em paralelo com o silêncio de pensamentos. O próprio tempo parece ser o

personagem principal, transcorrendo silenciosamente, sem explicação.

2.5 - As aventuras sonoras de cineastas experimentalistas

A contracorrente do chamado “grande cinema” logo se mostrou, ainda nos anos 30, com

irreverentes respostas modernistas. Num volver de olhos para os últimos anos do

aparecimento do cinema sonoro, relembramos que o cinema impressionista francês –

51

The silence (1963, Suécia): Bergman cria um clima de silêncio verbal ou de falas vagas e monossilábicas, pontuadas por sons naturais, o que gera um ritmo particular para a imagem e a narrativa.

69

também chamado de surrealista ou vanguardista - experimentava a partir da ideia de

uma “música da imagem” com a morfologia e a estrutura musicais para priorizar no

cinema antes o ritmo e a plasticidade, em vez de narrativas. Era um cinema que,

inspirado em peças musicais clássicas já compostas, criava uma realidade que só teria

existência cinematográfica. Para esta modalidade fílmica, não se priorizavam situações

dramáticas, mas sentimentos, estados de espírito, ambientes, aspirações, nostalgias,

associações de ideias, sugestões criadas por meio de enquadramentos e da montagem,

pelo ritmo que esta gerava. A poética impressionista não resistiu à onda do cinema

narrativo e falado.

O cinema moderno implica um novo uso do falado, do sonoro e do musical. O som

deixou de ser um componente da imagem visual, como o primeiro estágio, tornando-se

imagem, integralmente. Walter Ruttman dirige, em 1927, Berlin: sinfonia de uma

grande cidade (1927), filme para o qual Edmund Meisel compôs a trilha sonora

jazzística, que se perdeu. Ele trabalhou na montagem com o diretor, para garantir o

efeito rítmico entre imagens e a música no filme. Em 1930, Ruttman radicalizou e

produziu Wochende, um filme constituído apenas de uma trilha sonora aplicada a uma

película virgem, revelada sem exposição. A obra de Ruttman fora concebida justamente

para audição em sala escura, sob as condições psicológicas do ambiente

cinematográfico. Wochende é uma espécie de “filme para o ouvido”, que transpõe

concepções formais musicais sob um método de montagem que se efetua segundo uma

lógica rítmica. A trilha é composta por fragmentos de sons gravados, com uma duração

muito curta, mais para evocar diferentes universos sonoros nas cenas urbanas. Neste

trabalho de Ruttman se nota um gérmen dos futuros desenvolvimentos da música

concreta. A despeito do pioneirismo do compositor Pierre Schaeffer em suas

experimentações nos anos quarenta e que fizeram surgir a musique concrète (música

composta de colagens de sons previamente captados da realidade), as explorações

antecipatórias da composição a partir deste método de bricolagem sonora vieram de

compositores ligados ao cinema: Ruttman, Dziga Vertov e Rouben Mamoulian,

especialmente.

Em seu Manifesto Kinoc (1922), Vertov enunciou que não serão os próprios

movimentos que interessam ao olho do kinoc (como ele mesmo se nomeava, para se

diferenciar dos cineastas convencionais), e sim os movimentos entre as imagens, as

70

passagens de um movimento para outro, as suas transições. 52 Tudo, para o cineasta

soviético, está nos intervalos, nas “interimagens”. Ele cunhou a conhecida expressão

“cine-olho”, por meio da qual reafirma que a câmera não era apenas um olho

exteriorizado, mas que deve ultrapassar o olho em suas funções perceptivas. O

cineasta-kinoc captura o ritmo, a natureza heterogênea dos movimentos.

Para Vertov, o olho e o ouvido partilham ambos das mesmas funções, tanto que ele

acolhe o cinema sonoro desde que este não se torne uma representação meramente

encenada. Sua paixão pela montagem também se estendeu às sonoridades, ao que ele

chamava de “montagem da vida audível”. Dziga Vertov foi, de fato, o primeiro artista a

experimentar cortar e colar trechos de notas estenográficas e de gravações de

gramofones, registrando ruídos tanto naturais quanto maquínicos. E, tal como ele criou

o conceito de “cine-olho”, expandiu esta concepção ao termo “rádio-olho”, que seria o

cine-olho ampliado pelo audível e pela tecnologia radiofônica da época. Se o cine-olho

é a montagem do “eu vejo”, o rádio-ouvido é a montagem do “eu ouço”. O cineasta

deve então concentrar as virtudes do kinoc e do radiok. A ideia de Vertov almeja que o

“ouvido mecânico” (o microfone) seja um aparelho “que não descreva, mas que

inscreva, que fotografe os sons”. (VERTOV, 260)

Em A sexta parte do mundo (1926), os textos já são substituídos por uma expressão

“rádio-tema”, sob a forma de contraponto. O décimo primeiro ano (1928) foi construído

como filme visível e audível, ou seja, um filme montado para ser visto e também

ouvido. Vale também recordar o exemplo Entusiasmo ou Sinfonia dos Donbas, filme de

1930, cujas cenas poderiam ser dispostas de modo panfletário, mas tornaram-se

inusitadamente "musicais".53 Os sons captados não soam como trilha sonora ou

sonoplastia: são o "interior" da cena, isto é, não atuam como complemento dramático,

mas como um elemento imprescindível na composição total. Os intervalos são

articulados como forma de obter uma canção visual, a arte do movimento pela qual a

música gerada pela montagem rítmica de ruídos industriais e a sensação "teatral" dos

52 Variação do Manifesto NÓS (publicado na Revista Kinophot de 1922, primeiro programa publicado na imprensa pelo grupo dos documentaristas-kinocs, fundado por DzigaVertov, em 1919). 53 As cenas são montadas como um imenso "estado", uma situação de caos e miséria, a princípio, irreversível. Depois, há mudança nas vibrações do filme. O estado de antes, tão pesadamente composto, começa a se dissolver. Neste filme de Vertov, o trabalho comunitário é enaltecido como forma de superação.

71

movimentos corpóreos se amalgamam. Chaplin admirou abertamente o trabalho de

Vertov para o som desta película. Com The man with a camera, finalizado em 1929,

Dziga Vertov filmou uma homenagem ao cinema que, em breve, seria chamado de

“mudo”. Ele traçou, no entanto, as linhas daquilo que viria a ser a futura música de

filme, depois que a indústria soviética passou a dominar as técnicas de gravação do

som. Sob a ideia metacinematográfica do “filme dentro do filme”, quando se inicia a

projeção diante do público, no fosso da orquestra vários instrumentistas preparam-se

para tocar sob a direção de um maestro. Enquanto a projeção se põe em movimento, a

orquestra começa. A trilha sonora que Vertov sonhara nunca foi gravada, pois seu filme

não despertou o entusiasmo do Partido. Atualmente, graças ao MoMa, o Museu de Arte

Moderna de Nova York, podemos ver o filme sonorizado por músicos contemporâneos

segundo as indicações deixadas por ele.54

Jean Epstein e René Clair, Abel Gance, apesar das diferenças poéticas em relação a

Vertov, também foram “sinfonistas da imagem” e apoderaram-se igualmente do som

para transmutá-lo e experimentar seus modos de integração com a imagem. Ou seja,

buscavam uma continuidade rítmica de movimento dos planos da imagem parecida ou

próxima com os fluxos e tempos da música. Gance, por exemplo, chegou a tratar os

planos montados segundo as durações da própria notação musical (semibreve, mínima,

semínima, colcheia, semicolcheia, fusa e semifusa)

Os cineastas modernos, em que pese a singularidade poética de cada um deles, estão de

acordo que, no cinema, quase tudo é questão de ritmo. E, no mundo moderno, o ritmo é

o “rei”. O ruído rítmico se instaurou como expressão do mundo moderno e toma uma

importância fascinante nos diferentes gêneros do nascente cinema sonoro. Com o

sistema de gravação óptica (que sucedeu ao Vitaphone), surgiu um campo de

experimentação e expressão para mostrar, contar e cantar a vida moderna. Foram

realizados “poemas sinfônicos concretos” nos quais se apresentava a “melodia do

mundo moderno”, ou seja, uma melodia fabricada pela montagem sonora. Pioneiros de

da que viria a ser chamada de “música concreta” (como se mencionou acima) se

distanciaram do estilo clássico de música de acompanhamento e trabalharam sobre o

54 Em 1995, recebeu a primeira trilha sonora, composta e conduzida pela Alloy Orchestra, seguindo as instruções escritas por Dziga Vertov. Desde então, o filme já mereceu, até o ano de 2011, 16 novas trilhas, por diversos compositores.

72

ruído. No filme La nuit à nous, 1930, de Carl Frölich e Henry Roussel, já surgem

sequências de montagens de ruídos de fábrica e carros. Rouben Mamoulian, no seu

genuíno musical Love me tonight, de 1932, construiu uma abertura que trouxe uma

espécie de “sinfonia de ruídos”, mecânica e urbana, por meio da montagem de sons

ambientes, ao transformar os sons do despertar de Paris (as batidas de uma marreta, o

ronco de um mendigo, uma vassoura, um tapete, martelos de sapateiros, o choro de um

bebê), tudo entre numa polirritmia original, um prelúdio pioneiro de musique concrète,

explorada diversas vezes mais tarde (Mamoulian havia experimentado tal composição

de sons naturais numa peça de teatro, Porgy, de 1927). Em Shall we dance (1937) de

Mark Sandrich, fragmentos de ruídos ritmados se incrustam, como percussões, entre as

estrofes de uma canção de Gershwin.55 Em Allô Berlin, ici Paris, 1930, realizado por

Julien Duvivier a montagem de imagem e som se encadeiam, no plano visual, com uma

série de planos muito breves de timbres de telefone. Estes timbres, ao serem “afinados”,

por processos de velocidades de rotação da execução, desenham uma melodia. Eram

experimentações nas quais as imagens sonorizadas foram tratadas como notas musicais:

o som concreto (captado e colado) se fundia ao abstrato (notas musicais) criando um

jogo de alturas tonais.

O filme L'Atalante (França, 1934), do diretor Jean Vigo, também demonstra o quanto a

técnica de captação, de edição, de mixagem e de sincronização entre música, sons e

diálogos já começava a permitir certa liberdade de criação com a simultaneidade destes

elementos e de gerar novos efeitos expressivos. Michel Chion (1997), a propósito do

ruído de fundo inevitável nos filmes naquela época, por causa do “som óptico”,

especulou sobre uma possível concepção do diretor em usá-lo também expressivamente,

como uma espécie de “baixo contínuo” da história, mais ou menos inconscientemente

percebido pelo espectador.

Para além dos cineastas vanguardistas, não se podem esquecer dos experimentalistas do

audiovisual, tais como Hans Richter, Bruno Corradini, Viking Eggeling, Walter

Ruttmann, Len Lye, Patrick Bokanowski, Arthur Pelechian e Norman Mclaren,

alquimistas que, de acordo com Chion (2010), buscaram pela composição das imagens,

seu conteúdo, seu ritmo e a vida da montagem, elevar a concreção cinematográfica a

55

Este procedimento poético pode ser encontrado no Documentário Philips-Radio, 1931, Symphonie Industrielle, de Joris Ivens.

73

uma espécie de ordem abstrata, próxima a da música pura. O autor, a este respeito, cita

um testemunho de McLaren:

“Escutando música no rádio, às vezes fechava os olhos e via a música em forma de figuras, formas e cores, que se moviam e dançavam. Não obstante, ela me desconcertava, ao perguntar-me como fazer que se materializassem aos olhos dos outros. Quando assisti à Rapsódia Húngara, de Oskar Fischinger, compreendi como fazê-lo.” (apud CHION, 2010, p. )

Estes artistas comungam a ideia primordial da expressão audiovisual como uma espécie

de “alquimia” de correspondências entre a os ritmos da escuta e da visão, sem almejar

qualquer tradução de conteúdos. Dito de outro modo, eles procuram antes recriar

imagens desencadeadas pela escuta e não criar uma ponte tradutora entre os dois

domínios. Busca-se nestas peças um valor plástico e dinâmico “puro” que nos afete

antes que a dimensão figurativa bloqueie ou detenha a liberdade do olhar. Se ritmos

ópticos são criados a partir do ritmo sonoro, em contrapartida, novas sonoridades

passam a viver – pela mudança da própria escuta - do movimento mesmo da imagem.

Em Begone Dull Care, de 1949, as mudanças de cores sublinham a forma musical, seus

estribilhos e modulações. Mais do que tentar traduzir as sonoridades em imagens ou

ilustrar descritivamente uma canção, o clipe precisa sugerir aproximações plásticas e

rítmicas da imagem com a composição.

A ideia de uma equidade entre a trilha sonora e a imagem conquistou outras importantes

adesões no chamado “cinema experimental”: Studien (1930-32) de Oskar Fischinger, a

já citada animação Fantasia (1940) de Algar e Armstrong, produzido pela Walt Disney,

entre outros.56 As experiências de vanguarda sobre ritmo visual e musical também

foram habilmente aplicadas nas animações, como atesta o trabalho de Fischinger,

posteriormente contratado pela Disney. Em 1947, Hans Richter reuniu-se a Man Ray, F.

Léger, Marcel Duchamp, Max Ernst e o compositor experimental John Cage para fazer

o longa-metragem Sonhos que o dinheiro não pode comprar. Décadas depois, em 1968,

Jean Marie Straub retomou as ousadias dos cineastas músicos dos anos iniciais do

cinema experimental, com Cronik der Anna Magdalena Bach. Neste filme ouvimos a

música de J. S. Bach em termos de estrita significação musical, de frases melódicas, 56 Mclaren abriu o caminho para experimentações utilizadas em filmes como Okraina (1933), de Boris Barnet, no qual o diretor emprega uma sonorização fundada em sons artificiais, obtidos a partir de desenhos impressos na própria película óptica. McLaren chega a desenhar diretamente sobre a trilha óptica sonora, para experimentar os resultados de sonoridades provocados por este processo.

74

texturas sonoras, permutações do tema, arquitetura polifônica. Mais uma vez se aposta

na minimização do poder emoldurador da imagem, ocorrendo, contudo, num filme

narrativo, em que as expectativas relacionadas ao funcionamento da trilha sonora são

sabidamente diferentes.

A conhecida Nouvelle vague francesa fomentou muitas experimentações para os então

jovens cineastas dos anos cinquenta e sessenta. Georges Delerue, convidado para

inúmeros filmes deste período, encarna o compositor de cinema, camaleônico e discreto,

ao dissolver sua música na atmosfera que ele mesmo contribui para criá-la. Jean-Luc

Godard é notável, no âmbito da música cinematográfica, por encomendar, para A Bout

de Souffle, de 1959, uma partitura a um compositor e depois fragmentá-la. O piano de

Martial Solal nos surpreende mais aqui pela insolência com a qual a montagem do

diretor o interrompe do que pelo clima musical do jazz americano. O cineasta francês é

pródigo pelo uso que faz da música em seu caráter abruptamente montado,

escamoteado, pulverizado, conflitivo, de suas intervenções e encaixe de efeitos por esta

montagem abrupta. Ele moderniza a música pelo próprio modo de utilização nos seus

filmes, como em Le mépuis, de 1963.

Para diretores como Eric Rohmer, a neutralização da música nos seus filmes se converte

numa opção deliberadamente estética. Para ele, que também era compositor, a música

representa um perigo, por seu aspecto emocional, para a posição irônica que se deseja

conservar em suas histórias. Rohmer não deixou de se valer, entretanto, de uma poética

antinaturalista, com estranhas composições sonoras concretas que, segundo ele,

resultavam como uma metanarrativa auto-reflexiva e anti-realista. Em A colecionadora

(1967), Rohmer efetivamente utilizou procedimentos da musique concrète, criando sons

de cigarras, pássaros, latidos e assovios (estes transformados em ventania), a partir de

bricolagens sonoras. O cineasta também investia muito tempo e esforço no trabalho de

estilização sonora do material bruto, na pós-produção.

Apesar de Andrei Tarkovsky (1989) dizer que a música era artisticamente tão autônoma

que seria sempre difícil dissolvê-la a ponto de torná-la orgânica no filme e que sua

utilização implicaria certa medida de concessão, por ela ser ilustrativa, o mundo sonoro

agenciado num filme é, em sua essência, musical. E esta é, para Tarkovsky, a real força

da música no cinema. Um exemplo notável e bastante ilustrativo é a sua película

75

Stalker, lançada em 1979. Ele trabalhou toda a atmosfera sonora do filme em conjunto

com compositor Eduard Artemiev. Este, ao ser convidado pelo diretor, comentou:

“Tarkovsky me disse que não precisava de um compositor. Ele precisava do ouvido do

compositor e de sua maestria no comando do som, para mixar a música e fazer os

efeitos sonoros.” Depois de rejeitar a primeira ideia que Artemiev lhe apresentou, que

era concebida para orquestra, o diretor acolheu com entusiasmo a segunda composição,

criada a partir de sintetizadores, com um caráter marcadamente minimalista e cujos

temas sofreriam variações ao longo do filme. Amalgamaram-se à música muitos sons

ambientes, ora captados, ora sintetizados, e muitas vezes não chegamos a distinguir o

que é natural ou artificial. Tarkovsky confunde intencionalmente esses tipos de sons e

confere valores musicais a sons supostamente aleatórios provenientes dos lugares

percorridos pelos personagens. No decorrer da narrativa, dá-se aos diversos sons

provenientes da água um tratamento especial: chuva, gotejamentos, ruídos subaquáticos,

sons impactantes dos passos sobre um terreno encharcado e a pujante massa sonora de

uma cachoeira volumosa. O diretor concebe, em certas sequências, uma forma musical e

texturas timbrísticas que antes sugerem imagens “internas”, de modo a enfraquecer a

presença mesma das imagens mostradas na película. A despeito de o diretor declarar

que todo filme de acentuado cunho conceitual não ter lugar para a música, esta película

explora com um cuidado meticuloso toda a intensidade da presença sonora. Ocorre, de

fato, uma espécie de atrofia do olhar que acaba por promover a imaginação e produz

uma impregnação mais incisiva do som. Visualidades e sonoridades têm, de fato, suas

fronteiras borradas, uma vez que a música afeta toda a sensação visual e vice-versa.

Tarkovsky também experimenta a tática das desconexões entre imagem e som que

provocam uma escuta descontínua frente a transições visuais lentas e mudanças sonoras

bruscas. A música eletrônica, para ele, deveria desprender-se de suas origens de

laboratório para que pudesse ser percebida como uma sonoridade orgânica do mundo.

Os sons sintéticos precisariam dissolver-se no som, esconder-se atrás de outros ruídos,

ser a voz indefinida da natureza, dos sentimentos confusos, tal como uma respiração que

banha todo o filme. Qualquer música no filme, dizia Tarkovsky, deve estar trançada

com o ruído do mundo, o ruído “telúrico”.

Um exemplo recente que emprega um modo de aproximação diferente entre imagens e

sonoridades é Shirin (2008), de Abbas Kiarostami. A película mostra o rosto de um

grupo de mulheres numa plateia, assistindo a um filme sobre um conto persa do século

76

XII. É apenas pelas expressões dessas espectadoras e pelo som da trilha que somos

levados a imaginar as cenas que elas veem.

O cinema modernista pós-sincronização sonora experimentou muitas estratégias de

ruptura à gramática da trilha sonora estabilizada pelo grande cinema. Muitos cineastas,

inclusive no Brasil, defendiam a abolição da convenção da música de fundo,

substituindo-a por ruídos organizados, associados ou não a trechos extraídos do acervo

musical, ou que elementos paramusicais ou musicais substituíssem os ruídos. A trilha

sonora também poderia organizar musicalmente os ruídos em off. Tal possibilidade mais

livre do tratamento dos ruídos chega a fazê-los desempenhar um papel comparável ao

que se atribui à música. A experimentação de tratamento dos diálogos, ao mesmo tempo

como veículo narrativo e como ruídos musicalmente organizados, geram efeitos

puramente sonoros: algo como um “concerto de ruídos” articulado à organização

plástica e dinâmica das imagens. 57

2.5.1 - As conexões entre a visualidade e a escuta no cinematógrafo, segundo

Robert Bresson

As notas de Bresson (2008) a respeito do fazer cinematográfico deram especial ênfase

para as condições e possibilidades estéticas da coexistência entre imagem e som, olhar e

escuta em seus filmes. As ideias do cineasta nos motivam a repensar as relações

heterogêneas advindas do choque e do encadeamento plástico-sonoro nos filmes. O

pensamento de Bresson acerca da convivência entre o ouvido e o olho cinematográficos

é oportuno para se repensar a sua arte, num contexto histórico em que tantos títulos são

57 Em Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos há ruídos que “nascem” da imagem, em especial da música dos créditos, durante um ranger do carro-de-boi que se torna musical. Crimes d’alma (1950), de Michelangelo Antonioni, dois instrumentos com sonoridades opostas e estilo musical próximo à decupagem e dos diálogos: relacionamentos gráficos entre música e filme, como principal fonte de unidade. Em Force of Evil, de Abraham Polonsky (1948), um diálogo composto de aliterações, rimas dissonantes e efeitos rítmicos de todos os tipos, por exemplo, as pancadas na porta repetem o mesmo ritmo dos diálogos que as precederam. Em Trans-Europ-Express, utiliza-se uma organização de sons reais empregados em estruturas que se inspiram nos conceitos da música contemporânea. Em Câncer, um dos filmes de Glauber Rocha, a fita de áudio foi esquecida ao sol, distorcendo o som, mas o diretor usou-a e assim mesmo alcançou sucesso.

77

meramente soterrados por trilhas e pontuações musicais óbvias, empobrecendo as

possibilidades de sugestão que as sonoridades possuem no cinema. Se um mesmo tema

pode se transformar infinitamente de acordo com o agenciamento entre as imagens e os

sons, há uma necessidade urgente, nos diz Bresson, de aprender a ouvir melhor as

possibilidades sonoras dos filmes. E ainda mais: fazer ouvir o que ouvimos por

intermédio de uma máquina que não ouve como nós e esta seria a força do

cinematógrafo, que se dirige, segundo o autor, aos dois sentidos, de maneira regulável.

Para o cineasta francês, o verdadeiro feitiço do cinematógrafo reside nessa ação

instantânea que as imagens e os sons exercem uns sobre os outros, a se transformarem

mutuamente. Como ele próprio afirma: “As trocas que se produzem entre imagens e

imagens, sons e sons, imagens e sons dão vida cinematográfica às pessoas e aos objetos

do seu filme e, por um fenômeno sutil, unificam a composição.” (BRESSON, 2008,

p.47)

Bresson empregava palavras figuradas para imaginar modos singulares de realizar o

encontro entre som e imagem, como duas pessoas que não conseguissem se separar. O

diretor dizia, por exemplo, que imagens e sons se fortalecem transplantando-se, por

meio desta “collocazione”. Nada de imagens ou sons independentes, tampouco em

igualdade, pois eles se prejudicam, tal como se diz a respeito da mistura das cores.

Imagem e som não devem se ajudar mutuamente, mas que eles trabalhem cada um à sua

vez, numa espécie de revezamento. (BRESSON, 2008, p.52) Se um som é o

complemento obrigatório de uma imagem, ele dá preferência, ora ao som, ora à

imagem. É então preciso, de acordo com Bresson, que imagens e sons se “entre-

tenham”, de longe e de perto, “em estado de espera e de reserva.” Para um diretor

atento, é fundamental que ele saiba exatamente o que um dado som vai fazer num certo

momento do filme. Por exemplo, um som não deve jamais socorrer uma imagem (nem

uma imagem socorrer um som). Quando Bresson dizia “...o que é para o olho não deve

ter duplo emprego como que é para o ouvido”, ele queria com isto afirmar que, se um

som pode substituir uma imagem, é melhor suprimir a imagem ou neutralizá-la.

(BRESSON, 2008, p. 51) Ou ainda: se o olho está inteiramente conquistado, não dar

nada ou quase nada ao ouvido. E o inverso, se o ouvido está inteiramente conquistado,

não dar nada ao olho. Como o cineasta achava o olho muito mais preguiçoso do que o

ouvido, ele procurava dar a este muitos elementos narrativos, sempre numa alternância

com o olhar do espectador: “...nunca ao mesmo tempo, para não saturar a sua

78

capacidade de apreender e de imaginar.” (BRESSON, 2008, p. 112) O olho requisitado

sozinho torna o ouvido impaciente, o ouvido requisitado sozinho torna o olho

impaciente. Um cineasta, para ele, deve utilizar essas impaciências. Se o olho (em geral)

é, para Bresson, mais superficial, sendo o ouvido profundo e inventivo, ele dava maior

importância ao som, porque o olho, para o autor, se contentaria em receber, enquanto o

ouvido está sempre mais atento. Bresson então explora esta força que irrompe do

ouvido, investindo nesta decifração mais aguda obtida pelo ouvido apenas. Um som

sempre evoca uma imagem, uma imagem nunca evoca um som.

Epílogo

Ao realizar esta breve digressão compreensiva das modalidades paradigmáticas,

técnicas, conceituais e estéticas da simbiose audiovisual no cinema, espera-se ter

cumprido um percurso básico da abordagem que uma disciplina de graduação com uma

proposta de priorizar o som e a música no cinema poderia realizar. Já se fez a ressalva a

respeito da imensidão de obras dignas de estudo e apreciação na história da trilha sonora

cinematográfica e dos meios pelos quais a imagem em movimento organizada para a

ficção e a narrativa (como a maioria do cinema mundial) ou para apresentação

documental ou experimental. Cabe à natureza ficcional do cinema o seu principal

mérito, aquele que pressupõe mobilizar a atenção, os trabalhos de memória, esperas e

surpresas perante uma realização cinematográfica, mesmo quando se trata de um

documentário ou de um trabalho experimental, não menos ficcionais. É preciso

considerar, a este respeito, que em todas as modalidades do cinema coexistem a visão

objetiva do cineasta e a narrativa indireta da câmera. Enfim, todo filme “irrealiza” o que

ele representa: ele, efetivamente, re-apresenta. A ficção parece, portanto, imantar não

apenas a gramática do “macro cinema”, tanto que o convívio com o universo

cinematográfico afeta, há muito, a experiência mesma da vida social. Por conseguinte, a

diegese da narrativa condiciona também o pensamento composicional, o design e o

trabalho de edição sonora num filme. Os princípios de integração entre música, sons,

ruídos, silêncios, imagens e narração não esvaziam, contudo, a “autonomia” estética da

trilha sonora, pelo contrário, provoca antes uma atitude singular da escuta no trabalho

79

criativo com as sonoridades. Compor uma trilha sonora é um trabalho que se vale antes

dos seus limites materiais (a narrativa, o universo diegético da história, o perfil dos

personagens, os preceitos da gramática fílmica, os regimes de escuta diante da tela etc.)

para exortar a imaginação do espectador, por meio da amálgama entre a escuta e o

olhar. Esta arte das sonoridades também convida o pensamento a repensar a escuta no

infinito esforço de compreensão do cinema. Esta empreitada – uma prazerosa aventura

para a escuta, diga-se – ficará, de agora em diante, ao encargo do leitor com maior

interesse por este assunto. Para tanto, segue, após as referências utilizadas para a

realização deste nosso texto, uma listagem de livros afins ao tema, a título de leitura

sugerida. Esperamos que o nosso leitor procure sempre pesquisar e assistir aos filmes,

aos atuais, aos futuros lançamentos e às incontáveis obras-primas da história do cinema,

não apenas seguindo a narrativa, mas também desvendando toda a multiplicidade de

ideias que se sintetizam em nossa experiência audiovisual. A participação interessada,

ao mesmo tempo cúmplice, entusiástica e crítica diante de um filme, é o que realmente

fundamenta a experiência diante do mundo da ficção cinematográfica.

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Anexos:

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Figura : modelo de roteiro adotado no filme Sunset Boulevard (1950) de Billy Wilder.

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