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Page 1: Caderno Seminal VII

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Caderno Seminal Digital – Vol. 7 – Nº 7 – (Jan/Jun-2007). Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007.

ISSN 1806-9142

Semestral

1. Lingüística Aplicada – Periódicos. 2. Linguagem – Periódicos. 3. Literatura -

Periódicos. I. Título: Caderno Seminal Digital. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

CONSELHO CONSULTUVO

André Valente (UERJ / FACHA)

Clarissa Rolim Pinheiro Bastos (PUC–Rio)

Claudio Cezar Henriques (UERJ / UNESA)

Darcilia Simões (UERJ)

Edwiges Zaccur (UFF)

Flavio Garcia (UERJ / UNISUAM)

Flora Simonetti Coelho (UERJ)

José Lemos Monteiro (UFC/ UECE/ NIFOR)

José Luís Jobim (UERJ / UFF)

José Carlos Barcellos (UERJ / UFF)

Magnólia B. B. do Nascimento (UFF)

Maria do Amparo Tavares Maleval (UERJ)

Maria Geralda de Miranda (UNISUAM / UNESA)

Maria Leny H. de Almeida (UERJ)

Maria Teresa G. Pereira (UERJ)

Nícia Ribas d’Ávila (Paris VIII)

Regina Michelli (UERJ / UNISUAM)

Sílvio Santana Júnior (UNESP)

Valderez H. G. Junqueira (UNESP)

Vilson José Leffa (UCPel-RS)

EDITORA

Darcilia Simões

CO-EDITOR

Flavio Garcia

ASSESSOR EXECUTIVO

Cláudio Cezar Henriques

DIAGRAMAÇÃO

Marcelo Menezes Muylaert (Bolsista de Extensão)

Carlos Henrique de Souza Pereira (Colaborador)

PROJETO DE CAPA

Carlos Henrique de Souza Pereira (Colaborador)

LOGOTIPO

Rogério Coutinho

Contato: [email protected]

[email protected]

publicaçõ[email protected]

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Publicações Dialogarts é um Projeto Editorial de Extensão Universitária da UERJ do qual participam o Instituto de Letras (Campus Maracanã) e a Faculdade de Formação de Professores (Campus São Gonçalo). O objetivo deste projeto é promover a circulação da produção acadêmica de qualidade, com vistas a facilitar o relacionamento entre a Universidade e o contexto sociocultural em que está inserida.

O Projeto teve início em 1994 com publicações impressas pela DIGRAF/UERJ. Em 2004, impulsionado pelas dificuldades encontradas no momento, surgiram, com recursos e investimentos próprios dos coordenado-res do Projeto, as produções digitais com vistas a recuperar a ritmo de suas publicações e ampliar a divulgação.

Visite nossa página:

http://www.dialogarts.uerj.br

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ÍNDICE

UM ESTUDO SEMIÓTICO DA PONTUAÇÃO: NORMA E EXPRESSIVIDADE................................................................................... 6

AIRA SUZANA RIBEIRO MARTINS (CPII – UERJ) ..................................... 6

POETA FINGIDOR E TRADUTOR TRAIDOR.................................. 22

ALICE BORGES LEAL (UFSC)................................................................. 22

VICTOR GIUDICE E O RIO DE JANEIRO ........................................ 38

ANDRÉ L. M. L DE SCOVILLE (UFPR) ................................................... 38

O ESTUDO CONTRASTIVO DOS IDIOMATISMOS: ASPECTOS TEÓRICOS ............................................................................................... 54

CLAUDIA MARIA XATARA E TATIANA HELENA CARVALHO RIOS (UNESP

– S. J. DO RIO PRETO) ............................................................................. 54

PROJETO DE TEXTO E ICONICIDADE............................................ 81

DARCILIA SIMÕES (UERJ – PUC/SP – SUESC) ..................................... 81

PAU-BRASIL: DESCOBERTA E COLONIZAÇÃO DO PAÍS .......... 66

CLÁUDIA MENTZ MARTINS (UFRGS/CAPES-PRODOC) ..................... 66

ENTRE A POESIA E O PENSAMENTO DA NASCIVIDADE: UM ENSAIO SOBRE O PÉRI PHYSEOS DE PARMÊNIDES................... 81

DIEGO DE F. B. PEREIRA (MESTRANDO EM POÉTICA – UFRJ) ................ 94

TEORIA DA RELEVÂNCIA E ENSINO: REFLEXÕES SOBRE PROCESSOS DE COMPREENSÃO EM ATIVIDADES ESCOLARES.................................................................................................................. 105

FÁBIO JOSÉ RAUEN (UNISUL)............................................................. 105

A FORMAÇÃO DO LEITOR PROTESTANTE BRASILEIRO EM MEADOS DO SÉCULO XIX: ANÁLISE DE O PEREGRINO.......... 127

JOÃO CESÁRIO LEONEL FERREIRA (UNIVERSIDADE PRESBITERIANA

MACKENZIE)......................................................................................... 127

LUGAR DA ESCRITA E LUGAR DO CORPO EM EUGÊNIO DE ANDRADE .............................................................................................. 144

LEILA DE AGUIAR COSTA (UNICAMP) ............................................... 144

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A VISÃO DE ESCOLA PRESENTE NAS OBRAS CAZUZA, DE VIRIATO CORRÊA, E HARRY POTTER E A PEDRA FILOSOFAL, DE J.K. ROWLING ............................................................................... 154

LUCAS DE MELO BONEZ (PUC/RS)...................................................... 154

UM LITÍGIO DISCURSIVO NA ORDEM DA MÍDIA (E PARA ALÉM DELA)......................................................................................... 178

LUCÍLIA MARIA SOUSA ROMÃO (USP) ................................................ 178

DA CONCOMITÂNCIA À CONVERGÊNCIA SINTÁTICA: BASES PARA UMA ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE SEMÂNTICA E SINTAXE ................................................................................................ 206

LUIZ FRANCISCO DIAS BRUNA KARLA PEREIRA (UFMG).................... 206

A VOZ MÉDIA NUMA ABORDAGEM COGNITIVA...................... 227

MARIA CLAUDETE LIMA (UFC) ........................................................... 227

INTERAÇÃO DA SEMÂNTICA E DA SEMIÓTICA NA APRENDIZAGEM DA LÍNGUA ......................................................... 242

MARIA SUZETT BIEMBENGUT SANTADE (UERJ, FMPFM E FIMI – MOGI

GUAÇU/SP)........................................................................................... 242

O SUBSTANTIVO EM PORTUGUÊS: PROPOSTA PARA SUA DESCRIÇÃO .......................................................................................... 257

PAULO MOSÂNIO TEIXEIRA DUARTE (UFC)......................................... 257

LEITURA EM AULA DE LÍNGUA PORTUGUESA: UMA ABORDAGEM ENUNCIATIVA.......................................................... 284

SILVANA SILVA (UNISINOS) .............................................................. 284

VIOLÊNCIA NA TRAGÉDIA GREGA .............................................. 297

VERÔNICA RIBAS CÚRCIO (UFSC)....................................................... 297

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Um estudo semiótico da pontuação: norma e expressividade

Aira Suzana Ribeiro Martins (CPII – UERJ)

1. Introdução

Ao examinar as gramáticas ou os manuais didáticos, constata-

mos que Pontuação é um assunto ao qual se dispensa pouca atenção.

Observamos que, nas primeiras, as prescrições de emprego dos sinais

ora estão relacionadas à modalidade oral ora à modalidade escrita da

língua. Nessas obras, as definições são feitas de acordo com o crité-

rio fonológico e as orientações de emprego, baseadas no critério

sintático. Os manuais didáticos, além de repetirem das gramáticas as

extensas listas de regras de emprego dos sinais, acrescentam exercí-

cios desvinculados dos usos da língua. Em virtude disso, os professo-

res, com um material pouco atraente e confuso, fazem um trabalho

descontextualizado, de pouca aplicabilidade para os alunos. Como

resultado, vemos estudantes de segundo grau com completo desco-

nhecimento do emprego desses sinais, ou com a noção de que a pon-

tuação recria, na língua escrita, a marcação das pausas da oralidade.

Observamos que, na transcodificação da oralidade para a escrita,

há coincidências, pois pausas realizadas na língua falada podem cor-

responder a sinais de pontuação empregados no espaço gráfico. Em-

bora façamos freqüentemente pausa entre sujeito e verbo ou entre

verbo e seu complemento, na língua falada, não é permitido, segundo

a norma da língua, empregar sinal de pontuação nesses ambientes.

Como sabemos, de acordo com o princípio da adjacência de caso, o

elemento que atribui caso deve estar adjacente ao receptor desse caso

(Tarallo, 1989). Logo, o sujeito deve ficar adjacente ao verbo, assim

como o objeto que recebe caso do verbo deve estar adjacente a este,

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não sendo permitida, por esse motivo, a colocação da vírgula entre os

constituintes. Pode acontecer, por outro lado, de haver uma vírgula

em um enunciado e o leitor não achar necessária a realização de uma

pausa na leitura oral.

A imprecisão de critérios vista nas gramáticas a que nos referi-

mos anteriormente se deve à própria origem dos sinais de pontuação.

Esse sistema surgiu com o objetivo de se fazer a marcação das pau-

sas em textos, geralmente de caráter religioso, que eram lidos por um

orador a uma platéia, formada, em sua maioria, de pessoas analfabe-

tas. Os pontos (daí o nome pontuação) tinham função semelhante a

de uma partitura musical, com marcações para que o orador desse um

ritmo adequado, com uma entonação perfeita e com respeito às pau-

sas. Tal procedimento tinha o objetivo de facilitar a compreensão do

texto pela assistência. Esses fatos revelam, na configuração rítmica

da leitura oral dos textos, a presença das dimensões fonológicas,

sintáticas e semânticas. Podemos registrar também a presença da

dimensão enunciativa, já que essa marcação era feita geralmente pelo

copista, de acordo com a leitura que fazia da obra.

Uma cópia, com sua respectiva pontuação, correspondia a uma

edição. Desse modo, um texto poderia ter tantas edições quantas

fossem suas cópias. É interessante observar que o autor da obra não

era responsável pela pontuação de seu texto e sim um leitor. Como

conseqüência, o sentido ou nuanças de sentido dados ao texto pelo

copista, por meio da pontuação, poderiam não coincidir com aquilo

que o escritor havia imaginado para sua obra. Esse procedimento vai

ao encontro às modernas concepções de leitura, em que o leitor dá

sentido ao texto, de acordo com suas experiências.

Como vemos, já nessa época, os sinais de pontuação era impor-

tantes auxiliares na decifração da significação do texto escrito, pois

promoviam organização textual, desfaziam as ambigüidades e auxili-

avam o entendimento do texto. Além dessas funções, que ainda per-

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manecem, não podemos ignorar os interessantes efeitos expressivos

produzidos pela pontuação.

A invenção da imprensa e a crescente escolarização da popula-

ção deram início a um período em que a função lógico-gramatical da

pontuação passou a receber mais ênfase, o que permanece até os dias

de hoje, conforme observa Houaiss (1967). Entretanto, esse critério

não é aceito de forma unânime pelos teóricos. São intermináveis as

discussões acerca desse tema. Para estudiosos como Nunberg (1991)

e Smith (1982) os sinais de pontuação dizem respeito somente à lín-

gua escrita, pois não se realizam na oralidade. Halliday lembra que

pode haver a combinação do critério fonológico e do critério lógico-

gramatical para a pontuação de um texto. Catach (1980), profunda

conhecedora do assunto, defende a idéia de que os aspectos semânti-

cos, sintáticos e fonológicos são inseparáveis, estando a pontuação,

por esse motivo, ligada tanto à oralidade quanto à escrita.

Outro fator que contribuiu para uma certa indefinição de empre-

go dos sinais de pontuação foi o fato de esse sistema de sinais ter

sido elaborado gradativamente. Sinais como o ponto-de-exclamação

e o ponto de interrogação acrescentaram-se, na Idade Média, a um

sistema que começou a ser criado no séc. II a.C. Por isso, um sinal

pode reunir várias funções, como o ponto, o primeiro sinal a ser cria-

do. Pode ainda acontecer de uma função textual ser representada por

mais de um sinal. Tudo isso gera um certo desconforto para o profes-

sor, pois o aluno espera que o livro ou a escola lhe dêem orientações

exatas, como receitas.

Embora a oralidade e a escrita sejam dois sistemas semióticos

distintos, não podemos ignorar que guardem estreitas relações, já que

são duas modalidades de uma língua. Uma se realiza no tempo e

dispõe de outros recursos, como a entonação e elementos não-

verbais, tais como a expressão facial e a gestualidade; outra se realiza

no espaço e conta apenas com as marcas lingüísticas. Segundo Mat-

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toso Câmara (1999), os sinais de pontuação têm a função de suprir,

no espaço gráfico, os movimentos corporais que complementam a

mensagem na língua falada.

Acreditamos que o jogo de timbres e de pausas, as rupturas, as

continuidades e o contorno entonacional contribuam para a organiza-

ção da atividade lingüística. Por isso, podemos dizer que a pontuação

está relacionada à dimensão fônica, sintática, semântica e ainda à

dimensão enunciativa, pelo fato de a colocação dos sinais estar de

acordo com as intenções do sujeito escrevente. Essas unidades são

inseparáveis e responsáveis pelo sentido do enunciado.

Propomos, neste trabalho, um novo tratamento ao assunto, com

vistas a facilitar a tarefa do professor em sala de aula, substituindo as

extensas listas de emprego dos sinais de pontuação por atividades

mais prazerosas. Acreditamos que esse procedimento dará condições

ao aluno de fazer a colocação adequada dos sinais de pontuação e de

realizar uma leitura completa nos textos.

Conforme observa Simões (2001), nossa prática em sala de aula

tem ainda uma visão mecanicista da aquisição da língua. A pesquisa-

dora considera urgente a necessidade de mudança de postura tanto do

professor como do aluno. Segundo ela, ambos devem passar da con-

dição de “receptores-repetidores-passivos da normatividade para a de

observadores-analistas-testadores das potencialidades do código”.

Desse modo, acreditamos que a gramática aliada à semiótica e ao

funcionamento discursivo da língua auxilie o professor a promover

uma grande mudança na prática pedagógica, no sentido de levar o

aluno a obter o domínio do idioma, isto é, ter a capacidade de ade-

quar-se às diferentes situações de comunicação.

A teoria semiótica de Peirce (1995), não se ocupa, a princípio,

da decifração do texto escrito, literário ou não-literário. Por esse

motivo, não existe um “modelo” de análise semiótica peirceana. A

doutrina criada pelo filósofo americano se atém aos processos de

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significação que constituem a linguagem de um modo geral. Nosso

interesse por esse tipo de abordagem se deve ao fato de que a teoria

dos signos é capaz de oferecer subsídios para uma análise objetiva de

um corpus.

O pensamento, para essa teoria, é visto como um processo de in-

terpretação do signo com base na relação triádica entre signo, objeto

e interpretante. O signo é concebido como aquilo que representa

(representâmen) algo para alguém. Ao se dirigir à pessoa, o signo

inicial criará na mente (ou semiose) um signo equivalente (interpre-

tante) ou mais desenvolvido. O elemento representado pelo signo

será o objeto. É importante salientar que o signo só tem existência na

mente do receptor e não no mundo exterior. De acordo com Peirce,

nada é signo se não é interpretado como signo. Esses três elementos

(signo, interpretante e objeto) formam a relação triádica do signo. O

signo peirceano, na verdade, é uma função ou um processo relacional

entre o representâmen (o sinal externo), o signo (veículo), o objeto e

o interpretante. O signo pode ser considerado na sua combinatória,

na sua referencialidade e no seu uso, ou seja, pode ser considerado

em relação à sintaxe, à semântica e à pragmática.

Como afirma Pignatari (1979), a teoria da iconicidade é impor-

tante por estabelecer ligações entre um código e outro código, entre

uma linguagem e outra linguagem. Serve para a leitura do texto não-

verbal e para a percepção do mundo verbal em ligação com o mundo

não-verbal.

Dentre as dez tricotomias criadas por Peirce, a que mais nos in-

teressa é a segunda, que trata das relações semânticas entre o signo e

seu objeto (ícone, índice e símbolo). O ícone tem alguma semelhança

com o objeto, ainda que ilusória, como o retrato e a pintura. Pelo fato

de as semelhanças serem imperfeitas, o ícone é também conhecido

como hipoícone.

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Ainda com relação ao ícone, temos outra subclassificação de

grande importância para o estudo em questão. Os outros modos de

representação desse signo são a imagem, a metáfora e o diagrama.

De acordo com Santaella (2001), a palavra imagem não é empregada

no sentido visual do termo, ela se refere à imagem com toda a carga

de ambigüidade, num complexo de estímulos visuais, auditivos e

emocionais. A metáfora, para Peirce, representa outro tipo de signo

icônico ou hipoícone. Devido a isso, de acordo com Santaella (2001),

a metáfora estabelece um paralelo entre o caráter representativo do

signo, ou seja, seu significado e algo diverso dele. Nesse tipo de

figura de linguagem, uma palavra que denota uma espécie de objeto

ou ação é usada no lugar de outra para sugerir uma semelhança ou

analogia entre ambas.

O diagrama, segundo Pignatari,

é, antes de mais nada, um ícone – é um ícone de relações inteligíveis. [...] Embora apresente traços simbolóides, bem como traços que o aproximam da natureza dos índices, o diagrama é, antes de mais nada, um ícone das formas de relações na constituição de seu objeto. (op.cit., p. 43)

A rigorosa seleção lexical, a identidade sonora das palavras e a

contaminação semântica dos vocábulos torna o texto literário um

verdadeiro diagrama.

Feito esse pequeno recorte da teoria da iconicidade de Peirce,

observamos que a pontuação pode ser considerada um tipo de dia-

grama, pois os sinais de pontuação podem ser vistos orientações de

leitura do escrevente para o leitor. Essas orientações poderiam ser a

recriação dos aspectos prosódicos por meio das impressões visuais,

Com base nisso, a partir da decifração das pistas de leitura contidas

no jogo de sinais de pontuação, buscaremos uma das possíveis signi-

ficações para os textos em análise.

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Um texto não é somente um tecido em que as palavras se atraem

devido às leis gramaticais; é também uma rede em que elementos

lexicais se combinam por força das relações semânticas, das corres-

pondências sonoras, e da combinação sintática. Todos esses arranjos

dão ao texto, sobretudo literário, uma configuração diagramática.

Podemos incluir nesse conjunto de elementos os sinais de pontuação.

Devemos salientar que é toda a combinação dos vários elementos

que forma o texto. Os signos desvinculados do conjunto em que se

inserem não fornecem qualquer tipo de contribuição para a captação

de significação da obra.

O sujeito, no seu planejamento de fala ou de escrita, tem já a fi-

gura de seu destinatário e os objetivos a serem alcançados. De acordo

com a Pragmática, o indivíduo já antecipa em seu enunciado a inter-

pretação que deseja de seu interlocutor. Conforme os fundamentos da

teoria semiótica de Peirce (1995), o emissor tem a preocupação com

a figura, isto é, com a forma de seu enunciado, ou a disposição dos

constituintes frasais. A significação é, para o enunciador um elemen-

to que ocupa o segundo plano no seu planejamento lingüístico. O

receptor, por sua vez, tem como centro de atenção a significação,

permanecendo recessiva, nesse caso, a forma.

Já que a preocupação do receptor é a significação, o enunciador

será, muitas vezes redundante, consciente de que o leitor perderá

muitas informações. Como o destinatário só dá atenção à significa-

ção, ele tem condições de perceber outras nuanças da informação,

não só aquilo que está presente nas linhas, embora o enunciador te-

nha consciência de todos os pressupostos presentes em seu enuncia-

do. Ao responder ao enunciado, o receptor tem à sua disposição

várias opções de resposta, sendo escolhidas aquelas mais adequadas

à situação e às convenções sociais.

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O escrevente, ao dispor os sinais de pontuação em seu texto, in-

dicará a forma preferencial de leitura, ou seja, a pontuação é feita de

acordo com o que se espera obter do leitor. Este, por sua vez, a partir

da diagramação textual, perseguirá pistas para o seu entendimento. É

importante destacar, ainda, que àquilo presente nas linhas, serão a-

crescentados outros sentidos, de acordo com as experiências e de

acordo com o conhecimento do leitor.

2. A pontuação e a norma da língua

Primeiramente, podemos pôr em exame a pontuação gramatical

prescrita pela gramática da língua. Em virtude da limitação de espa-

ço, não examinaremos todos os sinais. Optamos por aqueles que

oferecem maior grau de dificuldade ao nosso aluno, que são a vírgu-

la, o ponto-e-vírgula e o ponto.

2.1. O emprego da vírgula

No emprego da vírgula, podemos examinar, antes de tudo, as

próprias informações transmitidas pela NGB. Como sabemos, a or-

dem dos termos da oração é Sujeito –Verbo- Objeto. Ora, com base

nesse cânone, podemos deduzir que os termos introduzidos nessa

estrutura devem vir delimitados pela vírgula. Assim, por exemplo, os

adjuntos adverbiais, que fazem parte do predicado, devem aparecer

após o complemento verbal; caso contrário, sua presença deverá ser

marcada pela vírgula. Termos da oração como apostos e vocativos,

que são intercalados na estrutura da oração, devem ser indicados pela

vírgula. A elipse do verbo e também a enumeração de elementos com

a mesma função devem ser marcadas pela vírgula. O mesmo se ob-

serva em relação ao período composto, pois as orações subordinadas

desempenham as mesmas funções dos termos do período simples.

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Ao seguir a diagramação fornecida pelos sinais de pontuação, o

leitor será capaz de fazer uma reconstituição do caminho traçado

pelo escrevente ao organizar seu texto.

Neste texto, exemplificaremos nossos comentários com excertos

da obra de Guimarães Rosa, pois esse escritor tanto faz uso da norma

da língua na pontuação seus textos como também é capaz de reorga-

nizar o sistema de sinais de pontuação de acordo com suas intenções

expressivas.

Vejamos o emprego da vírgula nesta passagem do conto O bur-

rinho pedrês (In: Sagarana, 1974):

Boi bem bravo,bate baixo, bota baba, boi berrando... Dansa doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito... Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando... (p. 24)

Essa passagem é um belo exemplo de que o texto literário pode

ser considerado um diagrama de sentidos e de efeitos estéticos.

As aliterações do [b] e do [d] aliadas à pontuação dão a confi-

guração sonora do ruído das patas do boi numa repetição rit-

mada. Construções como esse trecho imprimem à linguagem o

caráter semiótico do diagrama icônico. O modo como a palavra

boi se organiza com a pontuação recria no espaço gráfico os

movimentos do animal.

2.2. O ponto-e-vírgula

O ponto-e-vírgula representa um verdadeiro tabu para o escre-

vente comum. Luiz Fernando Veríssimo, em crônica intitulada Pon-

to-e-vírgula (1999), confessa profundo respeito por quem sabe usar o

ponto-e-vírgula e uma admiração ainda maior por aquele que não

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sabe e o emprega assim mesmo. Ao longo do texto, ele explica que

tal admiração se deve ao fato de poucas pessoas terem conhecimento

suficiente para identificar a má colocação desse sinal. Certa vez, em

pesquisa sobre o emprego dos sinais de pontuação, um profissional

da área de Saúde nos confessou sua especial predileção pelo ponto-e-

vírgula. De acordo com seu depoimento, esse sinal seria empregado

com a função da vírgula. Como vemos, Veríssimo tinha suas razões

em escrever a citada crônica.

Segundo a norma da língua, o ponto-e-vírgula é empregado para

separar itens de uma lei, de um decreto, etc, e também para separar

seqüências já delimitadas por vírgulas, formando segmentos de ins-

tância superior. Celso Cunha (1985) acrescenta que esse sinal pode

ser empregado como substituto da vírgula antes das conjunções ad-

versativas e das conclusivas.

Guimarães Rosa mostra com muita propriedade o emprego des-

se sinal. Vejamos:

Aos esses, mesmo, se comediu obrigação: Quim Queiroz zelava os volumes de balas; o Jacaré exercia de cozinheiro, todo tempo devia de dizer o de comer que precisava ou faltava; Doristino, ferrador dos animais, tratador deles; e os outros ajudavam; mas Raymundo Lê, que entendia de curas e meizinhas, teve cargo de guardar sempre um surrão com remédios. (Grande Sertão: Veredas, p. 73)

Vemos, nesse excerto, uma simetria, em que blocos, encabeça-

dos pelo nome de cada jagunço, são delimitados pelo ponto-e-

vírgula. A pontuação traça um esquema que contribuirá para a for-

mação do processo de semiose na mente do leitor.

2.3. O ponto

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O ponto, de acordo com Cunha (1985), indica término de uma

oração declarativa. Segundo Bechara (1999), esse é um dos sinais

que denota uma pausa maior. A expressão “pausa maior” nos leva a

crer que o autor esteja se referindo às pausas da vírgula e do ponto-e-

vírgula na leitura oral do texto. O autor continua sua definição acres-

centando que o ponto aproxima-se das funções do ponto-e-vírgula e

do travessão. Ao observar as instruções de uso do travessão, entre-

tanto, o autor não se refere ao emprego desse sinal como substituto

do ponto.

Vejamos este trecho de Grande Sertão: Veredas para exemplifi-

car o emprego do travessão como substituto do ponto: “Tanto tudo o

que eu carregava comigo me pesava – eu ressentia as correias dos

correames, os formatos.” (1978, p. 41). Como podemos ver, nesse

excerto, o travessão poderia ser substituído pelo ponto, porém esse

sinal de pontuação acrescenta mais uma nuança ao trecho, já que faz

uma relação de aposição do trecho que introduz com a parte anterior.

Vejamos, nesta passagem, o emprego do ponto em mais um

conto de Guimarães Rosa, Sorôco, sua mãe, sua filha:

Aquele carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na esplanada da estação. Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos. A gente sabia que, com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao expresso daí de baixo, fazendo parte da composição. Ia servir para levar duas mulheres, para longe, para sempre. O trem do sertão passava às 12h45m. (p. 13)

O narrador, no excerto anterior, faz a descrição minuciosa do

trem que levaria as duas mulheres loucas para outra cidade. A ima-

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gem do veículo é formada na mente do leitor à medida que o texto

progride em orações delimitadas pelo ponto. Essa descrição é inter-

rompida de maneira brusca com a lembrança do horário da partida do

trem.

É importante chamar atenção para o fato de que a principal fun-

ção do ponto é, como podemos ver, estabelecer a delimitação de

orações e frases conclusas na sua estrutura.

Considerando a pontuação um diagrama, podemos dizer que o

ponto indicia um acabamento do enunciado ou uma exclusão do que

poderia estar presente na frase.

3. A pontuação e a expressividade

Nesta parte de nosso trabalho, observaremos, de forma sucinta,

o emprego estilístico dos sinais de pontuação em alguns excertos da

obra em prosa de Guimarães Rosa.

Os sinais de pontuação têm dupla função na língua, além de

funcionarem como guia de entendimento de um texto, são relevantes

recursos de expressividade.

Em relação a esse fato, a atriz Giulia Gam, em entrevista por

ocasião da filmagem da adaptação de contos Guimarães Rosa, Pri-

meiras estórias, por Pedro Bial, fez a seguinte declaração:

(...) Pedro não teve medo do Rosa. Quando lia para mim trechos do Grande Sertão: Veredas, lia como se fosse um gibi, com uma fluência impressionante. Posso dizer que passei a entender realmente o Rosa pela melodia e pela pontuação que o Pedro dava nestas leituras. E para nós é fundamental ouvir Rosa. (Jornal do Brasil , Caderno B, 1999, p. 4)

Como podemos ver, até mesmo uma pessoa não-especialista em

estudos lingüísticos tem intuição da importância dos sinais de pontu-

ação. Na obra do escritor mineiro, vemos que a pontuação tem im-

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portância fundamental, ao tentar, por meio desse sistema, fazer uma

recriação da oralidade.

Vejamos esta passagem da obra roseana:

(...) Para mim, cada mulher vive formosa: as roxas, pardas e brancas, nas estradas. Dele gostavam – de um cego completo – por delas nem não poder devassar as formas nem feições? Seô Tomé se soberbava, lavava com sabão o corpo, pedia roupas de esmola. Eu, bebia. (Antiperipléia, p. 13)

Queremos destacar a pontuação da última oração. Podemos ob-

servar que o emprego da vírgula nesse caso é absolutamente proscri-

to pela gramática normativa. Essa diagramação recria a oralidade,

levando o leitor a, mentalmente, compor a situação de fala do narra-

dor. A vírgula que aparece entre o sujeito e o verbo, em termos dis-

cursivos, é perfeitamente coerente. Como podemos ver, o narrador

faz referência ao cego e a si. A vírgula põe em destaque a oposição

entre as duas pessoas. Uma tinha como centro de interesse as mulhe-

res e a aparência; a outra, a bebida. Poderíamos parafrasear a passa-

gem da seguinte maneira: Ele era preocupado com sua aparência;

quanto a mim, passava o tempo bebendo.

Vejamos este outro exemplo de pontuação do escritor mineiro:

Chegaram, em mês de maio, acharam, na barriga serra, o sítio apropriado, e assentaram a sede. O que aquilo não lhes tirara, de coragem, de suor! Os currais, primeiro; e a Casa. (Uma estorinha de amor, p. 54)

A iconicidade textual, no texto anterior, já forma um sentido na

mente interpretadora. Observamos o foco dado ao substantivo casa

pelo ponto-e-vírgula, indicando que esse constituinte pertence a uma

ordem superior na estrutura oracional. A apresentação do nome em

letra maiúscula é mais um dado para a interpretação da passagem.

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O excerto seguinte mostra o interessante efeito de sentido for-

mado a partir do emprego do ponto:

Silêncio. Passopretos. Silêncio. Ciscado das galinhas. Passopretos. Silêncio. Primo Ribeiro:

– Primo Argemiro! (Sarapalha, p. 124)

Essa passagem mostra um exemplo de iconicidade endofórica,

de acordo com Nöth (1992), em que, de forma simétrica, as palavras

e o fonema fricativo sonoro /ѕ/ se repetem. A pontuação contribui

para a formação do quadro mental que se assemelha a uma cena tea-

tral, na qual os pontos fazem a marcação dos elementos que vão sen-

do dispostos sucessivamente.

4. Considerações finais

Os sinais de pontuação têm um papel semiótico não só no as-

pecto visual como também no aspecto lingüístico. Eles são dados

importantes para a organização textual por estabelecerem uma dupla

dialogia entre escrevente e leitor e entre oralidade e escrita. Em ou-

tras palavras, o escrevente, por meio da pontuação, indica a leitura

preferencial para o leitor e este segue as pistas de leitura deixadas no

texto; e, sendo a escrita uma transcodificação da oralidade, os sinais

de pontuação são responsáveis pelo ritmo que se observa no espaço

gráfico.

Atualmente, o trabalho do professor apresenta-se mais árduo

devido, primeiramente, à própria característica da escola, que exige

um certo grau de concentração e de dedicação por parte do aluno. Os

avanços tecnológicos competem de maneira desleal com a secular

instituição de ensino, que não consegue se adaptar, com rapidez, a

esse maravilhoso mundo moderno.

É preciso, dessa forma, propor ao aluno tarefas mais reais, de

modo que ele sinta a necessidade de executá-las para vencer os desa-

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fios do dia-a-dia, como a compreensão de um texto ou mesmo a ela-

boração de uma mensagem que exija o conhecimento dos vários

níveis de uso da língua.

Embora reconheçamos a importância da pontuação, esse tema

recebe pouca atenção por parte da escola. Por isso, acreditamos que

uma nova abordagem do assunto, com auxílio da teoria da iconicida-

de, desperte o interesse do aluno, tornando o trabalho com o assunto

mais agradável e mais produtivo.

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Poeta fingidor e tradutor traidor

Alice Borges Leal (UFSC)

Autopsicografia

Fernando Pessoa

O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama o coração.

Estruturarei o presente artigo em torno de duas reflexões acerca

dos epítetos indicados no título, i.e., o poeta fingidor e o tradutor

traidor. A primeira reflexão basear-se-á na leitura do poema de Fer-

nando Pessoa, do qual o primeiro epíteto foi extraído. Essa leitura

funcionará como analogia do processo de leitura em geral - sobretu-

do de textos literários. Já a segunda reflexão, por sua vez, combinada

à primeira, funcionará como questionamento do trabalho do tradutor

e da sua postura diante de seu trabalho.

No poema de Fernando Pessoa, a dor que permeia as duas pri-

meiras estrofes é polivalente. Pode-se identificar quatro dores distin-

tas, a saber: (1) a dor que o poeta de fato sente, (2) a dor que o poeta

põe no papel, (3) a dor que o leitor sente e (4) a dor que o leitor lê no

poema. Sob essa perspectiva, o título do poema aponta para uma

partição do próprio poeta, que parece desdobrar-se em alguém que

sente uma determinada dor, e alguém, diferente, que a escreve – es-

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crevendo, portanto, uma dor distinta daquela sentida pelo primeiro

alguém. Por isso o poeta carece de auto-psicografia, ou por essa ra-

zão que o trabalho do poeta pode ser descrito como uma espécie de

auto-psicografia. A estrofe final coloca o coração como espetáculo à

razão, uma vez que esta não dá conta daquele.

A leitura que proponho do poema funciona como representação

ou meta-reflexão do ato de leitura em geral. Seria ingênuo admitir,

sobretudo – mas não exclusivamente – no âmbito dos textos literá-

rios, que é possível que significados, presentes na mente do autor,

possam ser claramente expostos no papel, de modo a produzir um

texto que garanta uma leitura idêntica àquela teleologicamente ante-

cipada pelo autor – supondo que autores sempre façam antecipações

teleológicas do efeito de seus textos em seus leitores. Com efeito, tal

leitura do poema aponta para a pluralidade da interpretação, que será

tão imensa quanto o número de vezes que leitores lerem o texto ao

longo dos anos – lembrando que um mesmo leitor fará leituras distin-

tas do mesmo texto em diferentes momentos de sua vida, leituras

estas que estarão sempre condicionadas pelas suas próprias experiên-

cias, ou, aproveitando o mote do poema, pelas suas próprias dores.

Em suma, é como VERMEER coloca (REIß e VERMEER, 1984,

42):

daß beim Ausgangstext zwischen dem, was dort enkodiert sei, um dem, was der Produzent (Sender) damit habe mitteilen wollen, um dem, was der Rezipient (hier also der Translator) verstanden habe, zu unterscheiden sei.

Esquematizando um pouco o pequeno sistema presente no poe-

ma, temos duas dores do poeta, que chamarei de DP1 e DP2, e duas

dores do leitor, doravante intituladas DL1 e DL2. DP1 e DL1 podem

ser consideradas equivalentes ou análogas, posto que ambas referem-

se às dores pessoais de cada um desses indivíduos (poeta e leitor),

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independentemente do texto que estão prestes a escrever ou ler. No

âmbito de um único texto há uma DP1 (visto que há apenas um au-

tor) e infinitas DL1 (tantas quanto o número de leitores num dado

momento). Já a relação entre a DP2 e a DL2, por sua vez, é um pou-

co mais complexa. A DP2 é a concretização imperfeita da DP1. Tal

imperfeição pode derivar de fatores vários, tais como a incapacidade

do poeta de expressar-se claramente, devido ao conhecimento escas-

so da sua própria dor; a falta de habilidade do poeta com a língua e

seus inúmeros recursos; ou ainda, e mais certamente, a insuficiência

da própria língua, que não dá conta da complexidade do objeto que

se põe a descrever. A DP2 é, portanto, uma inevitável distorção da

DP1, que confere ao poeta o epíteto de “fingidor”, de acordo com a

leitura sugerida do poema pessoano. Finalmente, a DL2 é a dor que o

leitor constrói por meio da sua interpretação do texto, interpretação

esta que será sempre norteada tanto pela DL1 – abrangendo, num

sentido mais amplo, os sentimentos e experiências desse leitor –

quanto pela DP2 – representado aqui o texto em si, enquanto concre-

tização escrita. Conseqüentemente, poder-se-ia dizer, acerca do pro-

cesso de produção e recepção do texto literário, que uma dor sentida

por um poeta (DP1) o motiva a escrever um poema (DP2), o qual é

lido por um leitor que também tem lá as suas dores (DL1), e que por

influência delas constrói, a partir do poema, sua própria interpretação

(DL2). Grosso modo – e sem juízo de valor –, o poema seria uma

distorção dos sentimentos e experiências do seu autor, e cada leitura

deste poema seria ainda outra distorção, esta última oriunda de uma

combinação da primeira distorção (i.e., o poema em si) com as expe-

riências e sentimentos do próprio leitor.

Descritas desta maneira, a leitura e a interpretação se tornam ab-

solutamente vagas, dependentes quase exclusivas de experiências

pessoais. Não seria possível, então, falar de leituras “boas” ou “ru-

ins”, nem tampouco descartar interpretações que fugissem ao escopo

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do texto. Ora, se boa parte do que compõe as interpretações advém

de experiências humanas e individuais, como controlá-las ou mesmo

avaliá-las? A despeito desta aparente impossibilidade, fala-se muito

de “interpretações corretas”, “leituras equivocadas”, “a melhor leitu-

ra já feita” da obra de fulano. Parecem haver critérios para que se

façam tais julgamentos, os quais poderiam ser englobados sob o que-

sito da completude de leitura. Ainda que fortemente influenciada por

experiências e conhecimentos individuais – e vale lembrar que mes-

mo tais dimensões aparentemente idiossincráticas são, por sua vez,

em grande medida condicionadas pelas “comunidades interpretati-

vas” (FISH, 1998) nas quais os indivíduos estão inseridos – a inter-

pretação se dá por meio da combinação de tais elementos com o

próprio texto. Mais uma vez, temos a combinação da DP2 e da DL1,

que somente juntas dão origem à DL2. E aqui, o papel do texto

(DP2) é importante na construção de uma interpretação, sobretudo

em contextos acadêmicos, em que é necessário explicar e elucidar

questões acerca de tais leituras a um determinado público. Justificar

interpretações por meio de elementos do texto é o que parece validar

certas leituras. Em outras palavras, é a relação que uma determinada

leitura tem com o texto que a torna legítima. Ademais, aquelas leitu-

ras consideradas “melhores” geralmente apontam para um número

maior de questões, potencialmente presentes no texto, e construídas

pelas experiências e conhecimentos do leitor. Daí a idéia de comple-

tude de leitura.

É essencial enfatizar, contudo, que o que supostamente está pre-

sente no texto não é exatamente o que o autor tencionou nele colocar

(DP1 ≠ DP2), e portanto não faz sentido falar de “intenção do autor”,

ou do que o autor “quis dizer com o texto”. Não é infreqüente a ocor-

rência de leituras de textos que, por ocasião do diálogo com seus

autores, são consideradas inadequadas ou incabíveis do ponto de

vista deste mesmo autor, mas são claramente justificáveis por meio

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dos elementos textuais (para relatos de casos específicos, ver LEAL

2006, p. 5). Não obstante a desaprovação do autor, essas leituras

devem ser consideradas válidas e pertinentes, visto que, uma vez

escritos e divulgados, textos não podem ser “controlados” por seus

autores. Pode-se dizer até mesmo que um texto só se torna de fato

um texto quando recebido por um leitor, o que significa que, durante

e logo após a sua produção, ele é apenas provisório (REIß e

VERMEER, 1984, p. 19). Daí a importância fundamental da leitura e

da autonomia de leitura. STEINER (2005, p. 52, tradução de Carlos

Alberto Faraco) compara a interpretação à performance musical:

Cada execução musical é uma nova poiesis. Ela difere de todas as outras apresentações da mesma composição. Sua relação ontológica com a partitura original e com todas as execuções precedentes tem dupla face: ela é ao mesmo tempo reprodutiva e inovadora. Em que sentido existe música não executada?

Em suma, cada leitura será única e individual, independente da

intenção autoral que o originou, e sua legitimidade será possível

tanto quanto for possível justificá-la com o auxílio de elementos do

texto. Além disso, há também outros elementos que podem vir a

participar da leitura de um texto, tais como elementos biográficos do

autor, outras obras do mesmo autor, o momento histórico do autor, as

obras que supostamente influenciaram o seu trabalho, para-textos em

geral, entre outros. Tais elementos podem servir para corroborar ou

refutar certas leituras, o que não significa, de modo algum, que seja

possível atingir-se a verdade do texto. Cada leitura é, na realidade,

uma proposta de leitura, balizada por uma série de fatores. É sempre

possível fazer leituras de cunho autobiográfico, de cunho pessoal, de

cunho histórico ou de cunho bibliográfico, por exemplo – ou de to-

dos eles. Todavia, cada uma dessas leituras será apenas uma propos-

ta, posto que o que se almeja é justamente o processo, e não o fim –

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i.e., chegar-se à verdade unívoca do texto. É por esse motivo que, ao

longo dos anos, obras literárias são relidas sob luzes muito distintas,

cada qual focalizando aspectos que mais lhes convêm. É o caso, por

exemplo, da obra de Shakespeare, cuja repercussão e conjunto de

propostas de leitura permitem enfocar questões religiosas (católicas e

protestantes), históricas, sexuais (heterossexuais e homossexuais),

feministas, autobiográficas, sociopolíticas, culturais, antropológicas,

filosóficas, entre muitas outras. Cada círculo em cada época proporá

novas leituras, e talvez seja justamente esta possibilidade infindável

de leitura ao longo dos séculos que caracterize obras consideradas

clássicas.

Concluindo, então, a primeira reflexão, ao chamar o poeta de

fingidor, desconstrói-se a noção de verdade que permeia não só os

estudos literários mas todas as áreas do conhecimento, e questionam-

se os conceitos de objetividade da razão e de possibilidade de conhe-

cimento neutro e não-ideológico inserida pelo pensamento iluminista

no século XVIII e perdurante até hoje, como investiga ARROJO em

seu artigo ‘Os estudos da tradução na pós-modernidade, o reconhe-

cimento da diferença e a perda da inocência’(1996).

Antes de adentrar a segunda reflexão, i.e., a reflexão acerca do

trabalho do tradutor diante do conceito de leitura acima discutido, é

essencial precisar o aspecto do epíteto “traidor” que será trabalhado.

Há, certamente, inúmeros aspectos do trabalho do tradutor que o

tenham feito receber tal acunha; entretanto, aquele que será produti-

vo para a presente reflexão refere-se à incapacidade do tradutor de

alcançar a verdade do texto – proveniente da mente do autor original

–, levando-o a produzir um texto diferente do original, e, portanto,

infiel. Tal concepção deriva diretamente da noção discutida acima da

possibilidade de conhecimento não-ideológico e de verdades unívo-

cas e universais. Sob essa luz, o trabalho do tradutor seria o de loca-

lizar tal verdade no texto de partida, de modo a produzir um texto de

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chegada transparente, despido de ideologia e interpretação por parte

do tradutor; um texto fiel, por conseguinte. É justamente a incapaci-

dade de realizar esta tarefa que faz com que o autor mutile o belo

original, tornando-o um traidor.

Para debruçar-nos sobre o trabalho do tradutor, é preciso ressal-

tar que esta segunda reflexão é dependente da primeira, em função da

noção de tradução que aqui proponho. O tradutor é, antes de mais

nada, um leitor do texto, malgrado a postura de alguns tradutores que

se afirmam neutros, salientando que suas traduções são apenas me-

canizações transparentes, e nunca interpretações, como ilustra

BOHUNOVKY (2001/2) por meio de entrevistas realizadas com

tradutores contemporâneos. Para estes tradutores, por meio de uma

leitura automática e não interpretativa – que, por si só, já constitui

uma incoerência – é possível chegar-se à intenção do autor, que fun-

ciona como a verdade unívoca e indubitável de um texto. Ora, como

já vimos há pouco, seria impossível chegar-se ao impulso criativo

que deu origem à obra. Trata-se da DP1, à qual o leitor não tem aces-

so, e à qual o próprio acesso do autor pode ser restrito. Ademais,

todo processo de leitura é uma combinação de DP2 e DL1, o que

significa que não é possível falar de leitura transparente ou não inter-

pretativa. Como poderia o ser humano despojar-se de suas experiên-

cias, de seus sentimentos, de suas impressões, de seus conhecimentos

e de suas expectativas no momento da leitura? Se isto fosse possível,

a leitura não o seria.

Partindo-se do princípio, portanto, de que toda tradução é, a pri-

ori, uma leitura e uma interpretação, não se pode dissociar a dimen-

são pessoal, idiossincrática do ato tradutório em si. Como já vimos

anteriormente, nenhuma leitura, por mais completa que seja – “com-

pleta” no sentido da quantidade de elementos que leva em considera-

ção, ou da quantidade de possibilidades interpretativas que ela

abrange – pode chegar à dor inicial do poeta, à intenção do autor. E

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nada impediria que um determinado autor alegasse que aquela leitura

mais completa e mais pertinente aos olhos da academia ou da socie-

dade nada tem a ver com a sua dor primeira e original. O que resta ao

tradutor, então, a que ele deva fidelidade? Se num único poema de

doze versos pode-se identificar a existência de quatro dores distintas,

a qual delas ele deve ser fiel? Se tradutores são de fato traidores, o

que é que eles traem?

Com efeito, essas questões tocam no cerne do trabalho do tradu-

tor. Do ponto de vista prático, o tradutor dispõe de um texto (DP2) e

de seus conhecimentos, expectativas e experiências (DL1). Vale

salientar que esses conhecimentos podem englobar os elementos

acima apontados, i.e., aspectos autobiográficos e bibliográficos do

autor, o contexto sociopolítico da obra, aspectos históricos, etc. A

tradução será, por conseguinte, a combinação destes dois elementos,

i.e., uma espécie de DL2 - que se concretizará sob a forma de uma

segunda DP2. Por extensão da reflexão acima acerca das infinitas

possibilidades de leitura, pode-se afirmar que há infinitas possibili-

dades de tradução. Tal infinitude pode ser detectada num nível macro

– do ponto de vista das estratégias de tradução utilizadas, ou do en-

foque dado por cada tradução – ou num nível micro – do ponto de

vista das escolhas lexicais individuais. Basta lembrar que, analoga-

mente ao movimento de leitura, o movimento de tradução também é

único, condicionado por aspectos extratextuais. Sob esse aspecto, um

mesmo tradutor fará traduções distintas de um mesmo texto em mo-

mentos diferentes de sua vida – novamente tanto no nível macro

quanto no nível micro. E, mais uma vez, o que determinará a legiti-

midade de uma tradução, assim como a de uma leitura, é a sua rela-

ção com o texto de partida, bem como a possibilidade de justificativa

das escolhas tradutórias por meio de elementos textuais. Para

CROCE ([1926] 2005), cada um dos atos de linguagem é inédito, o

que significa que nenhum enunciado é completamente repetível.

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Portanto, para o autor italiano, traduzir é compor, de segunda e ter-

ceira mão, a irrepetibilidade.

Ainda quanto às infinitas possibilidades de tradução de um tex-

to, é importante observar que, à diferença do ato de leitura, em que o

viés utilizado pelo leitor terá impacto somente sobre a sua leitura

individual, o processo de tradução envolve uma dimensão ética, visto

que a leitura individual do tradutor (e, conseqüentemente, a tradução)

terá impacto sobre inúmeras outras leituras. Basta imaginarmos que o

processo de confecção de uma tradução pode ser considerado análo-

go à de um texto de partida (ver BRITTO, 1999), e que o material

inicial de que o tradutor dispõe – o texto de partida juntamente com

seus projetos, suas expectativas com relação ao texto, seus sentimen-

tos, suas experiências de leitura – é central na produção do texto de

chegada. Voltando, mais uma vez, ao poema pessoano, será a combi-

nação da DP2, DL1 e DL2 que originará o texto de chegada. E é

fundamental lembrar que, ao produzir o texto de chegada, teremos,

mais uma vez, apenas uma DP2, que servirá de instrumento para que

os leitores construam suas próprias leituras. O texto de chegada, ou

esta nova DP2, todavia, deve manter uma relação especial com o

texto de partida, senão ele não seria denominado tradução. Daí deri-

va, portanto, a dimensão ética na tradução: ao produzir o texto de

chegada, o tradutor pode adotar estratégias que privilegiam determi-

nados aspectos do texto de partida, agindo harmonicamente com a

sua própria leitura do texto – assim como com outros fatores exter-

nos presentes nos processos de tradução, tais como os leitores de

chegada, a edição em que a tradução será publicada, os próprios edi-

tores, entre outros (sobre reflexões acerca da dimensão ética da tra-

dução e da crítica de tradução literária, ver CARDOZO, 2004). É

essencial, então, que o tradutor explicite tais estratégias e vieses aos

seus leitores, de modo a evitar mal-entendidos e até mesmo críticas

descabidas. Idealmente, ao ler uma tradução, todo leitor deveria ter

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consciência de que não está lendo Shakespeare, por exemplo, mas

sim a tradução (ou a leitura) de Bárbara Heliodora de Shakespeare,

ou de Millôr Fernandes de Shakespeare. Outrossim, a questão do viés

tradutório seria considerada subjacente à leitura de qualquer tradu-

ção. De todo modo, explicitar de que maneira e com qual propósito

um determinado texto foi traduzido é uma medida para que esta di-

mensão ética da tradução seja respeitada. Assim, um leitor não se

sentiria ultrajado ao perceber que tradução dos sonetos de Shakespe-

are de que dispõe, não obstante a idade do texto de partida, apresenta

um vocabulário bastante accessível, com referências a elementos

extratextuais que certamente não existiam na época de Shakespeare,

por exemplo. Se tal edição das traduções dos sonetos de Shakespeare

contasse com um para-texto explicitando o projeto de tradução, o

leitor poderia compreender claramente de que modo a relação entre

esta tradução e seu texto de partida se dá. De todo modo, ainda que o

projeto de tradução não seja explicitado pelo tradutor por meio de

para-textos, normalmente a própria leitura atenta da tradução pode

apontar para tal projeto, elucidando questões tradutórias que possam

surgir. Afinal, não há nada que diga mais acerca de uma tradução do

que ela própria. (Para mais informações sobre a noção de reconstru-

ção de projeto de tradução, ver BERMAN, 1995.)

Questões interpretativas mais pontuais, contudo, estarão sempre

aquém de qualquer sistematização. A dimensão pessoal da leitura

(seja de leitores de partida, de chegada e também de tradutores, como

já mencionado acima) estará sempre presente, de modo que toda

tradução estará sujeita a críticas do tipo “tal idéia não está presente

do original”, ou “o autor não queria dizer isso quando falava de...”.

De fato, tais “discrepâncias” ocorrerão em qualquer processo de lei-

tura, seja ele de textos de partida ou textos de chegada (como já vi-

mos há pouco), com a diferença de que, na tradução, elas são

geralmente atribuídas à suposta incompetência do tradutor. Analo-

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gamente ao trabalho do autor, que se empenha em expressar deter-

minadas idéias por meio do seu texto, o tradutor também o faz –

levando em conta não só seus sentimentos, outras leituras e experi-

ências, igualmente ao autor, mas também considerando o texto de

partida –, e nenhum dos dois pode garantir que todos os leitores em

todos os momentos compreenderão o texto da mesma maneira em

que ele o concebeu – mais uma vez, DP1 ≠ DP2 ≠ DL1 ≠ DL2.

É pertinente retornar às perguntas “O resta ao tradutor a que ele

deva fidelidade” e “Se tradutores são de fato traidores, o que é que

eles traem?”. Se, como já discutimos há pouco, o processo de leitura

não tem como objetivo alcançar a verdade unívoca do texto, posto

que tal verdade não existe, e não pode ser atribuída nem ao produtor

do texto de partida, nem tampouco ao texto de partida em si, o con-

ceito tradicional de fidelidade na tradução deve ser descartado. Com

o termo “tradicional” refiro-me à noção de fidelidade ao texto en-

quanto receptáculo de significados constantes e absolutos, e ao autor

do texto, enquanto conhecedor e retentor da verdade do texto. O que

norteará as decisões do tradutor, e, em última análise, as definirá não

será, portanto, a intenção do autor ou o texto de partida de per si. Tal

tarefa cabe ao projeto ou encargo de tradução, que abrangerá os se-

guintes fatores: o texto de partida, a cultura de chegada, os receptores

de chegada, as razões que motivaram a produção da tradução, o meio

de veiculação da tradução, as estratégias de tradução utilizadas, o

propósito que o iniciador do processo tradutório pretende atingir por

meio da tradução, bem como a leitura que o tradutor o fez do texto.

Se o iniciador do processo de tradução for o próprio tradutor, pode-se

falar de “projeto de tradução” em detrimento da noção funcionalista

de “encargo de tradução”, uma vez que o tradutor não pode trabalhar

“por encargo” dele mesmo (CARDOZO, 2004 e LEAL, 2005). Para

mais informações sobre o encargo (ou projeto) de tradução e as ca-

racterísticas que ele abrange, ver NORD (1997, 27). A fidelidade na

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tradução pode ser definida do ponto de vista da consistência do pro-

jeto de tradução e da realização do projeto de tradução.

Um exemplo ilustrativo de tal conceito de fidelidade é a tradu-

ção de literatura infantil. Peguemos, por exemplo, a obra Alice’s

Adventures in Wonderland, que não é exclusivamente literatura in-

fantil. O conceito de fidelidade na tradução dessa obra oscilará signi-

ficativamente dependendo, sobretudo, da edição em que a obra será

publicada. De acordo com o tipo de edição – i.e., desde uma série

ilustrada de histórias infantis que acompanha um Cd de áudio, até

uma edição sofisticada, bilíngüe, repleta de notas e para-textos –,

estarão pré-determinados os leitores de chegada, a cultura, conheci-

mentos e expectativas desses leitores, assim como o propósito e a

função que a obra desempenhará na cultura de chegada. Sob esse

aspecto, um determinado trocadilho que joga com expressões - tais

como provérbios ou canções – típicas da cultura inglesa, poderá ser

traduzido de maneiras diferentes, e tais traduções não serão determi-

nadas pelas supostas intenções do autor, nem tampouco pelo texto de

partida, única e exclusivamente. Ora, na tradução destinada a crian-

ças, o efeito humorístico e possibilidade de identificação com um

modelo fixo nacional serão os aspectos mais caros. O tradutor pode-

rá, pois, “trair” a intenção original do autor – que, apesar de não po-

der ser elucidada, provavelmente nada tinha a ver com canções e

provérbios brasileiros – bem como o texto de partida em si – no qual

não há referência alguma à cultura brasileira -, e produzir um trocadi-

lho com expressões brasileiras, produzindo um efeito análogo ao do

texto de partida nos leitores de partida. Tal tradução, apesar de in-

congruente com os elementos exatos de texto de partida, será absolu-

tamente fiel, e sobretudo, ética, uma vez que propõe um projeto

adequado aos leitores que visa atender, e que realiza este projeto a

contento. Este mesmo trocadilho, todavia, certamente não será tradu-

zido por meio da mesma estratégia na edição acadêmica bilíngüe,

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visto que seus prováveis leitores, justamente por terem mais experi-

ência de leitura e algum conhecimento da língua do original, estarão

menos interessados no efeito humorístico imediato do texto, e mais

interessados em estudar a obra nas suas especificidades. Tal edição

aponta para uma leitura de cotejo com o original e de constante com-

plementação por meio das notas e para-textos. Assim, uma tradução

mais literal será considerada fiel, por mais que o efeito humorístico

não seja completamente mantido – “traindo”, mais uma vez, a prová-

vel intenção do autor, assim como o texto de partida em si.

A fidelidade é, portanto, um conceito caro à tradução, indubita-

velmente. Porém, longe de pregar uma relação servil com o texto e

com o produtor de partida, tal conceito sugere a segunda acepção do

verbete fidelidade no dicionário HOUAISS, a saber: “constância nos

compromissos assumidos com outrem”. Ao aceitar fazer uma tradu-

ção, o tradutor assume um compromisso com o iniciador deste pro-

cesso de tradução, bem como com os prováveis leitores de chegada.

Suas atitudes serão fieis e éticas na medida em que ele agir de acordo

com projeto de tradução considerado adequado – tendo em vista o

iniciador e o receptor de chegada. Quanto ao texto e ao produtor de

partida, pode-se dizer que, ao ler um determinado texto, e ao se pro-

por a traduzi-lo, o tradutor também estabelece uma relação com este

texto e seu respectivo autor – não como alguém que detém a verdade

do texto, mas como alguém cujo trabalho lhe serve de instrumento.

Com efeito, tal relação também engloba uma dimensão ética, posto

que ao traduzir o texto, o tradutor procurará ser fiel e congruente

com a sua leitura deste mesmo texto, com os aspectos que, a seu ver,

são essenciais no texto de partida. Portanto, o tradutor não agirá con-

trariamente à sua concepção do texto de partida, inserindo aspectos

que ele crê não existirem, ou emitindo outros que lhe parecem fun-

damentais. Voltando ao exemplo citado no parágrafo anterior, ao

primeiro tradutor será fundamental o efeito humorístico, enquanto ao

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segundo, as próprias referências extratextuais inglesas. Ao esforçar-

se em trabalhar tais aspectos julgados essenciais – tendo em vista o

projeto de tradução –, aspectos esses que o tradutor pode construir a

partir da leitura do texto de partida, então o tradutor estará sendo fiel

ao texto de partida – e, por extensão, ao seu autor. É por este motivo

que freqüentemente fala-se do tradutor como leitor privilegiado ou

“leitor crítico”, nas palavras de NORD (2005, 56). Como já vimos no

início do ensaio, malgrado o aspecto idiossincrático da leitura, há

leituras consideradas mais completas, do ponto de vista da quantida-

de de elementos que leva em consideração, ou da quantidade de as-

pectos para os quais aponta. De maneira muito geral, pode-se afirmar

que leituras mais críticas e completas provavelmente levarão a tradu-

ções também mais críticas e completas. Daí a importância dos co-

nhecimentos e da competência tradutória do tradutor. Ao referir-se a

essa prise de conscience, STEINER (2005, 51) afirma que

É indispensável um conhecimento ardoroso, bem informado da história da língua em questão, das energias transformadoras do sentir que fazem da sintaxe um registro da vida social. Deve-se dominar o contexto espacial e temporal de um texto, as amarras que prendem mesmo a mais idiossincrática das expressões poéticas do idioma circundante. Familiaridade com o autor, o tipo de intimidade inquieta que exige conhecer toda a sua obra, do melhor e do pior, da juvenilia ao opus posthumum, facilitará a compreensão a cada momento.

Em suma, se o poeta é mesmo um fingidor – por não conseguir

expressar com exatidão “a dor que deveras sente” –, e se, sob esse

aspecto, ele trai-se a si mesmo toda vez que põe suas dores no papel,

não se pode esperar que o tradutor (e também o leitor) seja, senão,

também um traidor. E tal relação de fingimento e traição pode ser

observada em qualquer ato comunicativo, seja ele oral ou escrito. É

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como afirma STEINER (idem, 273), ao comentar o fato de Ortega y

Gasset considerar a tradução “impossível”: “Mas também o é toda

concordância absoluta entre pensamento e fala. De algum modo, o

‘impossível’ é superado a cada momento nos assuntos humanos”. A

despeito disso (ou por conta disso), as pessoas se comunicam, se

compreendem, se expressam. É preciso que estes jogos de fingimen-

to, traição (desprovidos de suas conotações depreciativas) e interpre-

tação sejam levados em conta em todos os atos comunicativos

(sobretudo nos escritos), para que noções de significado, intenção e

verdade sejam relativizadas – da maneira, por exemplo, como tentei

demonstrar no presente artigo.

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Victor Giudice e o Rio de Janeiro

André L. M. L de Scoville (UFPR)

Andanças de Victor Giudice

O Rio de Janeiro é a cidade de Victor Giudice e de suas histó-

rias. Essa afirmação, porém, exige desde já certos esclarecimentos.

Para começar, a certidão de nascimento do escritor diz que Giudice

nasceu mesmo foi na cidade de Niterói, em 14 de fevereiro de 1934.

Quando tinha apenas cinco anos de idade, sua família mudou-se para

o Rio de Janeiro, passando a morar no bairro de São Cristóvão. Mo-

rou praticamente a vida toda no Rio de Janeiro, saindo apenas duran-

te um ano (de 1949 a 1950) quando a família foi para Macaé. Com a

morte do pai, em 1950, retornou para São Cristóvão, onde morou até

1975. As poucas mudanças de residência nunca o levaram para muito

longe, tendo vivido também nos bairros da Tijuca e Andaraí, até

falecer em 22 de novembro de 1997.

Deve-se ignorar a certidão, mesmo porque, em suas narrativas,

pode-se ler a estreita relação que Giudice manteve com o Rio de

Janeiro. Desde seus primeiros contos (do começo da década de

1970), apesar das poucas referências diretas, o Rio de Janeiro é a

cidade que se reconhece. A partir do livro Salvador janta no Lamas

(1989), esse reconhecimento se torna óbvio graças às diversas refe-

rências explícitas a lugares da cidade. São Cristóvão e outros bairros

da Zona Norte passam a ser evidenciados como núcleos espaciais de

várias histórias e pontos de origem de muitos personagens. Victor

Giudice incorpora esses e outros pedaços do Rio de Janeiro em sua

ficção, denotando seu vínculo biográfico e afetivo com os lugares

evocados.

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Dois escritores no Lamas

Victor Giudice e João Antônio foram contemporâneos, apesar

de João Antônio ter estreado bem antes em livro, publicando Mala-

gueta, Perus e Bacanaço em 1963. No entanto, os modos de tratar os

diversos aspectos da cidade divergem bastante. Principalmente por-

que os olhares dos dois autores estão direcionados para segmentos

sociais diferentes. Enquanto João Antônio ocupa-se do marginal e do

marginalizado, dos excluídos da sociedade, Giudice sobe um degrau

para tratar da classe média que ainda se insere no mundo do trabalho

e que acredita no esforço pessoal como forma de ascender ou, no

mínimo, manter sua posição na escada social.

A diferença de perspectivas entre os autores pode ser evidencia-

da exemplarmente nas respectivas menções ao Café Lamas. Fundado

em 04 de abril de 1874, o Lamas situava-se no Largo do Machado,

bairro do Catete. No ano de 1976, devido à construção do metrô,

mudou de endereço passando a situar-se na Rua Marquês de Abran-

tes, no bairro do Flamengo, ainda relativamente próximo de seu en-

dereço anterior.

Quando João Antônio cita o Café Lamas, está se referindo ao

antigo Lamas que se localizava no Largo do Machado. A divisão

física desse café-restaurante em dois espaços independentes fazia

com que ali se verificasse a proximidade e a separação de grupos

sociais distintos, como João Antônio bem percebe:

O cara da sinuca é o cara que vive, realmente, dentro do padrão do seu limite. Então, aqui no Rio, quando cai no Lamas, não é exatamente o Lamas do filé à francesa, que foi freqüentado por Coelho Neto, por Machado de Assis e pelos estudantes não sei de que: quando cai no Lamas, cai a sinuca atrás, separada por uma porta, separada totalmente. O cara que freqüenta a mesa de sinuca do Lamas é o gajo que nunca sentou na mesa para comer aquele

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prato. Talvez ele até desconheça a existência daquele prato, ele é um cara que comeu em casa ou não comeu, ou defendeu um sanduíche. Ele é um miserável: o outro, qualquer cara que freqüenta o Lamas, não entra lá com menos de 50 cruzeiros no bolso. Agora, o cara que passa direto pelas mesas e vai para o fundo, esse não tem 50 cruzeiros, não; e se tiver é uma plantação que ele vai fazer para retirar 70 ou 100. Ele é um homem muito mais fixado na realidade, aquela não aparente do Lamas, que é a verdade lá atrás, fora do quase acontecimento social. (ANTÔNIO, 1976, p. 57)

João Antônio passa pelo restaurante e atravessa a porta rumo à

sala de sinuca. No Lamas do Largo do Machado, esses espaços eram

contíguos e isolados, reproduzindo a própria situação social da cida-

de. Quando o Lamas muda de endereço, apenas um desses espaços

sobrevive. Prevalece a tentativa de identificação do Lamas com o

restaurante de freqüentadores ilustres. Acaba a sinuca.

É já no Lamas da Marquês de Abrantes que Giudice situa seu

conto “Salvador janta no Lamas”. O personagem Salvador não é um

miserável, mas também não é um abastado. Ele fica naquele meio-

termo que, por suportar o trabalho desgastante em um banco, se per-

mite, ainda que com sentimento de culpa, jantar sozinho num restau-

rante pelo menos uma vez por mês:

O que Salvador reclama é o direito de respirar a brisa noturna em completa solidão, pensando no que quiser, fantasiando as ruas, os transeuntes, para depois regalar-se na mesa de um restaurante, sem dar satisfação a quem quer que seja. (GIUDICE, 1989, p. 142)

Mas Salvador tem que dar satisfações, sabe que vai ter de se ex-

plicar para a mulher por ter chegado mais tarde em casa. Sabe tam-

bém que seu dinheiro é contado e que qualquer despesa

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extraordinária desequilibra o orçamento. Ele tenta viver “dentro do

padrão do seu limite”, mas não resiste às escapulidas esporádicas.

De qualquer modo, o desenvolvimento do conto vai mostrar que

Salvador está fora de lugar, que ele é o elemento estranho justamente

por ser um homem comum apanhado em uma armadilha de nonsen-

se. Salvador gosta de observar pessoas, gosta de analisar comporta-

mentos e hábitos. Porém, naquela noite no restaurante, passa de

observador a observado e não sabe como reagir quando se torna o

centro das atenções. Salvador é insistente e inexplicavelmente obser-

vado por diversas pessoas. Sentindo-se oprimido só lhe resta fugir.

Salvador sai às pressas, sem pagar a conta, e é novamente um

sentimento de culpa mesclado com uma preocupação com sua repu-

tação que o faz voltar ao restaurante a tempo de ver que outro fre-

qüentador (o “gordo mandarim ocidentalizado”) o substituíra como

centro das atenções. Esse personagem, ao invés de sentir-se acuado,

responde aos olhares realizando diversos números de magia e rece-

bendo, por isso, aplausos entusiasmados de seu público. Salvador

percebe que não pertence mesmo àquele lugar e sente inveja do su-

cesso do gordo mandarim:

Anônimo e amargo, foi-se embora. A dois quarteirões do Lamas, ouviu uma retumbante salva de palmas. Pegou o último metrô e voltou para casa. Graças a Deus a mulher já estava dormindo. Se ela se metesse a fazer perguntas, ele não saberia o que dizer. (GIUDICE, 1989, p. 155)

Com focos diferentes, a agressividade provocativa de João An-

tônio, fundada em um intuito de reportar a realidade cruel dos exclu-

ídos, encontra um contraponto na crítica sutil de Giudice, elaborada

através do diálogo entre o prosaico e o insólito da vida na cidade.

Por suas referências diretas a lugares específicos do Rio de Ja-

neiro, como a menção ao Lamas e também de várias outras “coorde-

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nadas geográficas” (“foi com esse pensamento que saltou do metrô

no Largo do Machado e respirou a brisa a caminho do Lamas”; “(...)

ganhou o corredor da saída e suspirou de pernas bambas e vitorioso

no asfalto da Marquês de Abrantes”; “saltou na Central e pegou o

metrô de volta para o Largo do Machado”), o conto “Salvador janta

no Lamas” pertence ao que pode ser visto como uma segunda fase da

obra de Giudice. Nesse aspecto, verifica-se mesmo que, ao longo de

sua obra, existem dois tratamentos narrativos distintos em relação à

cidade.

Nos contos da década de 70, a cidade na maioria das vezes não

recebe um nome. O Rio de Janeiro praticamente não é mencionado,

entretanto em alguns trechos estabelece-se uma referência. Verifica-

se que, em Necrológio (1972) e em Os banheiros (1979), Giudice

escreve sobre situações que transcorrem numa grande cidade, o que

acaba dando aos contos uma característica universal. Na maioria

desses contos, pode-se buscar correspondências com qualquer grande

cidade, uma vez que são cidades sem nome ou ainda com nomes

inventados – por exemplo Harmonisópolis, do conto “Os pontos de

Harmonisópolis”, de Necrológio.

Em consonância com tendências literárias (e artísticas, de modo

geral) daquele período, a maioria dos contos de Necrológio está re-

pleta de linguagem metafórica e experimentações formais – neolo-

gismos por aglutinação de palavras, a substituição metódica de letras

(como em “Oz Gueijos”), a interrupção de frases, a multiplicidade de

vozes, o intercalar na narrativa de linhas de sons, pensamentos, ruí-

dos e gritos (como em “Salvatouros”)... enfim, todo um repertório de

experiências com a linguagem que era freqüente naquele período.

Em Necrológio, Giudice escolhe também para os personagens

nomes que buscam um efeito ao mesmo tempo humorístico e de

distanciamento. São característicos dessa fase os personagens com

nomes esdrúxulos como Sinephryza, Egberto Pepe Gonzalez y Gon-

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zalez, Franciseh, Grão Medalha, Debi Mediocriz, Gafilhão de Sabur-

go, F., Fúlvia Caprina e Burgalês Salvatouros. Destacam-se os no-

mes “latinizados” como Marius, Martius, Eustachius, Capadotius,

Flebius, e também os personagens “Auri” (Auridéa e Auriflor) que

fariam parte posteriormente do romance Bolero (1985). É interessan-

te perceber, entretanto, que, em seu conto mais conhecido “O arqui-

vo”, que abre Necrológio, Giudice preferiu justamente um nome

comum para seu personagem: joão (com letra inicial minúscula, en-

fatizando sua personalidade também minúscula).

Não existem em “O arquivo” referências geográficas específi-

cas. Todavia, sabe-se que o local de trabalho de joão situa-se no cen-

tro de uma grande cidade. Os subseqüentes rebaixamentos de postos

e reduções de salários que, ao longo da vida, joão recebe como re-

compensa da empresa, provocam também suas sucessivas mudanças

de moradia. O processo é paralelo e na medida em que seu salário

diminui, joão vai se mudando para lugares cada vez mais distantes do

local de trabalho.

Estão associados, portanto, dois movimentos que se desenvol-

vem em eixos distintos: no eixo vertical, o movimento descendente

da carreira de joão; e no eixo horizontal, como um reflexo, o distan-

ciamento entre local de moradia e empresa. Na primeira mudança,

ele vai morar num “quarto mais distante do centro da cidade” e passa

a ter que “tomar duas conduções para chegar ao trabalho”. Na segun-

da mudança, já são necessárias três conduções e joão está morando

num subúrbio. Com os novos cortes salariais, joão passa a viver nos

campos, “entre árvores refrescantes”, e cobrindo-se com “farrapos de

lençol”.

É a descrição do processo de submissão do personagem, entre-

tanto, a opressão é, ironicamente, bem recebida por ele. O humor

amargo desse conto está presente tanto no sentimento de orgulho e

gratidão do empregado, quanto na perversa política de reconheci-

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mento pelos bons serviços adotada pela empresa. É um sistema que

funciona com uma ordem na contramão da lógica que se poderia

presumir como “natural” no mercado de trabalho, ou seja, que as

recompensas pela dedicação e pelos serviços prestados sejam promo-

ções e aumentos de salários. Todavia, a lógica invertida acaba não

parecendo tão absurda assim, pois reflete um processo mais amplo

que é a perda de poder econômico de trabalhadores assalariados co-

mo joão. E esse processo materializa-se de modo claro na crescente

periferização das grandes cidades, em que pessoas de baixa renda

acabam sendo empurradas para cada vez mais longe do centro e das

áreas nobres da cidade. O deslocamento espacial de joão é um exem-

plo desse processo.

O conto “O arquivo” compartilha com “Carta a Estocolmo” a

característica de apresentar menos experimentações formais que os

demais contos de Necrológio. Essas experiências, como o arranjo

gráfico do texto e a própria invenção de nomes absurdos para lugares

e personagens, colaboram na criação de um universo ficcional que,

em sua primeira camada de sentido, se descola do mundo real. “O

arquivo”, configurado como um conto com características da literatu-

ra fantástica ou mesmo do realismo-fantástico, mantém por analogia

vínculos próximos com dados reais, uma tendência que se acentuou

nas obras posteriores de Giudice:

Em Os banheiros, a narrativa está mais livre das experiências formais, como percebe Elizabeth Lowe no prefácio desse livro: A sintaxe fragmentada e ultra-experimental de seu volume de estréia se corporificou numa prosa fluida e magnífica sem perder nenhuma característica de sua mordacidade. Aqui a crueldade é mais cortante, os personagens são mais “reais” e mais pungentes, malgrado sua excentricidade. (LOWE. in: GIUDICE, 1979, p. 8)

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Ainda persiste, em vários contos, a construção de um universo

fantasioso, no entanto, intensifica-se a aproximação temática de Giu-

dice com os referentes do mundo real. Sem abrir mão do insólito, já

há mais histórias em que este se manifesta diluído em situações coti-

dianas, como nos contos “Os banheiros”, “O visitante”, “A lei do

silêncio” e “Crime de uma noite de verão”.

Seguindo a linha de “O arquivo”, muitas narrativas ainda se de-

senvolvem em lugares não explicitados, mas cujas características não

entram em conflito com elementos da realidade. Ao lado dessas,

estão histórias como “Miguel Covarrubra” e “Narrativa do número

um” (conto apresentado pelo autor como fragmento de Bolero, que

seria lançado apenas em 1985) que se passam num lugar em que

monarquia e república se alternam como forma de governo. O ro-

mance Bolero pode ser visto como a culminância do interesse de

Victor Giudice em explorar alegoricamente esse lugar que ali é de-

nominado simplesmente como “Cidade”.

O livro de contos Os banheiros, nesse sentido, é um ponto de

transição que já mostra a direção seguida por Giudice nas obras pos-

teriores. No livro Salvador janta no Lamas, Giudice começa a forne-

cer os nomes dos lugares onde as histórias transcorrem e são geradas.

Há uma ligação biográfica que se torna mais evidente a partir de

então. A cidade passa a ser explicitamente o Rio de Janeiro. O centro

da cidade já é o centro do Rio. Os bairros também recebem a devida

denominação (São Cristóvão, Méier, Penha, Tijuca, Vila Isabel...).

Lugares que eram genéricos (teatro, parque, museu, praia, restauran-

te) tornam-se específicos como o Teatro Municipal do Rio de Janei-

ro, a Quinta da Boa Vista, a Confeitaria Colombo e o próprio

Restaurante Lamas (já mencionado), para citar apenas alguns exem-

plos. Todos são referências reais.

As referências, em muitos casos, são bastante precisas, como se

vê, por exemplo, no conto “Cumplicidade”, em que o pai (persona-

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gem) não apenas trabalha numa agência bancária, mas na agência

bancária Andaraí, da Caixa Econômica Federal, e a família mora não

num edifício qualquer, mas num edifício da Rua Conde de Bonfim,

na Tijuca, “pertinho da Praça Saens Peña, a três palmos do metrô”.

(GIUDICE, 1989, p. 94)

Existem várias implicações quanto ao fato dessas referências

passarem a ser constantemente explicitadas nos textos de Giudice.

Na verdade, cada conto em si possibilita respostas particulares sobre

os motivos das referências nele citadas. Porém, de modo geral, o que

se percebe é essa aproximação mais clara de Giudice com elementos

biográficos. Os bairros da Zona Norte são os lugares mais freqüentes,

e eles são evocados tanto em situações presentes da narrativa como

em lembranças. É uma tendência de revisitar lugares e pessoas do

passado que se torna mais forte nas narrativas. Um dos personagens

do conto “O homem geográfico” faz menção a “um desejo antigo de

atravessar a cidade e rever o subúrbio onde passara a infância”.

(GIUDICE, 1989, p. 63-64) Giudice não “revê” apenas o bairro da

infância, ele efetivamente passeia pela cidade, ainda que num círculo

bastante restrito que abrange partes do centro, zona norte e zona sul

do Rio de Janeiro e que desse círculo estejam praticamente excluídas

as diversas favelas da cidade.

As situações que são narradas refratam, principalmente, o modo

de vida de pessoas da classe média. Em alguns poucos contos, ricos

(e muito ricos) e pobres (e muito pobres) estão presentes. Em Salva-

dor janta no Lamas, a exceção mais relevante é o “homem da camisa

vermelha”, do conto “O homem geográfico” – uma das poucas vezes

em que Giudice trata de um personagem que vive no morro.

É possível, neste ponto, fazer um rápido levantamento dos prin-

cipais lugares das narrativas desse livro. Nos contos “Triângulo esca-

leno” e “Bolívar”, os personagens centrais moram em São Cristóvão;

em “Cumplicidade”, os personagens moram na Tijuca; em “Minha

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mãe” e em “O segredo de Suzana”, os personagens centrais moram

num subúrbio indeterminado; em “O homem geográfico”, os perso-

nagens estão dispersos por vários cantos da cidade; em “O último

camarão da noite”, há o trajeto por toda a Zona Sul feito por perso-

nagens que tentam voltar para casa, ou melhor, para o apartamento

na Rua Vieira Souto (Ipanema); e no conto “Salvador janta no La-

mas”, o lugar central da narrativa é o próprio Restaurante Lamas,

localizado no Flamengo.

Esse breve levantamento serve para confirmar a predominância

de subúrbios e bairros da Zona Norte como núcleo espacial das nar-

rativas e também a própria especificação dos lugares, que anterior-

mente era rara nas obras de Giudice.

Essas tendências são reencontradas no romance O sétimo punhal

(1995) que se passa em São Cristóvão, Tijuca e na cidade de Petró-

polis, e no livro de contos O Museu Darbot e outros mistérios, publi-

cado pela primeira vez em 1994. As histórias de seis dos noves

contos incluídos em O Museu Darbot e outros mistérios estão expli-

citamente centradas na cidade do Rio de Janeiro, e há ainda outra

(“A festa de Natal da condessa Gamiani”) que se passa no terraço de

um palacete localizado na praia de Atafona, portanto, no Estado do

Rio de Janeiro. As exceções são “Relatividade em nome de Borges”

(um microconto sobre um imperador chinês) e “O hotel” (em que

não há referências explícitas a lugares reais). Este último conto, a

propósito, já havia sido escrito muitos anos antes.

Pode-se dizer que, desde seus primeiros livros, Giudice se apro-

pria de elementos conhecidos e incorpora-os em suas histórias sem

buscar uma exata correspondência com os dados reais, aliás muitas

vezes desfigurando-os, deslocando-os para outras situações.

Os ambientes de trabalho e doméstico sempre estiveram presen-

tes em parcela significativa de sua obra. Na medida em que se inten-

sifica a ênfase em tramas familiares, a partir de Os banheiros, esses

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elementos recorrentes passam a ser cada vez mais reconhecidamente

próximos de elementos da biografia do autor. As lembranças de pes-

soas e lugares da infância e os diversos interesses pessoais (como a

arte, a música e a gastronomia) fixam-se como matéria essencial de

seus contos. O destaque que o bairro de São Cristóvão recebe nos

últimos livros relaciona-se certamente com essa recuperação de ele-

mentos que fizeram parte da infância de Giudice, o que é verificável,

por exemplo, nos vários contos que retratam situações de família e

que contam com uma espécie de “elenco fixo” – pai, mãe, tia e cri-

ança. No entanto, seria um erro tentar identificar prontamente o autor

com algum personagem específico, pois Giudice faz questão de tro-

car de papéis, lançar despistes, enfim, brincar e explorar livremente

esses elementos. De qualquer modo, a recorrência ao bairro de São

Cristóvão torna-se clara e freqüente, ainda que nem todas as referên-

cias sejam tão evidentes assim.

Há inclusive muito da própria história do bairro nas entrelinhas

das narrativas de Giudice. Um exemplo disso seria a presença em

vários contos de monarquias e personagens aristocráticos, já que o

fato da família imperial ter residido em São Cristóvão deixou marcas

(tanto na paisagem, quanto no imaginário da população) que são

visíveis até hoje, como a Quinta da Boa Vista (atualmente um parque

que abriga o Museu Nacional, o Museu da Fauna e o Jardim Zooló-

gico), a Casa da Marquesa de Santos (atualmente o Museu do I Rei-

nado) e o Clube de São Cristóvão Imperial (fundado em 1883, e que

se mantém em atividade, ainda que em outra sede).

Dessas referências, a Quinta da Boa Vista é uma das mais pre-

sentes, aparecendo em diversos contos de Giudice. Atravessar a

Quinta da Boa Vista faz parte do trajeto rotineiro de muitos persona-

gens e é o ponto de partida para algumas situações insólitas. É o que

se vê em “Bolívar”, em que o assassinato do marido, durante uma

das habituais caminhadas dominicais pela Quinta da Boa Vista, tem

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desdobramentos inusitados na vida da esposa. É também o caso de

“Jurisprudência” em que Cipião, voltando para casa após o trabalho,

é detido arbitrariamente quando se prepara para atravessar a Quinta

da Boa Vista. E ainda, o policial de “O homem geográfico”, que

também tem que atravessar a Quinta da Boa Vista, até chegar à dele-

gacia em que trabalha.

O bairro de São Cristóvão é retratado por Giudice como uma

espécie de lugar mágico, um espaço propício para acontecimentos

inusitados. Essa visão decorre da relação afetiva que Giudice man-

tém com o bairro, uma relação que está evidenciada em vários textos

e cujos exemplos mais marcantes são o conto “A glória no São Cris-

tóvão”, incluído em Passeios na zona norte (uma antologia de contos

de vários autores) e o capítulo “São Cristóvão”, do romance inacaba-

do Do catálogo de flores – que integra o volume lançado em 1999,

reunindo textos diversos e uma nova edição de O Museu Darbot e

outros mistérios.

Desse conto, vale citar um trecho em que Cambraia, o narrador,

prepara seu relato fantástico descrevendo sua relação com o bairro:

Nasci e cresci no bairro de São Cristóvão. Quando se nasce e se cresce em São Cristóvão, logo se aprende que em São Cristóvão todas as coisas são de São Cristóvão. Eu, por exemplo, embora tenha vivido a maior parte do tempo fora do Brasil, sou e sempre serei uma coisa de São Cristóvão, que morava no Campo de São Cristóvão, que ia aos domingos na matinê do Cinema São Cristóvão, que dançava nas sabatinas do Clube Imperial de São Cristóvão e que, de segunda a sábado, estudava no Colégio Brasileiro de São Cristóvão. (GIUDICE, 1995)

Muitas dessas referências estão em correspondência com ele-

mentos da biografia de Giudice. Essas aproximações fazem parte do

jogo ficção-realidade proposto pelo autor. E o jogo de correspondên-

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cias prossegue com a entrada do personagem Victor, “um gorducho

sabido que conhecia tudo que é música de frente para trás e de trás

para diante”. (GIUDICE, 1995)

Victor e Cambraia, ainda jovens, disputavam as atenções de Le-

tícia. Durante um baile, o jovem Victor é substituído pelo velho Vic-

tor, que teria viajado no tempo até aquele momento. Segue-se a

conversa entre os dois em que o velho Victor se revela para Cam-

braia. Há uma sucessão de espelhamentos na narrativa, como o fato

de o velho Victor escrever contos, sendo que um deles chama-se “A

glória no São Cristóvão”. Absorto na varanda, o personagem Victor

contempla demoradamente os flamboyants vermelhos do Campo de

São Cristóvão. Uma visão que faz Cambraia, observando Victor,

constatar que o Campo de São Cristóvão era um jardim de sonho.

Mais adiante, há também referências à obra do próprio Giudice, co-

mo uma alusão ao conto “Carta a Estocolmo”.

Essa imagem do Campo de São Cristóvão como um jardim de

sonho, de certo modo, reaparece no conto “A história que meu pai

não contou”, de O Museu Darbot e outros mistérios, em que é descri-

to como “um imenso jardim francês, enfeitiçado por infinitos cantei-

ros de dálias brancas e gérberas amarelas, (...)” (GIUDICE, 1999, p.

79); e mais claramente no início do capítulo “São Cristóvão”, de Do

catálogo de flores:

Até 1965, o Campo de São Cristóvão era um jardim sob encantamento. Hoje, a exemplo das coisas muito queridas que se dissolvem, é um jardim encantado. Só quem deslizou em seus caminhos de terra amarela, protegido pelas copas sangüíneas dos flamboyants, sob a vigilância dos elefantes de fícus, e indiferente às flores, cultivadas apenas para serem lembradas muito depois de extintas, é capaz de acreditar em magia. (GIUDICE, 1999, p. 207)

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Esse trecho, que é o começo do relatório do narrador sobre o

poeta Pedro Maravella, reforça a associação pretendida por Giudice

do bairro como um lugar mágico. É ainda mais esclarecedor o trecho

que se segue, em que o narrador revela essa intenção ao refletir sobre

o próprio processo da escrita. Mais uma vez o jogo entre ficção e

realidade está exposto por Giudice por meio das palavras do narra-

dor:

Perdi meia hora em releituras e correções deste começo inseguro sobre o efeito que faria quando lido pela dupla, talvez pela trinca [Cavanaugh, Monty e Palmy]. Eu achava que a providência mais urgente a ser tomada seria dar uma idéia da validade mítica do ambiente onde tudo ia acontecer. O bairro de São Cristóvão é tão mítico e atraente quanto a ilha habitada por Caliban, n’A Tempestade, de Shakespeare. Parecia absolutamente necessário que eles entendessem isso. São Cristóvão é o admirável mundo novo de quem descobre um universo particular contido numa cidade. (GIUDICE, 1999, p. 207)

Giudice propõe a associação do espaço com a magia partindo da

observação de elementos particulares como o Campo de São Cristó-

vão. Nesse caso, a magia é evocada pela lembrança do narrador e

está, a princípio, relacionada à beleza da natureza, por meio da des-

crição de como eram os jardins (vale lembrar, um jardim planejado,

portanto, uma intervenção urbanística) em uma determinada época.

No trecho citado, o narrador estimula a idéia de que aquele jardim

não é um jardim qualquer, mas um lugar especial. No entanto, essa é

uma descoberta pessoal e nem todos são capazes de perceber isso,

como o próprio narrador deixa entrever em suas reflexões. Há um

esforço do narrador para transmitir em seu relatório sua descoberta e,

mais do que isso, para convencer os seus leitores, pois, uma vez acei-

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ta essa imagem de um bairro de São Cristóvão mágico, já está prepa-

rada a base para eventos insólitos que venham a ocorrer na narrativa.

São Cristóvão é um lugar especial dentro da cidade. Para Giudi-

ce, certos lugares têm mesmo essa capacidade mágica de trazer de

volta o passado não apenas como lembrança, mas coexistindo, inte-

ragindo e transformando o presente. Dá-se a interseção de tempos

distintos num espaço específico e num momento único e revelador

em que passado e presente colidem e ganham significação. É o que

acontece, por exemplo, no conto “A única vez”, em que o narrador,

ao passar pela Praça da Bandeira, lembra, invoca e efetivamente

encontra o pai, morto há 44 anos. Associando a lembrança do pai ao

local por onde está passando, o narrador tem a revelação: “Foi a úni-

ca vez que eu vi meu pai.” (GIUDICE, 1999: 25)

Pensando as relações que Giudice estabelece com referências

espaciais reais, percebe-se essas duas fases de sua obra em que a

observação e a invenção estão imbricadas, ora com o acento mais

forte sobre uma, ora sobre outra.

Na formação de uma imagem literária dos lugares de Giudice,

prevalece como efeito imediato uma revitalização do espaço real. Os

espaços criados por Giudice encontram correspondência na realidade

e ao mesmo tempo agregam características e valores. A longevidade

dessas imagens depende, é claro, da repercussão da própria obra de

Giudice.

Referências bibliográficas

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GIUDICE, V. Os banheiros. Rio de Janeiro: Codecri, 1979.

------. Bolero. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.

------. O Museu Darbot e outros mistérios & Do catálogo de flores. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.

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------. Necrológio. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1972.

------. Salvador janta no Lamas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.

------. O sétimo punhal. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995.

------. A glória no São Cristóvão. In: FUKELMAN, Clarisse (Org.). Passeios na zona norte. Rio de Janeiro: Centro Cultural Gama Filho, 1995. Disponível em: http://www.victorgiudice.com/contos.html. Acesso em: 2007.

GOMES, D. Antigos cafés do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Kos-mos, 1989.

RIO DE JANEIRO. Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Es-portes. Departamento Geral de Patrimônio Cultural. São Cristó-vão: um bairro de contrastes. Rio de Janeiro: Departamento Geral de Patrimônio Cultural; Departamento Geral de Docu-mentação e Informação Cultural, 1991.

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O estudo contrastivo dos idiomatismos: aspectos teóricos

Claudia Maria Xatara e Tatiana Helena Carvalho Rios (UNESP – S. J. do Rio Preto)

Uma expressão idiomática pode ser considerada um fraseolo-

gismo, por consistir em uma combinação de palavras que, devido a

seu uso constante, perde sua independência e adquire um sentido

global. Assim, para estudá-las, convém recorrer a um embasamento

teórico da Fraseologia. Essa área se ocupa especificamente de tais

combinações e dessa maneira, será possível compreender as caracte-

rísticas e peculiaridades das EIs, imprescindíveis para sua análise.

1. Das combinações fixas aos fraseologismos

As combinações fixas de palavras, que muitas vezes não obede-

cem às regras gramaticais, são realidades tão antigas quanto as lín-

guas naturais. Vários estudiosos da linguagem intuíram sua

existência. Bréal (apud RONCOLATTO, 1996), em 1897, por exem-

plo, reconhece as expressões fixas, que denomina grupos articulados.

No entanto, o estudo científico dessas combinações teve início com o

advento da Lingüística, quando sua análise passou a ser mais siste-

mática e minuciosa.

Desde então, vários lingüistas têm se preocupado com esse obje-

to e podemos distinguir três núcleos em que se encontram seus pre-

cursores: o russo, o europeu e o norte-americano. Entre os europeus,

faz-se necessário mencionar Saussure (publicação de 1970), Bally

(1951), Greimas (1960), Pottier (1974, 1987), Coseriu (1981), Fiala

(1987), entre outros. De acordo com Roncolatto (1996), os soviéticos

foram influenciados pelos estudos de Bally e dentre eles destacam-se

Abakúmov, Fortunatov, Gak, Isashenko, Jakobson, Mel’cuk, Polivá-

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nov, Potebnia, Sreznevski, Telia e Vinográdov. Finalmente, ainda

segundo Roncolatto (ibidem), nos EUA encontram-se trabalhos co-

mo os de Chafe, Hockett, Makkai e Malkiel.

Cabe observar que não faz muito tempo que a Lingüística româ-

nica tem se dedicado aos fraseologismos (ORTÍZ ALVAREZ, 2000).

Em se tratando da realidade latino-americana, a Fraseologia desen-

volveu-se inicialmente em Cuba, com os trabalhos de Carneado Mo-

ré (1985) e Tristá (1988), e na Colômbia, com Zuluaga (1980).

No Brasil, também verificamos que só recentemente se inicia-

ram as pesquisas nessa área. No entanto, já podemos contar com

avanços significativos nos estudos dos fraseologismos do português,

seja isoladamente, seja em contraste com outras línguas estrangeiras

ensinadas em nosso país. Entre os precursores dessa área de estudos

no Brasil podemos encontrar Camargo & Steinberg (1986), Tagnin

(1987, 1989), Xatara (1994, 1998a), Roncolatto (1996, 2001) e Ortíz

Alvarez (2000).

Podemos afirmar que o estudo científico das combinações fixas

teve início com a gênese da própria Lingüística, pois Saussure (ibi-

dem), embora não tenha aprofundado seu estudo, já faz referência a

frases feitas que não podem ser modificadas por serem consagradas

pelo uso. O autor também menciona que essas combinações, apren-

didas pela tradição, não podem ser improvisadas. Dessa maneira,

pressupondo que a língua é um grande repertório idiomático instituí-

do socialmente, Saussure vê essas unidades como locuções pré-

fabricadas impostas pelo uso coletivo.

Em seguida, Bally, seu discípulo, no Traité de Stylistique Fran-

çaise (1951), retoma algumas noções de Saussure e afirma que, na

língua, certas palavras tendem a unir-se entre si, sendo memorizadas

e reproduzidas tais como foram aprendidas. Segundo o autor (ibi-

dem, p. 67), “lorsque l’association atteint son plus haut degré de

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cohésion, le groupe est définitivement consacré par l’usage”. Com

base em seus estudos, Bally distingue dois casos extremos:

a) associações que se decompõem após terem sido criadas, cujos

componentes retomam a liberdade para se agruparem de diversas

outras maneiras;

b) associações cujos componentes perdem sua autonomia e que

não podem se separar por terem sentido apenas em conjunto.

As últimas são denominadas locuções fraseológicas e entre os

dois casos acima apresentados, para Bally, existem vários outros

casos intermediários que, segundo ele, não podem ser dimensionados

nem classificados, ou são de difícil dimensionamento e classificação.

O lingüista aponta três critérios para que os fraseologismos se-

jam identificados: equivalência da unidade a uma única palavra, re-

corrência (ou freqüência) da unidade na língua e esquecimento do

sentido de seus elementos constituintes.

Pottier (1974) também trouxe importantes contribuições para a

análise dos fraseologismos. Esse autor considera-os como unidades

lexicais (ULs) memorizadas e propõe quatro tipos de lexias, dos

quais destacamos as lexias complexas, que são seqüências lexicali-

zadas.

Posteriormente, Lyons (1979) observou que os fraseologismos

são um todo indecomponível, denominando-os enunciados estereoti-

pados. Fillmore (1979) afirma que eles são convencionais e memori-

zados. Danlos (1981) refere-se a essas ULs como expressões

cristalizadas, opondo-os às construções livres, por formarem uma

unidade semântica a partir do significado global. Fiala (1987), por

sua vez, baseia-se nas idéias desses autores e propõe uma definição

de fraseologismo que representa um avanço para sua análise.

Segundo este último, os fraseologismos são combinações com

as seguintes características:

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a) são formas complexas, como locuções verbais, sintagmas

nominais;

b) podem ou não ser figuradas;

c) apresentam diferentes graus de fixação / estabilidade;

d) são recorrentes;

e) aparecem como fixações (conjuntos de formas simples, de ex-

tensões variáveis, construídos em contextos restritos, suscetíveis de

variações também restritas).

Fiala (ibidem) considera ainda que os fraseologismos não cons-

tituem expressões lexicais isoladas e que, portanto, podem compor

um paradigma. Dessa maneira, ele analisa suas regularidades for-

mais, suas variações transformacionais e as diversas maneiras como

seus constituintes se estruturam. Assim, ele observa a existência de

combinações estáveis pela percepção dos sintagmas recorrentes em

certos tipos de discurso. Além disso, afirma que os fraseologismos

são paradigmas definidos pelo contexto (ou discurso) em que ocor-

rem.

Em resumo, já podemos levantar as principais características

dos fraseologismos consideradas pelos autores até então apresenta-

dos:

a) são compostos por mais de uma palavra;

b) são figurados ou denotativos;

c) são estáveis (recorrentes);

d) são fixos.

É importante ressaltar que Tristá (1988) faz alusão, ainda, a di-

ferentes graus de expressividade, quando o fraseologismo apresenta

maior ou menor conotação. São exemplos dos diferentes graus de

expressividade: com as próprias mãos (menor grau) e pegar com as

calças na mão (maior grau).

Com relação aos estudos feitos pelos soviéticos, Tristá (1988)

revela-nos uma contribuição extraordinária. O trabalho de Vinográ-

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dov, por exemplo, representou um salto do plano descritivo para o

plano teórico, pois o autor estudou as leis da combinabilidade das

palavras, superando o formalismo, a abordagem sintática e o enfoque

estilístico. Outra importante lingüista russa foi Amosova, que elabo-

rou uma das primeiras pesquisas sólidas em Fraseologia, contribuin-

do para a teoria geral dessa área e para o estudo dos fraseologismos

da língua inglesa.

Por fim, Hundt (1994, p. 267) considera os fraseologismos “u-

nidades lexicais complexas e reproduzíveis, caracterizadas pela repe-

tida co-ocorrência, portanto, pela relativa estabilidade estrutural-

semântica dos seus componentes”.

Quanto ao nosso ponto de vista, um pouco mais abrangente,

vemos tais ULs como combinações de palavras convencionais de

uma língua, memorizadas como um todo, estáveis (portanto, fixas ou

com um certo grau de fixação) e recorrentes. Assim, um aspecto

importante que as caracteriza consiste na perda da autonomia de seus

componentes, não podendo separar-se por não conservarem o mesmo

significado quando isolados. Além disso, os fraseologismos podem

ser formas simples ou complexas, conotativas ou denotativas, idio-

máticas ou não. São exemplos dos vários tipos de fraseologismos:

gírias (manero, mano, estar ligado), idiomatismos (fazer cara de

quem comeu e não gostou, agüentar a mão, saltar aos olhos), injúrias

(corno manso, filho da puta, orelhudo), provérbios (uma mão lava a

outra; barriga cheia, goiaba tem bicho; quem procura, acha) etc.

2. A Fraseologia: estudo das combinações fixas

Muitos estudiosos consideram Bally (1951) como o fundador da

Fraseologia, mas uma das primeiras definições dessa área de estudos,

de acordo com informações de Tristá (1988), aparece no início da

década de 30, e é atribuída ao lingüista russo Polivánov. Posterior-

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mente, na década de 40, a Fraseologia é inscrita como “disciplina” da

Lingüística e Vinográdov concebe a Fraseologia como o estudo das

leis que condicionam a falta de liberdade que as palavras apresentam

ao se combinarem.

Ortíz Alvarez (2000) afirma que nessa “disciplina” incluem-se

todas as combinações com traços conotativos estáveis ou de estabili-

dade parcial. Entretanto, vale ressaltar que nem todas as combina-

ções estudadas em Fraseologia são conotativas. Exemplos de

combinações fixas denotativas são as locuções e colocações. A auto-

ra (ibidem, p.125) define a colocação como uma “combinação lexical

recorrente não idiomática, coesa, cujos constituintes são contextual-

mente restritos e de ocorrência arbitrária”. A locução, por sua vez,

caracteriza-se como uma “combinação lexical formando um sintag-

ma que constitui uma unidade significativa e cujos componentes

conservam sua individualidade fonética e mórfica” (idem, ibidem, p.

125).

A Fraseologia apresenta duas vertentes: enquadra-se como uma

especialidade da Terminologia, a Fraseologia especializada (quadra-

do semiótico, sintagma nominal, sintaxe textual etc) ou da Lexicolo-

gia, a Fraseologia comum, que estuda os diversos tipos de

combinações fixas da linguagem popular.

Não abordaremos neste trabalho os fraseologismos terminológi-

cos e selecionamos apenas as EIs dentre os diversos fraseologismos

populares, uma vez que o sistema fraseológico de uma língua se or-

ganiza em subsistemas que agrupam outras ULs de diversos tipos

semântico-estruturais (frases feitas, refrães, provérbios, colocações,

gírias).

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3. Um tipo de fraseologismo: as expressões idiomáticas

A primeira preocupação que nos cabe é definir EI. Para isso, op-

tamos por utilizar o termo lexia complexa. Por lexias entendemos,

com base na terminologia de Pottier:

unidades de conteúdo [...] que poderiam ser definidas, paradigmaticamente, por sua possibilidade de substituição no interior de uma classe de lexemas dados (“ipê”, “pinheiro”, “pé de mandioca”, por exemplo) [...] e, sintagmaticamente, por uma espécie de recursividade léxica, podendo as unidades de nível hierarquicamente superior ser reproduzidas no nível lexemático (Greimas; Courtés, 1979, p. 254).

Em outras palavras, a lexia é uma unidade funcional significati-

va do discurso e a lexia complexa, uma unidade funcional significa-

tiva do discurso constituída por uma seqüência estereotipada de

lexemas. Por exemplo: “pé-de-moleque” é apenas uma palavra com-

posta e não uma lexia complexa; a UL ir para a cidade dos pés juntos

pode ser considerada uma lexia complexa por ser uma seqüência

estereotipada, de sentido global e é idiomática, porque também ex-

pressa conotação; já quem com ferro fere com ferro será ferido é uma

lexia complexa e conotativa, mas não uma EI, pois se trata de um

provérbio, fraseologismo que encerra um enunciado fechado e ex-

pressa um ensinamento ou uma moral. Assim, toda EI é uma lexia

complexa, embora nem toda lexia complexa seja uma EI.

Essas lexias complexas são, normalmente, substituíveis por le-

xias simples. Retomando a EI anterior, por exemplo, sabemos que

ela pode ser substituída por morrer. No entanto, em geral, as partes

de uma EI são paradigmaticamente insubstituíveis. Vemos, pois, a

impossibilidade de termos: ir para a cidade dos braços (!) juntos, ir

para a cidade das pernas (!) esticadas (!), ir para a vila (!) dos pés

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juntos. Isso porque a substituição paradigmática das ULs que consti-

tuem essa EI causaria estranhamento e prejuízo de compreensão ao

falante da língua portuguesa.

Quando existe a possibilidade de associação paradigmática de

alguma parte do idiomatismo, o que resulte em EIs chamadas varian-

tes, essas associações são restritas. Por exemplo, engraxar, na EI

engraxar a mão (de alguém), não pode ser paradigmaticamente asso-

ciada a nenhum outro verbo além de molhar, que resulta na variante

molhar a mão (de alguém).

A falta de consciência dessa e de outras peculiaridades das EIs

pode levar a equívocos que passam despercebidos, pois sabemos que

para sua interpretação, não basta um conhecimento da gramática e do

vocabulário de uma língua. Sem dúvida, um falante nativo aprende

as EIs de uso cotidiano sem se dar conta de que estas são unidades

especiais da língua. Segundo Roberts (BÉJOINT; TROIRON, 1996,

p. 181), “ces unités soit-disant idiomatiques, on les assimile, plus ou

moins par osmose, dans sa propre langue”. Contudo, o mesmo não

acontece com um aprendiz de língua estrangeira, que em geral recebe

informações organizadas gradativa e sistematicamente. Mas isso não

o dispensa de, em uma situação comunicativa cotidiana (em língua

estrangeira), conhecer as “exceções” da língua estudada, no caso, as

EIs. Assim, de acordo com o mesmo autor (ibidem, p. 181), “dans

une langue seconde ou étrangère [...] il faut les apprendre consciem-

ment”.

Essas “exceções” se devem ao fato de que a língua é ao mesmo

tempo uma estrutura e um idioma, ou seja, ela é constituída de uni-

dades estruturais (morfemas, palavras e combinações livres) e unida-

des idiomáticas (ROBERTS, ibidem). As unidades idiomáticas não

podem ser estudadas da mesma maneira que as unidades estruturais,

daí poderem ser consideradas “exceções”, uma vez que representam

lexias complexas, mas funcionam semanticamente como lexias sim-

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ples. No entanto, o fato de não se comportarem como as unidades

estruturais, não impede que elas sejam sistematicamente dicionariza-

das em toda sua expressividade e também sistematicamente ensina-

das em aulas de língua estrangeira.

Nesse sentido, Loffler-Laurian, Pinheiro-Lobato e Tukia (1979)

afirmam que todo professor deveria preocupar-se com o ensino das

unidades idiomáticas. Xatara (2001) propõe que se pense em um

ensino programado que integre o ensino das EIs em seus contextos,

pois o ensino de uma língua e de sua cultura não pode prescindir do

universo conceitual e lexical criado pela sabedoria popular, princi-

palmente na linguagem oral. Assim, cabe ao professor a tarefa de

estimular a compreensão de EIs, despertando nos aprendizes seu

reconhecimento no interior dos enunciados. Para tanto, a autora su-

gere três elementos a serem considerados: o conceito de EI, sua iden-

tificação em textos de língua estrangeira e a seleção de EIs

específicas para cada nível de aprendizagem. Além disso, apresenta

algumas estratégias didáticas para o ensino de idiomatismos em aulas

de língua estrangeira, o que torna imprescindível o uso de dicioná-

rios, monolíngües ou bilíngües, gerais ou especiais.

Em nossa pesquisa, atentamos especialmente para a sistematiza-

ção da aprendizagem dessas unidades idiomáticas em duas línguas

estrangeiras, o francês e o espanhol, tomando como ponto de partida

nossa língua materna, o português. Esta contribuição, constituída

pela elaboração de um dicionário trilíngüe de EIs, é, todavia, parcial,

visto que nos ativemos somente às EIs com nomes de partes do corpo

humano, percurso inevitável visto a necessidade de se delimitar o

campo de análise a cada trabalho.

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4. Considerações Finais

As combinações fixas de palavras, que aprendemos impercepti-

velmente e utilizamos de maneira espontânea em nossa língua ma-

terna, podem ser encontradas, se não em todas, na grande maioria das

línguas conhecidas. Elas fazem parte dos implícitos lingüístico-

culturais das diversas comunidades e sua compreensão é muito difícil

quando se trata de uma língua estrangeira.

Sabemos que essas combinações fixas, dentre as quais destaca-

mos os idiomatismos, são amplamente utilizadas na comunicação

cotidiana: mídia, fala, literatura, publicidade etc. Assim, elas deveri-

am ser exaustivamente estudadas e incluídas, tanto quanto possível,

nos dicionários. Mas só recentemente os estudos fraseológicos têm

sido considerados na elaboração de obras lexicográficas. Há, portan-

to, ainda muito a ser feito para que os fraseologismos se incluam de

maneira satisfatória nos dicionários.

Quanto ao ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras, o espa-

ço dedicado à linguagem cotidiana também é muito pequeno. E são

justamente os diversos tipos de dicionários que poderiam nos auxiliar

nas atividades interlingüísticas. Assim, seria muito importante neles

encontrar de fato informações suficientes para que a falta de convívio

com a cultura estrangeira (de onde provém a EI) fosse atenuada.

Certos de que o dicionário, produto cultural transformado em

bem de consumo, é um dos principais recursos dos profissionais das

línguas, elaboramos com muito cuidado um material de consulta para

auxiliar, de modo bem parcial mas preciso, no diálogo entre brasilei-

ros, franceses, espanhóis e demais interessados nessas línguas, a

saber, o Dicionário de idiomatismos com nomes de partes do corpo

humano (RIOS, 2003).

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Pau-Brasil: descoberta e colonização do País

Cláudia Mentz Martins (UFRGS/CAPES-PRODOC)

Considerado um dos intelectuais mais significativos da primeira

metade do século XX, José Oswald de Sousa Andrade (São Pau-

lo/SP, 1890 - São Paulo/SP, 1954) tornou-se conhecido por volta de

1920 ao colaborar em diversos periódicos, ao publicar seus primeiros

escritos — entre eles os trechos de Mon coeur balance, Leur âme, e

da A trilogia do exílio II e III — e, sobretudo, ao ajudar a organizar a

Semana de Arte Moderna de 1922. Com Memórias sentimentais de

João Miramar, em 1924, iniciou o reconhecimento de que sua pro-

dução literária se propunha a romper com o cânone. No mesmo ano,

em 18 de março, publicou, no Correio da manhã, o “Manifesto da

Poesia Pau-Brasil” onde explicitava algumas propostas que visavam

não apenas a reformulação da literatura brasileira, mas da cultura

nacional. Seus aforismos fazem-se presentes na concepção do livro

de poemas Pau-Brasil, editado primeiramente em Paris em 1925.

A importância da obra pode ser percebida nos comentários teci-

dos por Paulo Prado (2003) ao longo do prefácio “Poesia Pau-

Brasil”. Segundo ele, a poesia ‘pau-brasil’ “é o ovo de Colombo”

(p.5); “é, entre nós, o primeiro esforço organizado para a libertação

do verso brasileiro” (p. 8); e “Esperemos também que a poesia ‘pau-

brasil’ extermine de vez com um dos grandes males da raça — o mal

da eloqüência balofa e roçagalante.” (p. 10)

Para que se compreenda a concepção dos poemas integrantes de

Pau-Brasil, é interessante a retomada de algumas das propostas ex-

pressas no “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, por exemplo:

A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.

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O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho.

A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária.

.............................................................................

A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem.

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Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Ágil e ilógico. Ágil o romance, nascido da invenção. Ágil a poesia.

A poesia Pau-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança.

.............................................................................

A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.

Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros.

Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação.

.............................................................................

O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa.

Uma nova perspectiva.

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O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica. (ANDRADE, 1995, p. 41-45)

Vários poemas oswaldianos utilizados nas antologias, nos estu-

dos escolares, nos livros didáticos integram Pau-Brasil. Porém a

citação da maioria não leva em conta o vínculo que os poemas esta-

belecem entre si, tratando-os isoladamente, o que faz com que se

perca parte de seus significados. O intuito de recuperar uma parcela

dessa ligação entre os poemas da obra citada é a proposta deste texto.

A estrutura de Pau-Brasil é um item importante a ser observado.

Nove são as seções que compõem o livro: História do Brasil, Poe-

mas da colonização, São Martinho, RP1, Carnaval, Secretário

dos Amantes, Postes da Light, Roteiro das Minas, Loyde brasi-

leiro, e ainda que aparentemente estejam separadas entre si, estabe-

lecem um vínculo. Oswald de Andrade tem como uma de suas metas

recuperar e discutir a história do Brasil, desde o seu momento mais

remoto, isto é, desde a sua descoberta oficial pelos portugueses até o

momento contemporâneo, centrando sua atenção na cidade de São

Paulo.

Dada a extensão da obra e a longa interpretação que suscitaria,

apenas as duas primeiras partes serão focalizadas aqui: História do

Brasil e Poemas da colonização. Os poemas, que as integram, apre-

sentam uma estrutura, uma concepção e uma abordagem histórica

diferentes daquelas habitualmente encontradas na época da sua escri-

tura.

A seção intitulada História do Brasil é subdividida em oito sé-

ries que, por sua vez, apresentam um número variado de poemas.

Deste modo, tem-se “Pero Vaz Caminha”: ‘A descoberta’, ‘Os sel-

vagens’, ‘Primeiro chá’, ‘As meninas da gare’; “Gandavo”: ‘Hospe-

dagem’, ‘Chorografia’, ‘Salubridade’, ‘Sistema hidrográfico’, ‘Pais

do ouro’, ‘Natureza morta’, ‘Riquezas Naturais’, ‘Festa da raça’; “O

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capuchinho Claude d'Abbeville”: ‘A moda’, ‘Cá e lá’, ‘O país’; “Frei

Vicente do Salvador”: ‘Paisagem’, ‘As aves’, ‘Amor de inimiga’,

‘Prosperidade de São Paulo’; “Fernão Dias Paes”: ‘Cartas’; “Frei

Manoel Calado”: ‘Civilização pernambucana’; “J.M.P.S” (da cidade

do Porto): ‘Vício na fala’; “Príncipe Dom Pedro”: ‘Carta ao patriar-

ca’.

De imediato se observa que todas divisões dessa parte têm por

título nome de figuras históricas, sobretudo cronistas, que estiveram

nas terras brasileiras nos primeiros tempos. A apropriação dos textos

desses cronistas possibilita a Oswald a realização de paródias. Um

exemplo está nos poemas que pertencem à série “Pero Vaz Caminha”

que parodia a carta que o escrivão Pero Vaz de Caminha (Por-

to/Portugal, 1450 – Calicut/Índia, 1501) enviou ao rei português D.

Manuel. As comparações que seguem abaixo, ilustram o expresso.

No poema oswaldiano, em “A descoberta”, lê-se:

Seguimos nosso caminho por este mar de longo Até a oitava da Paschoa Topamos aves E houvemos vista de terra

(ANDRADE, 2003, p. 25)

na Carta de Caminha:

Então seguimos nosso caminho, por esse mar de longo, até terça-feira de Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, quando topamos alguns sinais de terra [...] os sinais eram: muita quantidade de ervas compridas, [...] topamos aves [...] e neste dia, a hora de véspera, avistamos terra, [...] (CAMINHA, 1998, p. 7-8)

no poema, em “As meninas da gare”:

Eram três ou quatro moças bem moças e bem [gentis Com cabellos mui pretos pelas espádoas E suas vergonhas tão altas et tão saradinhas

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Que de nós as muito bem olharmos Não tínhamos nenhuma vergonha

(ANDRADE, 2003, p. 26)

na Carta:

Ali andavam, entre eles, três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, caídos pelas espáduas abaixo; e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que de as olharmos muito bem não tínhamos nenhuma vergonha. (CAMINHA, 1998, p. 21-22)

A brincadeira com o fato histórico propriamente dito é visível

nesse último exemplo. As índias que estavam na beira da praia vendo

os navegadores chegarem são transformadas e/ou assemelhadas às

meninas que ficam numa plataforma de estação de trem a ver os pas-

sageiros que por ali transitam. Ou seja, marca-se a exploração da

mulher — através do teor sexual — que já existe implícita no texto

de 1500, deixando-a explícita no de 1925.

O tom humorístico presente no título é percebido pela supressão

da preposição ‘de’ que integra o sobrenome do escrivão. A ausência

dessa preposição acaba por aludir ao percurso, à viagem, que o escri-

vão português fez ao lado de Pedro Álvares Cabral e que resultou na

Carta escrita ao monarca lusitano.

De Pero de Magalhães Gândavo (Braga/Portugal, ? – Portugal,

?), que nomeia a seção seguinte, são utilizados trechos de Histórias

da Província de Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil de

1576. Trata-se essa da primeira obra que circulou em Portugal com

informações sobre a nova colônia. Um dos trechos parodiados por

Oswald diz respeito à propaganda da colonização, transcrevendo

quase literalmente o texto do português: “porque a mesma terra he

tal,/ e tam favoravel aos que a vam buscar,/ que a todos agazalha e

convida” (ANDRADE, 2003, p. 26).

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A diferença entre eles consiste em, na História, o fragmento

pertencer ao “prólogo ao leitor” e explicar a importância e necessi-

dade da obra para aqueles que querem obter informações da nova

terra. No livro oswaldiano, é precedido pelo título ‘Hospedagem’, o

que desperta no homem a vontade de viver bem no novo ambiente. A

ausência do objeto direto ‘a’ exigida pelo verbo ‘buscar’ abre espaço

para interpretação de que as coisas, que se encontram na Província de

Santa Cruz, podem ser levadas pelos indivíduos que tomam contato

com ela. A seqüência de imagens e informações sobre as belezas e

grandiloqüência desta terra são mais um estímulo para os homens

usufruírem desse espaço, como no poema seguinte:

Systema hydrographico As fontes que há na terra sam infinitas Cujas aguas fazem crescer a muytos e muy grandes rios Que por esta costa Assi da banda do Norte como do Oriente Entram no mar oceano

(ANDRADE, 2003, p. 27)

O capuchinho Claude d'Abbeville (Abbeville, Picardia/França, ?

– Ruão/França, 1632), que atuou como missionário e trabalhou du-

rante quatro meses na colônia francesa do Maranhão em 1612, é

talvez um dos cronistas citados menos conhecido do grande público.

Deixando por um momento os textos portugueses, Oswald utiliza

fragmentos da obra francesa Histoire de la mission des peres capu-

cins en l'Isle de Maragnan et terre circonvoisines, editada em 1632.

Tal como fez com o discurso dos outros cronistas, Oswald se apro-

pria do d'Abbeville, escrevendo os poemas em francês antigo, mas

colocando seus títulos – ‘A moda’, ‘Cá e lá’, ‘O país’ — em portu-

guês moderno. A temática é o ponto que difere esses poemas dos

outros. Ela consiste em, por exemplo, mencionar as índias nuas de

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forma neutra, ou seja, não as considerando melhores ou piores do

que as francesas:

Cá e lá Cette coustume de marche nud Est merveilleusement difforme et deshonneste N’estant peut ester si dangereuse Ni si attrayante Que les nouvelles inventions Des dames de pardeça Qui ruinent plus d’âmes Que ne le font les filles indiennes

(ANDRADE, 2003, p. 29-30)

Quanto à descrição da terra, perde um pouco o tom de relatório

e ganha lirismo, como se nota nos seguintes versos de ‘O país’: “et

en bonté/des eaux vives et très claires rejaillissent dicelle/ et ruissel-

lent dedans la mer” (ANDRADE, 2003, p. 30).

A próxima seção tem por título o nome do primeiro historiador

brasileiro, Frei Vicente de Salvador (Matuim, Bahia/Brasil, 1564 –

?). Ele foi cônego em Salvador, na Bahia, vigário-geral e governador

do bispado. Ente 1603-1606 esteve em missão na Paraíba. Os trechos

utilizados pertencem a sua História do Brasil, de 1627. Nesta parte, é

perceptível a parcimônia do humor corrosivo oswaldiano. A razão

para isso talvez se encontre no fato de o frade franciscano demons-

trar um genuíno amor pelo Brasil, e o poeta achar importante trazer

para a modernidade esse sentimento. Nos dois primeiros poemas

‘Paisagem’ e ‘As aves’, há um lirismo acentuado que, de certo modo,

já existe no texto original. Tem-se em ‘Paisagem’: “Cultivam-se

palmares de cocos grandes / Principalmente à vista do mar”

(ANDRADE, 2003, p. 30).

Já nos poemas seguintes, ‘Amor de inimiga’ e ‘Prosperidade de

São Paulo’, o olhar se volta para os indígenas, em especial, para seus

hábitos e costumes — o que era particularmente interessante aos

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missionários —, e para a formação dos primeiros núcleos urbanos

que surgiram ao redor dos redutos jesuíticos. Nesse último caso,

percebe-se a ironia oswaldiana, ao dar conta do desenvolvimento

desorganizado de São Paulo em que o arcaico e o moderno convi-

vem:

Ao redor dessa vila Estão quatro aldeias de gentio amigo Que os padres da Companhia doutrinaram Fora outro muito Que cada dia desce do sertão.

(ANDRADE, 2003, p. 31)

Neste momento, segundo Vera Lúcia de Oliveira (2002), há a

necessidade de se observar a preocupação do autor em trabalhar com

momentos históricos que, apesar de distintos, apresentam similarida-

des:

a repetição da técnica utilizada em “as meninas da gare” e em outros textos em que o poeta justapõe títulos atuais à narração de seqüências e segmentos da realidade que, em sua essência, continuaram imóveis no tempo. Se, no passado, o encontro/desencontro cultural se verificou entre índios, colonos e jesuítas, hoje ele se dá entre o campo e a cidade, ou entre os autóctones e os imigrantes estrangeiros que a cidade deve absorver, sem perder sua identidade. (OLIVEIRA, 2002, p. 130)

Serve de inspiração para o poema ‘Carta’ um trecho de uma

missiva enviada, em 1674, pelo bandeirante caçador de esmeraldas

Fernão Dias Paes (?, 1608 – Sumidouro, Minas Gerais/Brasil, 1681).

Nos versos, explica-se o que é uma bandeira e o seu objetivo maior,

isto é, a obtenção de riquezas e de mão-de-obra indígena, não sendo

expresso um tom heróico a essas jornadas ou a seus participantes:

................................................................

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Vossa Senhoria Deve considerar que este descobrimento É o de maior consideração Em razão do muito rendimento E também das esmeraldas

(ANDRADE, 2003, p. 32)

É da seção “Frei Manoel Calado” o poema, ‘Civilização per-

nambucana’. Apropriando-se dos escritos do frei citado (Vila Viço-

sa/Portugal, 1584 – Lisboa/Portugal, 1654) — que pregou no Brasil

por mais de 30 anos e engajou-se em grupos guerrilheiros contra os

holandeses —, Oswald trata da sociedade latifundiária e patriarcal do

Nordeste brasileiro no período colonial. O texto que serve de base

intitula-se Valeroso Lucideno e o triunfo da liberdade, de 1648, e o

fragmento escolhido para paródia dá destaque aos aspectos fúteis

dessa sociedade:

As mulheres andam tão louçãs E tão custosas que não se contentam com os tafetas São tantas as jóias com que se adornam Que parecem chovidas em suas cabeças e gargantas As pérolas, rubis e diamantes Tudo são delícias Não parece esta terra senão um retrato do terreal paraíso.

(ANDRADE, 2003, p. 32-33)

O náufrago português J.M.P.S. (? -?) é praticamente um desco-

nhecido e dá título a penúltima seção, composta de um só poema.

Trata-se de um dos mais presentes nos livros escolares — ‘Vício na

fala’:

Para dizerem milho dizem mio Para melhor dizem mió Para pior pió Para telha dizem teia

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Para telhado dizem teiado E vão fazendo telhados

(ANDRADE, 2003, p. 33)

Vê-se, nos versos, o constante conflito entre o falar lusitano e

brasileiro sobre a utilização da língua portuguesa. Há o debate sobre

a introdução ou não, no texto escrito, da oralidade. Essa discussão

implícita é percebida pela presença, no poema, da fala cotidiana,

empregada pelas pessoas simples, anônimas e, em grande parte, des-

conhecidas — tal como J.M.P.S — que vivem no País, em contrapo-

sição direta à forma culta empregada pelos bacharéis, intelectuais e

freqüentadores do meio acadêmico.

O último poema, ‘Carta ao patriarca’, pertencente a última série,

“Dom Pedro I”, parte de uma missiva que o regente (Quinta Real de

Queluz,Lisboa, 1798 – 1834) enviou a José Bonifácio de Andrade e

Silva, onde comenta a instabilidade do seu governo:

............................................................

Encumbi ao Miquilina E ao Major do Regimento dos Pardos Para virem me dar parte De tudo que se disser pelos Botequins Estimarei que approve esta medida E assento eu melhores E mais fieis e adherentes à causa do Brasil Do que os Pardos meus amigos Ninguém

(ANDRADE, 2003, p. 34)

Acresce-se, aos conhecidos e referidos problemas do monarca, a

crítica oswaldiana percebida na assinatura da carta. No momento em

que substitui o nome de Dom Pedro I pelo pronome indefinido ‘nin-

guém’, Oswald aponta-o como uma pessoa com pouca ou nenhuma

importância e, portanto, incapaz de governar. A escolha do tema não

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é, pois, alheatória, servindo para a realização da revisão histórica do

País.

Toda série está organizada de forma cronológica, isto é, do des-

cobrimento por Pedro Álvares Cabral, segue pelo primeiro período

da colonização, pela adaptação dos colonos a nova terra, pelo desen-

volvimento do sentimento nativista até alcançar a independência

política, em 1822. Em todo o percurso, a paródia é evidente porque o

poeta fala com as palavras de outros, introduzindo uma intenção

diferente daquela que essas palavras tinham no seu contexto original.

A segunda seção a ser analisada, Poemas da colonização, tem

uma organização diferente da anterior. É composta por uma seqüên-

cia de quinze poemas, todos intitulados, a saber: ‘A transação’; ‘Fa-

zenda antiga’; ‘Negro fugido’; ‘O recruta’; ‘Caso’; ‘O gramático’; ‘O

medroso’; ‘Scena’; ‘O capoeira’; ‘Medo da senhora’, ‘Levante’; ‘A

roça’; ‘Azorrague’; ‘Relicário’; ‘Senhor feudal’. Esses poemas tra-

tam, na sua maioria, do negro escravo responsável pela economia da

colônia.

Diferentemente de História do descobrimento, nesta seção, Os-

wald não se detém a parodiar textos ou a exercitar o fazer literário.

Sua preocupação é outra. É, através de uma pesquisa que se propõe

histórico-geográfica da sociedade colonial, apontar a hipocrisia, a

falsa moral presente na sociedade escravista-patriarcal que se dizia (e

acreditava) humanista, enquanto mantinha parte de sua população

submissa, amedrontada e insatisfeita. Três poemas servem de ilustra-

ção:

A transação

O fazendeiro criara filhos Escravos escravas Nos terreiros de pitangas e jaboticabas Mas um dia trocou O ouro da carne preta e musculosa As gabirobas e os coqueiros

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Os monjolos e os bois Por terras imaginárias Onde nasceria a lavoura verde do café

(ANDRADE, 2003, p. 37)

O capoeira

— Qué apanhá sordado? — O quê? — Qué apanhá? Pernas e cabeças na calçada.

(ANDRADE, 2003, p. 39)

Azorrague

⎯ Chega! Peredôa! Amarrados na escada A chibata preparava os cortes Para a salmoura

(ANDRADE, 2003, p. 40-41)

Como se observa, esses poemas são como instantâneos, dando conta da vida real, cotidiana, poucas vezes registrada. São rápidos e vivos momentos a partir dos quais Oswald tenta reconstruir a história dos escravos negros. Mostra-os que, além de terem sido mão-de-obra barata aos seus senhores, eram vistos como mercadorias e que sofriam maltratos constantes em diferentes situações. Nenhum desses fatos é inédito ou desconhecido do público leitor, mas sua presença nos versos acima relembra a todos o tratamento dispensado aos homens negros durante um período da história nacional. Oswald propõe-se também a dar-lhes voz ainda que breve, o que ocorre nos momentos em que insere a oralidade nos versos.

O envolvimento dos senhores com as escravas negras e o conseqüente nascimento de filhos bastardos, frutos dessas relações, são

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igualmente mencionados nessa parte da obra. ‘Medo da senhora’ deixa implícito os acontecimentos acima, bem como as reações das esposas traídas, através da ação desesperada da escrava que prefere a fuga intempestiva e a possível morte de sua criança a deixá-la sofrendo na casa-grande:

Medo da Senhora

A escrava pegou a filhinha nascida Nas costas E se atirou no Parahyba Para que a creança não fosse judiada

(ANDRADE, 2003, p. 40)

A abolição da escravatura, que foi um importante assunto duran-

te o período da colonização, aparece em ‘Senhor feudal’. Como a-

contece em vários momentos, a questão não é abordada diretamente,

mas a sua presença é inegável quando se considera o contexto em

que esse poema aparece, isto é, antes dele, em ‘Relicário’, é citada a

figura do Conde d’Eu, marido da Princesa Isabel — responsável

oficial pela libertação dos escravos —, e ele fecha a parte Poemas da

colonização:

Senhor feudal

Se Pedro Segundo Vier aqui Com historia Eu boto elle na cadeia

(ANDRADE, 2003, p. 41)

Por ter sido a abolição dos negros um fator decisivo para o tér-

mino do período colonial e início da República no País, sua menção

não se dá à toa. Oswald demonstra ter total domínio da estrutura de

seu material quando dispõe cada assunto ao longo dos poemas que

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escreve de modo não apenas a discorrer a história do Brasil, mas de

propor uma reflexão sobre cada episódio significativo que a compõe.

Ainda que não se tenha analisado todo o livro Pau-Brasil, per-

cebe-se que, nas duas partes aqui discutidas, muito se encontra dos

comentários realizados pela crítica literária com relação a esta obra.

É possível resgatar a afirmação de Raúl Antelo (1991) que lembra

que, em Pau-Brasil, o desejo de Oswald é de ter uma liberdade cria-

dora, é poder ter um olhar próprio sobre sua produção. Já Harold de

Campos (s.d.) destaca que, em Pau-Brasil, Oswald apresenta uma

sensibilidade primitiva à moda dos cubistas e uma poética da concre-

tude para dar conta da comunicação gerada pela civilização pautada

na técnica. Em Pau-Brasil, os temas utilizados não são exóticos, mas

pertencentes ao que considera o ‘novo ciclo de disponibilidade órfi-

ca’. A linguagem utilizada busca ser natural, firmada pela oralidade

e, por isso, possuidora de ‘todos os erros’. É a língua falada cotidia-

namente no Brasil, sem a impressão lusitana ou purista.

Sem dúvida, esses poemas-comprimidos, como os chama Ha-

rold de Campos (s.d.), exemplificam o olhar crítico que se utiliza de

uma seqüência de imagens/peças que aparentemente estão soltas,

mas que elaboram uma sintaxe diferente daquela pautada no orde-

namento lógico do discurso.

Considerando essas duas partes iniciais de Pau-Brasil, História

do descobrimento e Poemas da colonização, observa-se que a poesia

‘pau-brasil’, de acordo com o proposto no manifesto de mesmo no-

me, não se trata de mera destruição, mas que essa leva a uma cons-

trução, num movimento pendular. É uma construção firmada nas

palavras em liberdade — que reorganiza elementos desierarquieza-

dos — possibilitada por um período de destruição revolucionária —

que agiu de forma desacralizante (OLIVEIRA, 2002).

Em Pau-Brasil, está explícito o projeto oswaldiano de retornar

ao passado com o propósito de fazer uma revisão histórica, levando

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em conta o maior grau de consciência no século XX. Para elaborar o

que chama de poesia de exportação, no “Manifesto da Poesia Pau-

Brasil”, utiliza o pau-brasil, símbolo máximo da colonização, a pri-

meira riqueza de exportação nacional e da qual deriva o nome do

País.

Por fim, como lembra Vera Lúcia de Oliveira (2002), a poesia

‘pau-brasil’ ajuda a resgatar uma identidade perdida ao longo do

processo de colonização. É uma tentativa de recuperar a originalida-

de, a alegria, a criatividade sufocada pela dominação imposta aos

moradores desta terra e caracterizada, principalmente, pela proposta

de formação uma mentalidade servil a abranger todos os aspectos

vida nacional, incluindo aí o artístico-literário.

Referências bibliográficas

ANDRADE, Oswald. “Pau-Brasil”. In: SHWARTZ, Jorge (Org.). Caixa Modernista. São Paulo: Edusp/Editora UFMG/Imprensa Oficial, 2003.

------. “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”. In: ------. Utopia antropofá-gica. 2 ed. São Paulo: Globo, 1995. p. 41-45.

ANTELO, Raúl. Prefácio. In: ANDRADE, Oswald. Primeiro cader-no do aluno de poesia Oswald de Andrade. São Paulo: Globo, 2005.

FLORES, Moacyr. Dicionário de história do Brasil. 2 ed. rev.amp. PortoAlegre: EDIPUCRS, 2001.

OLIVEIRA, Vera Lúcia de. “Oswald de Andrade: história, anti-história, uma releitura do passado”. In: ------. Poesia, mito e his-tória no Modernismo brasileiro. São Paulo: UNESP; Blume-nau, SC: Edifurb, 2002.

CAMPOS, Harold de. “Uma poética da radicalidade”. In: ANDRADE, Oswald de. Poesias reunidas. 5 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [s.d]. p. 9-59. (Obras completas VII)

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Projeto de texto e iconicidade

Darcilia Simões (UERJ – PUC/SP – SUESC)

Preliminares

Buscando caminhos alternativos para subsidiar o ensino de re-

dação e leitura, descobri na semiótica relevante aliada. O suporte na

teoria da iconicidade (C. S. Peirce -1931-58) permitiu que se exami-

nasse o texto verbal escrito numa dimensão distinta da tradicional: o

texto seria lido como um desenho. Nessa perspectiva nasceu o proje-

to técnico-didático de melhoria do ensino da leitura e da produção

textual, para o qual venho tentando produzir testagem (das) e suporte

teórico para as seguintes hipóteses: a) texto tomado como objeto

visual sensível; b) iconicidade da imagem textual e suas relações

com a cognição; c) seleção/combinação lingüística na produção da

iconicidade textual e d) projeto comunicativo, verossimilhança e

eficácia textual. Uma vez comprovada a hipótese “a” (Simões,

[1994] 2006), parti para a aplicação da teoria da iconicidade, obser-

vando a dupla dimensão do texto: a) concreta (no plano da expres-

são) - captável pela audição (texto oral) ou pela visão (texto escrito);

b) abstrata (no plano do conteúdo) (cf. Simões & Antunes, 2000).

O plano da expressão (no caso, a escrita), onde é possível exa-

minarem-se todos (ou quase todos) os elementos que compõem a

superfície do texto (fonemas, grafemas, sintagmas, parágrafos, mar-

gens, páginas etc.), oferece uma variedade de formas perceptíveis

que se articulam, para produzir um sentido que se destina a veicular

a mensagem básica do texto. A produção do sentido, a seu turno,

assenta-se numa série de relações semióticas de natureza diagramáti-

ca, imagética e metafórica, a partir de cuja análise torna-se possível

a interação comunicacional entre produtor e leitor, porque dali emer-

gem os dados interpretativos do texto. Impõe-se então a pergunta:

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Como produzir imagem por meio de signos simbólicos e, por isso,

sujeitos a interpretações de alta subjetividade?

Sabe-se que a subjetividade interpretativa é controlada pelas co-

dificações sociais que transformam sinais em signos e conduzem o

intérprete a certa semiose. Daí o texto, independentemente de sua

função pragmática, ter de ser inteligível.

Com ênfase no texto acadêmico, tenho analisado textos de na-

tureza predominantemente informativa, buscando conclusões genera-

lizáveis. Isto porque, a meu ver, há textos informativos de gêneros

variados, cuja distinção se faz a partir da função utilitária diversifi-

cada, como: jornalísticos, instrucionais (bulas, manuais de instrução

etc.), legislativos (leis, decretos, regulamentos, regimentos, delibera-

ções etc.), administrativos (ofícios, memorandos, ordens-de-serviço

etc.), entre outros. Observe-se que cada um desses gêneros terá ca-

racterísticas formais particulares, embora a estruturação lingüística,

a princípio, siga um padrão básico (cf. norma padrão).

Iconicidade e gêneros textuais

As características formais particulares abrem a porta para a i-

conicidade textual. Isto porque persigo uma iconicidade pautada na

aparência visual do texto. Segundo nossa experiência com leitura em

alta velocidade, a diagramação textual e as palavras-chave usadas no

texto para garantir a unidade temática atuam como ícones e índices

que ciceroneiam a leitura.

É de conhecimento do leitor que há um número significativo de

textos em que a disposição diagramática de seu conteúdo verbal já

atua como ícone do gênero. Não se confundem textos como bula de

remédio e requerimento, por exemplo. À primeira vista, a distribui-

ção do conteúdo desses textos por si mesma produz uma imagem

específica para cada um. Da mesma maneira a identificação de pala-

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vras-chave e construções-chave que fazem a diagramação verbal dos

enunciados e geram a iconicidade do texto - potencial gerador de

imagens que acionam esquemas cognitivos.

Ao pensar na disposição objetiva dos conteúdos de um texto

verbal, distribuídos em itens, seções, capítulos etc., automaticamente

se vai considerar dados de natureza diagramática. A distribuição dos

dados numa carta-comercial é diferente da que se faz numa ordem-

de-serviço. Logo, não é artificial afirmar que tais textos têm imagens

objetivas (formais, pela distribuição de sinais sobre uma superfície)

distintas. A distribuição paragráfica, a organização em seções e sub-

seções, espaços, margens, grifos, são recursos visuais que servem

para distinguir modelos textuais específicos.

Nesta comunicação, restringi-me à diagramação endofórica ou

sintagmática, a qual resulta da articulação dos signos verbais em

enunciados legíveis. Tanto no nível frásico quanto no transfrásico,

essa iconicidade estará assentada nos mecanismos gramaticais de

coesão. Portanto, sua interpretação adequada implica domínio de

estruturas básicas pré-normativas - como a ordem lógica SVO na

estrutura da oração – e da gramática normativa da língua. A ignorân-

cia e o conseqüente desrespeito a essas regras estruturais podem re-

sultar em textos ininteligíveis (cf. agramaticalidade in Langacker,

1975). Por isso, afirmo com Morris (1976) que a sintaxe é o mais

desenvolvido dos ramos da semiótica. Nesse plano, consideram-se

duas classes de regras de relacionamento entre os signos: regras de

formação, que determinam as combinações independentes permissí-

veis de membros do conjunto, formando as frases; e regras de trans-

formação, que determinam as frases que podem ser obtidas de outras

frases. A sintaxe é, pois, a consideração de signos e combinações de

signos segundo as regras de estruturação a que se submetem.

Refinando o foco, verifica-se a relação da sintaxe com a semió-

tica. A premissa de que os signos se combinam e recombinam de

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 7, V 7 (Jan/Jun 2007) – ISSN 1806-9142

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formas diversas, produzindo assim efeitos semióticos distintos chama

a semântica e a pragmática à investigação, sobretudo no que concer-

ne à observação do signo e suas conseqüências socioculturais. . Isto

porque a sintaxe em si mesma já vai se constituir em signo da forma

como se pensa algo, ordenando os elementos da expressão de certa

forma em detrimento de outra(s), indicando assim o caminho trilhado

pelo pensamento. A meu ver, a sintaxe produz a trilha da semiose.

Iconicidade, semiose e cognição

Quando se chama a esse relato a gramática normativa como

ponto de partida modelar para a estruturação dos textos, entende-se

que essa referência lingüística define a diagramação dos signos nos

enunciados com vistas a propiciar a produção de uma imagem icôni-

ca emergente do texto. Assim sendo, a diagramação carreia a função

indicial, e esta favorece a construção da iconicidade que, na minha

ótica, decorre da seleção apropriada do léxico textual associada a

uma estruturação frasal estratégica: gramatical e estilística a um só

tempo. Dessa estruturação resultará a ativação de esquemas mentais

apropriados (ou não). Em outras palavras: se a astúcia enunciativa se

volta para a produção de pistas orientadoras, o texto apresentará o

que denominei de alta iconicidade (Simões & Dutra, 2002). A cog-

nição é uma operação que se realiza por meio de modelos mentais; e

o interpretante do signo peirceano, em última análise, é um modelo

mental.

Considerando-se que a depreensão num texto de dados extralin-

güísticos está intimamente ligada à cognição que será tão mais rica

quanto maior a experiência de vida do intérprete, parece possível

inferir que a seleção dos signos a serem atualizados no texto está

proporcionalmente ligada a essa competência social, pragmática, dos

interlocutores (enunciador e intérprete). A competência pragmática

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deverá ser enriquecida pelo domínio de informações lingüístico-

enciclopédicas que constituiriam a visão de mundo ou cosmovisão

dos interlocutores. Uma vez deficitárias essas capacidades e habili-

dades, o processo cognitivo que sustenta a compreensão dos textos e

a comunicação resultará prejudicado.

Numa perspectiva pragmática, verifica-se que o posto (o texto

de superfície) deve permitir a produção de inferências e implicaturas

(no plano dos pressupostos) por meio das quais o intérprete poderá

construir um sentido para o texto. Quando não há margem de levan-

tamento de pressupostos, talvez se venha a concluir da inexistência

de textualidade. Esta, por sua vez, é a propriedade de um texto for-

mar um todo de sentido, independentemente dos signos com que se

construa sua superfície e seja esta sonora (texto oral) ou visual (texto

escrito). Logo, texto coerente é o que faz sentido para seus usuários.

Coesão e cognição

Combinando as idéias sobre coerência e cognição com as de co-

esão textual, verificar-se-á, em última instância, que as operações

cognitivas implicadas na produção e na leitura do texto distribuem-se

no nível semântico-pragmático quando da aferição da coerência, e no

nível morfossintático-funcional na construção da coesão. Uma e

outra operação gerenciam a organização dos signos no processo co-

municativo, uma vez que têm o conhecimento de mundo como meio

balizador da interação. Esta por sua vez está sujeita à coesão e à coe-

rência do texto.

Os mecanismos lingüísticos de coesão manifestam-se de modos

diversos. Não é exclusivo das palavras gramaticais (preposições,

conjunções e pronomes relativos) a combinação das idéias e a defini-

ção de seus valores. Também as palavras lexicais (verbos, substanti-

vos, adjetivos, advérbios, numerais e pronomes) atuam como

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elementos coesivos, dispensando algumas vezes a presença de um

conectivo propriamente dito. É justo nesse âmbito que venho obser-

vando os textos dos estudantes. Verificando-lhes a habilidade para

selecionar palavras e expressões ajustadas ao projeto de dizer, de

modo a garantir a coesão textual, e, ao mesmo tempo, abrir espaço

para leituras coerentes.

Nos textos escolares, a presença de signos nem sempre é orien-

tadora. Quando se corrige redações, muitas vezes fica difícil encon-

trar o “fio da meada”. De um lado, os próprios autores dos textos não

conseguem recuperar o que pretendiam ter dito; de outro, quando na

discussão do texto com o professor, os autores lêem o que supõem

ter escrito e não o que está efetivamente escrito.

Ora, se o texto está “mal costurado”, ou seja, se a coesão não foi

bem tecida, a informação que deveria atravessar o texto sofrerá as

conseqüências dessa desarticulação lógico-sintática. Então, a resul-

tante semântico-pragmática possivelmente será desastrosa: quer pela

incompreensão total do texto quer por uma compreensão estapafúrdia

deste. É possível que estejamos até diante de algo que não pode ser

chamado de texto. Segundo Halliday (2004: 3), quando alguém fala

ou escreve, produz um texto. O termo texto se refere, então, a qual-

quer instância de linguagem, em qualquer meio, que produz sentido

para alguém que conhece a linguagem. Passemos então à questão

norteadora desta comunicação.

Quais os mecanismos semióticos que podem ser estimulados para promover a produção de textos icônicos?

No objeto em estudo - textos verbais acadêmicos - realçam-se as

estruturas lingüísticas como material a explorar pelos enunciadores.

Por isso, tentou-se estabelecer relações entre léxico, semântica e

sintaxe, no sentido de buscar a iconicidade diagramática sintagmáti-

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ca, ou seja, uma construção verbal capaz de levar o intérprete a for-

mular imagens e ativar cognições que subsidiem a semiose do texto.

Nessa perspectiva, vale lembrar Koch (1997: 25): “à concepção de

texto (...) subjaz o postulado básico de que o sentido não está no

texto, mas se constrói a partir dele”. Logo, esta construção dependerá

de que se ponham disponíveis ao intérprete as peças necessárias, no

caso, o material verbal.

Minha averiguação se iniciou seguindo Plaza (1987:91) no en-

tendimento de que a expressão de nossos pensamentos é circunscrita

pelas limitações da linguagem; que ao povoar o mundo de signos, dá-

se um sentido ao mundo, o homem educa o mundo e é educado por

ele, o homem pensa com os signos e é pensado por eles. Concordei

com Ransdell (Apud Plaza op.cit.) ao declarar que “O homem pro-

põe, o signo dispõe”, e concluí que se o texto é signo, está sujeito à

mesma dinâmica e mutabilidade das funções e valores carreados

pelos signos e deles emergentes segundo o momento de produção de

leitura.

Os textos verbais são construídos com palavras e deles extraí as

hipóteses de:

1. Classificar as palavras-chave de um texto como sendo

as âncoras textuais (palavras e expressões gerenciadoras

de sentido – senhas, segundo Fidalgo).

2. Classificar as palavras-chave como signos icônicos ou

indiciais, considerando seu grau de transparência ou o-

pacidade (cf. Ullmann, 1977).

3. Indicar itinerários de leitura por meio da seleção lexical.

4. Tipificar os textos como mais (ou menos) dotados de

iconicidade.

5. Subsidiar técnica e teoricamente para o aperfeiçoamento

do processo de ensino-aprendizagem da redação.

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Operacionalizando, traduzo iconicidade textual como sendo

uma potencialidade de gerar imagens na mente interpretadora, a par-

tir das quais seja possível aproximar-se do projeto comunicativo

inscrito no texto. Disso deduzo que palavras e expressões funcionam

como signos icônicos ou indiciais segundo características que neles

se inscrevem na trama textual de que participam. O potencial icôni-

co, qualitativo, do signo estaria condicionado à faculdade de acionar

esquemas mentais e, por conseguinte, estimular a produção de ima-

gens que gerenciariam a interpretação; como potencial indicial resul-

taria da faculdade de induzir raciocínios, provocar inferências e

implicaturas. O signo indicial funciona como um vetor que indica

caminhos possíveis na trilha textual.

Segundo essa iconicidade, o potencial gerador de imagens e-

mergentes do texto é para mim elemento garantidor da consecução

do objetivo comunicativo do texto, pois conduzirá a interpretação

segundo determinados parâmetros, mediante os quais o intérprete

poderá ler o texto com alguma margem de segurança.

Como foi feito o trabalho?

Trabalhei com um corpus constituído por 180 (cento e

oitenta) redações acadêmicas, produzidas em classes regulares

de 7º período do Curso de Letras (habilitações variadas),

durante os anos letivos de 2003 a 2005. Os textos-corpus foram

produzidos a partir da proposta de leitura crítica dos seguintes

textos-fonte e com esta distribuição:

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TEXTOS-CORPUS

TEXTOS-FONTE SEMESTRE Nº DE

TEXTOS GRUPO

TXT 1 O que é português brasileiro (Hildo Honório

do Couto)

2003-1 17 1

TXT 2 Língua, nação, alienação (Celso Cunha)

2003-1 10 2

TXT 3 Ensino da Gramática. Opressão? Liberdade?

(Evanildo Bechara)

2003-1 26 3

TXT 4 Como falam os brasileiros (Dinah Callou & Ione

Leite)

2004-1 14 4

TXT 5 O português popular escrito (Edith Pimentel

Pinto)

2004-1 28 5

TXT 6 A importância do domínio da variedade da língua

(Darcilia Simões)

2004-1 26 6

TXT 7 Existe uma "língua brasileira”? (Sérgio Nogueira Duarte)

2005-1 20 7

TXT 8 Mas, afinal, como falam (ou deveriam falar) as pessoas cultas? (Dino

Preti)

2005-1 17 8

TXT 9 O gigolô das palavras (Luís Fernando Veríssimo)

2005-1 22 9

TOTAL DE TEXTOS ANALISADOS 180

Com auxílio do programa WordSmith Tools 4.0 (WST), obtive

listagens do vocabulário dos textos, o que permitiu a comparação dos

itens léxicos ativados nos textos-fonte (textos técnicos que serviram

de base para a produção textual em classe) com os das redações re-

sultantes ou textos-corpus (leitura crítica dos estudantes, por escrito).

O objetivo do confronto seria verificar a absorção de vocabulário

demonstrada nos textos produzidos pelos estudantes.

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Usando a ferramenta Lista de palavras do WST, foi feito o le-

vantamento de palavras presentes no corpus, com vistas a detectar as

palavras-chave da cada texto e, em seguida, fazer a relação entre a

listagem dos dados dos textos-fonte e a dos textos-corpus. Tudo isso

visa a demonstrar (com tratamento o mais objetivo possível, por isso

automatizado) a potencialidade icônica do texto-fonte, com a repeti-

ção (de alguma forma) de sua estruturação.

É freqüente nos textos de estudantes a inconsistência argumen-

tativa, inicialmente originada pela seleção lexical inadequada e de-

corrente do curto repertório. Ao eleger-se a prática de produção

textual a partir da leitura crítica de um texto a princípio bem escrito,

pretende-se retomar uma premissa de O. M. Garcia que é aprender

fazendo o que se viu como se faz. E se minha hipótese é de iconici-

dade textual compromissada com um projeto prévio de dizer, a utili-

zação de textos acadêmicos de circulação ampla e de autoria

confiável (verbal e cientificamente) visa a oferecer modelos prévios

de solução textual que possam orientar a construção de novos textos

com boa margem de eficiência. Vamos à ilustração:

Tabela 1 – textos-corpus do Grupo 1

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Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 7, V 7 (Jan/Jun 2007) – ISSN 1806-9142

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Halliday & Hasan (1977: 282) afirmam que a repetição de pala-

vras com manutenção do referente é indicador de um padrão de coe-

são. Esse processo pode se dar pela reiteração da idéia também pela

sinonímia, superordenação ou hiperonímia. Contudo, acrescentam

que para que a coesão lexical se consolide eficientemente é preciso

associá-la à referenciação gramatical. A meu ver aqui entra a rele-

vância do cotexto (palavras que formam a vizinhança textual das

palavras destacadas, ou palavras-chave).

O programa WST oferece uma opção de levantamento denomi-

nada concordância, com a qual se pode conhecer o cotexto das pala-

vras-chave (ou nódulos). A utilização dessa ferramenta permitiu que

se chegasse a uma visão da estruturação diagramática sintagmática.

Optei por operar em dois níveis: o do cotexto propriamente dito, e o

dos agrupamentos lexicais (clusters), pois a ferramenta concordância

gera imagens como (ilustrarei com os textos-corpus do Grupo 1):

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a) cotexto

As palavras destacadas em azul são os nódulos (segundo WST)

ou palavras-chave (segundo minha proposta), estas vêm destacadas

na coluna Set. Os arquivos gerados são automaticamente nomeados

com as palavras de maior freqüência, veja-se:

PORTU-

GUÊS_LÍNGUA_LINGUAGEM_BRASILEIRO.ccn

(para cotexto - concordance)

PORTU-

GUÊS_LÍNGUA_LINGUAGEM_BRASILEIRO.ccl

(para agrupamentos lexicais – clusters)

Assim, lançando mão de programas digitais de uso muito fre-

qüente nas pesquisas de Lingüística de Corpus, pude fazer levanta-

mentos objetivos do material presente nos textos e fazer o

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Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 7, V 7 (Jan/Jun 2007) – ISSN 1806-9142

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cruzamento de dados entre textos-fonte e textos-corpus, constatando

assim que textos bem escritos podem inspirar a criação de outros tais

sem que, obrigatoriamente sejam produzidas paráfrases ou “colchas-

de-retalhos”.

A meta dessa pesquisa é subsidiar não só o ensino da leitura e

da redação, mas também dar suporte para a correção de redações sob

critérios mais objetivos.

Referências bibliográficas

HALLIDAY, MA.K & HASAN, Ruqaya, Cohesion in English. 1st ed, 2nd imp. London: Longman, 1977.

HALLIDAY, MA.K. An introduction to functional grammar. 3rd. edition. Oxford University Press Inc., 2004.

KOCH, Ingedore Villaça. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 1997.

LANGACKER, Ronald. A linguagem e sua estrutura. 2.ª ed., Petró-polis: Vozes, 1975.

MORRIS, Charles W. Fundamentos da teoria dos signos. Rio de Janeiro: Eldorado/ São Paulo: EdUSP, 1976.

PEIRCE, Charles Sanders. (1931-58). The Collected Papers of Charles Sanders Peirce - electronic edition - reproducing Vols. I-VI ed. Charles Hartshorne and Paul Weiss (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1931-1935), Vols. VII-VIII ed. Ar-thur W. Burks (same publisher, 1958)

PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987.

SIMÕES, Darcilia. Projeto de texto e iconicidade: reflexões sobre a eficácia comunicativa. Documento final produzido no estágio de pós-doutoramento em Comunicação & Semiótica, na PUC/SP, sob a supervisão de Lucia Santaella, 2007.

------. Semiótica & Ensino. Reflexões teórico-metodológicas sobre o livro-sem-legenda e a redação. 2ª ed. CD-Rom. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2006.

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Entre a Poesia e o Pensamento da nascividade: um ensaio sobre o Péri Physeos de Parmênides

Diego de F. B. Pereira (Mestrando em Poética – UFRJ)

O “poema de Parmênides” consiste num conjunto de fragmentos

atribuídos ao sábio de Eléia, ordenado segundo a coesão, a que se

chama Péri Physeos, o que se traduz normalmente como “acerca da

nascividade” ou “sobre a natureza”. É considerado um poema “didá-

tico”. Por que ele não é chamado somente de um poema, como o são

as odes de Píndaro e as epopéias Homéricas? A consideração vigente

nos diz que o poema de Parmênides “contém” uma doutrina de pen-

samento, “trata” de questões que concernem ao pensamento. A ques-

tão central no poema de Parmênides é o caminho da essência da

verdade, ou seja, o modo pelo qual o que a verdade é chega até nós.

Já desde há muito se tem como natural o distanciamento, ou até

mesmo a total falta de copertencimento, entre verdade e poesia. E

como o Péri Physeos se constitui numa busca pensante pela verdade

em seu aparecimento ele é um poema apenas na medida em que o

pensador que pensou a doutrina nele veiculada o fez de um modo que

suas palavras estivessem travestidas em uma “forma” poética. Dentre

outros recursos comumente tidos no rol da retórica poética, temos a

dita “personificação” da verdade, alétheia, numa deusa. A verdade,

conceito filosófico, aparece no poema sob a forma tipicamente poéti-

ca de imagem através da personificação.

Essa consideração, que se mostra muito natural e bem fundada,

traz implicitamente uma aceitação do par conceitual que fundamenta,

com suas diversas articulações, todas as teorias estéticas, a saber: o

par matéria-forma (HEIDEGGER, A Origem da Obra de Arte, p. 23).

Uma coisa é matéria formada segundo a consideração que se funda

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nesse par conceitual. Assim, uma coisa da arte, um objeto estético, é

definido sempre segundo o modo de composição material e formal.

Neste sentido, o poema didático de Parmênides se configura assim

justamente porque quanto à forma é um poema, isto é, contém recur-

sos lingüístico-estilísticos caracteristicamente poéticos, não filosófi-

cos, enquanto que o outro extremo do par, a matéria, faz dele não

somente um poema, mas um poema filosófico uma vez que essa ma-

téria consiste num questionamento acerca das vias da verdade, consi-

derando-se esta um “tema” próprio da filosofia. Assim, como seu

pensamento, no que diz respeito à forma, não se constitui num trata-

do sistemático, Parmênides não é considerado um filósofo, apenas

um pensador pré-socrático. Ser um pensador pré-socrático e não um

poeta é uma contingência da matéria de que trata Parmênides. A

matéria diferencia o seu pensamento do “não-pensamento” de Home-

ro, por exemplo, enquanto a forma faz de seu pensamento apenas

uma “filosofia primitiva” em relação aos sistemas platônico e aristo-

télico. Primitiva porque, por exemplo, a personificação da verdade

numa deusa caracteriza ainda um resquício da dicção mitopoética

carente do rigor do pensamento filosófico, que se mostra propria-

mente na clivagem definitiva entre mythos e lógos e operacionaliza

sempre conceitos abstratos, não imagens concretas.

Ainda transitamos, quando consideramos estas definições, den-

tro do par conceitual matéria-forma. Isso porque este par não funda-

menta somente a concepção do ente relativo às coisas da arte, mas

também a das mais diversas teorias do real, sejam elas ciências natu-

rais ou humanas, sejam elas filosofia. Um tal fato se explica porque a

tradição filosófica se origina e mantém na consideração bicúspide do

ente em hypokeímenon e symbebekóta. Cabe à filosofia o pensamen-

to da essência, do hypokeímenon do ente. À estética cabe tratar dos

symbebekóta, dos acidentes que caracterizam. Contudo, como dis-

semos, a concepção de ente entre nós vigente se articula num par

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conceitual. Na estética, busca-se o aisthetón, o que toca diretamente

nossa percepção. Independente do que seja sua matéria, o que marca

uma coisa como objeto estético é um modo de tocar nossa percepção

que produz no sujeito que o percebe a sensação do belo, sendo a

matéria apenas o escopo da forma. Por outro lado, a filosofia volta

todos os seus esforços no sentido de chegar à essência do ente que se

pensa, sendo a forma apenas o suporte lingüístico do conceito. Assim

nos parece que filosofia e estética estão radicalmente separadas, de

uma tal maneira que a consideração do poema de Parmênides como

um forma estética de matéria filosófica seja de todo pertinente.

Ocorre que to hypokeímenon foi traduzido para o latim como

subjectum, o que está lançado sobre, constituindo-se assim na susten-

tação, no fundamento do ente, lá vigendo como uma substantia à

qual se acomplam accidens, os acidentes que realizam a aparição da

essência substancial. O subjectum medieval – Deus – com a radical

transformação que origina a modernidade vai ser então concebido

como o sujeito racional do conhecimento. Aí estão já feitas a filoso-

fia e a estética. Prestando a devida atenção ao que foi dito, percebe-

mos:

1) que os objetos de filosofia e estética se diferenciam quanto ao

extremo do par conceitual que caracteriza o ente de que tratam e o

conhecimento a respeito deste mesmo ente que por elas é produzido,

de um modo tal que o objeto as diferencia;

2) que tanto na filosofia quanto na estética, o centro articulador

é sempre o sujeito, o da percepção sensual na estética e o da concep-

ção racional na filosofia, porque o aisthetón é a transposição moder-

na da posição que os accidens medievais e os symbebekóta clássicos

ocupavam no paradigma metafísico, do mesmo modo que o é a razão

em relação a deus e ao hypokeímenon. Assim o sujeito do conheci-

mento une estética e filosofia.

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O Péri Physeos de Parmênides nos tocaria então como objeto fi-

losófico ou como objeto estético de acordo com a predisposição de

nossa subjetividade para submeter – uma à outra - as extremidades

do par conceitual que o define. A predisposição mais comum é a de

se atacar o poema como objeto de investigação filosófica, mais espe-

cificamente pela história da filosofia. É, por outro lado, bastante

incomum, senão de todo inexistente, um ataque estético ao mesmo.

Isso porque talvez seja categórica a impressão de mediocridade cau-

sada pelo dizer de Parmênides aos estetas, o que não é surpreendente

e sim muito apropriado de acordo com os procedimentos da estética.

Quando busca estudar, classificar e analisar os elementos estéticos de

uma coisa da arte, a estética quer por meio desse processo chegar a

nada menos do que um conceito estético do mesmo objeto que per-

mita manipulá-lo como objeto conhecido, transportá-lo deste para

aquele campo taxonômico e falar dele de modo lógico por meio da

decomposição de seus diversos elementos agrupados num discurso

artisticamente ilógico. É por ter como protocolo a transposição da

coisa numa representação conceitual da coisa, resultante de seu pro-

cedimento, que a estética é considerada como uma parte da filosofia.

Para a filosofia, de modo semelhante, o poema de Parmênides não

chega a ser filosófico, apenas doutrinário no sentido de conter os

elementos de uma doutrina de pensamento que ainda não resulta num

sistema fechado de filosofia.

Qualquer tentativa de nos aproximarmos do poema de Parmêni-

des por meio da filosofia, seja a dos conceitos ou a das sensações,

seria tomar como pressuposto que o tal poema seja matéria formada.

Numa tal pressuposição a simplicidade profunda de sua dicção poéti-

ca já se encontra obliterada, simplesmente porque o julgamos a partir

de um parâmetro que se inscreve na crença de que o pensamento se

realiza plenamente como verdade apenas na filosofia, ou seja, so-

mente depois de Sócrates. Entretando, consideramos ainda mais de-

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terminante para a negligência do sentido da dicção poética do Péri

Physeos é o fato de que nesta circunscrição filosófica em que nos

encontramos é o sujeito que, raciocinando, chega à verdade. Não é a

verdade que aparece, tal como nos dita o sábio de Eléia. Ele assim o

dita não somente porque a tradução literal de alétheia seja “desvela-

mento” ou “desocultamento”, conforme era experienciada a verdade

no contexto grego em que viveu o pensador. O dito de Parmênides

não é uma elucubração racional. É reposta ao apelo do caminho que

se mostra ao pensamento como o que é digno de se pensar, ao modo

do desvelamento que tende ao velamento que lhe é originário. É a

aparição espantosa de uma deusa, não “da” verdade, mas “a” verda-

de. Esta aparição exclamativa que lhe vem conclama o pensador a

seguir os caminhos da interrogação que mantém vigente a questão,

dada a ambigüidade radical da consideração segundo a qual o desve-

lamento é a essência da verdade. Assim, ele não se lança à tarefa de

responder a questão do caminho da verdade. Antes, põe-se a caminho

desta de um modo em que o próprio caminhar do texto é percurso do

pensamento da verdade em curso. Por isso o caráter de ação essenci-

al, que em grego se diz poiésis, é fundamental no poema. É possível

que “ainda que” poético, um ditado possa ser pensante e assim dizer

a verdade e, “mesmo” ditando a verdade e pensando-a, não necessa-

riamente se constitua em sistema filosófico. Ditar uma dicção não é

aqui simplesmente uma outra forma de dizer “expressar uma idéia

com estilo próprio”. Assim escrevemos, ditar uma dicção, para que

mais possamos atentar ao sentido do pensamento e da voz que fala

no Péri Physis:

“E a deusa me acolheu graciosa e profusamente, tomou a mão direita na sua, e, desta maneira trazendo o epos à fala, me disse: Ó jovem, tu companheiro de imortais condutoras de carro, que te trazem com cavalos,

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alcançando nossa morada, viva!” (PARMÊNIDES, 1999, p. 45, I, vv. 22-26)

O que nos é ditado a partir dos versos 24 do primeiro fragmento

do poema que totaliza mais de 150 versos é a voz da deusa que se

mostra ao pensador e, ao mostrar-se, aponta o caminho. Essa voz

fala, portanto, na maior parte do poema. O que essa voz fala é de

grande importância no todo corpóreo do poema. O que ela dita são os

modos com que a verdade se nos põe a caminho, mas de uma manei-

ra especial em que o próprio poema se constitui numa tal caminhada.

É uma dicção especial. Esta palavra, dicção nos remete ao latim dic-

tio, dictionis, que denomina a ação de dizer, mas não qualquer dizer.

É um dizer ditado, expressivo, recitado, uma dicção, a partir do quê

chama-se um dictio também às predições, às respostas oraculares. Na

dictionis, o ditado está assim de modo inseparável da dicção de uma

maneira que não há a matéria do ditado e a forma da dicção, nem a

matéria formada do ditado em dicção. Retire-se de uma sentença

oracular a sua dicção e ela já não dita mais nada, ou perde a força de

sua voz que reside justamente no mistério de sua ambigüidade, pas-

sando então a dizer ou isso ou aquilo de modo inequívoco. Na sen-

tença oracular, fala a voz da divindade. Essa sentença, contudo, diz a

proveniência mundana da verdade. Essa proveniência sempre oculta

algo no seu mostrar. Ela é símbolo.

Símbolo não é, aqui, uma figura de estilo. A palavra nos advém

de uma vigência grega e, escutada à maneira grega, ela se lança em

duas direções semelhantes apenas na partida deste lançar, porque se

destinam a horizontes de sentido completamente diferentes. A nossa

maneira de escutar herdou apenas um destes sentidos. O verbo sym-

bállo, quando transitivo, significa “lançar junto de”, “amontoar”,

“comparar” e “cogitar”. Em latim, de onde nos chega este primeiro

sentido, há apenas os substantivos symbola, que significa a parte com

que se contribui para uma refeição comum, e symbollus, que signifi-

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ca marca ou sinal. Aí o símbolo é, transitivamente, é “símbolo de”. O

outro sentido nos advém do verbo grego symbállo quando intransiti-

vo: encontrar-se, reunir-se, combater, dar do seu, aproveitar-se, com-

preender e oferecer. Aí o símbolo é intransitivo. O encontro que nele

acontece não remete para outra coisa senão a uma dupla face de seu

simbolismo. Quando a deusa fala no poema de Parmênides, sua voz é

símbolo porque sempre se mostra mantendo-se no ocultamento, reú-

ne e combate, doa-se e aproveita-se, compreende na medida em que

oferece, ou seja, retrai na medida em que se dá, envolve na medida

em que desenvolve: “(...) é necessário também isto de uma maneira

totalizante conhecer: como o aparescente necessita ser tudo consu-

mando através de tudo de maneira aparescente.” (PARMÊNIDES,

1999, p. 45, I, vv. 31-32)

O nome da deusa que entrega sua fala é já uma doação do senti-

do do que se diz, na medida em que como deusa mesma, ela aparece

a dizer o caminho que não é outro senão ela própria: alétheia. Essa

palavra significa desvelamento. Com isso ela nos diz que o que apa-

rece, ou seja, é desvelado, advém do velamento como vigor funda-

mental de todo aparecer. Se “o aparescente necessita ser tudo

consumado através de tudo de maneira aparescente”, então alétheia

se constitui ao mesmo tempo de potência dinâmica, mo(vi)mento de

manifestação e âmbito de ausência retirada. Alétheia é, assim, verda-

de. Fica claro porque, mesmo considerando o significado de alétheia

como desvelamento, nossa maneira de pensar não consegue fazer a

experiência do desvelamento como verdade. Isso porque verdade

equiparou-se, em nosso pensamento, à adequação, e essa adequação

é representada sempre numa proposição, que sobrepõe sua estrutura

aos entes de modo a capturar-lhes num conceito. A experiência de

alétheia só vigora na linguagem em seu caráter de composição sim-

bólica da verdade numa imagem-questão.

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Uma imagem-questão se articula como mo(vi)mento, ou seja, é

uma composição à maneira do enquadre cinematográfico: coloca ao

mesmo tempo cada composto em seu lugar próprio, numa permanên-

cia, e ainda assim nos chega sempre como uma incessante manifesta-

ção de mudança. Na articulação da permanência e da mudança

dentro de um determinado enquadre, que é um mundo acontecendo,

temos a realidade aparecendo como sentido e verdade. É imagem

porque propõe o sendo do ser. É questão porque dispõe o ser sendo.

É imagem porque se coloca como sentido e verdade sempre a todo

momento. É questão porque vigora sempre e a todo momento apenas

enquanto permanece enraizada no questionar. A deusa fala ao pensa-

dor não porque este pôs palavras na boca daquela como um recurso

“estilístico”, mas porque alétheia, o desvelamento, a verdade, tem

somente no aceno divino da fala da deusa a força da imagem e o

vigor do questionar que constituem, sempre, o que é digno de ser

pensado.

“(...) cuida que caminhos únicos do procurar são dignos de serem pensados: um, que é e que não-ser não é; é o caminho da obediência, (pois segue o desvelar-se). O outro, que não é, e que necessariamente não-ser é; este caminho eu te digo em verdade ser totalmente insondável como algo inviável; pois não haverias de conhecer o não-entee (pois este não pode ser realizado) nem haverias de trazê-lo à fala.” (PARMÊNIDES, 1999, p. II)

A linguagem em que o conhecimento inscrito nos limites de

nossa verdade surge e persiste está coberta de camadas representa-

cionais que apenas um pensamento cuidadoso e aprofundado pode

descascar. Nesse sentido uma tradução de um poema como o Péri

Physeos que pensa e articula uma outra vigência de linguagem a

partir de outro vigor de verdade nunca é suficiente sem que seja mui-

to pensada. Não apenas a tradução, mas também a leitura. Esse modo

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de pensar se conduz por um cuidado nunca excessivo com a lingua-

gem. O requerimento de um tal cuidado se funda na poeticidade ne-

cessária de uma tal tradução pensada, que como tal não terá valor a

menos que gere uma leitura pensada. Um tal pensamento, que real-

mente fique pendente em sua voz, na linguagem, nunca se esgota e

resulta em explicação. Ele é sempre implicação, isto é, nos lança na

experiência radical das dobras da complexidade da linguagem poéti-

ca sem desdobrá-la. Essa implicação numa fala poética, naturalmen-

te, implica uma leitura poética, uma interpretação poética. Essa

interpretação poética fala na mesma pendência pensante do poetica-

mente pensado por Parmênides. Diz o poeta-pensador: “... pois o

mesmo é ser e pensar.” (PARMÊNIDES, 1999, p. III)

Nessa pendência, a voz nunca é totalmente pura voz, de uma tal

maneira que nela, sempre há um aceno do extraordinário. Em nosso

caso, a fala da deusa. Em todo caso, a voz clareia apenas na medida

em que obtém do mistério da linguagem, de que pende, a escuridão

necessária ao aparecimento de seu brilhar. Eis o sentido do belo,

palavra originada do grego bállo, que também está no sim-bolo, um

lançar, deitar, colocar e fazer saltar de modo tal que conclama e cap-

tura a visão. A deusa aparece e captura a visão de um pensador. Ela é

a verdade. O simbólico dessa aparição só é dizível numa dicção que

dita um sentido profundo de verdade como desvelamento. Propria-

mente quem fala é a linguagem, o homem só fala na medida em que

responde ao seu apelo, diz Heidegger. Assim, a poesia, neste salto

originário do belo, supera a filosofia e a estética. A aparente obscuri-

dade não é um defeito do pensamento de Parmênides, mas apenas

indica a marca de circunscrição do nosso horizonte científico que só

aceita a verdade como clareza, como certeza proposicional. Mas,

atentemos ao dize de Nietzsche, que nos fala a partir do mesmo vigor

poético de pensamento:

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“Que vosso espírito e vossa virtude sirvam ao sentido da terra, meus irmãos: que o valor de todas as coisas seja renovado por vós! Para isso deveis ser combatentes! Para isso deveis ser criadores!

Sabendo purifica-se o corpo; ensaiando com saber ele se eleva; naquele que conhece santificam-se todos os impulsos; naquele que se elevou, a alma se torna gaia.” (NIETZSCHE, 1983, p. 233)

O poema deste modo se mostra como somente um poema, mas

esse somente agora remete para a força extraordinária da poiésis

clara e misteriosa, porque abre-se como dito desvelante na reclusão

velada da dicção. É, desta feita, extraordinária porque não pode ser

dita de nenhuma outra maneira, isto é, resiste a qualquer tentativa

nossa de trazê-la totalmente para o âmbito de nossa ordem e manipu-

lá-la e, assim, é mistério; mas resiste sem que com isso permaneça

completamente para além do nosso horizonte e, assim, brilha. O po-

ema de Parmênides não é somente Physeos, nascividade, brotação,

alétheia, mas é também Péri, agora não mais simplesmente entendido

como “sobre” ou “acerca de”, mas sim como “entre”, “liminaridade”,

“implicação nas dobras da poeticidade”, posto que sua dicção ditada

habita o entre tencional de mundo e terra, de ser-não-ser. Péri Physe-

os: entre o que se desvel. Cada uma palavra sua é revelação.

Referências bibliográficas

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NIETZSCHE, F. W. “Assim Falou Zaratustra”,. In: Obras Incomple-tas. 3 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

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------. A Origem da Obra de Arte. Lisboa: Edições 70, sd.

------. Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2000.

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PEREIRA, S. J. Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. 4 ed. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1969.

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SOUZA, Prof. José Cavalcante de (org.). Os pré-socráticos: frag-mentos, doxografia e comentários. 2 ed. São Paulo: Abril Cul-tural, 1978.

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Teoria da Relevância e Ensino: reflexões sobre processos de compreensão em

atividades escolares Fábio José Rauen

(UNISUL)

Introdução

A concepção de que a comunicação consiste em transmitir e re-

ceber mensagens sustenta práticas onde o educador se comporta co-

mo emissor e o aluno como receptor. Cabe ao aluno decodificar a

mensagem das aulas e devolvê-la como fax símile em exercícios ou

provas. Contudo, há evidências de que a cognição opera por inferên-

cias.

Em lingüística, com base na teoria inferencial de Grice (1957,

1967), a Teoria da Relevância de Sperber e Wilson (1986, 1995)

defende a tese de que a cognição humana opera com base na relevân-

cia, entendida como uma equação entre esforço de processamento e

efeitos cognitivos. Neste ensaio, defendo a tese de que a Teoria da

Relevância pode ser tomada como base para uma reflexão que sus-

tente práticas pedagógicas mais adequadas em sala de aula. Nesse

sentido, lançam-se argumentos e apresentam-se exemplos em favor

dessa perspectiva pragmática de comunicação

Decodificação e inferência

Os modelos tradicionais de comunicação baseiam-se exclusiva-

mente em processos de codificação e decodificação (SHANON e

WEAVER, 1949; JAKOBSON e HALLE, 1956; JAKOBSON,

1961). Modelos desse tipo defendem a tese de que, ao tomar a pala-

vra, o falante (emissor) transmite informações (mensagens) sobre

alguma coisa (referente) utilizando-se de uma mídia ou meio (canal).

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Cabe ao ouvinte (receptor), compreender essa mensagem. Para que

isso aconteça adequadamente, é fundamental que emissor e receptor

compartilhem uma mesma linguagem (código). O papel do emissor é

o de codificar a mensagem, isto é, converter pensamentos em um

sinal codificado; e o papel do receptor é o de decodificar essa men-

sagem, isto é, converter esse sinal codificado em pensamentos.

Emissor

Pensamento

Mensagem

Codificação

Canal

Sinal

Acústico

Receptor

Mensagem

Pensamento

Decodificação

Imagine que você recebeu o seguinte bilhete:

(1)

e que você e seu colega compartilham um código, onde:

= a; = e; = é; = o; = u; = l; = h; e, = j.

De posse desse código, você poderia descobrir (decodificar) a

mensagem de seu colega:

(2) A aula é hoje.

O problema dessa concepção surge quando se extrapola essa ob-

servação e se diz que a comunicação consiste exclusivamente em

codificar e decodificar; quando se diz que basta decodificar a mensa-

gem para que o ouvinte compreenda o que o falante quis dizer.

Essa concepção está enraizada no senso comum, quando se diz,

por exemplo:

(3) Hoje eu não acho as palavras para te dizer isso;

(4) Não consigo tirar essa idéia da cabeça;

ou mesmo em práticas escolares, por exemplo:

(5) Professora, me deu um branco;

(6) Você precisa pôr mais suas idéias na redação.

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Em (5), o aluno pressupõe que o papel devia receber suas idéias,

mas ‘deu um branco’; em (6), o docente se preocupa porque o aluno

não codifica suas idéias na redação.

Além disso, essa concepção fundamenta práticas onde o docente

apresenta o conteúdo, codificando-o, e o aluno compreende esse

conteúdo, decodificando-o. Para avaliar a compreensão, basta inver-

ter o processo. O aluno codifica: responde exercícios, apresenta tra-

balhos, faz provas, de modo que o docente possa avaliar entre as

mensagens codificadas nos exercícios, trabalhos ou provas se o aluno

compreendeu.

No exemplo abaixo, essa concepção parece absolutamente ina-

balável: (7a) Docente: A água é composta de: ________________; (8a) Aluno: A água é composta de: Hidrogênio e Oxigênio.

O docente, obviamente, consignará um acerto nessa questão,

uma vez que lecionou a composição química da água (codificando-a

como: Hidrogênio e Oxigênio). Na resposta (8a), o aluno escreveu

(codificou): Hidrogênio e Oxigênio. Portanto, compreendeu a maté-

ria.

Todavia, imagine a seguinte resposta para a mesma questão: (8b) Aluno: A água é composta de: Hidrogênio, Oxigênio e Cloro.

Ao se pensar na água das torneiras, o Cloro é um elemento quí-

mico respeitável de sua composição e, nesse caso, está-se diante de

uma resposta alternativa viável. O docente pode dizer que não foi

isso que lecionou e consignar um erro ou até mesmo um acerto par-

cial ou, quem sabe, um acerto. O fato é que houve um problema de

compreensão, talvez porque o docente não codificou adequadamente

a pergunta. Vejam-se alternativas: (7b) Docente: A água em seu estado químico puro é composta de: _________;

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(7c) Docente: A água obtida pelo processo de destilação é composta de: _________;

As alternativas (7b) e (7c) são formas interessantes de salvar a

concepção de que a comunicação e a compreensão dependem exclu-

sivamente de codificar e decodificar mensagens. Porém, o aluno

deveria ser capaz de compreender que era óbvio que ao perguntar

pela composição da água, o docente estava se referindo à água em

seu “estado químico puro” ou aquela “obtida pela destilação” ou,

pelo menos, “aquela que ele lecionou”, e não à água “de torneira”. Se

isso é verdade, isto é, se for admitido que a mensagem codificada

não é suficiente para transmitir tudo o que se quer dizer, ou ainda,

que há elementos que podem ficar implícitos, tem-se de admitir que

compreender implica mais do que codificar e decodificar.

A seguir, apresento um conjunto de respostas dadas por uma

criança a perguntas sobre o “Planeta Terra”, perguntas estas retiradas

do livro didático para 2a série do ensino fundamental de Lago e Mei-

relles (1997, p. 119). No livro, ao lado das perguntas, há um desenho

de uma nave capaz de cavar (implica-se, para os adultos pelo menos,

uma nave que poderia ir ao centro da Terra). (9) 1. Você já pensou em cavar um buraco bem fundo? Não. 2. O que aconteceria se você cavasse um buraco sem parar? Ia ficar grandão. 3. O que encontraria pelo caminho? Vimos ver terra. 4. A que lugar chegaria? Num lugar bem fundo.

O conjunto das respostas dadas pela criança revela a falha fun-

damental do modelo de código. Ele negligencia o papel essencial do

contexto cognitivo da criança. O conjunto de elementos codificados

pelas perguntas, invariavelmente, será ambientado no conjunto cog-

nitivo da criança. Perturbada agora pelas perguntas, a criança gera

respostas que, embora não satisfaçam às expectativas do adulto, são

absolutamente coerentes com esse contexto inicial.

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Frente a situações triviais do gênero, parece óbvio que, para ha-

ver compreensão, codificar e decodificar palavras não basta aos in-

terlocutores. É preciso agregar à concepção de comunicação o espaço

entre o que se codifica e o que se compreende.

Em lingüística, o modelo de Grice (1957, 1967) propõe que esse

espaço é preenchido por inferência. Grice afirma que as pessoas,

quando entram em comunicação, partem de um acordo tácito: o

“Princípio de Cooperação”, que postula que o falante deve fazer sua

contribuição conversacional: a) da forma como é requerida; b) no

momento em que ela ocorre; e, c) pelo propósito ou direção da con-

versação em que os interlocutores estão engajados.

O Princípio de Cooperação se liga a quatro categorias de máxi-

mas: a de qualidade (fale a verdade); a de quantidade (fale na medida

certa); a de relevância (seja pertinente); e, a de modo (seja claro).

Dessa maneira, um falante, respeitando o princípio e as máximas: a)

não mente; b) não fala em excesso ou em falta; c) é pertinente; e, d) é

claro. Lógico que se trata de uma idealização. Constantemente, está-

se jogando com essas máximas, vale dizer, está-se obedecendo, subs-

tituindo ou violando as máximas. Justamente porque se violam as

máximas, por exemplo, é que surgem as implicaturas conversacio-

nais.

Veja-se como a metáfora é explicada nesse modelo: (10) A - O que você acha de Ana? B – Ela é uma rosa.

Nesse caso, B está violando a máxima de qualidade, ou seja, não

está dizendo a verdade, porque Ana não é literalmente uma rosa.

Como A sabe que B está cooperando (princípio de cooperação) e A

percebe que B está violando a máxima de qualidade, B quer dizer

outra coisa. A então calcula que B pode estar querendo dizer: (10a) Ana é delicada.

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(10b) Ana é amável. (10c) Ana é malvada (cheia de espinhos).

Cada uma dessas possibilidades é uma implicatura conversacio-

nal obtida por inferência, porque em nenhum momento o falante

disse qualquer uma dessas conclusões. Para Grice, a compreensão

decorre da aplicação do princípio de cooperação e máximas (que

podem ser obedecidas, substituídas ou violadas) sobre aquilo que foi

dito, com base em um contexto. Quando, em função de um contexto,

o significado de um enunciado varia, está-se diante de uma implica-

tura conversacional particularizada.

Contudo, para Sperber e Wilson (1986, 1995), a teoria de Grice

não explica a natureza e a origem do princípio de cooperação e das

máximas, e falha por não explicar como uma interpretação, entre

muitas, é escolhida. Que fatores explicariam a escolha pela interpre-

tação de que Ana é delicada (10a), amável (10b) ou malvada (10c)?

Os autores discordam da idéia de que falantes devem obedecer a

máximas e, desse modo, rejeitam a violação das máximas como ori-

gem da implicatura. Para eles, não há violação de qualquer norma

comunicativa, uma vez que a compreensão verbal se dá através da

busca da relevância, uma propriedade natural da cognição humana.

Fundamentos da teoria da relevância

Para a Teoria da Relevância, o objetivo da comunicação é modi-

ficar o ambiente ou contexto cognitivo de um interlocutor. Contexto,

aqui, consiste no conjunto de suposições – conjuntos estruturados de

conceitos – que se manifesta a um indivíduo em determinado lapso

de tempo. Trata-se de um conjunto de premissas – informações men-

talmente representadas – que é utilizado para interpretar enunciados.

Construto psicológico, constituído de um subconjunto de suposições

do ouvinte sobre o mundo, que afeta, e determina muitas vezes, a

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compreensão de um enunciado. O contexto pode incluir: a) informa-

ção do ambiente físico; b) informação recentemente processada e

armazenada na memória de curto prazo; e c) informação da memória

enciclopédica (conhecimento de mundo).

Na teoria de código, quando dois interlocutores entram em con-

tato, eles partilham um conhecimento mútuo, sem o qual não se pode

transmitir uma mensagem. Nessa perspectiva, o contexto é uma pré-

condição, um dado ou um pré-construído. Todavia, há evidências de

que é no curso da conversação que se organiza um contexto de supo-

sições compartilhadas. Na conversação, algumas suposições se tor-

nam mais manifestas para os interlocutores. Essas suposições

manifestas em graus diversos constituem o ambiente cognitivo. Se as

suposições se tornam mutuamente manifestas, há o ambiente cogni-

tivo mútuo, que é a intersecção do conjunto das suposições manifes-

tas para ambos os interlocutores num dado momento.

Quando o docente perguntou sobre a composição da água (7a),

em seu ambiente cognitivo, água referia-se à “água em estado quími-

co puro”, “água destilada” ou “água que ele lecionou”. A resposta

(8a), que se referia ao Hidrogênio e ao Oxigênio exclusivamente,

revela que o ambiente cognitivo de ambos se equivale: provavelmen-

te, foi mutuamente manifesto para o docente e para o aluno que água

se referia à “água em estado químico puro”, “água destilada” ou “á-

gua que ele lecionou”. A resposta (8b), porém, é uma evidência de

uma divergência na atribuição de referência ao item lexical “água”.

Ao corrigir o exercício, a resposta torna mutuamente manifesto, tanto

para o docente como havia sido para o aluno no momento da escrita,

que o aluno compreendeu água, enquanto “água de torneira”.

Esse caso gera muitas reflexões. Por um lado, não há provas de

que em (8a), de fato, foi manifesto no ambiente cognitivo tanto do

docente como dos alunos que o item lexical “água” se referia efeti-

vamente à “água em seu estado químico puro” ou “água destilada”.

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Isso é dramático porque a prova não prova o que justamente pretende

provar: que aqueles que acertam compreenderam o que acertam.

Todos os alunos poderiam ter acertado a questão e não ser manifesto

nem ao docente nem aos alunos que o item lexical “água” tem de ser

tomado no sentido correto para a resposta ser correta. Em outras

palavras, pode ser que todos tenham tomado água simplesmente co-

mo aquela “que fez parte da aula”, sem se darem conta que o item

lexical “água” pode ser tomado como “água de torneira”, “água do

rio”, “água do mar”.

Por outro lado, justamente porque a resposta (8b) emerge, é que

essa falha pode ser detectada, ou melhor, que se torna manifesto ao

docente que pode haver uma atribuição de referência ao item lexical

“água” que não havia sido pensada. Aqui está o drama. Se a convic-

ção pedagógica do docente é a de que o modelo de código é fiel ab-

soluto da compreensão, a resposta está errada e toda a riqueza dessa

reflexão se perde. Se sua convicção é diferente, ele pode tomar a

divergência como uma grande oportunidade para a revisão da maté-

ria.

O fundamental aqui é que a possibilidade de falha de compreen-

são do aluno só se torna manifesta para o docente em função da res-

posta que aparece no exercício, ou seja, o contexto cognitivo do

docente, que antes ignorava a possibilidade de que algum aluno en-

tendesse água de forma diferente daquela em “estado puro” ou “des-

tilada”, vai se modificando com o decorrer do tempo. É justamente

no processo da comunicação que a suposição de que a palavra água

na proposição do exercício poderia ser tomada por “água de torneira”

se torna manifesta. Se essa interpretação pudesse ter sido antecipada,

o docente teria proposto a questão nos moldes das alternativas (7b)

ou (7b).

A Teoria da Relevância

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A Teoria da Relevância é uma abordagem pragmático-cognitiva

que procura explicar como ocorre a compreensão humana. Sua tese

central é a de que os seres humanos prestam atenção a estímulos que,

de certa maneira, satisfazem nossos interesses ou se ajustam às cir-

cunstâncias do momento, numa palavra, são relevantes. Vale desta-

car que Relevância não deve ser entendida em seu significado

ordinário como aquilo que é importante, mas aquilo que adquire

relevo ou chama atenção por seus efeitos cognitivos. Trata-se, como

se verá, de um conceito cognitivo que contrabalança efeitos cogniti-

vos e esforço de processamento.

Para Sperber e Wilson, todo ato de ostensão vem acompanhado

de uma garantia implícita de relevância, chamada de Princípio de

relevância. Para eles, “todo ato de comunicação ostensiva comunica

uma presunção de sua própria relevância ótima” (1986, p.198). Um

ato de ostensão requisita a atenção do ouvinte e o leva a desencadear

as inferências pretendidas. Assim, um comunicador espera que sua

intenção informativa seja relevante ao ouvinte ao produzir um enun-

ciado-estímulo, e o ouvinte concentra sua atenção no que é relevante,

originando suposições e inferências.

Um enunciado, portanto, é uma evidência direta – uma ostensão

– da intenção informativa do falante. Ao atingir a atenção do ouvinte

– intenção comunicativa, ele conduz à construção e à manipulação de

representações. Assim, para haver uma intenção informativa essa

intenção informativa deve elevar-se à intenção comunicativa. Isso

ocorre através do reconhecimento mútuo (manifestabilidade mútua)

da intenção informativa. Cada enunciado, portanto, possui duas pro-

priedades intrínsecas: a de ser um comportamento ostensivo, da parte

do comunicador, e a de gerar um comportamento inferencial, da par-

te do ouvinte.

Para uma ostensão ser relevante, a informação que ela transmite

deve-se combinar com as suposições que o ouvinte possui sobre o

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mundo, levando então a uma nova suposição. Assim, a informação

nova P inscreve-se no contexto de suposições C (informações velhas)

o que implica a contextualização de P em C. Essa alteração constitui

os efeitos cognitivos contextuais, e poderá ocorrer de três modos: a)

por implicação contextual; b) pelo fortalecimento (ou enfraqueci-

mento) de suposições; e, c) pela eliminação de suposições contraditó-

rias.

Para definir a relevância, também é necessário considerar o es-

forço de processamento. Logo, duas condições são necessárias para a

aplicação do princípio de relevância: a) uma suposição é relevante

em um dado contexto na medida em que seus efeitos contextuais

nesse contexto são amplos; e, b) uma suposição é relevante em um

dado contexto na medida em que o esforço necessário para processá-

la nesse contexto é pequeno.

Vale lembrar que efeitos e esforços existem mesmo não sendo

representados. A relevância é uma função de efeitos e esforços, ela é

uma propriedade não representacional da mente. A Relevância é

disparada – espontânea e inconsciente. Apenas julgamentos de rele-

vância, podem vir a ser representados, comparativa e intuitivamente,

nunca quantitativamente.

Como o contexto não é dado totalmente de início, selecioná-lo é

parte do processo de interpretação. Se os efeitos contextuais adequa-

dos forem alcançados com o mínimo de esforço justificável, então a

informação será processada otimamente. Uma suposição não é rele-

vante em si mesma, mas relevante em relação a uma situação de

comunicação específica.

Para Sperber e Wilson, um estímulo ostensivo é um fenômeno

que objetiva gerar efeitos contextuais. Se alguém quiser gerar um

efeito contextual específico precisa criar um estímulo que alcance o

efeito pretendido desejado quando processado otimamente. Na co-

municação verbal, os enunciados constituem estímulos ostensivos

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que atraem a atenção do ouvinte e põem em evidência as intenções

do comunicador. Logo, a comunicação ostensiva caracteriza-se pela

intenção informativa e pela intenção comunicativa do falante.

Se o comunicador quer que sua intenção informativa seja oti-

mamente processada, ele deve escolher o enunciado/estímulo o mais

relevante possível para que o ouvinte o processe com um mínimo

esforço a fim de obter o máximo de efeito. Assim, o ouvinte pode

crer que o comunicador lhe apresentou o estímulo mais relevante. Se

o ouvinte não partir desse princípio, não fará nenhum esforço. As-

sim, se o ouvinte presta atenção à informação que lhe é relevante, o

comunicador, quando chama sua atenção, dá garantias de relevância.

Nessa lógica, há uma presunção de relevância ótima determina-

da por dois fatores:

Condição de grau 1: uma suposição é relevante para um indivíduo, na medida em que os efeitos contextuais alcançados quando ela é otimamente processada são amplos;

Condição de grau 2: uma suposição é relevante para um indivíduo na medida em que o esforço requerido para processá-la otimamente é pequeno.

Os Enunciados produzidos constituem estímulos ostensivos que

satisfazem duas condições: a) atraem a atenção da audiência; b) foca-

lizam as intenções do comunicador. Os enunciados são, pois, sinais

codificados usados na comunicação ostensiva. Um estímulo ostensi-

vo deve, ainda, revelar as intenções do comunicador e não apenas

focalizá-las. Este estímulo deve vir com a garantia de relevância.

Um indivíduo, ao produzir um enunciado, requisita a atenção do

ouvinte e sugere que o enunciado é relevante o suficiente para mere-

cer a atenção. Ao receptor cabe apresentar um comportamento cogni-

tivo apropriado, prestando atenção ao estímulo ostensivo. Assim,

todo ato de comunicação ostensiva automaticamente carrega uma

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presunção de relevância. Isso indica que é mutuamente manifesto

que o comunicador pretende tornar manifesto para o ouvinte que a

escolha do estímulo foi a mais relevante no sentido de revelar suas

intenções.

Pode-se agora estabelecer o conceito de Presunção da Relevân-

cia Ótima:

a) o estímulo ostensivo é relevante o suficiente para merecer o esforço do destinatário para processá-lo; e,

b) o estímulo ostensivo é o mais relevante compatível com as habilidades e preferências do comunicador.

Mecanismo interpretativo

A interpretação de um enunciado é governada pelo critério de

consistência com o princípio de relevância. Isso quer dizer que a

suposição mais acessível que for consistente com a presunção de que

o estímulo ostensivo merece ser processamento e foi o mais relevante

com as habilidades e preferências do falante é que vai ser adotada.

Sperber e Wilson pretendem descrever e explicar os níveis de

compreensão associando à forma lógica, lexical, gramatical e à for-

ma proposicional da implicatura através do processo pragmático

inferencial. Todavia, os autores usam o termo ‘explicaturas’ para

enquadrar a compreensão lingüística num nível pragmático entre a

decodificação lingüística e a implicação contextual. Para eles, nesse

nível, atuam várias operações pragmáticas tais como a atribuição de

referência, desambiguação, resolução de indeterminâncias, interpre-

tação da linguagem metafórica, enriquecimentos de elipses, etc

(SILVEIRA e FELTES, 1999, p. 54).

Assim, três níveis representacionais são hipotetizados: a) o nível

da forma lógica, na dependência da decodificação lingüística; b) o

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nível da explicatura, em que a forma lógica é desenvolvida através de

processos inferenciais de natureza pragmática; e, c) o nível da impli-

catura, que parte da explicatura para a construção de inferências

pragmáticas.

Na compreensão, a Teoria da Relevância propõe que na inter-

pretação de um enunciado opera um sistema dedutivo não-trivial que,

sem seguir as regras da lógica formal, toma como input um conjunto

de suposições e dele deduz todo um conjunto de conclusões. Suposi-

ções são conjuntos de conceitos formulados dentro de uma forma

lógica. Conceitos, por sua vez, são rótulos ou endereços. Para Silvei-

ra e Feltes (1999, p. 32), com base em Sperber e Wilson, quando

esses rótulos ou endereços são processados, dão acesso a informa-

ções que são classificadas como: a) entradas lógicas (de caráter com-

putacional) – trata-se de um conjunto finito, pequeno e constante de

regras dedutivas que se aplica às formas lógicas das quais são consti-

tuintes; b) entradas enciclopédicas (de caráter representacional) –

consistem de informações sobre a extensão ou denotação do conceito

(objetos, eventos e/ou propriedades que a instanciam) que variam ao

longo do tempo e de indivíduo para indivíduo; e c) entradas lexicais

(de caráter representacional) – consistem de informações lingüísticas

sobre a contraparte em linguagem natural do conceito (informação

sintática e fonológica).

Sperber e Wilson vão defender que o mecanismo dedutivo opera

por regras dedutivas de eliminação, especialmente pela: a) regra de

eliminação do “e” que prediz que se duas proposições conjuntas são

verdadeiras, cada uma isolada é verdadeira; e, b) regra do modus

ponens, que prediz que quando uma proposição é implicada por ou-

tra, quando a primeira é verdadeira, a segunda é verdadeira. Vejam-

se exemplos:

Input P & Q Números pares são divisíveis por 2,

e 4 é um número par.

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Output P Números pares são divisíveis por 2.

Q 4 é um número par.

Input (i) P

Q

Se 4 é um número par, então 4 é di-

visível por 2.

(ii) P 4 é um número par.

Output Q 4 é divisível por 2.

Isso em mente, pode-se agora dar uma explicação para as res-

postas (8a) e (8b) da questão (7a). Reveja-se:

(7a) Docente: A água é composta de: ________.

Na interpretação, a forma lingüística se acomoda numa forma

lógica não proposicional, ou seja, uma proposição para a qual não se

pode ainda atribuir valor de verdade.

(11a) x ser composto de y.

(11b) A água é composta de ∅.

Para o docente, é tácito que é manifesto para todos os alunos

que água se refere à “água em seu estado químico puro” ou “água

destilada”, porque foi isso que ele lecionou. Tanto é dessa forma que

ele omite essa referência, pois acredita que os alunos serão capazes

de atribuí-la corretamente, vale dizer, deixa implícito. Na teoria da

relevância, diz-se que essa informação ficou no nível da explicatura:

(11c) A águai [em seu estado químico puroi] é composta de ∅. (11d) A águaj [destiladaj] é composta de ∅.

Onde: água1 [em seu estado químico puroi] e águaj [destiladaj] equivalem à atribuição de referentes ao item lexical “água”.

Os alunos que acertam a questão explicam a variável y como

“Hidrogênio e Oxigênio”, pois foi a primeira suposição consistente

com o princípio de relevância:

(11e) A água [em seu estado químico puro] é composta de [Hi-

drogênio e Oxigêniol].

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(11f) A água [destilada] é composta de ∅ [Hidrogênio e Oxigê-

niol].

Onde: ∅ [Hidrogênio e Oxigêniol] = complemento do elemento

elíptico “∅”.

A forma lógica (11e) e (11f) podem ser agora consideradas co-

mo proposicionais, visto que se pode atribuir condições de verdade.

É por isso que o docente pode consignar um “certo” ou “errado” na

resposta. Todavia, vale observar aqui que não há qualquer garantia

de que os alunos de fato explicaram água enquanto “água em seu

estado químico” ou “água destilada”, mas simplesmente ecoaram a

resposta conforme as aulas. Logo, não há garantias de que eles de

fato façam essa distinção, ou compreendem a questão dessa maneira.

Esse é o problema crucial de quem ensina pelo modelo de código:

confia-se numa resposta em eco como se essa resposta em eco fosse

um fiel perfeito da compreensão.

Por isso, falhas de compreensão são excelentes para o docente.

Quando ele obtém respostas como: (8a) Aluno: A água é composta de: Hidrogênio, Oxigênio e Cloro.

Verificará que o aluno interpretou seu enunciado da seguinte

forma:

(11g) A águai [da torneirai] é composta de ∅ [Hidrogênio, Oxi-

gênio e Cloroj].

Onde: águai [da torneirai] = atribuição de referente ao item lexi-

cal “água”;

∅ [Hidrogênio, Oxigênio e Cloroj] = complemento do elemento

elíptico “∅”.

À resposta (11g) também se podem atribuir condições de verda-

de. Contudo, (11g) desvia-se da resposta esperada. Um professor

consciente da fragilidade da concepção de comunicação exclusiva-

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mente baseada em (de)codificação, pode ficar alerta e usar esse des-

vio enquanto reflexão sobre sua prática pedagógica.

O exemplo anterior permitiu compreender o papel fundamental

da explicatura para a compreensão da pergunta do docente e para a

compreensão do docente da resposta dos alunos. Veja-se agora como

explicar e descrever a adoção de uma das interpretações da metáfora

exemplificada em (10). Revejam-se o diálogo e as interpretações:

(10)

A - O que você acha de Ana?

B – Ela é uma rosa.

(10a) Ana é delicada.

(10b) Ana é amável.

(10c) Ana é malvada (cheia de espinhos).

O enunciado de B é um estímulo ostensivo que se combina com

o ambiente cognitivo de A. O enunciado de B aciona em A um con-

junto de suposições. Se no ambiente cognitivo de A forem acionadas

suposições sobre o caráter delicado de Ana (modos de comportamen-

to, por exemplo), a interpretação de que Ana é delicada (10a) será a

primeira consistente com o princípio de relevância e será adotada (a

mesma consistência poderia explicar a adoção das interpretações

(10b) e (10c) de que Ana seria amável ou malvada). Antes, contudo,

o enunciado precisa ser processado dentro de uma forma lógica.

(12a) x ser y.

(12b) Ela é uma rosa.

(12c) Ela1 [Ana1] é uma rosa.

Onde: Ela1 [Ana1] = atribuição de referente ao item lexical “e-

la”.

A informação nova do enunciado é combinada com as informa-

ções velhas que A possui de Ana. Dessa combinação obtém-se a

conclusão implicada de que Ana é delicada.

S1 – Ana é uma rosa (do input lingüístico);

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S2 – Rosas são delicadas (da memória enciclopédica de A: pri-

meira suposição consistente com o princípio de relevância);

S3 – Se Ana é uma rosa e rosas são delicadas, então Ana <possi-

velmente> é delicada (premissa implicada da combinação do input

lingüístico com a memória enciclopédica);

S4 – Se rosas são delicadas, então Ana <possivelmente> é deli-

cada (conclusão implicada por eliminação de uma das suposições

(regra de eliminação do “e”));

S5 – Ana <possivelmente> é delicada (conclusão implicada pela

eliminação do antecedente (regra de eliminação por modus ponens)).

(12d) Ela1 [Ana1] é uma rosaj [delicadaj].

Qual é a garantia de que B estaria acionando suposição certa?

Nenhuma. Se a conversa parasse por aí, os dois poderiam acionar

suposições diferentes e acreditar que o outro acionou as suposições

corretamente. Se A tomasse a palavra e dissesse algo como:

(13) Eu também acho que Ana é delicada!

B poderia monitorar a resposta e verificar que suposição foi a-

cionada. Se a suposição corresponde, há um reforço; se não, há uma

contradição e B tem da avaliar se vale a pena contra-argumentar. Em

qualquer caso, os falantes não violam qualquer máxima, mas apenas

guiam a compreensão verbal através da busca da relevância.

Um exemplo

Veja-se um exemplo de descrição e explicação mais complexa.

Trata-se de um exercício proposto para uma turma de 2a serie do

ensino fundamental que foi retirado do caderno de uma criança de 8

anos.

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Estas pessoas estão comprando seus ingressos para assistirem a

um filme, mas 4 delas não puderam entrar porque a censura deste

filme é 12 anos.

Pinte na ilustração quem você acha que não pode entrar:

Então, quantas pessoas assistirão ao filme? Cálculo:

A criança pintou quatro personagens: as duas crianças no canto

inferior direito, a criança negra e a criança de óculos na parte inferior

da figura. Em seu ambiente cognitivo, possivelmente ela acessou a

seguinte suposição:

S1 – Crianças menores de 12 anos são pequenas.

Logo, a personagem que está atrás da criança de óculos é um

pouco maior e foi descartada.

Com relação ao cálculo, a resposta foi 14. Podem-se ver 18 per-

sonagens e, se forem retiradas as quatro crianças, “14 pessoas assisti-

rão ao filme” (18 – 4 = 14).

As respostas foram consideradas corretas pela docente, revelan-

do que, nos ambientes cognitivos das duas, foi <possivelmente>

manifesto o seguinte conjunto de suposições:

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(14)

S1 – Crianças menores de 12 anos são pequenas (da memória

enciclopédica).

S2 – As quatro crianças pequenas escolhidas têm menos de 12

anos (do input perceptual).

S3 – Se as quatro crianças pequenas escolhidas têm menos de 12

anos, então elas <possivelmente> não podem assistir ao filme (pre-

missa implicada);

S4 – As quatro crianças pequenas escolhidas <possivelmente>

não podem assistir ao filme (conclusão implicada);

S5 – Se as quatro crianças pequenas escolhidas <possivelmente>

não podem assistir ao filme então elas <possivelmente> devem ser

pintadas (premissa implicada);

S6 – As quatro crianças pequenas escolhidas <possivelmente>

devem ser pintadas (conclusão implicada);

S7 – Há 18 pessoas na fila (do input perceptual);

S8 – Se há 18 pessoas na fila e as quatro crianças pequenas esco-

lhidas <possivelmente> não podem assistir ao filme, então 14 pesso-

as <possivelmente> vão assistir ao filme (premissa implicada);

S9 – 14 pessoas <possivelmente> vão assistir ao filme (conclu-

são implicada).

Como se vê, tem-se aqui um exemplo de comunicação bem su-

cedida. O exercício modifica o ambiente cognitivo da criança que,

diante da perturbação, reage mobilizando um conjunto de suposições

que, no seu todo, converge com aquele que a docente havia requeri-

do.

Suponha-se, contudo, que a criança tivesse respondido que 9

pessoas assistiriam ao filme. Qual seria a reação da docente? A conta

de menos estaria correta, ou seja, 18 – 4 = 9? Que conjunto de supo-

sições poderia ter sido acionado nesse caso?

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(15)

S1 – Crianças menores de 12 anos são pequenas (da memória

enciclopédica).

S2 – As quatro crianças pequenas escolhidas têm menos de 12

anos (do input perceptual).

S3 – Se as quatro crianças pequenas escolhidas têm menos de 12

anos, então elas <possivelmente> não podem assistir ao filme (pre-

missa implicada);

S4 – As quatro crianças pequenas escolhidas <possivelmente>

não podem assistir ao filme (conclusão implicada);

S5 – Se as quatro crianças pequenas escolhidas <possivelmente>

não podem assistir ao filme então elas <possivelmente> devem ser

pintadas (premissa implicada);

S6 – As quatro crianças pequenas escolhidas <possivelmente>

devem ser pintadas (conclusão implicada);

S7 – Crianças menores de 12 anos não podem ficar sozinhas na

rua enquanto os pais estão assistindo ao filme (da memória enciclo-

pédica);

S8 – Há 5 pessoas que parecem ser pais das quatro crianças (o

primeiro homem da fila e os dois casais logo em seguida) (do input

perceptual);

S9 – Se crianças menores de 12 anos não podem ficar sozinhas

na rua enquanto os pais estão assistindo ao filme e há 5 pessoas que

parecem ser pais das quatro crianças, então as 5 pessoas que parecem

ser pais das quatro crianças <possivelmente> não assistirão ao filme

(premissa implicada);

S10 – As 5 pessoas que parecem ser pais das quatro crianças

<possivelmente> não assistirão ao filme (conclusão implicada);

S11 – Há 18 pessoas na fila (do input perceptual);

S12 – Se há 18 pessoas na fila e há quatro crianças pequenas es-

colhidas e 5 pessoas que parecem ser pais das quatro crianças <pos-

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sivelmente> não podem assistir ao filme, então 9 pessoas <possivel-

mente> vão assistir ao filme (premissa implicada);

S13 – 9 pessoas <possivelmente> vão assistir ao filme (conclu-

são implicada).

Perguntei a uma criança de mesma idade o que aconteceria na

cena. Ela me disse:

(16) Elas ficam lá fora esperando os pais, né?

Para a criança, nada mais simples, visto que suposições sobre a

responsabilidade paterna ou sobre perigos de se ficar sozinho na rua

não se manifestam em seu ambiente cognitivo. Uma vez que ela não

acionou a suposição “S7”, ela acertou a conta de menos, embora o

Estatuto da Criança e do Adolescente e o Conselho Tutelar discorde

da conclusão.

Este ensaio não se traduz em fórmulas para a atuação pedagógi-

ca, mas delineia elementos para a reflexão. Seguramente, o leitor é

capaz de perceber aplicações para o que se expôs aqui. Exageros à

parte, é comum a queixa dos docentes de que os alunos interpretam

superficialmente textos, questões, problemas. Suponho que a con-

cepção de comunicação enquanto codificação/decodificação tem seu

papel nesses resultados. Se o docente estiver comprometido com uma

concepção de compreensão baseada exclusivamente nos elementos

(de)codificados, de fato, as respostas divergentes sempre serão pro-

blemáticas. Contudo, nem sempre uma resposta divergente é tola e,

muitas das vezes, ela revela uma interpretação acima do patamar

esperado pelo docente. Inversamente, como argumentei, muitas das

respostas corretas mascaram justamente a superficialidade da inter-

pretação.

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A formação do leitor protestante brasileiro em meados do século XIX: análise de O Peregrino

João Cesário Leonel Ferreira (Universidade Presbiteriana Mackenzie)

Introdução

A partir dos elementos históricos já estabelecidos por pesquisa-

dores como Émile-G Leonard (1963), Boanerges Ribeiro (1973,

1979, 1981, 1987, 1991), Antonio Gouvêa de Mendonça (1990,

1995), Osvaldo Henrique Hack (2000) e Silas Luiz de Souza (2005)

a respeito da inserção do protestantismo no Brasil, este artigo preten-

de estudar a formação do leitor protestante no período. Para especifi-

car a abordagem, faz-se a opção por um estudo de caso tendo como

corpus escolhido o livro O Peregrino, de John Bunyan, publicado na

Inglaterra em 1678 e utilizado pelos primeiros missionários protes-

tantes no Brasil.

Frente a um catolicismo de presença secular nestas terras, os

missionários protestantes procuraram formar uma mentalidade reli-

giosa diferenciada daquela experimentada até então. Para isso, de-

senvolveram três estratégias: a primeira, oral, constituía-se dos

sermões pregados e do relacionamento informal com os novos cren-

tes, oportunidade de esclarecimento a respeito da nova fé e de suas

práticas; as duas seguintes, impressas, consistiam na disseminação de

bíblias entre os novos adeptos, seguida por estímulos freqüentes para

que se estabelecesse uma prática de leitura consistente. Esta estraté-

gia era fundamental, visto que fornecia suporte para a primeira – os

sermões. A segunda ação mediada pela escrita foi a utilização de

literatura religiosa: sermões transcritos em jornais e livros, bem co-

mo textos ficcionais. O Peregrino se encontra nesta última categoria.

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O texto se estrutura a partir da descrição do contexto geral e es-

pecífico no qual o livro de Bunyan se insere. Em seguida volta-se

para a chegada do protestantismo no Brasil e dá-se atenção ao modo

como o livro foi aqui introduzido. Por fim, discute-se como um texto

de ficção, provindo de um contexto totalmente diferente daquele

encontrado pelos primeiros missionários, forma seus leitores median-

te determinada versão do protestantismo: o puritanismo.

O trabalho percorrerá, portanto, os caminhos da História do Pro-

testantismo, da História e Crítica Literárias e da História Cultural,

especificamente a História da Leitura e da Formação do Leitor. O

enfoque principal será posto na última categoria de análise.

1. O Peregrino: contexto e mensagem

O Peregrino foi publicado em 1678, após dois períodos de pri-

são – 1661 a 1672 e 1675 –, durante os quais Bunyan escreveu o

livro, sendo o segundo aprisionamento o momento em que a maior

parte do texto foi produzida. Naquele momento a Inglaterra emergia

de períodos de grandes convulsões. Pode-se dizer, grosso modo, que

o início das contendas ligava-se aos movimentos anti-romanistas, a

começar pelo rompimento com a igreja mãe efetuado por Henrique

VIII. O monarca (reinou de 1509 a 1547) entrou em conflito com o

papado por desejar divorciar-se de Catarina de Aragão para unir-se a

Ana Bolena, uma questão pessoal, mas também política em virtude

de não possuir um filho que pudesse reinar em seu lugar, com o a-

gravante de que a nação não havia experimentado, até então, o reina-

do de uma mulher. Vendo seu pedido de divórcio negado pelo papa

Clemente VII, resolve desvincular-se da igreja romana, criando a

Igreja da Inglaterra, ou Anglicana, da qual ele, o rei, tornou-se cabe-

ça e que, logicamente, validou seu novo casamento.

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Frente às instabilidades político-religiosas que envolviam a igre-

ja nascente, ora distanciando-a do catolicismo, ora aproximando-a,

surgiu uma insatisfação com os caminhos trilhados que se materiali-

zou no aparecimento de um grupo radical que desejava uma reforma

na Igreja Anglicana envolvendo questões ligadas às formas da práti-

ca religiosa. Queriam ver fora da igreja as vestes, ornamentos e ce-

rimoniais litúrgicos, os quais, para eles, continham conotações

romanistas. Tais pessoas, por desejarem esse tipo de purificação da

igreja, ficaram conhecidas como “puritanos”.

A situação torna-se mais séria quando o rei Tiago I, por frustrar

as expectativas do Parlamento ao assumir o trono (1603 – 1625),

sofre forte oposição deste. Nessa disputa os puritanos apóiam a casa

das leis. Os embates continuam de forma intensificada no reinado de

Carlos I (1625 – 1649) que, após fechar o Parlamento, sofre um revés

político e é obrigado a reabri-lo, sendo posteriormente preso e execu-

tado por ele. Nesse momento os puritanos conseguem implementar

suas reformas, dissolvendo o sistema episcopal e instalando o presbi-

teriano. No entanto, surge uma dissidência entre eles e Oliver Crom-

well, puritano independente, que se opunha ao sistema presbiterial,

expulsa seus adeptos do Parlamento em 1648 e, em 1653, dissolve-o

totalmente. Nesse período há certa liberdade religiosa com uma vari-

edade de igrejas: presbiterianas, congregacionais, batistas etc. Ape-

nas a Católica Romana e a Anglicana permanecem ilegais.

Finalmente, em 1660, após a morte de Cromwell, a população ingle-

sa, farta da rigidez dos puritanos, conduz Carlos II ao trono e adota

novamente o sistema episcopal, movimento que ficou conhecido

como Restauração. Os puritanos ficam proibidos de se reunirem.

Pastores presbiterianos, congregacionais e batistas são obrigados a

abandonar suas igrejas e os puritanos tornam-se um partido de oposi-

ção. Reuniões que não sejam da Igreja Anglicana ficam proibidas.

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John Bunyan é preso por doze anos – 1661 a 1672 – por desacatar tal

lei.

O Peregrino evidencia a desesperança de seu autor em relação à

sociedade como um todo por ter visto o projeto político-religioso de

seu grupo falhar. Essa perspectiva era lógica. Uma vez que os planos

puritanos haviam fracassado, o pêndulo agora se inclinava para o

lado oposto, numa avaliação negativa da sociedade sob a influência

da igreja estatal, que era – na ótica dos puritanos – permissiva e

mundana, assim como a própria sociedade que havia rejeitado a lide-

rança puritana preferindo re-introduzir no país a monarquia. Quanto

a isso, Christopher Hill, ao analisar o protagonista de O Peregrino,

comenta: “o Cristão de Bunyan libertava-se do fardo somente ao se

afastar do mundo e de suas obras para tomar a porta estreita e aceitar

a cruz” (2002, p. 389). Hill prossegue em sua análise: “A razão,

consciente ou não, para se construir essa situação literária, era a von-

tade de libertar o indivíduo das tradições, leis e costumes herdados, e

de torná-lo apto a encontrar a salvação solitário, à vista apenas de

Deus” (2002, p. 390). É claro que essa libertação diz respeito às es-

truturas, normas e padrões da sociedade contemporânea a Bunyan.

Voltando o olhar mais especificamente para o conteúdo do livro,

é possível sumarizá-lo afirmando que descreve a jornada do persona-

gem Cristão e demais peregrinos em direção à Cidade Celestial fa-

zendo a opção pelo caminho estreito. Durante o percurso enfrentam

vários perigos ligados: às questões espirituais como o desânimo

(BUNYAN, 2000, p. 12) e confronto com demônios (2000, p. 76-

82); às pessoas que, vencidas pelas agruras do caminho, retornam

aconselhando Cristão a fazer o mesmo (2000, p. 57, 84); aos indiví-

duos que procuram desviar Cristão e os peregrinos de seu objetivo

(2000, p. 22-24, 98, 99, 149, 187-188, 191-192), e aos pretensos

peregrinos que, mesmo no caminho, apresentam atitudes e pensa-

mentos contrários aos dos verdadeiros peregrinos (2000, p. 52-56,

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103-117, 138-148). Como conseqüência da perseverança em perma-

necer no caminho estreito, os peregrinos sofrem perseguições que

incluem a prisão e, no caso de Fiel, a morte (2000, p. 126-135).

O livro expressa não apenas o ponto de vista e teologia de seu

autor, mas também o de todo o grupo ao qual pertence. Quanto a

isso, Antonio Candido teoriza:

[...] o escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o indivíduo capaz de exprimir a sua originalidade (que o delimita e especifica entre todos), mas alguém desempenhando um papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo profissional e correspondendo a certas expectativas dos leitores ou auditores. (CANDIDO, 2000, p. 67-68, grifos do autor).

No caso específico do livro analisado, ele é fruto, não da corres-

pondência entre autor e seu “grupo profissional”, conforme a citação,

mas da relação desse indivíduo com seu grupo religioso.

2. O Peregrino e seus leitores na Inglaterra

É possível identificar os leitores de O Peregrino a partir de da-

dos externos e internos da obra. Os dados externos, de caráter gené-

rico, foram vistos na análise da situação histórica e social nas quais o

livro foi inserido. Infelizmente não são conhecidos testemunhos con-

cretos, por leitores, do modo como liam e interpretavam o texto. Essa

dificuldade é confirmada por Chartier: “Construir as leituras ordiná-

rias não é algo fácil, pois são raros os que, não sendo profissionais da

escrita, confidenciaram qual era sua prática do livro” (2001, p. 95).

Portanto, outra opção deve ser trilhada. Ela se constitui da análise

das marcas e estratégias de entendimento inseridas pelo autor na obra

para orientar seus leitores. “Com efeito, podemos definir como rele-

vante à produção de textos as senhas, explícitas ou implícitas, que

um autor inscreve em sua obra a fim de produzir uma leitura correta

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dela, ou seja, aquela que estará de acordo com sua intenção”

(CHARTIER, 2001, p. 96).

Levando em consideração os dados externos, analisa-se agora,

seguindo as orientações de Chartier, a configuração do leitor através

de informações obtidas no próprio texto. O primeiro elemento a ser

considerado é o fato dessa obra de ficção ser uma alegoria da vida

dos cristãos na sociedade. Já foi observado que tal visão desenvolve-

se em um contexto bastante específico. O suporte para essa constru-

ção é a Bíblia. O autor propõe o conhecimento escriturístico para o

entendimento do livro. Afinal de contas, através do próprio título – O

Peregrino – o autor espera que o leitor conheça as afirmações da

Bíblia acerca desse status cristão. “Amados, exorto-vos, como pere-

grinos e forasteiros que sois [...]” (1 Pedro 2.11, grifo nosso). Outro

dado que corrobora a afirmação é a inserção de referências retiradas

de livros bíblicos no final de determinadas frases com o objetivo de

esclarecê-las. Tomem-se como exemplos: “Vi um homem vestido de

trapos (Is 64:4)” (BUNYAN, 2000, p. 3); “ – Vê lá longe aquela

porta estreita? (Mt 7:13, 14)” (2000, p. 6); “Assim não olhou para

trás, mas corria para o centro da campina (Gn 19:17)” (2000, p. 7);

“Também da campina vinham lampejos de fogo, e Cristão temeu vir

a ser queimado (Ex 19:16, 18)” (2000, p. 19); “Foi aqui também que

se renovou a aliança entre a noiva e o noivo, e assim como o noivo se

alegra da noiva, também o seu Deus deles se alegra (Is 62:5)” (2000,

p. 222). Parece claro que sem o conhecimento da Bíblia torna-se

dificultoso entender, no todo, a correspondência estabelecida pelo

autor entre a frase transcrita e a referência bíblica.

Quando julga necessário, Bunyan acrescenta notas explicativas

ao final dos capítulos, como faz no primeiro, momento em que o

narrador descreve a relação conflituosa entre Cristão e sua família:

“Também voltou a falar-lhes, mas eles começaram a mostrar-se en-

durecidos” (2000, p. 4). A essa frase, o autor acrescenta uma nota

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final, n. 2, onde esclarece o comportamento dos familiares de Cris-

tão: “atitude carnal das almas doentes” (2000, p. 6); ou no capítulo

15, ao comentar a frase: “Assim Esperançoso, convencido pelo cole-

ga [Cristão] atravessou com ele o muro pela escada” (2000, p. 157),

através da nota n. 2: “os cristãos mais fortes podem desviar os mais

fracos do caminho” (2000, p. 166). Estas, à semelhança das referên-

cias bíblicas, também pressupõem que seus leitores possuam certo

conhecimento da Bíblia e, de modo particular, certa vivência cristã

que ajude na compreensão das notas. Ou seja, os comentários no

final dos capítulos pretendem confirmar junto aos leitores a veraci-

dade do que foi dito a partir de sua experiência cristã.

É interessante notar através do prefácio e da conclusão, escritos

em verso, que o autor nutria certa insegurança a respeito da recepção

do livro. Afirma que apresentou o texto antes da publicação a algu-

mas pessoas e indica a reação:

Alguns: ‘Viva’; outros: ‘Morra’, a brandir.

Alguns: ‘Esqueça’; outros: ‘Publique, John’.

Alguns: ‘Não’; outros: ‘Parece até bom’. (BUNYAN, 2000, p. xi)

Possivelmente o principal problema era a linguagem utilizada.

Bunyan coloca na boca de um inquiridor imaginário – talvez não tão

imaginário! – a afirmação: “[...] metáforas nos cegam, tensas”, à qual

responde:

Mas será devo eu buscar, procurar solidez,

Porque falo em metáforas, mas com lucidez?

Não foram as leis de Deus, do Evangelho, outrora

Expostas por símbolo, vagueza e metáfora? (2000: xiii).

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O autor procura, no próprio exemplo dos textos bíblicos, a defe-

sa para o uso da linguagem metafórica. A conclusão apresenta de

modo significativo a preocupação de Bunyan com a interpretação

que darão a seu livro. No final deixa transparecer que operou prati-

camente uma transposição de textos e figuras da Bíblia requerendo,

assim, da parte do leitor, uma interpretação o mais fidedigna possível

delas. Diz:

Mas interpreta-o para mim ou para ti.

Só te peço: não desvirtues o que vi,

Senão não o bem, mas o mal te fará.

Distorcer, portanto, te é opção má. (2000: 235)

Os elementos internos do livro configuram aquilo que se viu nos

dados externos, acrescido da preocupação com a linguagem usada,

que poderia sofrer objeção de seus opositores, assim como de alguns

puritanos mais rigorosos. É claro que essas preocupações iniciais

foram vencidas e o livro tornou-se um best-seller rapidamente.

3. O Peregrino e a formação do leitor protestante brasileiro

O vínculo inicial do protestantismo nascente com o livro de

Bunyan se dá com o primeiro casal de missionários a fincar raízes

em solo brasileiro, o médico escocês Robert Reid Kalley e sua espo-

sa Sarah Poulon Kalley, que aqui chegaram em 10 de maio de 1855,

fundando na cidade do Rio de Janeiro a Igreja Evangélica Fluminen-

se.

O casal missionário, bem como aqueles que os seguiram, presbi-

terianos, batistas, metodistas, congregacionais e episcopais, oriundos

principalmente dos Estados Unidos da América, embora carregassem

matizes teológicas peculiares a cada grupo, possuíam em comum a

formação puritana legada pelos ingleses que migraram para o Novo

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Mundo no início do século XVII, fugitivos de perseguições religio-

sas, e que ficaram conhecidos como os “pais peregrinos”. Uma se-

gunda identidade teológica que unia os missionários era a influência

advinda do período de reavivamento wesleyano experimentado por

suas igrejas de origem naquele século e que os impulsionou para uma

ação efetiva de missão, levando os sociólogos da religião a nomea-

rem o movimento aqui instalado de “protestantismo de missão”, ter-

mo cunhado por Antonio Gouvêa Mendonça (1990, p. 24-46).

Para atingir os brasileiros, a estratégia missionária consistia,

como já visto, na publicação de literatura religiosa. Discorrendo so-

bre os métodos utilizados por Kalley na difusão de sua mensagem,

Rocha alista:

1o. Publicava artigos ou obras na imprensa diária, para firmar certas doutrinas cristãs e expor os costumes da Igreja Primitiva, que eram desconhecidos do povo; 2o. Vendia e distribuía livros e folhetos para instruir o povo no único caminho seguro de Salvação [...]. (1941, p. 7-8, v. 1)

Em quadro onde constam os métodos empregados pelo médico

missionário, Cardoso indica que para atingir a elite cultural, isto é, os

liberais, maçons e católicos era usada a tradução e impressão de li-

vros (2001, p. 121, quadro 1). De modo semelhante, o primeiro mis-

sionário presbiteriano, Ashbell Green Simonton, que aportou na

capital do império em 12 de agosto de 1859, propõe a literatura como

instrumento evangelístico. Em texto de 1867 intitulado: “Os meios

necessários e próprios para plantar o reino de Jesus Cristo no Brasil”,

afirma:

Outro meio de pregar o Evangelho é a disseminação da Bíblia e de livros e folhetos religiosos [...] Devemos trabalhar para que se faça e se propague em toda a parte uma literatura religiosa em que se possa beber a pura

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verdade ensinada na Bíblia (SIMONTON, 1982, p. 210).

Os livros e folhetos eram bem recebidos. “Quase todos os que

sabem ler exigem provisão constante de matéria impressa, para satis-

fazer as suas faculdades intelectuais” diz Kalley e “[...] sempre no

meu giro, e me perguntam se não tenho outros livros [...] de histórias

para os fazer rir [...]”, comenta um de seus auxiliares (ROCHA,

1941, p. 46, v. 1).

Cerca de um ano e meio após sua chegada, Kalley traduz para o

português o livro The Pilgrim’s Progress com o título A Viagem do

Christão, ou O Peregrino e, no domingo 5 de outubro de 1856, na

seção Publicações a Pedido do jornal carioca Correio Mercantil, lan-

ça os dois primeiros capítulos da obra, que é publicada a cada dois

dias, entre os meses de outubro, novembro e dezembro. O comentá-

rio de Rocha, certamente refletindo o que teria dito Kalley, é: “essa

história impressionou muitos para o bem!” (1941, p. 47, v. 1). O

autor volta a comentar a recepção do livro ao dizer que

[...] o Dr. Kalley concluía a preparação da “Viagem do Christão”, para ser publicada em Londres, em forma de livro, satisfazendo assim o desejo de muitos leitores do “Correio Mercantil”, que perguntavam constantemente, na Redação do jornal, pela “história” em volume (ROCHA, 1941, p. 50, v. 1).

A intenção de Kalley concretizou-se no ano seguinte. O médico

viaja para a Inglaterra onde edita o livro com uma tiragem de mil

exemplares, dos quais envia para o Brasil oitocentos e cinqüenta

juntamente com outros folhetos e cartilhas para as escolas (ROCHA,

1941, p. 53, v. 1). Os números da edição são significativos, visto que,

na época, era o padrão de tiragem tanto no Brasil, América Latina,

como na Europa (GUIMARÃES, 2001: nota n. 39, 21).

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A escolha de O Peregrino não foi fortuita. Kalley e sua esposa

Sarah nutriam especial predileção pelas obras de Bunyan. Sarah con-

cluiu a tradução do livro Vida de John Bunyan em 24 de julho de

1865 e publicou uma edição de mil exemplares em 10 de julho de

1867 na Casa Laemmert, no Rio de Janeiro (ROCHA, 1944, p. 51,

264-265, v. 2). Em fevereiro de 1868 Sarah começa a tradução do

livro The Holy War, ao qual dá o título As guerras da famosa cidade

de Alma Humana (ROCHA, 1946, p. 17, v. 3). Somente no ano se-

guinte, em 8 de outubro, temos nova referência ao livro quando Kal-

ley escreve da Escócia, Edimburgo, a sua igreja:

Mando-vos hoje um trecho das “Guerras da Alma Humana”, que espero, vos sirva de muito proveito. É o trecho final. Como vereis, agora todo esse trabalho está sendo composto; será depois impresso, encadernado, de modo que deverá chegar ao Brasil, juntamente com outros livrinhos, até o fim do ano (ROCHA, 1946, p. 119, v. 3).

Infelizmente não temos maiores informações a respeito dos dois

livros mencionados.

A boa acolhida da literatura protestante em geral, e de O Pere-

grino em particular, se deve ao contexto literário brasileiro no perío-

do. Havia pouca literatura circulando, motivo pelo qual,

possivelmente, os leitores solicitavam a Kalley que trouxesse novos

livros. Acrescente-se outro dado: a preferência pelos livros estrangei-

ros aos nacionais. Guimarães comenta que no século XIX “[os escri-

tores nacionais] atribuem a baixa ressonância dos seus escritos à

indiferença e ao desapreço geral pela literatura, assim como à con-

corrência desleal da produção estrangeira” (2001, p. 17, grifo nosso).

Embora o índice de alfabetização naquele século fosse baixo – 30%

da população (GUIMARÃES, 2001, p. 20) – fica evidente que os

missionários souberam perceber a carência literária da sociedade

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brasileira letrada e aproveitaram a chance para supri-la através de

literatura religiosa.

A influência de O Peregrino pode ser percebida não apenas pe-

los apelos para que fosse publicado como também por resultados

práticos. Rocha descreve um fato que revela um dos raros relatos a

respeito do modo como o livro era lido:

Perto de Rodeio, estavam presos dois soldados, que haviam cometido um crime militar qualquer. Um dia, um deles teve a felicidade de ter em mãos a “Viagem do Cristão”, que lia com grande avidez, quando o companheiro lhe disse que possuía uma Bíblia Sagrada. Começaram então, juntos, a procurar nas Escrituras as passagens indicadas na “Viagem do Cristão”; e assim continuaram o estudo da Palavra Divina durante dois anos.

O primeiro soldado foi posto em liberdade, justamente quando um colportor se esforçava por chamar a atenção dos detentos para o valor precioso da “revelação”, contida nos livros sagrados e nos livrinhos que trazia, que falavam do amor de Deus. Quando o colportor se dirigiu a este soldado, descobriu com prazer que ele já era um crente e o soldado também sentiu grande regozijo em saber que havia muitos que tinham a mesma fé em Jesus (ROCHA, 1944, p. 28, v. 2, grifo do autor).

O autor informa que a leitura de O Peregrino conduziu os dois

homens à Bíblia e que esta, por sua vez, trouxe-lhes a conversão. É

muito provável que esteja explicada aqui a razão pela qual O Pere-

grino era vendido juntamente com o texto sagrado. Possivelmente os

missionários usavam desse expediente para que as citações bíblicas

encontradas nele motivassem seus leitores à pesquisa nas Escrituras.

Portanto, o livro tornava-se uma chave de compreensão da Bíblia.

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A estratégia permite constatar que é necessário acrescentar outro

elemento aos meios pelos quais um livro influencia seu leitor, descri-

tos por Chartier: estratégias textuais somadas às formas tipográficas

(2001, p. 96-98). Deve-se considerar igualmente a forma pela qual o

livro é distribuído. Ao ser vendido juntamente com a Bíblia pelos

colportores protestantes, propõe-se que o leitor o tome como o guia

para a compreensão das Escrituras.

Nesse caso é mister reconhecer que o livro participa, inicialmen-

te, não da formação do leitor protestante, mas da instituição desse

leitor “como” protestante. Ao conduzir o leitor católico à Bíblia ven-

dida pelos colportores, o livro opera a alteração do status religioso,

de católico para protestante. Agora, sim, um protestante leitor de O

Peregrino.

Para melhor compreensão do que foi dito, deve-se lembrar que

O Peregrino não encontrou, no Brasil, uma tradição literária religio-

sa que lhe desse suporte. É útil lembrar que a leitura, como prática

cultural, está vinculada ao contexto social em vivem os leitores (cf.

BOURDIEU; CHARTIER, 2001) incluindo sua feição religiosa. O

dado citado a pouco, de que os missionários possivelmente utiliza-

ram o livro como uma ponte para a leitura das Escrituras, é passível

de questionamento quanto à sua eficácia do ponto de vista estratégi-

co, visto que certamente não eram todos que adquiriam a Bíblia jun-

tamente com o livro e, igualmente, se não a maioria, pelo menos uma

parcela de leitores de O Peregrino ou não possuía Bíblia em suas

casas ou, na leitura de Bunyan, não se dispunha a fazer um acompa-

nhamento atencioso conferindo as citações com os textos bíblicos.

O que decorre dessas observações? É muito provável que o livro

tenha assumido, para os leitores católicos, um caráter ontológico

enquanto apresentação e definição do protestantismo. Penso que o

caráter ficcional pode ter sido, se não desconsiderado, pelo menos

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minimizado, assumindo o texto a posição de definidor da natureza e

da práxis protestante.

Além disso, como já foi registrado, a leitura e compreensão do

livro estavam atreladas ao contexto de sua recepção. Ou seja, o texto

chega às mãos do público através de colportores protestantes. Mesmo

que já fosse conhecido de alguns, o modo com é introduzido àqueles

que o lerão é indicativo do tipo de leitura que terão. É minha hipóte-

se, portanto, que os leitores constroem, mediante a forma de distribu-

ição e recepção do livro, e não apenas de sua leitura, uma visão da

nova religião que aqui se instala. E desse modo se configura, portan-

to, a influência de O Peregrino no delineamento do protestantismo

brasileiro.

Conclusão

Havia um micro-cosmo literário no protestantismo brasileiro do

século XIX, gerido basicamente pela Bíblia e por O Peregrino. Este

se colocava, na prática, como um guia para o entendimento e a apli-

cação das Escrituras. Pensando no sistema literário, a Escritura for-

mava o contexto traditivo do livro, mas este esclarecia a primeira de

tal maneira que se tornava uma síntese prática dos elementos centrais

da fé protestante. Dessa maneira, O Peregrino criava uma classe de

leitores que, ou aderia ao protestantismo puritano ou adquiria uma

visão do movimento gerada por ele. Em virtude das influências des-

critas, conclui-se que O Peregrino formou e formatou os primeiros

protestantes brasileiros dentro de um espectro religioso puritano, o

que levou o movimento iniciado pelos missionários a ser descrito

como um “protestantismo peregrino” (MENDONÇA, 1995, p. 228-

230; AZEVEDO, 1996, p. 174-182).

À semelhança e sob influência de O Peregrino, os leitores cris-

tãos do nascente movimento também se viam, solitariamente, em

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busca da Jerusalém Celestial, lutando contra o pecado, as influências

da sociedade e tendo como inimigos o diabo e outro não menos astu-

to, a Igreja Católica Romana. É significativo pensar que esses ele-

mentos encontram compreensão quando vistos à luz do contexto em

que Bunyan escreveu. Fortes tensões religiosas, políticas e sociais

eram vividas diariamente. A perseguição era um dado constante. O

Brasil, no entanto, apresentava outro contexto. Salvo o exotismo da

nova religião e algumas escaramuças, não houve problemas mais

sérios. No entanto, a configuração estava definida. Ela se deu do

literário para o real. Pode-se dizer que O Peregrino tornou-se a fonte

de maior influência na formação ético-teológica do protestantismo

nascente.

O fato de erigir afirmações a partir de um único livro impõe ris-

cos ao pesquisador. No entanto, julgo ter conseguido demonstrar que

O Peregrino não apenas esteve presente nos primórdios do protestan-

tismo como exerceu forte influência nele. Essa relação direta perma-

neceu por algum tempo. Embora não tenha sido possível alistar

exaustivamente as edições do livro em português, os dados obtidos e

alistados a seguir ajudam a perceber como ele se manteve, por déca-

das, presente na leitura do povo evangélico:

Imprensa Metodista, SP, 1944, 1957 (8 ed), 1972;

Editora Brasil, [S.l.],1964 (2 ed);

Editora Leitor Cristão, [S.l.], 1969;

Editora Mundo Cristão, SP, 1971 (18 ed.), 1997 (14 ed., ilustra-

da, infanto-juvenil); 2000 (2 ed.);

Editora Fiel, SP, 1984 (5 ed.), 1986 (6 ed., edição condensada).

Mesmo que venhamos a reconhecer que a leitura do livro decli-

nou nos últimos anos e que vivemos em tempos muito diferentes

daqueles de meados do século XIX, a influência histórica de O Pere-

grino é um fato.

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Lugar da escrita e lugar do corpo em Eugênio de Andrade

Leila de Aguiar Costa (UNICAMP)

Brevíssimo exergo

Seguindo os passos de Vitorino Nemésio, romancista e poeta

açoriano, como ele penso que nem sempre “o modo crítico é o me-

lhor para falar de poesia: o modo poético também lhe convém como

uma forma de hermenêutica” (NEMÉSIO, s.d., p. 453). Neste senti-

do, a leitura que proponho de Eugênio de Andrade deve ser tomada

sobretudo como uma divagação livre e poética — sem grandes pre-

tensões à poesia, bem entendido —; procuro deixar-me habitar por

aquilo que ouço da poesia eugeniana e não por aquilo que compreen-

do... Se, por vezes, o querer “explicar” aparece é segundo o seu sen-

tido de “desdobramento” ou, se se preferir, de uma glosa. A poesia

de Eugênio de Andrade parece-me bastante apropriada para tal exer-

cício, uma vez que, ao evitar o discurso, ela flui de palavra em pala-

vra: trata-se de “um só fluir, um só fulgor”, diz um verso do poeta.

*

Contra el silencio y el bullicio invento la Palabra, libertad que se inventa y me inventa [a cada dia

Octavio Paz

“O corpo existe [e] só o corpo é puro, toda perversão provém do

espírito”. Eis uma frase, proferida pelo poeta português Eugênio de

Andrade, falecido em junho de 2005, que paradigmaticamente servi-

ria de moldura para grande parte de sua produção poética, tornada

conhecida em 1942 com a publicação do livro de versos intitulado

Adolescente. Sua poesia, cuja escrita é perpassada de constelações de

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palavras, cuja linguagem é transfigurada, numa limpidez e escassez

lexical que atribui aos mais simples vocábulos novos sentidos ou que

assimila registros discursivos de ordens diferentes, inscreve-se por

isso mesmo no registro de uma experimentação poética do corpo e

do corpo metamorfoseado em espaço por excelência do poético. Em

Eugênio de Andrade, escrita e corpo articulam-se com o mundo,

tratado essencialmente como mundo natural, mundo dos elementos

— poesia elemental, como queria Oscar Lopes. O que daí decorre é

uma religação — no sentido etimológico do termo, isto é, religar

aquilo que foi dividido, religar o que originariamente sempre esteve

unido — do corpo ao mundo e do mundo ao corpo. O resultado últi-

mo de tal perspectiva é a presença marcante na cena poética do dese-

jo puro e primitivo, figuração máxima daquela articulação, confusão

mesmo, entre escrita-corpo-mundo. A invenção poética em Eugênio

de Andrade é, assim, a um tempo intensa e vibrante produção e re-

cepção de um pathos bem preciso, aquele da poesia e do corpo. “Po-

esia do corpo a que se chega mediante uma depuração contínua”,

afirmou com propriedade José Saramago.

Não por acaso, a figura-chave dos poemas de Eugênio de An-

drade é o Amor. Muito se tem falado sobre uma erótica eugeniana a

balizar toda sua produção, erótica esta que faria emergir no palco

poético o corpo e, mesmo, sua degenerescência. Se não há como

discordar de tal visada, é fato porém que mais do que Eros é Amor

que se destaca, Amor em estreita relação com o que há de mais ma-

tricial, de mais genealógico. Eis porque, para Eugênio de Andrade, o

poeta é aquele que, através da palavra, celebra o corpo e a natureza,

cujos diversos componentes devem ser compreendidos como sinô-

nimo de vida. É para isso que parecem apontar três únicos versos do

poema “Madrigal”; essa relação, que é essencialmente ligação, entre

poesia-corpo-natureza, esclarece-se em toda sua “depuração”:

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Tu já tinhas um nome e eu não sei se eras fonte ou brisa ou mar ou flor. Nos meus versos chamar-te-ei Amor.

(ANDRADE, 1980, p. 25)

O que interessa aqui ao poeta é o jogar de modo transverso com

a nomeação, com esta negativa operação de atribuir um nome a ima-

gens que são antes de mais nada um constructo da imaginação. Ter

um nome arbitrário, anterior ao trabalho da escrita, de nada vale;

importa acima de tudo configurar imagens que dêem conta da neces-

sidade que a escrita tem de se inserir em um meio natural e primiti-

vo: se Amor tinha um nome antes, eis o que o poeta desconsidera;

para ele, Amor talvez seja “fonte”, “brisa”, “mar” ou “flor”, imagens

quase arquetípicas de um universo ligado ao pathos poético.

Dois poemas, em que irrompe a madrugada, princípio de tudo,

imagem talvez originária, trabalham justamente no sentido de trans-

formarem os versos em corpo amoroso, em espaço de um Amor que

somente pode ser Amor se metamorfoseado em poesia e não em

simples palavra. Vejamos, então. O primeiro deles intitula-se “Im-

proviso na Madrugada”:

Húmido de beijos e de lágrimas ardor da terra com sabor a mar, o teu corpo perdia-se no meu. (Vontade de ser barco ou de cantar...)

(ANDRADE, 1980, p. 68)

O trabalho com os elementos naturais, por mais que aqui pare-

çam evidentes, aponta para a inextricável relação entre corpo e terra,

perpassada sem dúvida alguma pela umidade, imagem talvez semi-

nal, que nutre a ambos, movendo-os no espaço. Há aqui um só con-

junto, o corpo que é outro corpo, que se perde em outro corpo, que

pode ser só corpo mas igualmente terra e mar. Corpo, terra e mar

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experimentados por um sujeito, ou por uma voz, que pode se corpori-

ficar de modos inesperados, tornar-se tão simplesmente barco...

Passemos, agora, ao segundo poema, intitulado “Retrato”:

No teu rosto começa a madrugada. Luz abrindo, de rosa em rosa, transparente e molhada.

Melodia Distante mas segura; Irrompendo da terra cálida, madura.

Mar imenso, praia deserta, horizontal e calma Sabor agreste. Rosto da minha alma!

(ANDRADE, 1980, p. 69)

Se o poema recebe o título de “Retrato” não é por acaso. Todo o

primeiro verso parece insinuar que tudo se constrói em prospectiva,

em perspectiva, para se constituir ao final em expectativa. De um

rosto que será descrito por imagens que, recorrentes na poesia amo-

rosa eugeniana, uma vez mais aproximam o mundo dos corpos hu-

manos ao mundo natural. Em meio a crescente luminosidade, o que

se dá a descobrir é, sim, um rosto — pois que retratar é, na acepção

primeira do termo, representar alguém ao natural — mas não qual-

quer rosto ou um rosto comum: transmudado pelo trabalho da pala-

vra poética, que rompe com as banalizações e inaugura novos

sentidos, o rosto que se abre é a um só tempo luz e umidade; e músi-

ca. Rosto, pois, declinado a partir de imagens sempre proliferantes

— “rosa em rosa”, “transparente e molhada”, “melodia”, “terra”,

“mar — construídas sobre grandes planos — que insinuariam uma

vastidão da alma? fica a interrogação... Mais ainda: o rosto assim

descrito parece se tornar a superfície sobre a qual vem se inscrever o

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mundo natural, composto pela terra — e os termos “cálida” e “madu-

ra” talvez devessem ser compreendidos como fertilidade e fecundi-

dade, talvez do “acorde nupcial”, como quer Eugênio de Andrade em

sua Poética. Terra seria o lugar do amor, e, por isso mesmo, da rela-

ção amorosa, da unidade original e primitiva — a praia é “deserta” e

o sabor é “agreste”—, do paraíso do corpo. Não surpreende que o

próprio Eugênio de Andrade atribua à palavra “terra” um sentido de

maternidade: “foi com a terra, disse ele em uma entrevista, [com] o

vento, a luz, a água, foi sobretudo com a minha mãe que aprendi

essas palavras transparentes, cheias de brilhos; quando digo mãe digo

terra, quando digo terra digo mãe”. Donde a sua busca permanente

de fidelidade à terra, e à língua, materna entenda-se.

Talvez por isso mesmo não fosse arriscado afirmar que os poe-

mas eugenianos parecem ecoar uns nos outros, desenhando um corpo

que é corpo de desejo precisamente por ser corpo-mundo e, por isso

mesmo, corpo “puro” — pois que só o “corpo é puro”, vale lembrar.

Basta percorrer, por exemplo,

Amanhece... Um galo risca o silêncio Desenhando o teu rosto nos telhados. Eu falo do jardim onde começa um dia claro de amantes enlaçados

(ANDRADE, 1980, p. 100);

e “Mar de setembro”, onde:

Tudo era claro: céu, lábios, areias. O mar estava perto, fremente de espumas. Corpos ou ondas: iam, vinham, iam, dóceis, leves — só alma e brancura. Felizes, cantam; serenos, dormem;

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despertam, amam, exaltam o silêncio. Tudo era claro, jovem, alado. O mar estava perto, Puríssimo, doirado.

(ANDRADE, 1980, p. 157)

No primeiro, onde se destacam as reticências, como que a abrir

o poema para um mundo imagético, metafórico e, por isso mesmo

luminoso, o termo “galo” parece inventar o pathos para que o “Eu”

possa dele dispor, mesmo que no mundo natural esse mesmo pathos

já exista — pois que “rosto” e “amantes enlaçados” aqui irromperiam

numa superfície natural que lhes constrói um espaço, espaço quase

edênico, originário, lugar em que tudo “começa”. No segundo, corpo

e mundo fazem-se um só organismo. Que em meio à recorrente lu-

minosidade eugeniana, que graças a uma ondulação quase perpétua

— a se notar sobretudo o movimento, desta feita rítmico, dado pela

articulação entre adjetivos e verbos no presente do indicativo: “Feli-

zes, cantam;/serenos, dormem; despertos, amam; exaltam o silên-

cio”—, celebra aquele corpo-mundo que não é senão o corpo-de-

desejo-puro, quase mítico.

Em setembro, o mar, que reproduziria no poema citado acima

todo pathos amoroso de corpos que, para Eugênio de Andrade, de-

vem sempre ser jovens. Esse mesmo mar que pode ceder seu lugar ao

rio:

Impetuoso o teu corpo é como um rio onde o meu se perde. Se escuto, só oiço o teu rumor. De mim, nem o sinal mais breve.

Imagem dos gestos que tracei, irrompe puro e completo. Por isso, rio foi o nome que lhe dei. E nele o céu fica mais perto.

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(ANDRADE, 1980, p. 36)

Parece confirmar-se aqui aquela fusão entre corpo (corpo do su-

jeito e corpo do outro, sonoro) e natureza (rio): tudo aqui se converte

em imagem, através da mediação das palavras que, pelo próprio mo-

vimento de seu traço, buscam instaurar um novo léxico significante

— donde a epígrafe emprestada de Octavio Paz —, que se afasta do

comum e que funda a confusão dos sentidos, físico e literário. Cor-

pos e líquidos, corpos em moto perpetuo, entregues à escuta de um

“rumor” que é tão somente Amor. E amor “puro e completo” porque

perto do “céu”. Amor absoluto, como quer o poema “Melancolia de

um fim de setembro”:

Ó manhã, manhã, manhã de setembro, invade-me os olhos, inunda-me a boca, entra pelos poros do corpo, da alma, até ser em ti, sem peso e memória, um acorde só no vento, na água, uma vibração

sem sombra nem mágoa.

(ANDRADE, 1980, p. 208).

Amor que se confunde com a exultação corporal. Só “vibração”

— e cumpre lembrar o quanto a música parece infletir o imaginário

poético de Eugênio de Andrade, pois que sempre ali se fala em ruí-

dos, em sons, em vibrações, em musicalidade. Música que aqui mo-

dula o corpo e que permite ao corpo ser pleno, porque corpo-em-

música.

Para se chegar, enfim, a um “Corpo habitado”:

Corpo num horizonte de água,corpo aberto à lenta embriaguez dos dedos,

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corpo defendido pelo fulgor das maçãs, rendido de colina em colina, corpo amorosamente humedecido pelo sol dócil da língua.

Corpo com gosto a erva rasa de secreto jardim, corpo onde entro em casa, corpo onde me deito para sugar o silêncio, ouvir o rumor das espigas, respirar a doçura escuríssima das silvas.

Corpo de mil bocas, e todas fulvas de alegria, todas para sorver, todas para morder até que um grito irrompa das entranhas, e suba à torres, e suplique um punhal. Corpo para entregar às lágrimas Corpo para morrer.

Corpo para beber até o fim — meu oceano breve e branco, minha secreta embarcação, meu vento favorável, minha vária, sempre incerta

Navegação.

(ANDRADE, 1999, p. 125-126)

A geografia que aqui se esboça seria aquele de um corpo em

quatro faces, que se traça em uma aparente progressão. No começo

de tudo, nos 8 primeiros versos, emerge o primitivo corpo natural, ou

corpo que, em associação com o mundo natural, torna-se único cor-

po. Logo após, nos 9 versos seguintes, corpo e tranqüilidade, corpo

de tranqüilidade, e de reconforto, muito próximo de um bucolismo

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nostálgico, onde se destaca a importância do silêncio; deste silêncio

que surge primeiro dentro da própria exaltação da palavra mas que,

lentamente, vai dando lugar ao murmúrio, ao “rumor” — na verdade

uma forma intermediária entre palavra e silêncio — “rumor” que é

termo obsessivo a vibrar ao longo da poesia eugeniana, rumor que é

um vocábulo do silêncio que realmente se ouve — “O silêncio é de

todos os rumores/o mais próximo da nascente”, afirmam versos de

Eugênio de Andrade. Em seguida, corpo de exultação, e corpo de

entrega: de “corpo de mil bocas” a “corpo para morrer”, é o corpo a

um tempo em seu esplendor revelado, na sua alegria, e corpo pronto

para a morte e para a dor, pois que liberto e irradiante no espaço —

“um corpo brilha nu para o desejo/dançar na luz a pique das areias”

dizem ainda outros de seus versos. Enfim, os sete últimos versos

apresentam um corpo Absoluto entregue a este elemento que ressu-

ma de toda sua poesia, trespassando-a e unificando-a quase: o mar.

Não por acaso se costuma falar em hidrografia de fluidez a perpassar

toda a produção poética eugeniana e a vivificar todo o seu vocabulá-

rio imagético; a água, trabalhada pelos termos recorrentes “molhar”,

“escorrer”, “latejar”, “beber”, “húmido”, “lágrimas”, “ondas”, “es-

puma”, etc., arrasta consigo a ubiqüidade e a fertilidade como valo-

res imediatos de uma simbologia, simbologia que unifica a força

total da vida: o corpo jovem entregue ao amor — ao “fogo de amor,

em que o poeta se exalta e consome” (ANDRADE, 1974, p. 47).

*É tempo de concluir. E eu o faço deixando uma vez mais falar Eugênio de Andrade, só que desta feita o Eugênio prosador, que publica em 1974 Os afluentes do silêncio. Ali, em textos bastante breves — como que a manter o caráter quase que epigramático (e por vezes madrigalesco) de sua produção literária —, o poeta discorre sobre sua poética. E, em um deles, é do corpo propriamente que trata: do corpo que “vertical ou estendido é sempre uma

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chama: aquece e ilumina”; do corpo que é “belo” porque é “esplendor”; do corpo cuja “voz é a da terra — dali parte, ali regressa”; do corpo que conduz à infinitude, à plenitude, pois que “o mais efémero dos seres tem sede de eternidade, quero eu dizer: de outro corpo. Então balbucia, beija, ama, dá um subtil nome às coisas, e das dissonâncias da carne ergue-se à exacta medida do canto, ou de qualquer outra música. A luz torna-se fulguração. Toda a eternidade é isso — e não há outra” (ANDRADE, 1974, p. 81).

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A visão de escola presente nas obras Cazuza, de Viriato Corrêa, e

Harry Potter e a Pedra Filosofal, de J.K. Rowling Lucas de Melo Bonez

(PUC/RS)

“A minha decepção começou logo que entrei.” – Seria esta uma

simples passagem da obra Cazuza, de Viriato Corrêa, se o narrador

não estivesse se referindo a sua entrada na escola. De uma alegria

contagiante a uma decepção pavorosa foi o primeiro dia do persona-

gem principal da obra em uma escola. A imaginação da criança dá

lugar a instabilidade do momento e faz com que a criança não queira

mais desfrutar daquela beleza que ele imaginara ser a tal de escola.

No presente trabalho, abordaremos a representação da escola em

Cazuza, de Viriato Corrêa, e Harry Potter e a pedra filosofal, de J.K.

Rowling, e como ela influencia na vida dos personagens principais,

homônimos às obras. Será que o que eles pensavam da escola se

concretiza? Ou a escola esmaga o sonho dos personagens logo que

eles entram nela?

Para tratarmos do assunto, utilizaremos obras que falem da rela-

ção entre criança e escola, a história da criança na escola – que po-

demos encontrar em Literatura infantil na escola, de Regina

Zilberman –, a questão do imaginário da criança a partir de Vy-

gotsky, além das obras citadas para aplicação do conteúdo.

Desejamos que, ao final do presente trabalho, identifiquemos

como é a passagem da criança pré-escolar para a escolar e a possibi-

lidade de constituição de sua personalidade. A escola importa tanto

às pessoas que não seria possível viver sem ela, atualmente. Isso,

porém, não quer dizer que é o melhor lugar para aprender como é a

vida, as relações sociais, o conhecimento, entre outros. Será que a

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escola é capaz de (des)construir uma pessoa? É o que analisaremos a

partir de Cazuza e Harry Potter.

A criança, o imaginário e a escola

Aurélio Buarque de Holanda assim define as palavras imaginar,

imaginação e imaginário em seu Novo Dicionário da Língua:

Imaginar é construir ou conceber na imaginação; fantasiar, idear, inventar; é o ilusório; o fantástico. Imaginação: é a faculdade que tem o espírito de representar imagens. Imaginário: é o que só existe na imaginação.

Ao observar a vida do homem, vemos que o grupo social se di-

vide em dois, cada qual com suas vivências e jeito de ser e de encarar

a vida, com influências da idade e do meio: o grupo da criança e o do

adulto. O adolescente espreme-se entre os dois grupos, com atitudes

que ora são infantis e ora são adultas. Quando comete alguma insen-

satez – na visão do adulto –, o adolescente fez uma infantilidade;

quando deseja algo do mundo adulto, dizem que está ultrapassando

as barreiras, quer ser adulto fora de hora.

Antigamente, cabia ao pai o sustento da casa, as coisas sérias a

resolver. Dessa forma, os tabus foram criados: homem não brinca,

não chora, não tem tempo para as crianças. O casamento é indissolú-

vel. O universo masculino adulto estava centrado no trabalho e nas

despesas familiares. Sobrava algum tempo para o lazer, para acom-

panhar ou até jogar futebol, para as conversas de bar ou para ir ao

cinema com a esposa. A relação com as crianças e a casa ficava por

conta das mães, que sempre buscavam apoio nas experiências de

suas mães. O universo da mulher-mãe voltava-se para criar eventos

para agradar o marido e os filhos, para enfeitar a casa e criar as tradi-

cionais artes e prendas domésticas. As crianças recebiam um conjun-

to de crenças, transmitidas ao longo da vida, pela convivência, pelos

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dizeres, pelos ensinamentos e pela cultura, na representação nas o-

bras de arte e literárias. Eram incentivadas a brincar e a criar brin-

quedos pelos adultos da família e pelas empregadas domésticas –

dependendo das posses da família –, professoras, amigos, vizinhos e

conhecidos. Todos formavam uma grande família, sobretudo em

cidades menores. Na obra do poeta Manuel Bandeira e Carlos

Drummond de Andrade, por exemplo, como falam do avô, dos ami-

gos da casa, da infância, mas também das babás, quase sempre boas,

de bom humor, prontas para contar histórias e cantar.

Assim, as crianças eram embaladas ao som de cantigas de ninar,

depois de muitas histórias para se ouvir. Sabiam brincar e inventar

brinquedos. O lúdico estava sempre presente em jogos, disputas,

cirandas e leituras. As crianças acreditavam em cegonhas e em Papai

Noel. Bem crescidinhas, decepcionavam-se bastante, mas passagei-

ramente, ao descobrir que eram mitos que alimentavam o seu imagi-

nário. Suas relações com os adultos eram positivas. Tranqüilamente

chegavam aos sete anos, ao tempo de ir para a escola.

Em um de seus fragmentos sobre educação, Eduardo Galeano

diz:

Dia após dia nega-se às crianças o direito de ser crianças. Os fatos, que zombam desse direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana. O mundo trata os meninos ricos como se eles fossem dinheiro, para que se acostumem a atuar como o dinheiro atua. O mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se transformem em lixo. E os do meio, os que não são ricos nem pobres, conserva-os atados à mesa do televisor, para que aceitem desde cedo, como destino, a vida prisioneira. Muita magia e muita sorte têm as crianças que conseguem ser crianças. (GALEANO, 2002, p. 33)

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A família e a escola têm o dever de abrir espaços variados para

que a criança conviva com o Eros, com o imaginário, com o prazer.

Só uma visão lúdica e poética da vida permite equilíbrio, poder de

imaginar e criar, ter saídas para os muitos problemas que a vida ofe-

rece, ter um pensamento crítico e valorizar a cultura e os bens comu-

nitários.

Diz Elias José que “a sociedade mudou muito. Mudaram-se os

costumes e, logicamente, as pessoas mudaram. O universo do adulto

cada vez mais se afasta do universo da criança. Pais e mães não têm

tempo para estar com as crianças.” (JOSÉ, 2006) Agora, pais e mães

trabalham, estudam, avançam profissionalmente. Não basta sustentar

a família, que agora não é tão grande. As relações humanas são mais

instáveis e as crianças vivem atrás de referências paternas e mater-

nas. Os avós só se aposentam se fecharem todas as perspectivas de

trabalho, pois ninguém mantém qualidade de vida com as aposenta-

dorias atuais. Quando não trabalham, há distâncias das casas dos

netos, compromissos com viagens, namoros, clubes de terceira e

quarta idade e com a televisão. É o que se passa com as pessoas atu-

almente.

Muito cedo, as crianças são entregues às escolas, só vendo os

pais poucas horas do dia. Em casa, as crianças são entregues a babás

também revoltadas com o custo de vida e os salários humilhantes.

Elas não brincam, nem cantam, nem dançam e nem contam histórias,

porque também não aprenderam ou se esqueceram. Estão também

preocupadas com os filhos nas creches e com a violência nos bairros

pobres e favelas. A única companhia da criança, muitas vezes, é a

tevê e, às vezes, o computador. A tevê e a internet são inventos que

revolucionaram a vida dentro das casas, mas também podem se tor-

nar máquinas-babás repugnantes, que cedo alimentam o imaginário

com o verbo consumir e ter prazer nos seus vários sentidos, o que

precocemente amadurece a criança negativamente.

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O estudioso do tema imaginário infantil, Arlindo C. Pimenta

aponta os super-heróis escolhidos pelas crianças brasileiras em 1986,

quando escreveu Sonhar, brincar, criar, interpretar: Batman, Super-

Homem, Robin e outros. Estranha que de heróis brasileiros apenas

apareçam o jogador Zico e os Trapalhões, e conclui:

Claro que a criança está sendo preparada muito mais para as aspirações de um norte-americano que propriamente de um brasileiro. O consumismo de produtos estrangeiros e a desvalorização do que é nacional e o empreguismo político são formados desde muito cedo pelos meios de comunicação de massa, dentro de nossas próprias casas. Infelizmente temos assistido a esse fenômeno de aculturação passivamente, como se fosse coisa de somenos importância. (PIMENTA, 1986, p. 74)

Percebe-se, assim, que a postura imaginária da criança em rela-

ção à escola diferencia-se através dos anos. O imaginário infantil

levanta múltiplas possibilidades de criação, invento, atividade, mas

com o passar dos anos isso diminui a freqüência com que isso ocorre.

Na literatura, observaremos algo relacionado a isso quando passar-

mos a visão do narrador sobre a vida da criança na escola. Para tanto,

precisamos entender um pouco sobre este ser literário tão importante.

O narrador

A figura do narrador faz parte da vida do homem desde o tempo

em que ele se configura em um para contar suas histórias. No princí-

pio, contava a uma platéia alguma coisa que aconteceu, interpondo-

se entre o contador da história e o público ouvinte. Posteriormente,

na prosa de ficção, surge como um ser de palavras e papel, um ser

ficcional. No transcorrer de sua evolução, percebe-se uma transfor-

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mação, a qual é exposta por Kayser e que Ligia Chiappini Moraes

Leite, em O foco narrativo, comenta:

Na epopéia, o narrador tinha uma visão de conjunto e se colocava (e colocava seu público) à distância do mundo narrado. O seu tom era solene, ele era o rapsodo, uma espécie de vate, de iniciado, de mediador entre as musas e seus ouvintes. Já o narrador do romance – quando a narrativa se prosifica na visão prosaica do mundo, quando se individualizam as relações, quando a família se torna nuclear, quando o que interessa são os pequenos acontecimentos do quotidiano, os sentimentos dos homens comuns e não as aventuras dos heróis – perde a distância, torna-se íntimo, ou porque se dirige diretamente ao leitor, ou porque se aproxima intimamente das personagens e dos fatos narrados. (LEITE, 1993, p. 12)

Kayser quis dizer que o fato do narrador ter-se aproximado do

leitor pode dar a esse a sensação de estar diante de um ser real, que

lhe expõe diretamente seus pensamentos e sentimentos, mas na ver-

dade é um ser ficcional, que se relaciona com os seres reais, através

da linguagem, do tempo, do ambiente, dos personagens. É o que

Aristóteles chamava de verossimilhança, aquilo que não é verdadei-

ro, mas parece sê-lo.

No Dicionário brasileiro Globo está assim definido: “Narrador:

Que, ou aquele que narra (latim narratore)”.

Ronaldo Costa Fernandes em O narrador do romance diz:

O narrador é um elemento imprescindível e só existe na prosa de ficção – o narrador da epopéia é outro caso, pertence a uma outra época e a outro mundo. O cinema e o teatro podem utilizar-se do narrador eventualmente, mas ele nunca deixará de existir no romance, com risco de o romance transformar-se em outra coisa que não seja o romance tal como o

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conhecemos hoje em dia. Se um elemento é tão intrínseco assim ao seu meio, deve existir uma correspondência de ordem conceitual maior. Ele não é apenas mais um recurso, ele é a gênese, o elemento inaugural. (FERNANDES, 1996, p. 21)

Segundo Ronaldo Fernandes, o narrador está intrinsecamente li-

gado ao romance, motivo que o faz ser mais do que um elemento de

composição; é a própria origem, pois sem ele o romance deixaria de

existir, da forma como hoje é conhecido.

No Dicionário de narratologia, de Carlos Reis e de Ana Lopes,

encontramos a seguinte definição:

[...] o narrador será entendido fundamentalmente como autor textual, entidade fictícia a quem, no cenário da ficção, cabe a tarefa de enunciar o discurso, como protagonista da comunicação narrativa. [...] o narrador configura o universo diegético que modeliza, pela peculiar utilização que faz de signos e de códigos narrativos: organização do tempo, regimes de focalização privilegiados, etc. A análise integrada destes distintos aspectos e categorias da narrativa assenta, pois, necessariamente na prioritária ponderação a que, em termos operatórios, deve ser sujeita a pessoa do narrador enquanto entidade por quem passam e em função de quem se resolvem os fundamentos sentidos plasmados pelo relato. (REIS; LOPES, 2000, p. 251)

O narrador é o elo existente entre o autor e a história narrada,

entre o enunciado e o leitor. Após, iniciada a narrativa, passa a ser o

sujeito do relato. Ele é o ponto organizador dos demais elementos

que compõem uma narrativa. Por ele perpassam o tempo, o espaço, a

ação e os personagens. Pode-se compará-lo a um guia, pois conduz o

leitor por caminhos que ainda não foram examinados, que podem

tornar-se tortuosos, enredados em palavras.

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Outras vezes, o narrador mostra-se revelador, pois elucida idéias

que estão além das frases, isto é, idéias que se fazem presentes nas

entrelinhas (no sentido implícito).

Ronaldo Fernandes, em O narrador do romance, diz que:

O estatuto do narrador, qualquer que seja ele, é o de quem conhece. O grau de como revela o que sabe ou a maneira de como o faz é que distingue os diversos narradores. [...] O narrador sabe, o narrador transmite informações seja ela de que tipo for. Esse conhecimento de narrador não é de erudição, nem um saber de ensaísta. Mas é um conhecimento que diferencia o narrador, do personagem e de nós, leitores, que mantemos com o narrador uma relação de credibilidade. [...] O leitor real ouvirá a versão do narrador sobre uma história que ele, leitor, nem sabe qual será. Mas há um acordo tácito entre narrador e leitor de que o primeiro entreterá o segundo, informará sobre pessoas, fatos e coisas que o leitor desconhece, ou, se conhece, não conhece a versão do narrador. (FERNANDES, 1996, p. 8-9)

É importante salientar que a relação estabelecida entre o narra-

dor da prosa de ficção com o leitor, não é a mesma do contador de

histórias com o ouvinte. A primeira se dá de forma vertical, hierar-

quizada e desafiadora: vertical, porque se segue uma seqüência de

idéias; hierarquizada, pois o narrador conduz o leitor por essa se-

qüência de idéias; e é desafiadora porque, ao abrir-se um livro, tanto

narrador como leitor, ficam diante de um desafio: o desafio do pri-

meiro é o de entreter o segundo até o fim da leitura; e o do segundo é

o de desvendar o mundo narrado pelo primeiro.

O narrador, porém, mesmo sendo um condutor, não tem o co-

nhecimento de todos os fatos, de todos os detalhes duma narrativa,

ainda mais se essa não ocorrer de forma linear dentro de uma se-

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qüência lógica aristotélica, isto é, que o início, o desenvolvimento e o

desfecho estejam numa ordem linear.

Pode-se, também, considerá-lo um organizador, que detém uma

função narrativa, ou seja, na prosa de ficção é o elemento que tem a

função de dar segurança ao leitor. Assim fala Ronaldo Fernandes: “O

narrador é como um comandante de um navio que constantemente,

apesar das tormentas, assegura ao leitor que a nave chegará a porto

seguro” (FERNANDES, 1996, p. 36).

A professora e pesquisadora Cândida Villares Gancho escreve

“que não existe narrativa sem narrador, pois ele é o elemento estrutu-

rador da história” (GANCHO, 1998, p. 26). Apresenta dois termos

que designam a função do narrador na história: foco narrativo e pon-

to de vista. Ambos referem-se à posição ou à perspectiva que assume

o narrador diante dos fatos narrados. Dessa forma, ter-se-iam dois

tipos de narradores: em primeira e em terceira pessoa, identificados

pelo pronome pessoal utilizado na narração. Há casos em que os

narradores podem se apresentar com nome próprio, como, por exem-

plo, Bentinho na obra Dom Casmurro de Machado de Assis.

O narrador em terceira pessoa é aquele que se apresenta fora dos

fatos narrados e seu ponto de vista tende a ser imparcial. Também

chamado de narrador observador, suas principais características seri-

am a onisciência (o narrador sabe tudo sobre a história) e a onipre-

sença (o narrador está em todos os lugares da história).

Ela diz, porém, que o narrador em terceira pessoa pode apresen-

tar algumas variações, tais como: narrador intruso é aquele que fala

com o leitor ou julga diretamente o comportamento do personagem;

narrador parcial é aquele que se identifica com determinado persona-

gem, permitindo-lhe ter maior destaque na história.

O narrador em primeira pessoa ou narrador-personagem é aque-

le que faz parte do enredo. Seu campo de visão é limitado, pois não é

onipresente, nem onisciente, e também apresenta variações: narra-

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dor-testemunha (geralmente não é o personagem principal, mas narra

acontecimentos dos quais participou, mesmo que sua participação

tenha sido pequena); narrador-protagonista (também é o personagem

principal).

Essas últimas informações quanto à tipologia do narrador nos

servem para complementar a idéia da instituição narrador que há na

obra literária e sua possibilidade de aparecimento. No próximo mo-

mento, observaremos a questão do narrador na literatura infanto-

juvenil, a partir da sua ótica sobre a escola, através dos personagens.

As escolas de Harry Potter e Cazuza

Após algumas idéias sobre o imaginário infantil e o narrador

que é presente na literatura, investigaremos como ocorre a metamor-

fose de pensamento antes de entrar na escola para depois de entrar.

Antes, porém, conheçamos um pouco dos autores das obras mencio-

nadas.

Manuel Viriato Corrêa Baima do Lago Filho nasceu em 1884 e

faleceu em 1967. Foi um jornalista, contista, romancista, teatrólogo,

autor de crônicas históricas e livros infanto-juvenis e político brasi-

leiro. Começou a escrever aos dezesseis anos os seus primeiros con-

tos e poesias. Concluídos os estudos preparatórios, mudou-se para

Recife, cuja Faculdade de Direito freqüentou por três anos. Seus

planos incluíam, porém, a radicação no Rio de Jenrio, e sob o pretex-

to de terminar o curso jurídico na metrópole, veio juntar-se à geração

boêmia que marcou a intelectualidade brasileira no começo do sécu-

lo. Em 1903, saiu seu primeiro livro de contos, Minaretes, marcando

o aparecimento de Viriato Corrêa como escritor.

Por interferência de Medeiros e Albuquerque, de quem se torna-

ra amigo, Viriato Corrêa obteve colocação na Gazeta de Notícias,

iniciando carreira jornalística que se estenderia por longos anos e no

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exercício da qual seria colunista do Correio da Manhã, do Jornal do

Brasil e da Folha do Dia, além de fundador do Fafazinho e de A Rua,

além de colaborar com outras revistas. No ambiente das redações, em

convívio com intelectuais expressivos como Alcindo Guanabara e

João do Rio, encontraria incentivo para a expansão dos pendores

literários já revelados. Muitas das suas obras de ficção consagradas

em livro foram divulgadas pela primeira vez em páginas de periódi-

cos. Assim ocorreu com os Contos do sertão, que, estampados primi-

tivamente na Gazeta de Notícias, foram reunidos em volume e

publicados em 1912, redimindo Viriato Corrêa do insucesso de Mi-

naretes. Outros livros de ficção viriam depois confirmar o contista

seguro, pelo justo equilíbrio entre o ritmo empolgante e a pausa tran-

qüilizadora da descrições. Inspirava-se no cotidiano burguês ou cam-

pestre, em cenários exclusivamente brasileiros.

Obteve notoriedade no campo da narrativa histórica, ombrean-

do-se com Paulo Setubal, que também se dedicou ao gênero. Escre-

veu no gênero mais de uma dezena de títulos, entre os quais se

destacam Histórias da nossa História, Brasil dos meus avós e Alco-

vas da História. Com o objetivo de levar a História também ao pú-

blico infantil, recorreu à figura do afável ancião que reunia a

garotada em sua chácara para a fixação de ensinamentos escolares.

As sugestivas "lições do vovô" encontram-se em livros como Histó-

ria do Brasil para crianças e As belas histórias da História do Bra-

sil. Deixou ainda muitas obras de ficção infantil, entre elas o

romance Cazuza, um dos clássicos da nossa literatura infantil, em

que descreve cenas de sua meninice.

O meio teatral, que freqüentou como crítico de jornal e mais

tarde como professor de história do teatro, propiciou a Viriato Cor-

reia amplo domínio das técnicas dramáticas, transformando-o num

dos mais festejados e fecundos autores teatrais em sua época. Escre-

veu perto de trinta peças, entre dramas e comédias, que focalizam

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ambientes sertanejos e urbanos, vinculando-o à tradição do teatro de

costumes que vem de Martins Pena e França Junior. Além disso,

Viriato Corrêa foi deputado federal pelo estado do Maranhão.

Já J. K. Rowling, como é conhecida Joanne Rowling, nasceu em

South Gloucestershire, Ingleterra, em 1965. Seu pai, Peter, era geren-

te da Rolls-Royce, e sua mãe, Anne, era dona de casa. Rowling se

descreve na infância como "uma criança com cara de pudim, usando

óculos e muito estudiosa - uma menina tímida, esforçada e muito

insegura". Sua irmã Diane nasceu quando Rowling tinha quase dois

anos. A família mudou-se para Winterbourne, Bristol, quando Ro-

wling tinha quatro anos, e depois para Tutshill, País de Gales, então

com nove anos.

Entrou para a escola secundária de Wyedean School and Colle-

ge. Rowling custou a se firmar como boa aluna. Joanne conta que,

nos primeiros tempos, "eu ficava no lugar mais longe à direita da

professora, o mais longe possível sem se sentar no playground para

ter aulas." (Site Wikipédia: 2006) Com o tempo, ela conseguiu fazer

a transição do fundo da classe para a frente, bem embaixo do nariz da

professora. Ela já escrevia bastante nessa época, mas não mostrava

os textos para ninguém. Em dezembro de 1990, a mãe dela sucumbiu

a uma longa batalha com uma esclerose múltipla.

Depois de estudar Francês e Línguas Clássicas na Universidade

de Exeter, com um ano de estudo em Paris, mudou-se para Londres

trabalhando como pesquisadora e secretária bilíngüe para a Anistia

Internacional.

Então, Rowling mudou-se para Portugal a fim de ensinar inglês

como língua estrangeira. Enquanto ali viveu, casou-se com o jorna-

lista televisivo português Jorge Arantes em 1992. Dessa relação nas-

ceu uma criança, Jessica Isabel, antes de divorciarem em 1993.

Em dezembro de 1994, ela e a filha se mudaram para perto de

sua irmã em Edimburg, na Escócia. Dava aulas de Francês em uma

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escola, mas o dinheiro ganho mal dava para sustentar a casa. Sem

dinheiro, e com uma filha pequena para cuidar, Rowling entrou em

depressão. Foi então quando resolveu começar a escrever sobre Har-

ry Potter. A idéia havia lhe ocorrido em 1990, pouco depois da morte

de sua mãe, enquanto fazia uma viagem de comboio de quatro horas

entre Manchester e Londres. Desempregada e vivendo com benefí-

cios do governo, ela terminou seu primeiro romance, escrevendo um

pouco nos cafés locais de Edimburgo sempre que conseguia fazer

Jéssica dormir.

Na obra Cazuza, o narrador-personagem, após conhecer a escola

em meio a festas sobre a palmatória, vê que seu lugar não seria mais

apenas brincando nas ruas com seus amigos. A escola seria um lugar

fascinante, em que as brincadeiras serviriam para o ensino, o ambien-

te seria agradável e a convivência maravilhosa. Preparou-se para o

primeiro dia de aula e, ao entrar na escola, sofreu sua decepção. O

momento da passagem, no capítulo Primeiro dia, se dá no seguinte

fragmento:

A escola ficava no fim da rua, num casebre de palha com biqueiras de telha, caiado por fora. Dentro – unicamente um grande salão, com casas de marimbondos no teto, o chão batido, sem tijolo.

De mobiliário, apenas os bancos e as mesas estreitas dos alunos, a grande mesa do professor e o quadro-negro arrimado ao cavalete.

A minha decepção começou logo que entrei.

Eu tinha visto aquela sala num dia de festa, ressoando pelas vibrações de cantos, com bandeirinhas tremulantes, ramos e flores sobre a mesa. Agora ela se me apresentava tal qual era: as paredes nuas, cor de barro, sem coisa alguma que me alegrasse a vista.

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Durante minutos fiquei zonzo, como a duvidar de que aquela fosse a casa que eu tanto desejara. (CORRÊA, 1982, p. 28)

A ilusão de Cazuza fora desfeita na medida em que entrou na

escola. Enquanto sonhava com um lugar mágico, o narrador em pri-

meira pessoa percebe que nada era tal qual pensara. Assim, a criança

percebe que há diferenças entre a escola e o seu mundo infantil. En-

quanto na rua, com seus amigos, Cazuza vivia a brincar sem nenhu-

ma restrição – apenas aquelas que os pais lhe impunham para que

nada acometesse a si – e aproveitava-se de seu estado de criança para

tal; quando encontrou-se com a escola pela primeira vez, sentiu que

aquilo seria ainda melhor, pois os cânticos, a festa, o lúdico eram

presentes e diferentes de suas brincadeiras. O novo surgia como uma

possibilidade de o tornar mais feliz. Encaminhado à escola e ao ver

sua situação, Cazuza quer fugir, sair da escola: a visão educacional

da época fora contra o sonho do menino, proporcionando o distanci-

amento entre criança e escola.

Esse distanciamento se evidenciará logo a seguir, numa conver-

sa entre Cazuza e Chiquitita:

A Chiquitita perguntou-me, curiosa:

– Cazuza, você gostou?

Eu quis enganar a mim próprio, escondendo a minha decepção, mas o Vavá, que ainda tinha as orelhas a arder, respondeu prontamente:

– Gostou nada! Quem pode gostar daquilo?! É um inferno!

O Ioiô fez uma careta e disse triunfante:

– Eu tinha ou não tinha razão?! Eu sabia! Vanico me contou. Se a escola é aquilo, eu juro que lá não entro. (CORRÊA, 1982, p. 29)

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A fala de Cazuza não aparece na conversa, mas as respostas dos

amigos tornam clara a idéia de que ele também não gostou do que

viu. A sensação foi de tristeza, já que sonhara com algo completa-

mente diferente do que presenciou. O lugar palpérrimo, a questão da

palmatória desmotivada, tudo que envolvia a escola trouxe falta de

vontade ao menino.

A escola é tão mal vista pelo narrador, que se sente a falta de

cuidados que havia em relação aos alunos, como a seguir:

O ‘estudo’ era gritado, berrado. Cantava-se a lição o mais alto que podia, numa toada enfadonha.

Um inferno aquela barulheira. Trinta, quarenta, cinqüenta meninos gritando coisas diferentes, cada qual esforçando-se em berrar mais alto. E quando, já cansados, íamos diminuindo a voz, o professor reclamava energicamente, da sua cadeira:

– Estudem!

E a algazarra recrudescia.

Aquela mesma coisa, semanas inteiras, meses inteiros.

Nada, nada que despertasse o gosto pelo estudo. (CORRÊA, 1982, p. 34)

Dessa forma, a escola não traz nenhum prazer para a criança. A

desorganização é grande, pois a falta de vontade proporciona descon-

tentamento na pessoa e, por conseguinte, não desenvolve tudo que

pode através de suas habilidades. A palavra do professor é apenas

uma forma de ordem, nada que se aproveite pela criança, a não ser

obedecer. Caso isso não ocorresse, teria sua penitência: palmatória

nas mãos ou na cabeça, orelhas de burro na cabeça, grãos de milho

nos joelhos. O espaço da criança na escola, portanto, era reduzido, e

o que aparecia era um espaço adulto, em que as crianças se portariam

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enquanto tais para atingir seus objetivos e saírem de lá homens para a

sociedade.

O que é perceptível, também, na obra, é a presença de um narra-

dor-personagem que constantemente faz uma crítica ao modelo edu-

cacional da época. Lembremos que a obra de Viriato Corrêa é

memorialista e, sendo assim, o narrador retoma seu passado para

contar o trajeto de sua vida. Na medida em que faz essa retomada, o

olhar do narrador-personagem não é de uma mera criança, mas de

um adulto que retorna à infância para ilustrá-la. Ou seja, o olhar tor-

na-se crítico, não apenas uma visão infantil dos fatos. A percepção

da realidade faz com que o narrador denuncie o tipo de ensino que

vigorava na busca de um leitor que refletisse sobre o que leu. Não

esqueçamos que a época de lançamento da obra, no ano de 1938, é

marcada, na literatura, pelo neo-realismo – ou também chamado de

Romance de 30 –, em que se denunciava através dos livros a realida-

de de diversos pontos do país, a fim de uma melhoria ou ao menos

um repensar sobre a situação que o país enfrentava. Daí nasceram

obras como Capitães de areia, de Jorge Amado, e Vidas secas, de

Graciliano Ramos, por exemplo. De cunho social elevado, essas o-

bras mostraram que o Brasil precisava de modificações para não ser

mais um país defasado em relação aos de primeiro mundo. Em Cazu-

za, há a denúncia da escola como uma desmitificadora de sonhos,

quando deveria proporcionar ao educando uma vida ainda melhor do

que ele vive socialmente.

Tanto isso é uma denúncia que, nas outras duas partes da obra,

Cazuza se encontrará com escolas diferentes. A primeira escola, a

qual mostramos, era do povoado primitivo em que vivia; a segunda,

é na vila para onde a sua família muda; a terceira, é a escola da cida-

de. Veremos agora que, quanto mais urbanizada é a sociedade, me-

nos sofrível é viver na escola – apesar de seus problemas.

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Ao chegar na vila, Cazuza se encanta com a escola, estrutural-

mente muito diferente da que ele conheceu no povoado. A diretora

era uma mulher, o que fez Cazuza aproximá-la à mãe, e mostra que a

criança concretiza a relação entre professora e mãe, sendo a primeira

uma extensão da segunda na escola:

Eu, que vinha do duro rigor da escola do povoado, de alguns tristes e de professor carrancudo, tive um imenso consolo na alma.

A escola da vila era diferente da escolinha da povoação como o dia o é da noite.

Dona Jandoca tinha vindo da capital, onde aprendera a ensinar crianças.

Era uma senhora de trinta e cinco anos, cheia de corpo, simpática, dessas simpatia que nos invadem o coração sem pedir licença.

Havia nas suas maneiras suaves um quê de tanta ternura que nós, às vezes, a julgávamos nossa mãe.

A sua voz era doce, dessas vozes que nunca se alteram e que mais doces se tornam quando fazem alguma censura. (CORRÊA, 1982, p. 76)

A nova escola não era boa pela instituição, mas pelas professo-

ras, muito diferentes do seu antigo professor. O jeito duro e malévolo

do professor anterior cedia espaço a uma doce e amável professora,

que lhe marcaria para sempre: Dona Nenén.

Apesar das imagens graciosas das professoras, do ambiente atra-

tivo da escola, o método de ensino equivalia-se ao da escola anterior,

diferenciado apenas pelo não uso da palmatória, mas outros métodos

de punição, como o contar fábulas e apólogos com fundo moral:

Ela, porém, me advertia:

– Não se distraia, menino, cuide de sua liçãozinha.

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Era uma criatura doce, delicada, suavíssima. Assim, miudinha, misturada ali conosco, podia-se pensar que fosse nossa irmã mais velha. Fazia-se respeitar porque se fazia estimar.

Não ralhava nunca. Apenas nos olhava com aqueles olhos grandes e serenos. Bastava aquilo para que nos sentíssemos arrependidos e envergonhados.

Mas, quando a falta era grande, além de olhar, ela nos contava uma história. Quase sempre uma fábula ou um apólogo, com um fundo moral que mostrava o erro cometido. (COR-RÊA, 1982, p. 78)

A professora não usufruía repreensões físicas para fazer com

que seus alunos cuidassem de suas atitudes em aula, mas de repreen-

são psicológica: se a pessoa não pensasse bem o que fazia, teria pro-

blemas tais quais os personagens das histórias que contava. Dessa

forma, fazia com que a criança mantivesse sua atenção apenas ao

estudo, sem que observasse outra coisa – tal como era feito na escola

anterior. Com isso, observamos que a escola pinta-se, muda de figu-

ra, mas a metodologia utilizada ainda é similar à anterior.

Quando se muda para a cidade, Cazuza realiza seus estudos no

Colégio Timbira. Nova impressão: escola enorme, de muitas salas e

muitos quartos para os estudantes internos; meio desorganizada,

devido aos vários mandantes que havia lá – os professores, pois o

diretor descentralizou seu poder e os delegava a esses. Eram muitos

funcionários e alunos, muito diferente do que o narrador-personagem

conhecia.

Segundo as descrições de Cazuza, diversos tipos de professores

se encontravam nessa nova escola: “os pacientes, os bons, os deslei-

xados, os que gostavam de dar cascudos e os que não sabiam ensinar

senão com berros” (p. 142). Assim, reuniam-se nessa escola os tipos

de professores vistos anteriormente além de outros que ainda não

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apareciam. Naturalmente, o personagem gostava mais de uns profes-

sores do que de outros. Chama atenção, porém, a figura de João Cân-

cio:

João Câncio era, no entanto, o melhor professor do colégio.

Não havia ninguém mais tolerante, como não havia ninguém mais justo.

O que dizia tinha sempre tom de novidade. As coisas difíceis tornavam-se simples depois que ele as explicava. As suas aulas penetravam-nos no fundo do entendimento como um raio de sol atravessa uma vidraça. (CORRÊA, 1982, p. 142)

A figura do professor, antes, era estranha aos alunos. Fisicamen-

te estranho, detentor de costumes estranhos – para eles. Muitos boa-

tos circularam sobre a figura do professor, até o relato de Cazuza.

Sendo assim, a figura do bom professor parece associada a uma visão

distorcida da pessoa, o que equivale a dizer que ser um bom profes-

sor prescinde ser estranho – a pessoa normal não tem cacife para ser

bom professor. Estigmatiza-se a figura do professor e ele se aproxi-

ma da criança não mais pela intenção dessa em ter o lúdico, mas pelo

que se torna proveitoso das falas que ele deflagra. Outra idéia surge:

o bom professor é aquele que faz com que seus ensinamentos tor-

nem-se úteis no dia-a-dia.

No decorrer do capítulo, João Câncio falará sobre a questão dos

negros no Brasil, o quanto deveríamos respeitá-los por seu passado

de serviços, sem discriminações. Os meninos ouvem atentamente aos

ensinamentos do professor, e se sentem maravilhados com o que

escutam, já que não é mera conversa, mas algo proveitoso para a vida

deles.

Percebe-se, então, que a visão da escola por parte da criança

modifica no decorrer dos anos. A idéia de lúdico dá espaço a uma

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ambiente terrível, que posteriormente transforma-se favoravelmente,

apesar de manter a rigidez de ensino, e, por fim, um lugar em que há

todo tipo de forma de ensinar, onde se destaca aquele que faz do

ensinamento um aprendizado para a vida toda. A visão crítica do

narrador-personagem é constante e isso faz com que a obra de Viria-

to Corrêa seja dotada de um realismo que nos faz repensar um pouco

da trajetória da escola no país.

Em contrapartida, veremos agora como se relaciona o místico

Harry Potter com sua escola, Hogwarts. Diferentemente de Cazuza,

Harry Potter não é um narrador-personagem, apenas personagem da

obra. Assim, a narração é feita em terceira pessoa, com onisciência

por parte de quem a conta.

Tal como na obra anterior, Harry Potter também sonhava em ir

para a escola. Seu problema, porém, não era o mesmo: enquanto

Cazuza queria a escola por ter se encantado com ela, visto que lá

seria seu ambiente de felicidade e que poderia se livrar dos vestidi-

nhos – costume na época, meninos de vestirem com vestidos e usa-

rem calças e camisas apenas quando fossem a eventos sociais, Harry

Potter queria se livrar dos tios, que o maltratavam por ele ser diferen-

te, ter poderes especiais. Com isso, Hogwarts seria um lugar mágico,

onde se encontrariam pessoas como ele e não haveria discriminações.

Harry, no dia da viagem, sentiu-se muito excitado:

Harry acordou às cinco horas na manhã seguinte e estava demasiado excitado e nervoso para voltar a dormir. Levantou-se e vestiu o jeans porque não queria entrar na estação com as vestes de bruxo – mudaria de roupa no trem. Verificou novamente a lista de Hogwarts para se certificar de que tinha tudo de que precisava, viu se Edwiges estava bem trancada na gaiola e então ficou andando pelo quarto à espera que os Dursley levantassem. Duas horas mais tarde, a mala enorme e pesada de Harry fora colocada

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no carro dos Dursley. (ROWLING, 2000, p. 81-82)

A ansiedade de Harry passava pela idéia de ingressar nesse local

novo que era Hogwarts. Ao chegarem no local, depararam-se com

um “gramado fofo e úmido à sombra do castelo”. O ambiente parecia

sombrio, o que não intimidou o menino e os outros selecionados para

ingressarem na escola. Ao entrarem, sentiram-se nervosos pelo que

viam, mas não por simples medo, mas com uma mescla de expectati-

va: “O saguão era tão grande [...]. As paredes de pedra estavam ilu-

minadas com archotes flamejantes [...], o teto era alto demais [...] e

uma imponente escada de mármore em frente levava aos andares

superiores”. Após a fala da professora Minerva, diz o narrador que

“eles se agruparam lá dentro, um pouco mais apertados do que o

normal, olhando, nervosos, para os lados”.

Isso tudo deflagra que a imagem de Hogwarts não se aproxima-

va a que eles tinham, justamente por provocar tal sentimento. A

magnitude do lugar fez com que as crianças receassem de que algo lá

não seria como imaginavam – o que não se confirma posteriormente,

com a entrada das crianças na escola, a divisão pelas casas as quais

ficariam. Os professores e os alunos cantam em homenagem ao local

de estudo, colocando-o num patamar elevado, como o grande local

de proteção e estudo para aqueles educandos.

Como nas escolas de Cazuza, há também certo controle dentro

da escola. Não apenas em sala de aula, com repreensões e avisos,

como faz bastante o professor Snape, mas também há ordens para

controle em períodos fora da aula. Quando isso ocorre, há sinais: “-

Alunos fora da cama! – berrou Pirraça. – Alunos fora da cama no

corredor do feitiço.” Isso denota que por melhor que seja o lugar, há

regras que devem ser obedecidas. Os personagens devem subjugar-se

às leis para um melhor convívio dentro de Hogwarts.

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Hogwarts, então, é uma escola em que as crianças especiais vão

para aprender truques, mágicas, para enfrentar o mal que está fora de

lá. A literatura infanto-juvenil, neste caso, faz da instituição escolar o

meio de luta que as crianças tem para se fortalecer e, posteriormente,

sair ao mundo para enfrentar seus problemas. Analogamente, a esco-

la de Hogwarts é muito diferente da escola vista por Cazuza: é o

local onde não há represálias, não há medo nem falta de estímulo. A

escola de Harry Potter, Hermonie, Rony e todos os demais persona-

gens é o local que abre os caminhos da criança para o mundo, mos-

trando sua realidade e todos os seus problemas, que devem ser

enfrentados quando a criança estiver pronta para de lá sair.

Concluindo

O mundo escolar é variado. Escolas do mundo inteiro – inclusi-

ve num mundo de uma pequena cidade – têm diferentes visões de

como proceder o ensino. A criança que entrará nesse ambiente estará

se qualificando através de um ensino que pode ser muito ou pouco

proveitoso para si.

Ao analisarmos as obras Harry Potter e a pedra filosofal, de

J.K. Rowling, e Cazuza, de Viriato Corrêa, observamos que diferen-

tes tipos de escola estão presentes. Enquanto uma traz três tipos que

misturam a realidade da escola, incluindo bons e maus frutos, uma

releva um tipo ideal, que seria o maravilhoso para a criança.

Em Cazuza, a escola é vista como repressora, desprazerosa, sem

qualquer motivação para que o aluno queira estudar. É uma visão

memorialista de alguém que viveu aquele momento e, no presente da

narrativa, critica a situação das escolas pelas quais passou. Já em

Harry Potter, a escola é libertadora, abre caminhos para o estudante

viver socialmente no futuro e enfrentar suas dificuldades. Diferentes

visões que deflagram a idéia de que o sistema escolar necessita de

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algumas mudanças, a ponto de fazer com que seus alunos sejam feli-

zes nesses estabelecimentos e consigam enfrentar futuros problemas,

o que é normal na vida de qualquer cidadão.

As teorias aqui utilizadas tornaram-se bastante úteis para mos-

trar como se dá o imaginário da criança e o que ela pensaria de uma

escola antes de entrar nela, além do que passou a pensar posterior-

mente. Desde Eduardo Galeano e Elias José até os teóricos sobre

narrador nos trouxeram possibilidades para analisar as obras e des-

cobrirmos novas idéias sobre as mesmas.

Cremos que o principal objetivo deste trabalho foi alcançado pa-

ra, quem sabe, repensarmos a situação da escola, vermos que ela

ainda é o local em que nos prepararemos para a vida. Quando atin-

girmos esse objetivo, a instituição escolar deixará de lado seu estig-

ma de repressão, de falta de vontade para com seus educandos e

passará a um pensamento que construa o saber com uma finalidade

bem definida: constituir o ser humano e colocá-lo no mundo.

Referências bibliográficas

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FERNANDES, Ronaldo Costa. O narrador do romance. Rio de Ja-neiro: Sette Letras, 1996.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da Lín-gua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.

GALEANO. Eduardo. De pernas pro ar: Escola do mundo ao aves-so. Porto Alegre: L&PM, 2002.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 1998.

Joanne Rowling. In: Wikipédia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Joanne_Rowling>. Acesso em 10/Out/2006.

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JOSÉ, Elias. A leitura e o imaginário da criança. Disponível em: <http://www.moderna.com.br/moderna/didaticos/ei/>. Acesso em: 8/Out/2006.

LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. 6 ed. São Paulo: Ática, 1993.

PIMENTA, Arlindo C. Sonhar, brincar, criar, interpretar. São Pau-lo: Ática, 1986.

REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2000.

ROWLING, J.K. Harry Potter e a pedra filosofal. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

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Um litígio discursivo na ordem da mídia (e para além dela)

Lucília Maria Sousa Romão (USP)

O político na linguagem e na mídia

Considerando que todo ato de dizer é político, que a linguagem

sempre materializa disputas pelo poder, que o uso da língua deriva de

posições disponíveis, pela ideologia, para o sujeito ocupar (PÊ-

CHEUX, 1969) e que o discurso jornalístico é um terreno fértil para

a escuta do político (MARIANI, 1998), buscamos, nesse trabalho,

refletir, à luz da Análise do Discurso de matriz francesa, sobre os

desdobramentos de sentidos do uso do significante “raça” na decla-

ração de um senador brasileiro, pontuando como ele retoma certos

lugares da memória discursiva, atualizando-os em relação ao gover-

no de Luis Inácio Lula da Silva (Lula) e à esquerda, identificando-os

com um modo de falar de ambos e inscrevendo uma formação dis-

cursiva dominante, em cujo dorso, movimentam-se efeitos de intole-

rância e preconceito. Opondo-se a esse dizer, a voz de um professor

universitário e intelectual de esquerda, (embora valha aqui a ressalva

de que as designações “de direita” e “de esquerda” já tiveram lugares

mais estabilizados de significação) indicia uma posição discursiva de

resistência aos sentidos de evidência postos em movimento pelo

dizer do senador, mobilizando outras redes de memória para susten-

tar o seu dizer e fazendo falar os efeitos de povo e de esquerda de um

outro lugar, a saber, aquele em que a luta de classes é posta. Não há

novidade nenhuma nesse litígio discursivo, visto que o sujeito sem-

pre enuncia de uma formação social que remete o seu discurso a um

conjunto de representações, sentidos e imagens que lhe são dispostos

pelas formações ideológicas correspondentes (PÊCHEUX, op.cit.).

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Mas, nesse caso, há, sim, uma peculiaridade, pois todo o embate de

vozes deu-se nas/pelas páginas da mídia impressa e eletrônica (em

alguns momentos transbordando das páginas da mídia, é certo), mar-

cando-a como um privilegiado lugar de escuta da produção e circula-

ção dos sentidos sobre o político (MARIANI, op.cit.), sobre a disputa

por sentidos e sobre os modos de dizer, por fim, sobre a forma como

as redes de filiação são mobilizadas e articuladas pelos sujeitos para

a exposição pública de seus dizeres (ROMÃO, 2005).

Não apenas um jogo de declaração e texto-resposta foi alimen-

tado pela mídia, mas os desdobramentos desse embate discursivo

irromperam em outros textos, em entrevistas, em carta do leitor pu-

blicada, em declarações nos blogs jornalísticos e em debates nas

listas de discussão na net, deslocando-se, também, para uma circula-

ção pública no cartaz anônimo pregado na rua. Em seguida, os senti-

dos desse embate deslizaram para o campo jurídico, irrompendo em

uma sentença judicial, em abaixo-assinado, em texto lido no senado

por outra autoridade política, mobilizando a tessitura de sentidos do

jornalístico, do publicitário e do jurídico. Enfim, o que foi iniciado

nas e sustentado pelas páginas da mídia se estendeu para além dela,

isso porque embora postos em efervescência no jornal e publicizados

na/pela rede eletrônica, os discursos não nascem ali no momento em

que são ditos (COURTINE, 1998). Eles transbordam em outros dis-

cursos, fluindo em direções tão inesperadas quanto é a forma de a

ideologia assaltar o sujeito; eles constituem-se marcados por já-ditos,

por sentidos postos em funcionamento em outros contextos sociais,

enfim, por efeitos de memória (PÊCHEUX, 1999) que tentaremos

rastrear nesse estudo.

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Uma memória sobre o político

Desde a colonização, poucos detentores da terra, em conivência

com o poder religioso manifesto pela voz de jesuítas, cravaram as

marcas de uma formação econômica extrativista, predatória, dizima-

dora do diferente, centralizadora de plantios em que os frutos eram

concentrados e nunca divididos. Estavam lançadas as condições ma-

teriais da representação de uma colônia (ORLANDI, 1990), que to-

mou para si o discurso e a posição de reproduzir o alheio, ainda que

tenha dele sido vítima. Os sem-território, os sem-nome, os sem-

identidade, enfim, os braços trabalhadores eram colocados ao lado

das mercadorias, competindo com elas o lugar de objetos coisifica-

dos e mercantilizáveis. Quando tais braços punham-se a clamar, re-

voltar-se ou nomear a si mesmos como vítimas ou como merecedores

de outras representações, eram narrados como incômodos, faltantes,

criminosos e, assim, eram merecedores de punição. O tronco e a

morte cumpriam essa tarefa, imprimindo a condenação do silencia-

mento (ORLANDI, 1997) aos que se autorizavam a condição de

falantes.

Esgotada a cana, o ouro se mostrou pródigo em sustentar rela-

ções de parentesco com aquelas que nutriram o discurso da descober-

ta de nossa terra. Novos braços para alimentar a extração, fôlego

outro para pequenos vilarejos, estufa para que os sinhozinhos da cana

ampliassem seus domínios e fizessem seus filhos tornarem-se dou-

torzinhos. De novo, materializava-se o sentido dominante de interdi-

ção ao clamor por liberdade, ainda que ele viesse de representantes

das classes abastadas, minimamente inconformadas com a lógica da

escravidão nutrida pelo açoite e pela espada. Constrói-se um imagi-

nário de que aos debaixo – vendedores de sua força de trabalho –

restam a submissão, o silêncio e o aceite, ao passo em que aos de

cima – donos dos capitais – é confiada a tarefa de delegar quem diz,

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o que se diz, de que modo podem as palavras ser ditas, a serviço de

que interesses elas devem ser postas. Também se depreende dessa

inscrição histórica dos sentidos que os de cima colocaram-se assime-

tricamente em relação aos seus interlocutores, tomando para si o

direito não apenas de governo de todos (e só isso já seria o bastante),

mas o lugar de criar leis próprias, comprar acordos que os favore-

çam, negociar sentenças, corromper autoridades eclesiásticas, políti-

cas e jurídicas e postar-se como a única voz de autoridade e comando

do/no país. De novo, aos dissonantes, o lugar de criminoso com di-

reito à cabeça cortada e exposição pública de torturas.

As várias repúblicas oligárquicas, alimentadas pelo café, só vie-

ram fortalecer tão imaginário, marcando os efeitos de autoridade

militar, centralizadora, disciplinante e mantenedora da ordem do

Estado, da família e da Igreja. Sob o manto de tomadas de poder e

golpes militares, inscreveu-se um modo desigual de virtualizar os

acessos sem democratizar os poderes, de ensaiar a expressão da li-

berdade sem permitir a ação de “perigosas” mobilizações dos traba-

lhadores, de dar aos pobres mantendo-os pacíficos e distantes das

ações de militância. Ou seja, de manter o controle dos sentidos e dos

discursos que circulavam então, preservando interdições e punições

aos que reivindicavam. Aos desejantes de mudanças na ordem fundi-

ária, por exemplo, os canhões foram capazes de garantir extermínios

em massa; homens e mulheres tiveram sua garganta cortada e sua

língua tornada gravata em Canudos, inscrevendo o lugar desejado de

calar, a voz. A língua falada, cantada e rogada como prece ou praga

precisava ser arrancada para que a palavra não entrasse na disputa

pelos sentidos e ficasse interditada para sempre. Também em Contes-

tado, dizimar foi estratégia para silenciar muitas vozes ao mesmo

tempo (ROMÃO, 2002). A manutenção dos privilégios de poucos, a

concentração da terra e a centralização do poder econômico no cen-

tro-sul deu as bases para o discurso de alijamento das massas, susten-

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tado pela formulação “façamos a revolução antes que o povo a faça”.

No processo de industrialização, o longo capítulo da ditadura militar

instalou o sentido dominante sobre a ordem pretendida para o país -

desenvolvimento e progresso. A logística do crescimento econômico

tentava impedir a escuta dos ecos dos quartéis, dos intelectuais no

exílio, das mortes e desaparecimentos, muitos dos quais ainda hoje

não esclarecidos.

Tal historicidade (PÊCHEUX, 1999) é indiciária de como as

classes dominantes criaram (e ainda criam) uma retórica de proibi-

ções para conter outros discursos tidos como indesejáveis, de como

enovelaram punições de diferentes ordens para expressar sua intole-

rância, de modo como buscaram instaurar o privilégio de alguns

como forma exclusiva de poder. Se é certo dizer que tantas vozes

foram condenadas ao silenciamento (ORLANDI, 1997) e à interdi-

ção, também vale registrar que, ao gesto de calar e impedir, corres-

pondem modos de resistir e de dizer, maneiras imprevisíveis de dar

corpo à indignação e à denúncia. Sobre isso, vale marcar aqui que o

significante “raça” foi muito recorrente no discurso dominante para

nomear os índios, os negros aquilombados, os canudenses do Arraial

do Belo Monte, os caboclos do Contestado, os integrantes das Ligas

Camponesas e ainda hoje irrompe em relação aos integrantes do

MST hoje, designando-os de diferentes modos, mas sempre inscre-

vendo o efeito de selvagens, criminosos, inferiores, boçais, perigo-

sos. Tais ocorrências de ordem lingüística nos convidam a refletir

sobre o modo como as palavras materializarem a ideologia (PÊ-

CHEUX, 1969) e a forma como elas jogam com o(s) sentido(s) sobre

o político, inscrevendo os sujeitos em determinada posição. Dessa

posição, o sujeito toma para si um papel e atribui ao outro e ao objeto

do discurso uma representação que lhe convenha ou lhe seja possível

assumir, enunciando nesse meio fio em que muitas vezes o dizer

escapa (ORLANDI, 1999). Pois é justamente aí, nos atos falhos,

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equívocos, deslizamentos de sentido, hesitações, repetições, pausas e

substituições de palavras que a ideologia (e o desejo) cravam a sua

tatuagem, indiciando a formação social e ideológica à qual o sujeito

está preso.

De acordo com a Análise do Discurso, os processos de naturali-

zação dos sentidos se dão apoiados e determinados por disputas pela

dizer e pelo poder que, longe se serem dadas de maneira pacífica, são

tensos e põe em confronto interesses de classes. Assim sendo, é dado

como natural que a referência a tudo o que tenha relação com povo

seja tratado pela classe dominante como questão de raça ou de qua-

drilha, evocando desejos de extermínio e eliminação, marcando um

lugar em que a suposta falta de cultura, de estudo, de educação, de

sobrenome, enfim, de pertencimento à elite precisam ser ditas e repe-

tidas para que somente esse sentido circule e seja naturalizado. Às

vozes oponentes e questionadoras da evidência disso tudo, relem-

bramos aqui o trabalho histórico dos sentidos sobre silenciamento

(ORLANDI, 1997) e interdição, que, no país com longa tradição de

regimes autoritários, calou, até pouco tempo atrás de maneira ditato-

rial, a circulação de dizeres tidos como indesejáveis e perigosos.

Com tal reflexão, marcamos a existência de uma historicidade

tatuada por várias ordens de apagamento e interdições (FOUCAULT,

1998), uma voz dominante sem dono, que circula sustentando regi-

ões de dizer, saber e poder que devem ser controladas, proibidas e

apagadas, ao passo em que outras precisariam circular. Dito isso, a

própria nomeação de “raça” tentou silenciar o discurso de indígenas

e negros escravizados, tentou conter e calar a voz dos movimentos

sociais do campo com o extermínio em massa de seus agentes, quis

censurar militarmente os dizeres de líderes estudantis, intelectuais e

trabalhadores, fazendo desaparecer os vestígios de sua indignação e

de seu clamor. De um lado, é possível dizer que os mecanismos só-

cio-históricos de controle das palavras e dos discursos não lançam

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mão de táticas brutais de execução sumária e desaparecimento com a

mesma crueldade de outrora, visto que a tortura não está instituciona-

lizada pelo governo; mas, de outro, vale registrar que, na atualidade,

circulam dizeres racistas e de extermínio cuja espessura atualiza os

sentidos já explicitados até aqui; dizeres que, às vezes, ficam mais

coloridos, quando um corpo de um estudante, trabalhador, sindicalis-

ta ou religiosa tomba assassinado ou quando um processo de racismo

e discriminação é aberto (e muitas vezes fechado). Dizeres que pare-

cem naturais em declarações de políticos, textos jurídicos, condena-

ções, sentenças judiciais e relatos midiáticos.

Modos de falar do (e tentar calar) político

As análises dessa sessão dizem respeito a discursos sobre o

mesmo fato, qual seja, a condenação judicial do pesquisador, cientis-

ta social, escritor e colunista da Carta Maior, Emir Sader, em primei-

ra instância, à perda de seu cargo de professor na Universidade

Estadual do Rio de Janeiro e a um ano de detenção, em regime aber-

to, convertida em prestação de serviços à comunidade foi condenado.

A sentença, dada pelo juiz Rodrigo César Muller Valente, da 11ª

Vara Criminal de São Paulo, no mês de novembro de 2006, condena-

o por injúria no processo movido pelo senador Jorge Bornhausen

(PFL-SC). O fato em si põe em confronto duas discursividades, isto

é, dois modos de produzir e constituir sentidos sobre o político, e

também convida a percorrer a forma como tais discursos foram pro-

duzidos e circularam. A partir daqui busca-se escavar a historicidade

que tais documentos indiciam, refletir sobre a maneira como posi-

ções-sujeito estão em jogo e em movimento e construir interpreta-

ções sobre a forma como o significante “raça” foi tomado. Intenta-se,

por fim, esboçar gestos de interpretação que se estendam para além

do sentido literal das palavras, visto que não compreendemos aqui

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apenas uma acusação de calúnia, a defesa, a decisão de um juiz, mas

consideramos que está posto a nu um confronto de discursos, ou seja,

uma luta de vozes. Luta esta que tem historicidade, que é atravessada

pela memória de outros discursos e que só pode ser compreendida, se

tomarmos o político que ela encerra e que a sustenta. Esse trabalho

histórico dos sentidos precisa ser recuperado para interpretar, não

sem estranheza e indignação, uma sentença dada com muita rapidez,

(o que seria louvável se fosse sempre assim para todos os processos

em curso na justiça), quando sabemos que a Justiça, em geral, tarda

muito (quando vem). Justiça que veio a galope em defesa do senador,

salvando-o da acusação de racista e defendendo a sua honra, mas que

– é preciso marcar – fosse um cidadão qualquer, trabalhador anôni-

mo e pobre desses que encheram as senzalas de outrora e ainda hoje

se submetem às novas versões delas, certamente teria como medida

anos de espera, deixando o processo engavetado e fazendo com que a

sede de uma sentença fosse apenas quimera no horizonte nunca al-

cançado. Também vale aqui registrar que, com freqüência, trabalha-

dores sindicalizados, integrantes de movimentos sociais, excluídos e

sem-parcela são caluniados, xingados, ofendidos e difamados pelas

elites sem que se tenha visto, com tanta presteza, a Justiça restituir-

lhes a honra.

Dito isso, marcamos que é possível duvidar do sentido (ilusório)

de igualdade entre todos os cidadãos diante da lei, visto os saberes

não são distribuídos de maneira homogênea na nossa sociedade, o

que implica dizer que os sujeitos são tomados, instados à condição de

sujeitos de seus discursos, inscritos e julgados a partir da relação que

mantém (ou não) com o poder. Passamos à análise do primeiro recor-

te, a textualização de um artigo de autoria de Jorge Bornhausen, cujo

título é “Raça, segundo São João”.

A pergunta veio anônima, do auditório - claramente, de alguém que precisava de um

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sinal de esperança."O senhor não está desencantado com tudo isso que acontece no Brasil?” Desencantado? Pelo contrário. Estou é encantado, porque estaremos livres dessa raça pelos próximos 30 anos.” Surpreendi-me eu mesmo por ter respondido de bate-pronto. Quem me acompanha sabe que não costumo reagir precipitadamente a provocações. Mas fiquei satisfeito por ter dado aquela resposta, embora reconheça possível exagero. Trinta anos foi pura explosão de otimismo. Confesso que falei "dessa raça" espontaneamente, sem premeditação, usando meu modesto universo vocabular, a linguagem coloquial brasileira com que me expresso, embora meus adversários tentem me isolar numa aristocracia fantasiosa. Aliás, pelo menos em matéria de falar "o português do Brasil", "a língua errada do povo, a língua certa do povo"- como o poeta Manuel Bandeira sabia das coisas! - , peço licença pela imodéstia, mas usei a palavra "raça" na melhor acepção. (Opinião, Página: A3 Edição: São Paulo, 29/09/ 2005)

Ocupar a voz de autoridade, dada pelo cargo senador da Repú-

blica, inscreve um modo de emprestar prestígio ao sujeito enuncia-

dor, criando uma posição de estar acima dos outros pobres mortais,

de ser representante ele próprio do poder e, assim, de enunciar de um

lugar imaginariamente blindado e poderoso. Ao se referir à política

econômica do presidente Lula e à esquerda em geral, o senador ma-

nifestou o desejo de “ver-se livre desta raça por 30 anos”. Dois dias

depois, em 29 de setembro de 2005, publicou um artigo no jornal

Folha de S. Paulo, em que tentava explicar o uso da expressão:

Quanto a ter usado a palavra ‘raça’ – não como designação preconceituosa de etnia, ideologia, religião, caracteres, mas como camarilha, quadrilha, grupo localizado –, tão logo alguns falsos intelectuais surgiram, incriminando-me, apareceram preciosos testemunhos a meu favor.

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Confesso que falei “dessa raça” espontaneamente, sem premeditação, usando meu modesto universo vocabular, a linguagem coloquial brasileira com que me expresso, embora meus adversários tentem me isolar numa aristocracia fantasiosa.

O suposto uso de sinônimos (em qual dicionário é possível tro-

car raça por camarilha, quadrilha, grupo localizado?), realocando um

termo em lugar de outro, não produz o efeito de uma explicação, mas

joga com o modo de a língua ser usada para dizer e dar manutenção à

mesma formação discursiva dominante que lhe é correspondente,

assegurando um sentido único, qual seja, aquele materializa duas

ordens de acusação, uma étnica e outra criminal.

No dizer do senador, é possível formular o desejo de “ver-se li-

vre desta quadrilha por 30 anos”, o que implica além de uma conde-

nação moral do presidente e dos sentidos de povo brasileiro

representados em sua biografia e seus modos, e dos partidos de es-

querda, também um efeito de criminalização posto que uma “quadri-

lha” é composta por ladrões, criminosos, salteadores etc. Assim, a

acusação repousa sobre o pertencimento a uma classe social (povo) e

a uma quadrilha (bando de criminosos), instalando uma semelhança

entre ambos, marcada pelos efeitos de roubo, saque, violência e ile-

galidade. Observa-se, então, o seguinte deslocamento: do discurso

agressor e difamatório à posição de vítima de calúnia e difamação,

buscando ancoragem na condição de que “meus adversários tentem

me isolar numa aristocracia fantasiosa”. Recorrer ao jurídico como

lugar de autoridade, inverter o efeito do dito de intolerância tornan-

do-o reflexo da suposta maldade alheia, condenar a voz do outro,

fazer calar à custa da cassação de direitos: eis o funcionamento em

curso.

Anotamos, ainda, que os sentidos sobre o religioso, instituciona-

lizados pela voz da Santa Madre, são mobilizados para sustentar o

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sujeito no lugar de onde fala, fazendo falar um efeito de verdade. “O

melhor, porém, é a origem histórica desse uso da palavra. Outro ami-

go veio me abrir o Novo Testamento, no Evangelho de Mateus, capí-

tulo 3º, versículos de três a dez. É um registro de São João Batista

chamando de "raça de víboras" aos "fariseus e saduceus", que, des-

confio, deviam ser a camarilha corrupta da época, oportunistas e que

pretendiam ser melhores que os outros. Raça de víboras. E bote víbo-

ras nisso”. O recorte acima põe em discurso algumas marcas de pré-

construído e, ao evocar o nome de São João, instala o sentido de

“raça” como algo garantido até mesmo pelo texto sagrado, já que o

referido profeta é tomado como voz de autoridade, tida como capaz

de atribuir legitimidade e ancoragem segura à fala do senador. Para

sustentar o uso de “raça”, o sujeito atualiza o já-lá, ampara-se em

regiões da memória discursiva e marca sua inocência ou a naturaliza-

ção do termo empregado como evidente. Não recupera textos cientí-

ficos, tampouco evidencia os momentos históricos sombrios em que

o conceito de raça foi evocado para cometer atrocidades contra certos

povos e inscrever a barbárie.

Dessa forma, “raça” é significante destituído das implicações

políticas que ele traz em seu bojo e tomado como uma escolha voca-

bular ingênua, descomprometida que, de maneira desatenta, retoma

uma palavra como se ela estivesse em estado de dicionário e não

carregasse os sentidos dados pelo seus usos sociais e pelos contextos

em que foi mobilizada. Considerando que a escolha das palavras não

é neutra e implica a posição em que o sujeito é assujeitado pela ideo-

logia (PÊCHEUX, 1969), “raça” aqui recupera os mesmos sentidos,

já postos pelo discurso dominante sobre pobres, excluídos e rebeldes,

e estabelece um mundo que se pretende semanticamente organizado,

a saber, em que as supostas divisões de raça explicariam e justificari-

am talentos natos, privilégios garantidos e poderes legitimados. Ao

chamar Lula e a esquerda de “raça” a ser extirpada, ambos são fixa-

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dos em uma região da memória que os enuncia como o lugar da falta,

do equívoco, da incompetência, da distorção e, assim, precisam ser

contidos e eliminados. Não é possível tolerá-los no centro do poder

político, ou seja, no cargo de primeiro mandatário do país (ainda que

o discurso de Lula e da esquerda no Planalto de hoje não sejam tão

ameaçadores quanto já foram em um passado não muito distante),

pois, como sabemos, esse lugar sempre foi ocupado pelas elites, fa-

zendo falar efeitos de concentração e sustentação de apenas um po-

der político.

Os sentidos que o texto do senador pôs em discurso foram zom-

bados e desautorizados pelo discurso de um cartaz anônimo, colado

em Brasília, isto é, estampados no espaço público, não de uma cida-

dezinha qualquer como cantou o poeta, mas naquela que condensa os

sentidos sobre os poderes oficiais do país, melhor dizendo, o núcleo

dos poderes e de seus representantes, o suposto oráculo da democra-

cia e da voz popular. Observamos que a fotografia abaixo apresenta

dois planos: no primeiro deles, os vários cartazes colados no muro da

cidade, tatuando a céu aberto e à luz do dia, uma fotomontagem que

desautoriza o dizer analisado anteriormente e, dessa forma, filiando-

se a outras regiões da memória. Ao fundo, não se tem a linha do ho-

rizonte, visto que ele é composto pelo contorno de prédios públicos e

pelo lugar do poder legislativo, centro decisório de onde saiu a voz

do senador.

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Em contraste, esses dois planos instalam um modo de estabele-

cer o confronto discursivo, inicialmente posto nas páginas da mídia

e, depois, deslizante para o corpo da cidade com suas ruas, monu-

mentos, planos arquitetônicos. O cartaz traz a seguinte formulação

"Vamos acabar com 'este' raça. Preto, pobre e operário nunca mais!",

o que modifica o uso do termo “raça”, inicialmente inscrito generi-

camente, mas agora acompanhado do demonstrativo “este”, que de-

monstra de que “raça” o sujeito fala, apresentando-a não mais como

um conceito abstrato, mas como uma marca lingüística que qualifica,

em particular, o presidente como “preto, pobre e operário”, ou seja,

como o representante de uma raça que se quer extirpar. O imperativo

“vamos acabar” implica, não apenas um movimento de ordem e de

comando, mas, sobretudo, o efeito de extermínio e barbárie, evoca-

dos e confirmados aqui também pelo texto não-verbal.

“Este raça” também pode ser atribuído ao senador, agora de uni-

forme nazista, com suástica em destaque, e em posição de rigidez

corporal, disposto à frente de um cenário cinzento e sombrio. Ele

encontra-se em pé, como um general olhando para seu exército, en-

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carando o transeunte que passa na rua, ofertando-lhe um olhar de

ironia e convite, reclamando a cumplicidade dos anônimos para a

sentença de morte política a Lula. Esses elementos reclamam a com-

preensão de que há um interdiscurso sustentador dessa imagem, fa-

zendo retornar, sob o efeito dos dizeres que já circularam sobre

nazismo, fascismo, holocausto etc, os sentidos sobre Hitler, agora

deslocados para Bornhausen. A identidade entre ambos é engendrada

de tal modo que os traços de um são colados ao outro de tal modo,

que não se consegue enxergar mais onde começa um e onde termina

o outro. Fundem-se os dois em um mesmo corpo, são mantidos unos

sem fronteiras divisórias ou singulares, visto que continuam, na voz

do senador brasileiro, os ecos de sentidos já postos em funcionamen-

to pelo alemão. Lendo desse modo, o “este raça” inscreve outro sen-

tido, visto que também pode estar relacionado ao próprio senador e

aos efeitos de seu depoimento, que aqui são falados como alvo de

extermínio. Considerando o movimento polissemia e o jogo dos sen-

tidos sempre plurais, é possível inferir que o “vamos” diz respeito

tanto ao senador quanto aos seus opositores, instalando, dessa manei-

ra, um lugar em que o sentido deriva, escapa e pode ser outro.

Na mão, a fotomontagem do Hitler-à-brasileira traz um exem-

plar de uma publicação com a marca “Veja”, o que provoca o efeito

de um pré-construído dado pelo logotipo do semanário de circulação

nacional. Os sentidos sobre essa revista precisam ser recuperados

pelo leitor e observador desse cartaz: a que formação discursiva a

revista se filia? De que posição enuncia em relação à esquerda e ao

presidente Lula? Como inscreve sentidos em relação a “preto, pobre

e operário”? Para não deixar escapar o efeito de crítica à revista e

ligação dela com o discurso do senador, isto é, para manter a identi-

dade entre ambos e a filiação dos dois à mesma formação discursiva,

o sujeito marca “Juntos contra o PT” na capa da revista, que está

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presa às mãos do senador. As marcas identitárias são, então, pontua-

das pela/na língua em funcionamento e pelo/no recurso não-verbal.

Observamos um percurso de sentidos deslocados das páginas da

mídia para um outro suporte, o cartaz, comumente usado para a di-

vulgação de anúncios, eventos e acontecimentos, instalando, na esfe-

ra pública, sentidos de resistência e zombaria em relação ao senador

e seu depoimento, colocando à disposição dos que andam e circulam

pela cidade uma caricatura fotográfica do discurso do outro. Materia-

liza-se o dizer do senador, não como ele foi reproduzido no jornal ou

dito durante a palestra já citada, mas inscrito por um outro sujeito,

que debocha dele, que o articula a partir de outras redes de memória

e que apresenta o trabalho histórico dos sentidos sobre racismo e

intolerância de um outro lugar. Chama a atenção a maneira como os

sentidos de “raça” deslizam e jogam ao sabor da forma como os su-

jeitos são interpelados pela ideologia, primeiramente manifestos em

uma declaração oral, depois em um jornal, para, em seguida, irrom-

perem em um cartaz da cidade. Tal percurso indicia um trabalho de

discursos sobre discursos, de palavras sobre palavras com desdobra-

mentos e mobilização de diferentes redes de memória, como veremos

na seqüência. Ocupando a mesma página da Folha de S. Paulo e es-

tando na mesma coluna “Opinião”, a textualização “PT, direita e

esquerda”, de Emir Sader, foi publicada duas semanas após o do

senador gerar polêmicas e indignação.

As políticas sociais focalizadas, emergenciais e compensatórias, e não de universalização dos direitos, são características da direita, em oposição à tradição dos governos municipais do PT. Esses erros propiciaram a chance que a direita brasileira esperava para reinstalar um clima de guerra fria, com generosos espaços na mídia para qualquer tipo de acusação contra a esquerda. Da declaração racista de Jorge Bornhausen (PFL)-sem nenhum protesto na

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mesma mídia que diariamente mostra-se "indignada" com qualquer deslize da esquerda - até a acusação de que o governo Lula e o PT teriam sinais digitais no assassinato do brasileiro no metrô de Londres. Com o consenso liberal dominante, qualquer gasto estatal é criminalizado, como recursos para políticas sociais a fomento de atividades culturais, porque estas não atendem aos interesses das empresas monopolistas do setor e se dirigem aos mais miseráveis do país mais injusto do mundo. Tenta-se desqualificar a esquerda com os erros do governo Lula e do PT, mas os erros do governo Lula e do PT devem-se à manutenção de políticas e métodos da direita. Já os méritos do governo Lula e do PT vêm da esquerda. (PT, direita e esquerda 13/10/2005. EMIR SADER. Editoria: OPINI-ÃO Página: A3. Edição: São Paulo Oct 13, 2005. Seção: TENDÊNCIAS/DEBATES)

O recorte do escrito acima inscreve a voz do intelectual, que põe

em discurso a declaração impensada do senador a partir de uma

perspectiva histórica, mobilizando os conceitos de esquerda e direita,

o que reclama o trabalho histórico dos sentidos sobre classe social e

luta de classes. É preciso mobilizar redes de memória que já circula-

ram em outros contextos sociais para significar e compreender al-

guns sentidos sobre o que é, no país, ser de esquerda, qual o

imaginário e a representação disso, como ser de esquerda dista da

denominação ser de direita, como se contrastam tais posições hoje e

ontem. Também inscreve-se um modo particular de reavivar os efei-

tos de interdição de certos sentidos, de silenciamento e política do

silêncio (ORLANDI, 1997), pois, como já foi visto aqui, a classe

dominante sustentou-se historicamente como a única voz legítima

para definir os usos e o controle do(s) poder(es), apagando outros

modos de significá-los. Nesse caso, falar “direita” e “esquerda”, mais

do que uma simples oposição de vocábulos, instala um confronto de

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campos semânticos que nos remete a um embate de discursividades.

À “direita” estão relacionados linguisticamente alguns sentidos,

quais sejam, ela é a criadora de “políticas sociais focalizadas, emer-

genciais e compensatórias” sem universalizar os direitos dos cida-

dãos; ela cria “ um clima de guerra fria, com generosos espaços na

mídia para qualquer tipo de acusação contra a esquerda”; é autora de

“declaração racista”, de um “consenso liberal dominante”, de “políti-

cas e métodos” próprios. Observamos que tais pistas fazem falar o

modo como o sujeito inscreve a direita na linguagem, qual seja, a

detentora de privilégios, a arquiteta da concepção de capital sem

fronteiras e sem limites, a voz que promove a emergência de guerras

frias, sem o sangue de vítimas, enfim, uma posição de eliminação

dos sentidos postos em discurso pela “esquerda”, indiciada, no texto,

pelas formulações “universalização dos direitos”, “recursos para

políticas sociais a fomento de atividades culturais”, “não atendem

aos interesses das empresas monopolistas do setor e se dirigem aos

mais miseráveis do país mais injusto do mundo”. Tal desenho simbó-

lico da esquerda implica a consideração dos “miseráveis” e, ao dizê-

lo, o sujeito põe em movimento vozes silenciadas historicamente,

aquelas às quais foram negadas as condições de produção e circula-

ção dos seus discursos, aquelas que não puderam aparecer em outros

contextos, aquelas que foram caladas e reprimidas, mas que, ainda

assim, continuaram a inscrever sentidos sobre o equívoco e a falha

“do país mais injusto do mundo”.

O texto “O ódio de classe da burguesia brasileira”, do mesmo

autor, foi publicado no site da Agência Carta Maior e ganhou desta-

que no mesmo período, levando a declaração do senador para a rede

eletrônica, suporte que propicia a emergência da navegação (RO-

MÃO, 2006) e de outros modos de produzir e fazer circular sentidos,

ou seja, afetados pela velocidade na disseminação dos dizeres. Vale

registrar que uma declaração em uma palestra produziu sentidos

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sobre o racismo, que deslocaram-se para um texto midiático, para um

cartaz e, depois, para outro texto jornalístico e mais outros, como

veremos mais adiante. Em todo esse percurso, novas redes de memó-

ria foram sendo acessadas, mobilizadas, deslocadas, rompidas e sus-

tentadas, e essa tessitura de vozes enoveladas no entremeio de

regiões de memória, desfiadas dentro de contextos reclamadores de

outros contextos e pespontadas por sobre outras vozes já-ditas, ins-

creve mais do que um simples depoimento sobre o racismo, mas um

modo de estar na ordem da língua falando desse tema; assim, temos

movimentos de historicidade que marcam o quanto é perigoso falar

sobre racismo em nosso país, de miscigenação étnica tão rica e de

democracia tão recente (e ainda por consolidar). Perigoso, sim, por-

que pelo discurso dominante são cristalizadas várias formas de expli-

car o conceito de raça, muitas vezes mobilizadas para produzir o

consenso do efeito de eliminação do outro, do diferente e do que

resiste; talvez por isso, falar em “raça” cause polêmica e desconforto

entre nós. E se os sentidos estabilizados para raça movem tantos

dizeres na mídia e fora dela, é porque a suposta igualdade entre as

diferentes etnias não está garantida e assegurada na vida de milhares

de indígenas e negros, fazendo falar a democracia racial como uma

grande ilusão entre nós; melhor dizendo, é porque existe muita desi-

gualdade, preconceito, violência e injustiça por dizer e significar.

O senador Jorge Bornhausen é das pessoas mais repulsivas da burguesia brasileira. Banqueiro, direitista, adepto das ditaduras militares, do governo Collor, do governo FHC, do governo Bush, revela agora todo o seu racismo e seu ódio ao povo brasileiro com essa frase, que saiu do fundo da sua alma – recheada de lucros bancários e ressentimentos. Repulsivo, não por ser loiro, proveniente de uma região do Brasil em que setores das classes dominantes se consideram de uma raça superior, mas por ser racista e odiar o povo brasileiro. Ele toma o

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embate atual como um embate contra o povo – que ele significativamente trata de “raça”. Ele merece processo por discriminação, embora no seu meio – de fascistas e banqueiros – sabe-se que é usual referir-se ao povo dessa maneira – são “negros”, “pobres”, “sujos”, “brutos”, - em suma, desprezíveis para essa casa grande da política brasileira que é a direita – pefelista e tucana -, que se lambuza com a crise atual, quer derrotar a esquerda por 30 anos, sob o apodo de “essa raça”. (MUNDO PELO AVESSO – O ó-dio de classe da burguesia brasileira – Emir Sa-der, http://agenciacartamaior.uol.com.br, acesso em 09/11/2006)

O sujeito aqui, ao escrever sobre o mesmo depoimento, inscreve

outro discurso, agora marcando com mais coloração os efeitos de

indignação e revolta. O uso da descrição intensifica um modo de

denominar e definir o senador como uma das “pessoas mais repulsi-

vas da burguesia brasileira. Banqueiro, direitista, adepto das ditadu-

ras militares, do governo Collor, do governo FHC, do governo

Bush”. Além disso, ele é narrado como dono de “racismo e ódio ao

povo brasileiro”, cuja alma está “recheada de lucros bancários e res-

sentimentos. Repulsivo, não por ser loiro, proveniente de uma região

do Brasil em que setores das classes dominantes se consideram de

uma raça superior, mas por ser racista e odiar o povo brasileiro.”

Nesse recorte, encontramos a filiação do senador a certos modos de

estar na e de fazer política, aqui ligados diversas formas de violência

e banimento dos direitos civis. Ligá-lo à “ditadura”, a “Collor” e a

“Bush” instala uma identidade da voz do senador com práticas de

controle e eliminação do diferente, de tortura e de ilegítimas formas

de poder. Tal efeito também está marcado na formulação de que ele é

representante das “classes dominantes que se consideram uma raça

superior”. Vale aqui anotar que, para estar na linguagem, o sujeito

desse discurso recorre a inscrição de redes de memória, atualizando-

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as, deslocando sentidos de um nome próprio para outro e articulando

tais redes de modo a promover simetrias entre figuras conhecidas no

cenário nacional e internacional e o senador. Marca-se, com isso, um

lugar em que há um “embate contra o povo – que ele significativa-

mente trata de “raça”. Ele merece processo por discriminação, embo-

ra no seu meio – de fascistas e banqueiros – sabe-se que é usual

referir-se ao povo dessa maneira – são “negros”, “pobres”, “sujos”,

“brutos”, - em suma, desprezíveis para essa casa grande da política

brasileira que é a direita – pefelista e tucana -, que se lambuza com a

crise atual, quer derrotar a esquerda por 30 anos, sob o apodo de

“essa raça”.

As palavras acima põem em discurso o confronto de classes so-

ciais (e interesses), marcando como poderes, saberes e dizeres são

distribuídos de maneira desigual no país, ou seja, conferindo a pou-

cos o acesso à casa-grande e mantendo a maioria assenzalada. Quan-

do atribui ao depoimento do senador o lugar da elite branca e

banqueira, o sujeito coloca-se em outra posição, a saber, aquela em

que estão outras vozes, negros, pobres e não-banqueiros, para, desse

lugar, desnaturalizar o que parece evidente e espelhar o dito alheio,

desenhando uma interpretação em que ecoa efeitos de redes de me-

mória silenciadas. Diz-se diferente e distante do lugar do banqueiro,

instalando o litígio discursivo. Nomear o modo como a elite histori-

camente designou o povo, colocar a nu as formas de discriminação

que os usos sociais dados ao significante “raça” já inscreveram e

ainda inscrevem, rastrear os fios dialógicos do que é ser direita e

esquerda no país e relacionar tais noções com as formas de inscrição

do/no político são efeitos de uma resposta. Resposta com efeito de

indignação diante do significado da palavra dita pela autoridade polí-

tica do país, que escava os implícitos de seu uso, interpreta as repre-

sentações ideológicas em dis-curso, questiona o modo como a

linguagem é tomada, desveste de aceitação a ordem naturalizada pelo

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discurso das imposições e dos preconceitos. Resposta que também

fala, em seu avesso, pelo que tantas vozes silenciadas não puderam e

ainda não podem falar, pelos que foram mortos com a palavra presa

na garganta, pelos que foram falados pela classe dominante sem nun-

ca alcançarem o lugar da autoria de seus próprios ditos; resposta que,

por tudo isso, incomodou tanto e desencadeou outros movimentos de

discursos, fazendo, agora, deslizar sentidos, manifestos na ordem da

mídia, para o campo jurídico, outro poderoso lugar de legitimação

dos poderes. A sentença do juiz, condenando o escritor e professor

universitário por calúnia e divulgada no início de novembro de 2006,

teve alguns de seus enunciados circulando dentro de um abaixo-

assinado público disponibilizado na internet. Esse cruzamento de

vozes no documento abaixo nos permite inferir, de início, o caráter

polifônico, heterogêneo e conflituosamente dialógico do mesmo, em

que são manifestam duas formações discursivas, rachadas e cindidas

por vários sentidos.

A sentença do juiz Rodrigo César Muller Valente, da 22ª Vara Criminal de São Paulo, que condena o professor Emir Sader por injúria no processo movido pelo senador Jorge Bornhausen (PFL-SC), é um despropósito: transforma o agressor em vítima e o defensor dos agredidos em réu.

O senador moveu processo judicial por injúria, calúnia e difamação em virtude de artigo publicado no site Carta Maior , no qual Emir Sader reagiu às declarações em que Bornhausen se referiu ao PT como uma "raça que deve ficar extinta por 30 anos". Na sua sentença, o juiz condena o sociólogo "à pena de um ano de detenção, em regime inicial aberto, substituída (...) por pena restritiva de direitos, consistente em prestação de serviços à comunidade ou entidade pública, pelo mesmo prazo de um ano, em jornadas semanais não inferiores a oito

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horas, a ser individualizada em posterior fase de execução". O juiz ainda determina: “(...) considerando que o querelante valeu-se da condição de professor de universidade pública deste Estado para praticar o crime, como expressamente faz constar no texto publicado, inequivocamente violou dever para com a Administração Pública, motivo pelo qual aplico como efeito secundário da sentença a perda do cargo ou função pública e determino a comunicação ao respectivo órgão público em que estiver lotado e condenado, ao trânsito em julgado”. Numa total inversão de valores, o que se quer com uma condenação como essa é impedir o direito de livre-expressão, numa ação que visa intimidar e criminalizar o pensamento crítico. É também uma ameaça à autonomia universitária que assegura que essa instituição é um espaço público de livre pensamento. Ao impor a pena de prisão e a perda do emprego conquistado por concurso público, é um recado a todos os que não se silenciam diante das injustiças. Nós, abaixo-assinados, manifestamos nosso mais veemente repúdio. (Os que desejarem assinar o manifesto podem fazê-lo através do endereço eletônico: www.petitiononline.com/emir /petition.html)

O litígio posto em discurso pela voz do senador versus a do inte-

lectual e marcado pelo contraponto entre o espaço da mídia e o espa-

ço da rua, agora materializa, na ordem da língua, uma outra

oposição: a autoridade da posição de juiz, voz que iconiza o lugar da

Lei, e a de outras vozes que aderiram ao abaixo-assinado e que são

notórias nas suas áreas de atuação no campo da universidade, religi-

ão, pesquisa científica, movimentos sociais etc do país e fora dele.

Exemplo disso é o recorte abaixo:

O manifesto que assinei em favor do Sader poderia ser assinado por qualquer brasileiro, de qualquer posição política, pois é, antes de mais

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nada, contra um julgamento absurdo, e uma justiça absurda ameaça todo o mundo. (Luis Fernando Veríssimo, O Estado de S. Paulo, 09/11/06)

Primeiramente é importante interpretar porque o abaixo-

assinado é o portador de texto escolhido pelos autores, visto que o

efeito de inconformismo bem poderia ser manifesto em várias cartas

individuais ao juiz, por exemplo. Considera-se que essa “escolha” já

é um modo de produzir sentidos, visto que, como sabemos, o abaixo-

assinado enovela várias vozes em um documento coletivo de reivin-

dicação, organizado por um grupo diante de uma decisão que se quer

denunciar arbitrária. Por ser a voz de um grupo e um documento

coletivo, ele discursiviza uma força e inscreve um imaginário de

poder. No caso, poder capaz de enfrentar um documento oficial,

instalando uma resistência contra a evidência do sentido ideológico

da condenação e apropriando-se dos sentidos de liberdade e do seu

campo semântico oponente, a censura.

Ao marcar que o discurso do outro tenta “impedir o direito de

livre-expressão, numa ação que visa intimidar e criminalizar o pen-

samento crítico. É também uma ameaça à autonomia universitária

que assegura que essa instituição é um espaço público de livre pen-

samento. Ao impor a pena de prisão e a perda do emprego conquis-

tado por concurso público, é um recado a todos os que não se

silenciam diante das injustiças.”, o sujeito movimenta sentidos de

perigo em relação à liberdade. “Livre-expressão, pensamento crítico,

autonomia universitária, livre pensamento” são marcas lingüísticas

de inscrição do valor da liberdade e de indignação diante da censura,

ou seja, inscrevem tanto o desejo da primeira quanto a repulsa pela

última. O perigo aparece marcado no modo de nomear os verbos

indicativos de ações relacionadas ao discurso do outro, quais sejam,

“impedir, intimidar, criminalizar, impor”, e, nesse caso, tal funcio-

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namento implica a atualização de relações de poder já apresentadas

na primeira sessão desse trabalho e sentidos já ditos sobre a voz que

teria legitimidade e pode para autorizar a circulação de dizeres sobre

“raça” e sobre os acessos e, no olho da contradição, quais outras

vozes não poderiam ocupar esse lugar. Enfim, sobre o modo como a

historicidade a respeito do uso da lei e dos sentidos de raça já signifi-

cou formas de repressão, controle e silenciamento. As formulações

“é um recado a todos os que não se silenciam diante das injustiças” e

“uma justiça absurda ameaça todo o mundo” reforça esse efeito de

ameaça e perigo em relação a um “todos” que pode ser qualquer um,

já que o recado é dirigido a todos, incluindo o leitor do abaixo-

assinado na rede eletrônica. Agora, não é a “todos” igualmente que a

decisão afeta, ameaça e atinge, mas a um determinado tipo de sujei-

to-leitor, a saber, aquele que tem acesso à reflexão sobre sentidos de

liberdade e censura, que duvida da evidência do sentido de “raça”,

que está na internet, que conhece a página eletrônica da Carta Maior

(nascida pós Fórum Social Mundial, o que também implica um inter-

discurso), que acompanhou, ainda que em parte, o litígio entre as

vozes do senador e do intelectual, enfim aqueles “que não silenciam

diante das injustiças”. O trabalho da ideologia e do político na lin-

guagem é justamente esse: disponibilizar um lugar para o sujeito

enunciar, ancorar-se e se representar, seja promovendo o aceite ou a

ruptura de sentidos já postos em movimento em outros contextos, em

redes de memória cujos fios dialógicos fazem parecer natural um

determinado modo de dizer.

Enquanto na rede eletrônica o abaixo assinado corria a galope,

nas páginas da mídia, de novo, materializava-se a continuação do

embate com a publicação de “Zero à esquerda”, do qual se reproduz

aqui apenas um recorte:

Como intelectual, Emir Sader é um zero à esquerda. Não há registro de nada

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minimamente relevante ou inspirador no que escreve. Desde que a revolução o deixou a ver navios, seu ativismo tosco dedica-se à tarefa de atazanar jornalistas para plantar notinhas na imprensa burguesa que despreza. (Fernando de Barros e Silva, Folha de S. Paulo, 06 de novembro de 2006, Opinião)

Para interpretar, é preciso ir além do literal, pois as palavras não

estão em estado de dicionário e são empregadas a partir de relações

sociais e históricas, que determinam os seus usos. Ser um zero à es-

querda, dito na aula de matemática implica a consideração de não há

valor nenhum na posição que o zero ocupa, isto é, por ser zero e estar

à esquerda, não é passível de modificar a ordem numérica nem afetar

o resultado da operação. No senso comum, a expressão, muito corri-

queira na oralidade, também inscreve sentidos de: pouco valor, não

alterar nem valer nada, pouca ou nenhuma diferença, algo que não se

deve levar em conta, posto que não conta ou conta pouco. Lida na

literalidade, essa mesma expressão poderia nos fazer colar esses sen-

tidos, já ditos e repetidos, ao recorte acima, até porque o autor afirma

que “como intelectual, Emir Sader é um zero à esquerda. Não há

registro de nada minimamente relevante ou inspirador no que escre-

ve.”; assim, o efeito de inutilidade estaria colado à pessoa e ao traba-

lho de Emir Sader, reforçando a ineficácia de sua obra, trajetória

teórica, vida acadêmica, escritos etc. Mas, considerando que não é

apenas o dito que significa, que todo dizer silencia (ORLANDI,

1997) e que a espessura do silêncio instala tanto ou mais sentidos que

a das palavras, inferimos que não apenas Sader é falado como um

zero à esquerda, mas a própria esquerda o é. A polissemia da palavra

“esquerda” nos permite ler implícitos, que deslocam os sentidos de

inutilidade do intelectual para o campo da luta política, pois, segundo

o recorte, “desde que a revolução o deixou a ver navios, seu ativismo

tosco dedica-se à tarefa de atazanar jornalistas para plantar notinhas

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na imprensa burguesa que despreza”. Ao inscrever a “revolução”, o

sujeito marca que ela deixou Emir a ver navios, ou seja, abandonado,

sendo assim, “revolução” é página virada, não apenas para Emir, mas

para todos; assim, mobiliza em seu discurso uma expressão popular

muito repetida e de suposta sabedoria, reforçando o consenso de que

ficar a ver navios é ficar parado, sozinho, abandonado, enfim, em um

estado de deserção, nesse caso, da causa revolucionária. O signifi-

cante Emir pode ser substituído por esquerda em um jogo metafórico

de empréstimos e deslocamentos dos sentidos de um para outro. Dia

seguinte, tal enunciado recebeu resposta de um leitor no painel desti-

nado à escuta de outras vozes que não aquelas que circulam oficial-

mente no jornal e, de novo, pôs em movimento outro desdobramento

do confronto discursivo iniciado com a declaração do senador.

O jornalista Fernando de Barros e Silva mostra que a arrogância de alguns jornalistas não tem limites (Zero à esquerda, Opinião, 6/11). Quem lhe conferiu competência para avaliar a produção intelectual do professor Emir Sader? Existem órgãos respeitados pela comunidade científica brasileira, como o CNPq, que avaliam de forma diferente, positivamente, a produção intelectual do professor Emir -produção que inclui centenas de artigos, dezenas de participações em bancas de mestrado e de doutorado e orientações de alunos de pós-graduação. Trata-se de um dos mais respeitados intelectuais brasileiros na área de ciência política. MARCO AURELIO PERES, professor-doutor em saúde pública na Universidade Federal de Santa Catarina (Sader, Painel do leitor. Folha de S. Paulo, 07/11/2006)

A voz do professor-doutor inscreve uma outra posição discursi-

va, qual seja, aquela em que o imaginário de prestígio científico está

posto, em que o fazer científico é compartilhado e tem autoridade

para ser medido e em que nomeia um órgão oficial capaz de avaliar a

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produção científica no país, (“órgãos respeitados pela comunidade

científica brasileira, como o CNPq”); por fim, em que é sentenciado

o desnudamento da incompetência e da arrogância do jornalista, nar-

radas como “sem limites”. Movendo outras redes de memória, pes-

pontando outros fios já ditos, o sujeito cita a sigla que, para ele, na

condição de pesquisador, é muito conhecida – CNPQ –, creditando

ao órgão a confiabilidade e efeito de respeito. Como toda sigla, ela

reclama o acesso ao arquivo e à memória sobre como se faz ciência

no país, quais são os indicadores de produtividade, como estão dis-

postas as linhas de financiamento, o que é o curriculum lattes etc.

Dessa forma, o sujeito coloca-se na posição contrária a do jornalista,

não apenas por discordar dele, mas por inscrever sentidos a partir de

outras redes de filiação dos sentidos.

Conclusões

No percurso desse artigo, buscou-se compreender como os sen-

tidos deslizam de diferentes campos, promovendo empréstimos, des-

locamentos e rupturas. De um depoimento em uma palestra para uma

textualização jornalística, para um cartaz anônimo exposto na rua,

em seguida, para uma outra textualização jornalística, para uma ação

judicial, para um abaixo-assinado e, depois, para um depoimento na

imprensa, para um artigo de opinião e, por fim, para uma carta de

leitor. Da ordem da mídia, os sentidos escorreram para o jurídico e o

científico, marcando de vários modos o trabalho do político desdo-

brando-se sobre si mesmo. Sentidos sobre “raça” que se deslocaram

para outros, ora fazendo irromper as noções de direita e esquerda, ora

de liberdade e censura, ora de incompetência e produção científica;

sentidos de confrontação e embate, cuja regularidade marca o próprio

país, tão injusto na distribuição dos acessos e poderes e tão contradi-

tório. Os movimentos interpretados até aqui dão conta, em parte, de

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sinalizar dois horizontes: primeiro, a mídia alimenta-se da tagarelice

que ela mesma cria, promovendo a emergência de vozes que se des-

locam para outros lugares e são retomadas permanentemente até

nas/pelas páginas da própria mídia; segundo, se há tanta tensão entre

as formações discursivas apresentadas e se tantas redes de memória

são colocadas em rotas de tensão, é porque os sentidos sobre poder,

“raça” e classe estão em disputa e em jogo, tensionados pelo modo

como a ideologia interpela os sujeitos, sempre de maneira desigual.

Referências bibliográficas

COURTINE, J. J. “O chapéu de Clémentis. Observações sobre a memória e o esquecimento na enunciação do discurso político”. In: F. Indursky. e M. L. C. Ferreira (Org.). Os múltiplos territó-rios da Análise do Discurso. Porto Alegre: Editora Sagra Luz-zatto, 1999.

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ORLANDI, E. P. Terra à vista: discurso do confronto velho e novo mundo. Campinas: Cortez Editora & Editora da Unicamp, 1990.

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Da concomitância à convergência sintática: bases para uma análise da relação entre

semântica e sintaxe Luiz Francisco Dias Bruna Karla Pereira

(UFMG)

1. Apresentação

De modo panorâmico, apresentaremos, na morfologia e na sin-

taxe, diferentes fenômenos em que duas categorias ocorrem de modo

concomitante no mesmo ponto na cadeia orgânica do vocábulo ou da

sentença. Para isso, compreenderemos concomitância como um fe-

nômeno geral composto de diferentes graus. Por exemplo, no âmbito

da morfologia, o morfema cumulativo parece apresentar um grau

máximo de concomitância, porque convergem, em um único morfe-

ma, categorias de tempo e de pessoa, sem possibilidade de desmem-

bramento. Paralelamente, no âmbito da sintaxe, a convergência

sintática parece se situar numa escala de concomitância em grau

máximo, pois ampara a projeção, num único SN, dos lugares sintáti-

cos de sujeito e objeto direto. Neste estudo, veremos, além da relação

entre os dois conceitos acima, outros fenômenos sintáticos e morfo-

lógicos que apresentam graus inferiores de concomitância.

2. A concomitância na Morfologia

Na primeira parte desta seção (2.1.1), apresentamos um resumo

das proposições feitas por Gonçalves (2003) quanto à formação de

palavras como “tristemunho” e “politicanagem”. Para o autor, a for-

mação destas palavras não se dá por composição, mas por um pro-

cesso “não-concatenativo”, tendo em vista que a sucessão linear das

bases passa por um rompimento, proporcionando sobreposições.

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Segundo ele, esse fenômeno – denominado blends lexicais – não é

arbitrário, mas regido por princípios.

Por sua vez, na segunda parte desta seção (2.1.2), mostraremos

que a concepção sobre blends lexicais, assim como é abordada por

Gonçalves, apresenta certo grau de concomitância entre duas se-

qüências lingüísticas, visto sob um enfoque lexical. No entanto, não

alcança o grau de concomitância a que está sujeito o morfema cumu-

lativo ou o fenômeno da convergência na sintaxe, da forma como a

concebemos neste estudo.

Em seguida, na terceira parte desta seção (2.2), mostraremos

como a noção de concomitância aparece em conceitos clássicos da

morfologia, sendo que o conceito de morfema cumulativo parece

apresentar grau máximo no âmbito dos estudos morfológicos. Por

fim, na quarta parte desta seção (2.3), apresentaremos, resumidamen-

te, em uma escala de concomitância, como tais fenômenos podem

estar distribuídos. 2.1.1) Blends lexicais versus composição por justaposição e por a-glutinação

Também conhecido como “palavra-valise”, “cruzamento lexi-

cal” e “mistura” (ibid., p. 149-50), “o blend lexical consiste na jun-

ção de dois vocábulos, sendo que o segundo é utilizado para

completar parte do primeiro” (LAUBSTEIN, apud GONÇALVES,

op. cit., p. 150). Na palavra “portunhol”, por exemplo, “a sílaba tôni-

ca de ‘espanhol’ se alinha à direita das duas átonas de ‘português’

para finalizar a construção cruzada.” (GONÇALVES, op. cit., p.

150).

Assim sendo, o autor diferencia o processo de formação de

blends do processo de formação de palavras compostas:

blends diferem de compostos por serem caracterizados pela interseção de bases (e não pelo encadeamento). A composição preserva a ordem linear dos elementos formadores, de

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modo que a segunda palavra se inicia exatamente no ponto em que a primeira termina, como em ‘baba-ovo’ (“bajulador”), mesmo quando um elemento é apagado por crase (‘aguardente’), elisão (‘planalto’) ou haplologia (‘dedurar’), a exemplo do que acontece nos compostos aglutinados. Essa sucessão linear estrita nunca é preservada no blend lexical (doravante BL), uma vez que as bases são literalmente fundidas, havendo, em decorrência, perda de material fônico (ibid., p. 150-1).

De acordo com o autor, exemplos como “matel”, “apertamen-

to”, “cansástico”, “gayroto”, “chafé” e “tristemunho” mostram que

“no BL, a combinação de palavras provoca uma ruptura na ordem linear estrita por meio de um overlapping, que leva a uma correspondência de um-para-muitos entre formas de base e forma cruzada. Como resultado uma das bases é realizada simultaneamente com uma parte da outra” (ibid., p. 151).

Em “tristemunho”, por exemplo, a partícula “ste” apresenta re-

lação de correspondência tanto com a base “triste”, quanto com a

base “testemunho”. “tristemunho” exemplifica então um dos dois

padrões de blends lexicais existentes no português do Brasil.

Neste padrão, ainda segundo Gonçalves, as palavras morfológi-

cas que constituem o BL apresentam algum tipo de semelhança fôni-

ca. Outros exemplos são: “sacolé” e “politicanagem”. Estes

vocábulos apresentam uma sílaba que é comum a cada uma de suas

bases formadoras, em “sacolé”, esta sílaba é “co” e, em “politicana-

gem”, esta sílaba é “ca”. No primeiro caso, “Em decorrência de ‘co’

ser átona final em ‘saco’, o BL preservará o acento lexical de ‘pico-

lé’ fazendo com que essa forma funcione como (...) cabeça lexical e

seja responsável pela pauta acentual da nova formação” (ibid., p.

153). Do mesmo modo, no segundo caso, “a presença de uma sílaba

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comum (‘ca’) determina o ponto de quebra (...) P2, a cabeça (núcleo

da formação), será ‘sacanagem’, que levará seu acento lexical para a

nova palavra” (ibid., p. 153).

Por sua vez, no segundo padrão, as palavras que formam o

blend são diferentes do ponto-de-vista segmental. É o caso de

“showmício”, “portunhol” e “cariúcho”. Nesses casos, a quebra é

feita nas tônicas.

Portanto, segundo Gonçalves (ibid., p. 153), “o que segue ou o

que precede o ponto de quebra nem sempre é um constituinte morfo-

lógico, fazendo com que o BL seja (...) distinto da composição, cujo

encadeamento preserva a integridade lexical das bases, mesmo que

um processo fonológico modifique uma delas”. Outra diferença cru-

cial entre BL e composição é que “nos compostos regulares, cada um

dos formativos projeta sua própria palavra prosódica (PWd), enquan-

to nos blends os dois formativos levam a uma só PWd” (ibid., p.

153). Por exemplo, ‘policanagem’, uma palavra morfológica com-

plexa (MWd*), apesar de ser constituída por duas palavras morfoló-

gicas (MWds), possui apenas uma palavra prosódica (PWd). Ao

contrário, ‘baba-ovo’ não só é constituída por duas MWds, como

também por duas PWds.

Em suma, o BL é um processo de formação de palavras que a-

cessa informações fonológicas, como a posição do acento e o grau de

semelhança das bases. Além disso, deve ser visto “como uma fusão

que leva à mistura não-linear de bases, o que faz com que blends se

diferenciem de compostos, cuja ligação sempre se dá por encadea-

mento, seja ele por justaposição ou por aglutinação.” (ibid., p. 154).

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2.1.2) Os blends lexicais e a noção de concomitância

O reconhecimento dessa duplicidade vocabular, constituindo

uma só palavra, ganha melhores contornos a partir dos seguintes

pontos, que são axiais no estudo de Gonçalves:

No conceito de blends como “interseção” ou “junção” de vocá-

bulos;

Na diferenciação entre composição e blends. Assim, por um la-

do, os blends resultam de uma junção “não-concatenativa” de vocá-

bulos que, “sobrepostos”, revelam uma “simultaneamente” (ibid., p.

151) de palavras morfológicas em uma única palavra complexa. No

lado oposto, este processo difere da composição, que consiste em um

“encadeamento”, em uma “concatenatividade”, de palavras na “line-

aridade” (ibid., p. 150) da palavra composta;

No cruzamento entre as formas-base, há uma coincidência, ou

um overlapping de dois vocábulos em um único segmento. Tal coin-

cidência é designada “ambimorfemia” (ibid., p. 164), capaz de man-

ter a identidade das palavras formadoras do complexo.

A consideração desses eixos nos permite afirmar que, no pro-

cesso de formação da palavra ‘sacolé’, convergem, em ‘co’, as pala-

vras ‘saco’ e ‘picolé’. Trata-se, portanto, de uma concomitância de

dois vocábulos em uma única palavra complexa. Esta concomitância,

por sua vez, ocorre porque segmentos da palavra complexa, como

‘co’, convocam, de modo simultâneo, as duas bases lexicais que se

fundem no blend.

Assim, comparando o blend e os processos de composição por

justaposição ou por aglutinação, aquele ocupa um lugar na escala de

concomitância mais alto que estes. Isto se dá porque os vocábulos

formadores da aglutinação ou da composição são identificados inte-

gralmente na linearidade do composto, conforme mostra o esquema

abaixo:

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Por sua vez, no blend, o vocábulo complexo é constituído por

segmentos ambimorfêmicos, nos quais se sobrepõem as duas bases

lexicais que o formam. Sendo assim, trata-se de um processo não-

concatenativo, diferente dos compostos tradicionais. Entretanto,

mesmo que os blends apresentem um alto grau de concomitância,

eles não alcançam o limite máximo na escala de concomitância. Isto

se dá porque os vocábulos formadores do blend, mesmo apresentan-

do interseções entre si, podem ser desmembrados do blend e recupe-

rados na sua integridade. O esquema abaixo ilustra esta idéia:

Porém, é justificável que na formação de blends lexicais haja

possibilidade de desmembramento, porque isso significa que a iden-

tidade das bases foi mantida. Além disso, é justificável que não haja

uma sobreposição total das bases, isto é, que haja apenas uma inter-

seção ambimorfêmica. Do contrário, não seria possível produzir uma

palavra complexa, porque, enquanto a identidade de uma base seria

totalmente mantida, a identidade de outra seria completamente apa-

gada. Por isso, na formação de blends, não é esperado que haja uma

convergência total de categorias em uma única forma lexical, tal

como na convergência dos lugares sintáticos, como veremos adiante.

co

saco

sacolé saco

picolé

plano alto planalto

picolé

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2.1.3) A concomitância presente em conceitos clássicos da morfolo-gia

Na seção anterior, vimos que conceitos tradicionais como os de

composição por justaposição e por aglutinação já demonstravam uma

percepção da simultaneidade com a qual as categorias lingüísticas

podem se apresentar. Nesta seção, veremos que os estudos morfoló-

gicos perceberam o fenômeno da concomitância em outros conceitos,

como na derivação prefixal e sufixal, na derivação parassintética, na

neutralização e no morfema cumulativo. Nesses conceitos, podemos

observar graus diversos de concomitância.

Assim, em palavras como “deslealdade, infelizmente”, reconhe-

ce-se a ocorrência simultânea de um prefixo e de um sufixo na for-

mação delas. Neste caso, a ocorrência de um dos afixos não

determina necessariamente a ocorrência de outro; por exemplo, são

possíveis as formas livres “desleal”, “lealdade”, “infeliz” e “feliz-

mente”. Por sua vez, na derivação parassintética, a ocorrência de um

dos afixos determina necessariamente a ocorrência de outro. Por

exemplo, das palavras “entardecer, esfarelar”, não se pode extrair

como formas livres “*entarde”, “*tardecer”, “*farelar” ou “*esfarel-”

(KOCH & SILVA, 1983, p. 32). A composição, bem como os pro-

cessos de derivação sufixal e prefixal e de derivação parassintética,

são casos, que, no contínuo, estão mais próximos do baixo grau de

concomitância.

Ainda considerando conceitos clássicos da morfologia, obser-

vamos que a percepção do fenômeno da concomitância, agora, po-

rém, com graus mais altos, aparece, respectivamente, nas noções de

“neutralização” e de “morfema cumulativo” (ibid., p. 22-3).

O primeiro conceito admite a idéia segundo a qual uma mesma

forma é válida para pessoas ou para tempos diferentes. Por exemplo,

em “cantava”, o morfema zero (Ø) pode se referir tanto à primeira,

quanto à terceira pessoa do singular. Por sua vez, em “cantaram”, o

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morfema flexional aditivo “-ra” pode se referir tanto ao pretérito

perfeito quanto ao mais que perfeito do indicativo.

Entretanto, nestes casos, a neutralização pode ser desfeita quan-

do tais verbos são inseridos em uma textualidade, como em “Eu can-

tava”, “O pássaro cantava”, “As crianças cantaram durante a

cerimônia” e “A criança cantara antes de o pai chegar”. Por isso,

trata-se de uma concomitância que não atinge o grau máximo, tendo

em vista que essa simultaneidade por ser desfeita na textualidade. O

seguinte esquema pretende ilustrar estas afirmações:

Por sua vez, o conceito de morfema cumulativo admite a idéia

de que há uma acumulação, em um único morfema, de duas catego-

rias, tais como modo e tempo ou pessoa e número. Assim, em “amá-

ramos, bebêramos e partíramos, por exemplo, nos segmentos /-ra/ e

/-mos/, a indicação de modo se acumula com a de tempo e a de nú-

mero com a de pessoa” (KOCH & SILVA, 1983, p. 23). Neste caso,

diferentemente da neutralização, não é possível desfazer esta dupli-

cidade constitutiva do morfema. Em todas as ocorrências de tais

morfemas, independentemente da textualidade em que se insere o

vocábulo, estarão presentes, de modo condensado, duas categorias:

em “-ra”, modo indicativo e tempo pretérito mais que perfeito e, em

“-mos”, a primeira pessoa e o plural.

“-ra”

Pret.Perf. Pret. + que Perf.

As crianças cantaram durante a cerimônia realizada ontem.

A criança cantara antes de o pai chegar.

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Portanto, o morfema cumulativo não se desmembra para indicar

separadamente as duas categorias que ele acumula. Por isso, este

morfema parece alcançar o grau máximo de concomitância em uma

escala morfológica. Nesse sentido, seu grau de concomitância é mai-

or que o da neutralização, que pode ser desfeita.

A escala proposta a seguir é apenas uma esquematização que

objetiva explicitar os graus de concomitância que acabamos de abor-

dar.

É importante ressaltar que não se trata de uma determinação e-

xata dos graus de concomitância apresentados nas análises dos fe-

nômenos. Ao contrário, trata-se apenas de uma projeção que se pode

ter, quando comparamos estes fenômenos, tendo como lentes de

análise a simultaneidade de categorias lingüísticas.

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3. A concomitância na Sintaxe

Nesta seção, apresentamos, primeiramente, um resumo das pro-

posições feitas em Seiler (1975), no que se refere ao que o autor de-

signa princípio de concomitância. Posteriormente, mostraremos em

que dimensões de sua análise o conceito de concomitância pode se

aproximar ou se afastar daquilo que entendemos por convergência.

Em seqüência, mostraremos as razões que nos levam a compreender

a convergência como situada no grau máximo de concomitância em

sintaxe. Finalmente, vamos projetar cada um dos fenômenos analisa-

dos em uma escala de concomitância. 3.1) O princípio de concomitância

Seiler (1975) faz uma análise do comportamento sintático de

sentenças que possuem a preposição mit (com), da variante padrão

do alemão moderno. Utilizando exemplos do francês como corres-

pondente às construções em alemão, ele apresenta como ponto de

partida as sentenças:

(1a) Seymour a coupé le salami avec un couteau. (Seymour cor-

tou o salame com uma faca.)

(1b) Seymour a utilisé un couteau pour couper le salami. (Sey-

mour utilizou uma faca para cortar o salame.)

As regularidades destas construções estão vinculadas não so-

mente a questões de ordem sintática, mas também a questões de or-

dem semântica e pragmática, propõe Seiler. Segundo ele, “avec un

couteau”, em (1a), é uma predicação concomitante à predicação

principal “a coupé le salami”. Por sua vez, em (1b) a predicação

principal “a utilisé un couteau” é concomitante à predicação subordi-

nada “pour couper le salami”. O princípio de concomitância (ou

CONC), manifesta-se de três modos diferentes: o instrumental, o

comitativo e o coletivo. Vamos explorar aqui apenas o tipo instru-

mental.

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Observemos paráfrases como as seguintes (ibid., p. 180):

(2a) Max ouvre la porte avec un ciseau. (Max abre a porta com

um cinzel.)

(2b) Max utilise un ciseau pour ouvrir la porte. (Max utiliza um

cinzel para abrir a porta.)

Tais sentenças contêm uma predicação principal (PRED) mais

uma predicação concomitante (PRED’). Em (2a), ela é representada

por “avec NP” (NP=Sintagma nominal) e, em (2b), pelo verbo con-

comitante “utilise”.

Assim, há dois movimentos possíveis que mostram esta relação

entre tais sentenças. No movimento de (2a) para (2b), o V’ é escolhi-

do entre um grupo limitado de verbos pertencendo ao domínio de

“utilização”. Por sua vez, a PRED’ concomitante pode ser facultati-

vamente deslocada e se tornar uma proposição principal “utilize un

ciseau”, enquanto que PRED se torna uma proposição subordinada

“pour ouvrir la porte”.

Já no movimento de (2b) para (2a), o V’ é apagado, e o NP2 “un

ciseau” se torna um sintagma “avec NP”, que pode ser deslocado em

direção ao fim da frase. Enquanto isso, V (“ouvrir”) se torna uma

forma finita do verbo. Segundo Seiler, estas sentenças são do tipo

marcadas. Já as ocorrências seguintes ilustram o tipo não-marcado:

(3a) Avec un sourire tu obtiens plus. (Com um sorriso você ca-

tiva mais.)

(3b) Si tu souris tu obtiens plus. (Se sorrir você cativa mais.)

(3c) Parce que tu souris tu obtiens plus. (Porque sorri você cati-

va mais.)

Nesses casos, considerando o movimento de (a) para (b), o V’

pode ser extraído da raiz nominal de N2 (“sourire”) e não ser escolhi-

do entre um conjunto de verbos de “utilização”. (ibid., p. 183)

Assim sendo, de acordo com Seiler, as noções que definem o

instrumental são:

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Critério sintático: N1, sujeito da predicação principal (Maxi) é

co-referente do sujeito de PRED’ (iouvrir la porte);

Critério lexical: o engendramento de V’ pode se dar de duas

formas. Uma delas é que o verbo concomitante derivar de N2, que é

um deverbal, por exemplo, (3). Outra forma de engendramento de V’

ocorre quando N2 não possui uma raiz verbal correspondente. Nesse

caso, o V’ é escolhido em um grupo de verbos que indica utilização.

Critério semântico: a relação entre a predicação concomitante e

a predicação principal é não-marcada, se o V’ pode ser extraído de

N2. De outro modo, se V’ não pode ser extraído de N2, este verbo é

escolhido no grupo de verbos de utilização. Neste caso, a relação

entre as duas predicações é marcada, como em (2b).

Em suma, para o autor, estamos na presença de uma rede de re-

gularidades, que existem no interior dos enunciados, entre os enunci-

ados e na finalidade da comunicação (teleonomia). 3.2) Uma leitura do princípio na escala da concomitância

A seguir, destacaremos o fato de que há três dimensões no prin-

cípio de concomitância que devem ser levadas em conta para compa-

rarmos este conceito com o conceito de convergência: a primeira

dimensão é aquela que percebe a existência de duas predicações con-

comitantes na linearidade da sentença; a segunda é aquela que de-

termina o escopo da predicação concomitante e a terceira é aquela

que trata de verbos extraídos de N2 quando estes são deverbais.

No primeiro caso, o autor admite uma seqüência entre uma pre-

dicação principal (PRED) e uma predicação acessória (PRED’), o-

correndo uma paralela à outra. Na nossa perspectiva, trata-se de um

baixo grau de concomitância, pois as categorias simultâneas são i-

dentificadas na linearidade da sentença. Pode-se ilustrar esta primeira

dimensão do princípio de concomitância, com os exemplos:

(1), que são repetidos a seguir:

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(1a) Seymour a coupé le salami avec un couteau

(1b) Seymour a utilisé un couteau pour couper le salami

Entretanto, o autor destaca uma outra dimensão do princípio que

parece apresentar um grau maior de concomitância: o escopo da

PRED’. De acordo com Seiler, os sintagmas “avec NP” têm compor-

tamentos sintático e semântico diferentes de outros sintagmas prepo-

sicionais. Ele afirma que

(5) Les pêcheurs réparent leurs filets sur la plage. (Os pescado-

res consertam suas redes na praia.)

é uma frase ambígua, pois o SPrep “sur la plage” pode ser inter-

pretado como modificando o sujeito, o objeto ou o verbo, como mos-

tram, respectivamente, as seguintes paráfrases (ibid., p. 176):

(5a) Les pêcheurs sont sur la plage à reparer leurs filets. (Os

pescadores estão na praia consertando suas redes.)

(5b)Les pêcheurs réparent leurs filets qui sont sur la plage. (Os

pescadores consertam suas redes, que estão na praia.)

(5c)La réparation des filets par les pêcheurs a lieu sur la plage.

(O conserto das redes pelos pescadores dá-se na praia.)

Diferentemente, na frase seguinte:

(6) Les pêcheurs réparent leurs filets avec soin (Os pescadores

consertam suas redes com dedicação),

o sintagma “avec NP” está ligado, concomitantemente, ao sujei-

to e ao verbo principal, como mostram as seguintes paráfrases:

(6a) Les pêcheurs sont soigneux en réparant leurs filets. (Os

pescadores são dedicados ao consertar suas redes.)

a utilisé un couteau pour couper le salami

a coupé le salami

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(6b) La réparation des filets par les pêcheurs est faite avec soin.

(O concerto das redes pelos pescadores é realizado com dedicação).

De acordo com o autor, o fator que diferencia o sintagma “avec

NP” reside no fato de que os dois tipos de relação destacados nestas

últimas paráfrases co-existem em (6). A frase (6), portanto, não é

ambígua, como é a frase (5), porque “avec NP” está ligado, ao mes-

mo tempo, ao sujeito e ao verbo principal. Por isso, este sintagma

tem um comportamento diferenciado de outros sintagmas preposi-

cionais.

A partir destas observações, o autor reconhece a capacidade que

um item lexical pode ter de estar ligado a duas categorias sintáticas,

ao mesmo tempo, sem que haja necessidade de se decompor a sen-

tença para se desfazer esta duplicidade. No caso da ambigüidade,

diferentemente, há necessidade de se decompor a sentença para se

desfazer a concomitância ali presente. Com estas reflexões, portanto,

Seiler reconhece um caráter duplo constitutivo de uma categoria, que

se refere, concomitantemente, ao verbo e ao sujeito. Então, o princí-

pio de concomitância, assim concebido, estabelece certa proximidade

com um grau menos baixo de simultaneidade, embora ainda não

atinja o patamar do grau de convergência, como veremos adiante.

Nesse sentido, em (5), caso de ambigüidade, e em (6), caso de con-

comitância sem ambigüidade, as categorias concomitantes podem ser

desmembradas nas paráfrases. Este comportamento revela graus de

concomitância diferentes, mas que não alcançam o grau apresentado

pela convergência. Nela, não é possível que uma decomposição seja

avec soin

les pêcheurs

en réparant leurs filets

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capaz de desfazer a duplicidade, porque a sobreposição se dá de tal

modo que as categorias se tornam indistintas. Portanto, apesar de esta

última dimensão da concomitância, o escopo de PRED’, não apre-

sentar um grau baixo de concomitância, ela ainda não tem alcance

sobre a amálgama de categorias sintáticas, como acontece com a

convergência.

Por sua vez, uma terceira dimensão a ser levada em conta nas

reflexões do autor é a diferença entre instrumental marcado e não-

marcado, que parece não se aplicar adequadamente ao português. De

acordo com o autor, se o V’, na oração concomitante, pode ser extra-

ído de N2, trata-se de ocorrências não-marcadas. Por outro lado, se o

V’ não pode ser extraído de N2 e deve ser escolhido entre um grupo

de verbos que indicam noção de utilização, trata-se de ocorrências

marcadas. Esta diferença é o que situaria as sentenças (7) entre as

ocorrências marcadas e as sentenças (3) entre as ocorrências não

marcadas:

(7a) Max coupe le poisson avec un couteau. (Max corta o peixe

com uma faca.)

(7b) Max utilize um couteau por couper le poisson. (Max usa

uma faca para cortar o peixe.)

(3a) Avec un sourire tu obtiens plus. (Com um sorriso você ca-

tiva mais.)

(3b) Si tu souris tu obtiens plus. (Se sorrir você cativa mais.)

Entretanto, vejamos as seguintes sentenças em português:

(8a) Max faqueou o peixe.

(8b) Max cortou o peixe com a faca.

(9a) Max martelou a mesa.

(9b) Max bateu na mesa com o martelo.

Nestas sentenças, observamos que não é necessária uma pará-

frase de (8a) e de (9a) com o verbo “utilizar” ou “usar”, porque as

palavras “faca” e “martelo” possuem correspondentes verbais com o

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mesmo radical. Portanto, a diferença entre ocorrências marcadas e

não-marcadas proposta por Seiler para o alemão, e confirmada em

francês, não parece se aplicar ao português.

Apesar disto, as ocorrências (8) e (9), não reveladas pelo autor,

são um “prato cheio” para o trabalho com a concomitância, pois se

pode propor que, em “faquear”, há uma integração entre o núcleo do

predicado “cortar” e o adjunto “com a faca”. Por sua vez, em “marte-

lar”, há uma integração entre o núcleo do predicado “bater” e o ad-

junto “com o martelo”.

Pode-se propor ainda que estas ocorrências não possuam grau

baixo de uma concomitância, porque há a integração, mas também

não possuem grau alto, pois há possibilidade de desintegração. As-

sim, embora o verbo “bater” e o adjunto “com o martelo” estejam

integrados no verbo “martelar”, estas categorias podem ser desmem-

bradas, constituindo-se paráfrases como (8b). Do mesmo modo, em-

bora o verbo “cortar” e o adjunto “com a faca” estejam contidos no

verbo “faquear”, estas categorias podem ser desmembradas, constitu-

indo-se paráfrases como (9b).

Portanto, o princípio de concomitância pode ser compreendido

como uma junção decomponível de categorias. A partir de nossa

leitura de Seiler, sugerimos um desdobramento de suas reflexões

dentro do conceito de concomitância, que seria a integração do ad-

junto no verbo.

cortar com a faca

faquear

cortar

com a faca

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Assim, quando o autor aborda a constituição do princípio de

concomitância como sendo duas predicações concatenadas na linea-

ridade da sentença, alocamos esta percepção em um grau baixo de

concomitância. Por sua vez, quando o autor trabalha com o escopo

de PRED’, alocamos esta percepção em um grau médio de concomi-

tância. A partir disso, observamos casos nos quais há uma integração

de núcleo do predicado e adjunto, integração a qual alocamos em um

grau mais alto de concomitância. Vimos, entretanto, que tais ocor-

rências não alcançam o grau de concomitância atingido pela conver-

gência, porque esta é compreendida como uma sobreposição

indecomponível de categorias, enquanto nos três casos vistos há pos-

sibilidade de decomposição. 3.3) A convergência dos lugares sintáticos de sujeito e objeto direto

Vejamos as seguintes sentenças:

(10a) Houve brigas. Só não sei se houve festa.

(10b) Brigas houveram. Só não sei se houve festa.

Nessas ocorrências, critérios relativos à posição do SN e à con-

cordância seriam suficientes para determinar um único status sintáti-

co para o SN “brigas”? Uma análise baseada nesses critérios pode

nos levar a propor que em sentenças como (10a) o SN é objeto, por-

que não estabelece concordância com o verbo e porque está pospos-

to. Por sua vez, em sentenças como (10b), o SN é sujeito, porque

estabelece concordância com o verbo (embora seja condenada pelas

gramáticas normativas) e porque está anteposto.

Vejamos agora estas sentenças:

(10c) Briga houve. Só não sei se houve festa.

(10d) Houve briga. Só não sei se houve festa.

O exercício de desmembramento do status sintático de “brigas”

proposto acima perde consistência frente a (10c) e (10d). Nestas

ocorrências, o verbo e o SN estão no singular, resultando numa neu-

tralização desta diferença que, aparentemente, é nítida em (10a) e em

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(10b). Dissemos “aparentemente” porque defendemos a tese segundo

a qual a busca por uma diferenciação de lugares sintáticos em (10) é

vã. Nessa perspectiva, haveria um status sintático duplo do SN tanto

em “brigas” quanto em “briga”. Essas construções, que se apresen-

tam como mono-argumentais, poderiam abrigar um tipo de concomi-

tância com o grau mais alto estudado até então.

O nosso ponto de partida na proposição dessa tese está no con-

ceito de sujeito e de objeto. Sujeito é um lugar sintático projetado

pelas atualizações do verbo, isto é, o sujeito é um lugar de instalação

da predicação, e assim sendo, ele é o responsável pela transformação

do verbo enquanto unidade virtual (na forma infinitiva pura) em uni-

dade aglutinadora da sentença, com suas funções e significações

particularizadas. Assim sendo, sujeito e verbo estão relacionados por

uma articulação (DIAS, 2003), que é materializada quando a flexão

verbal é acionada pela instalação do lugar do sujeito. Assim sendo,

se o verbo está flexionado significa que há o lugar de sujeito na sen-

tença. Por isso, se, em (10a), por exemplo, o verbo está flexionado,

existe o lugar sintático de sujeito e o SN “brigas”, mesmo que não

estabeleça concordância com o verbo, é candidato a ocupar este lu-

gar. Por sua vez, objeto direto é um lugar sintático projetado pelo

verbo. Em (10), o verbo “haver” projeta o lugar de objeto, e, em

(10a), “brigas” é também candidato a ocupar este lugar.

Quando partimos deste ponto de vista, a análise sintática é a

mesma para todas as ocorrências em (10). Desse modo, se o SN no-

minal em todas estas sentenças é candidato a ocupar tanto o lugar de

sujeito quanto o lugar de objeto, propomos que há uma convergência

de sujeito e objeto direto neste SN. Sendo assim, não é possível des-

membrar uma sentença na qual o SN seja sujeito ou na qual seja

objeto. Por isso, trata-se de alto grau de concomitância, como se

pode ilustrar no seguinte esquema:

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Semanticamente, a concomitância pode ser explicada pelo que

denominamos “efeito de constatação”. Vejamos:

(11a) Eu vi ladrões no meu jardim

(11b) Vi ladrões no meu jardim

(12) Há ladrões no meu jardim / Havia ladrões... / Haviam la-

drões...

Consideramos que, em (11), o lugar do sujeito está claramente

configurado, seja ocupado pelo pronome em (11a), seja não ocupado

(11b). Esse lugar representa um ponto de partida na enunciação para

arrebatar o verbo da sua condição de infinitivo, constituindo a sen-

tença. Esse acionamento do verbo é marcado pela constituição de

uma base de atribuição referencial no lugar do sujeito. O pronome

“eu” se situa como ponto de partida, isto é, como base de atribuição

referencial. Na medida em que ganha finitude e constitui-se a predi-

cação, o verbo projeta o lugar de objeto (ocupado por “ladrões”). No

entanto, em (12), ocorre o que, semanticamente, estamos chamando

de efeito de constatação. Isto é, não há esse “ponto de partida”. É

como se apenas constatássemos um estado de mundo, em que enti-

dades (“ladrões”) fossem captadas em situações (“no jardim”) sem

um causador, isto é, sem que se constituísse na sentença uma base

referencial atribuidora desse estado de mundo. Por isso, lugares de

sujeito e de objeto se tornam indistintos. A oscilação na concordân-

cia, do ponto de vista semântico, advém dessa falta de “nitidez” do

lugar do sujeito, que nesse caso não se distingue do lugar do objeto

no horizonte sintagmático. 3.4) Uma escala de concomitância na Sintaxe

sujeito Objeto direto

SN

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225

Assim como a escala construída na seção sobre Morfologia, esta

também se constitui como uma esquematização que objetiva explici-

tar os graus de concomitância anteriormente propostos. Conforme

mencionamos, trata-se apenas de uma projeção possível, ao compa-

rarmos os fenômenos de concomitância estudados na Sintaxe.

4. Considerações finais

A noção de concomitância compreendida como um fenômeno

mais geral, abrangendo estes diferentes tipos de fenômenos, permite-

nos distinguir os graus em que as categorias lingüísticas podem ser

simultâneas a outras. Além disso, permite-nos estabelecer pontos de

contato e divergência entre estudos que abordam diferentes fenôme-

nos, mas com um olhar que reconhece a duplicidade constitutiva de

determinadas categorias.

O conceito de convergência demonstra duas dimensões de cons-

tituição de lugares sintáticos operando numa mesma plataforma or-

gânica, isto é, num mesmo ponto da seqüencialidade sentencial.

Queremos, portanto, investir numa análise que possa contemplar dois

planos de constituição do fato lingüístico: o plano da organicidade e

o plano do enunciável. Nesse sentido, no plano do enunciável, a base

referencial que sustenta os dois lugares sintáticos ganha uma dupla

densidade. É no plano da organicidade, por sua vez, que as duas

dimensões de constituição de lugares sintáticos se cruzam, e passam

a ser orientados para um mesmo ponto.

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Referências bibliográficas

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A Voz Média Numa Abordagem Cognitiva

Maria Claudete Lima (UFC)

Introdução

Nas gramáticas tradicionais, a categoria de voz não tem recebi-

do o tratamento científico adequado. Por vezes, adotam uma postura

semântica ingênua, de tal modo que as subdiáteses ativa, passiva e

reflexiva caminham pari passu com as noções mal elaboradas de

atividade, passividade e reflexividade, de natureza extralingüística.

Também são mal elaboradas noções básicas, como a de paciente,

agente e afetação, que as gramáticas dão como previamente conheci-

das pelo usuário. Isto sem falar na contradição de abordagens: se de

um lado, adota-se um semanticismo ingênuo, com a adoção de cate-

gorias ontológicas e fenomênicas mal assimiladas, por outro lado,

implicitamente, adota-se uma postura formalista, quando, por exem-

plo, da exemplificação das vozes.

No estruturalismo, entre nós, destacam-se as figuras de Câmara

Jr. (1977) e Macambira (1986). Estes estudiosos deram à voz um

tratamento formalista, cada um deles apresentando uma tipificação

própria. O problema é que o formalismo acabou por levar a uma

heterogeneidade de fenômenos apreendidos. Assim, para os autores,

a voz média se caracteriza pela presença de um se. Desta forma, um

verbo como adaptar-se seria medial, mas um verbo como melhorar,

cuja estrutura semântica básica é idêntica à do primeiro, uma vez que

indica mudança de estado, passa a ser considerado ativo por uma

questão excessivamente contingente, que é a ausência da forma pro-

nominal. Para ilustrarmos mais ainda, um mesmo verbo como afun-

dar(-se) pode ser ativo ou passivo, conforme a presença ou ausência

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do referido morfema, como em o navio afundou / o navio afundou-

se.

No funcionalismo, já houve um avanço no tratamento da voz,

devido à inclusão de uma noção fundamental: a de função. A voz

está inclusa na função ideacional, cujo propósito é representar o

mundo. Já não há um tratamento puramente mórfico do complexo

problema da diátese. Como a linguagem é vista como representação

do mundo, entre outras funções, no tratamento da função ideacional,

são importantes as categorias de participantes e eventos, de que trata-

remos quando abordarmos o assunto sob viés cognitivo. A voz é

vista sob um ângulo sintático-semântico, em vez de sob um prisma

mórfico (embora não haja problema nenhum em distinguir voz do

verbo, esta mórfica, e voz da oração, esta de natureza sintático-

semântica, segundo HALLIDAY, 1976). Não nos interessa aqui en-

trar em pormenor na descrição da voz sob o prisma funcionalista,

embora guarde muitas conexões com a abordagem cognitivista (cf.

NEVES, 2001). Ademais, a abordagem funcionalista leva muitos

pesquisadores a abraçar uma psicologia cognitiva de base, como

Givón (2002), que admite explicitamente que uma comunicação

humana bem codificada pode ser grosso modo dividida em dois sub-

sistemas: o sistema de representação cognitiva e os códigos comuni-

cativos.

Todavia, no tratamento funcionalista da voz, ainda persistem

ranços estruturalistas, por exemplo: a voz média é vista como deri-

vada da voz ativa/causativa, através de um processo de redução de

valência, na regra de formação de predicados (cf. DIK, 1989). Como

daremos a conhecer, este modo de apresentar a voz média não permi-

te vislumbrar suas especificidades, o que simboliza e o que retrata do

mundo externo ou interno. Este tratamento “derivacional” evoca o

transformacionalismo chomskyano de 1965 e, além disso, contradiz

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frontalmente uma das premissas do funcionalismo face ao formalis-

mo: evite transformações.

Por este motivo, não daremos guarida à abordagem funcionalis-

ta neste trabalho, uma vez que, pelo menos a nosso ver, se faz neces-

sário sentir de forma mais palpável o viés cognitivista de base. Para

nossos propósitos, elegemos aqui Pottier (1992), como autor básico,

o que implica dizer não nos vermos impedidos de citarmos para con-

frontos outros autores que julgarmos necessários.

Isto posto, eis os objetivos de nosso trabalho: (a) mostrar os

pressupostos teóricos cognitivistas subjacentes à teoria da voz em

Pottier (1992); (b) oferecer um quadro do percurso diatético em por-

tuguês, conseqüente à proposta do autor; (c) tratar da voz média em

português, sob o prisma de uma semântica geral de base cognitiva,

amplamente assumida pelo lingüista francês, se compararmos com o

primeiro trabalho do mesmo autor, em que a semântica aparecia mais

timidamente (cf. POTTIER, 1978).

1. Os pressupostos teóricos

Como não poderia deixar de ser, semelhantemente a Givón

(2002), Pottier (1992) parte de uma concepção comunicacional da

linguagem, que pressupõe duas entidades óbvias: o emissor, respon-

sável pelas intenções de dizer, relativas às manifestações lingüísticas,

e o receptor, cuja função é compreender. Estes papéis não são obvi-

amente fixos, de modo que o percurso semasiológico e o percurso

onomasiológico se alternam dialeticamente.

Mas o discurso é sempre sobre alguma coisa. Por isto se diz que

o enunciador tem um ponto de partida referencial, este indeterminado

ao extremo: odores, barulhos, lembranças, entre outros. A realidade

emerge não como uma coisa em si, como um dado bruto, mas como

uma entidade percebida para depois ser conceptualizada. Abraçar

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este ponto de vista é admitir como básica a postura dos filósofos

idealistas, como Berckley e Hume (ANDERY et al., 1988), para os

quais a realidade nos chega como um feixe de sensações que ganham

sentido na medida em que são “interpretadas” no sujeito homem.

Reconhecer isto é levar às últimas conseqüências o que muitos estu-

diosos admitem como base, mas esquecem em algum ponto do cami-

nho teórico percorrido: sem a percepção de formas organizadas, nada

seria possível, e muito menos a linguagem, porque não haveria o

decodificar. A linguagem é, pois, integrada num todo cognitivo, nu-

ma faculdade de conceptualizar e simbolizar. Encampar este para-

digma é refutar o primado da estrutura, como forma exterior ao

homem, como um mero sistema de relações externas, é refugar o

formalismo gerativista, com suas ferramentas inatistas extremadas,

que concedem grande poder à faculdade de linguagem, enquanto em

si, uma língua I, que se torna língua E por força da experiência rele-

gada ao plano secundário.

Nas palavras de Pottier (1992):

ele (o enunciador) toma consciência do seu QUERER DIZER, na medida em que ele conceptualiza (Co) sua intenção de significar. Esta organização mental deve então ser transposta para signos, semiotizada, através dos meios fornecidos por um sistema semiótico, uma língua natural (LN) no caso presente. Esta é ela própria composta de seu sistema de língua, em potência, em virtualidade, e de mecanismos de enunciação que lhe permitem as realizações discursivas. (POTTIER, 1992, p. 16)

Paradoxalmente, é o finito da forma que limita no tempo e no

espaço a extrema indeterminação da matéria. De fato, a comunicação

emerge de uma tensão entre o infinito referencial e a língua, que

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oferece um domínio vasto, porém bem definido de matérias-primas:

mecanismos gramaticais, por exemplo, embora o léxico seja o grande

problema, chegando a variar de indivíduo para indivíduo.

Apesar do caráter único da prática discursiva, necessário se faz

aludir ao que Kemmer (1993:7) denomina tipos de situação, que

“podem ser pensadas como conjuntos de contextos pragmáticos e

semânticos que são sistematicamente associados com uma forma

particular de expressão”. Entende a autora por contextos semântico-

pragmáticos, na linha de Langacker (1987), citado pela autora, não

simplesmente:

(...) "contextos do mundo real", existindo independentemente do usuário da língua; contextos situacionais incluem "informação sobre o mundo real", mas esta informação é necessariamente filtrada pelo aparelho conceptual do falante. (KEMMER, 1993, p. 7)

Para Pottier (1992), o lingüista não deve limitar-se ao estrita-

mente lingüístico, próprio do estruturalismo e do gerativismo. Seu

escopo é: (a) o mundo referencial, que põe em jogo a ativação da

memória dos participantes no intricado jogo de dizer e compreender;

(b) o conceptual, como o lugar de representação mental, que se tor-

nou independente das línguas naturais e de outros sistemas semióti-

cos, e é sede das mises en scène; (c) a língua, como saber (léxico e

gramática de competência), onde se realiza a codificação em signos e

a codificação em esquemas, ou a identificação destes, no caso da

recepção; e por fim, (d) o discurso, na dupla função de resultado

observável, após a colocação em cadeia (fr. mise en chaine), e de

ponto de partida da recepção.

Como percebemos, o autor dá relevo à perspectivação cogniti-

vista, inclusive pela terminologia usada: mise en scène, mise en

schème, mise en chaine, sendo de crucial importância, reiteramos o

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entrelace dos percursos onomasiológico e semasiológico, que envol-

vem três operações modais: querer dizer, dizer, compreender. A bem

da verdade, o autor se ancora em uma teoria da comunicação, cujo

refinamento supera aquele de Pottier (1978), uma teoria das modali-

dades, uma teoria da estrutura e funcionamento dos signos (semióti-

ca) e uma teoria de base cognitivista. Não é nosso intento entrar aqui

em cada uma dessas bases, mas, de todo modo, julgamos necessário

indicá-las, como sinalizadoras de uma síntese de estudos teóricos da

modernidade.

Ubirajara não recusa ao bravo chefe tocantim, seu terrível inimigo, o suplício, que não negaria a qualquer guerreiro valente. Ele esperava que tua ferida se fechasse de todo, para que o grande Pojucã possa, no dia do último combate, sustentar a fama de seu nome, e a glória de um varão que só foi vencido por Ubirajara. (ALENCAR, 1926, p. 49)

2. A categoria de voz

Nesse romance, Alencar trabalha, então, com a idéia da antropo-

fagia tanto física quanto cultural e lingüística. De acordo com suas

notas explicativas, o sacrifício humano era uma glória, um momento

específico do ritual reservado aos guerreiros ilustres quando estes

caíam prisioneiros. Era uma honra para o próprio prisioneiro morrer

no meio da festa guerreira e ser comido, pois tal ritual comprovava

sua força e valor. O autor diz na nota:

Duas categorias importantes, tanto na abordagem de Pottier

(1992) quanto em outras de cunho funcionalista, dizem respeito às

noções de entidade (participante, segundo KEMMER, 1993) e de

evento. Uma entidade existe no espaço e no tempo. O ponto de exis-

tência se desloca no tempo e torna-se uma linha, orientada delibera-

damente da esquerda para a direita. Está claro que nessa concepção a

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entidade e o tempo não se separam. Sendo a entidade percebida es-

pácio-temporalmente, pode-se inferir que ela será afetada ou que

desenvolverá uma atividade. Estas são as duas características básicas,

relativas às noções extralingüísticas de afetação e ação, denominadas

por Pottier (1992) de propriedades endocêntricas e exocêntricas,

respectivamente. A entidade pode igualmente entrar em relação com

o mundo "objetivo" e com o mundo subjetivo, domínio por excelên-

cia da cognição (sensações, intelecção, modalização).

Ao lado das entidades primárias, as línguas criam entidades se-

cundárias, que atribuem "comportamento" às de natureza primária, a

exemplo de:

(01) Este cachorro late.

(02) Este cachorro é mau.

(03) Este cachorro tornou-se indisciplinado.

(04) Este cachorro feriu-se na cerca.

(05) Este cachorro feriu o gato.

Nos exemplos acima, a entidade espácio-temporalmente locali-

zada é alvo de "atribuições". Ora essas "atribuições" se realizam

lingüisticamente por um lexema, como em (01) e (04); ora tais "atri-

buições" advêm de um conjunto tomado semanticamente como um

único "comportamento", como em (02) e (03). As relações semânti-

cas, que são reflexos do que se percebe no mundo referencial, mos-

tram-se distintas. No primeiro caso, por exemplo, a ação de latir é de

natureza exocêntrica, provém do cachorro. No caso (04), pelo contrá-

rio, o cachorro é afetado, o que implica dizer que a relação entre a

entidade e o comportamento é de natureza endocêntrica. O exemplo

(05) é de natureza um tanto mais complexa, pois pressupõe uma en-

tidade de onde parte a ação e outra que a recebe. Não podemos nos

deter nos detalhes extremamente pormenorizados com que Pottier

(1992, p. 94-107) descreve as chamadas áreas acontecimentais (aires

événementielles), que são cinco e constituem todo o fundamento para

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entender o mecanismo da voz. Para nós, é o bastante entendermos

que estas áreas se definem lingüisticamente como relações entre

entidades e comportamentos (tradicionalmente, entre sintagmas no-

minais e verbos, ou conjunto a partir de um verbo suporte, cf. Borba,

1996). Mas é bom deixar claro que Pottier nunca deixa de salientar o

papel da percepção, de tal modo que podemos dizer que estas rela-

ções estão no sujeito do conhecimento e não simplesmente na frase.

O que dissemos acima, embora resumidamente, é a base para

entendermos o mecanismo da diátese que Pottier (1978) coloca sob o

hiperônimo de ordenações: (a) estativa: indica permanência de um

estado; (b) evolutiva: indica modificação de um estado; (c) causativa:

exprime adição de actante como causa da evolução.

(06)

a. Eis um problema. (estativa)

b. Apareceu um problema. (evolutiva)

c. O moço criou um problema. (causativa)

Com base nessas ordenações, o autor propõe seis vozes: exis-

tencial, equativa, situativa, descritiva, possessiva, subjetiva, sobre as

quais não oferecemos os devidos detalhamentos, sob pena de digres-

são.

Todavia, faz-se mister associar a proposta de Pottier (1978,

1992) à de Croft (1994). Este autor não fala de ordenações, nem pro-

põe um esquema diatético de base cognitiva tão detalhado como o de

Pottier, mas estabelece relações entre causatividade, incoatividade e

estatividade, que evocam as três ordenações de Pottier, conforme

demonstram estes exemplos retirados de Croft (1994, p. 93):

(07) Causativa: The rock broke the window.

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(08) Incoativa: The window broke.

(09) Estativa: The windows is broken.

Croft (1994) justifica o esquema subjacente aos exemplos aci-

ma, nos seguintes termos:

os dois traços finais do ICM [modelo cognitivo idealizado] de um evento referem-se à estrutura interna de um evento. Hipotetiza-se que eventos são construtos que têm uma estrutura interna tripartite, correspondendo à seqüência "causar, tornar-se, estar/ser". (CROFT, 1994, p. 92-93)

Noutro trecho, Croft (1994) dá relevo aos aspectos cognitivos da

estrutura causal, considerando que esta: (a) é representada como

indivíduos agindo sobre indivíduos; (b) se manifesta de diferentes

maneiras entre muitos indivíduos no tempo, a exemplo de João pôs o

livro na estante/o livro ficou na estante/o livro está na estante. Neste

modo de ver as coisas, a proposta de Croft (1994) se aproxima da

proposta semântico-cognitiva de Pottier (1992), com a diferença de

que este último teceu maiores pormenores, o que é explicável no

contexto de um livro.

Uma vez exposta a categoria de voz de modo geral, passamos a

enfocar a voz média.

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3. A voz média

A voz média cabe em uma das ordenações da voz descritiva de

Potier (1978, 1992). Nesta, o predicado, que pode ser adjetival ou

verbal, é atribuído à base A. Assim, há dois tipos de descritiva. A

descritiva I, que tem predicado adjetival e a descritiva II, que tem

predicado verbal.

(10)

a. O gato é medroso(descritiva I - estativo)

b. O gato tornou-se medroso.(descritiva I - evolutivo)

c. João tornou o gato medroso/João amedrontou o gato (descri-

tiva I - causativo)

(11 )

a. O gato dorme. (descritiva II – estativo)

b. O gato adormece. (descritivo II – evolutivo)

c. O veterinário adormece o gato. (descritivo II – causativo)

Pelos exemplos acima, podemos concluir que: (a) a voz média,

incoativa na proposta de Croft (1994), corresponde à percepção do

evento como uma evolução ou uma mudança de estado; (b) sua rela-

ção com as outras vozes pode dar-se com o mesmo item lexical, co-

mo em (11b) e (11c), ou com itens lexicais diferentes, como matar/

morrer, cair/derrubar, mostrar/ver (cf. BORBA, 1996). Deste segun-

do item decorre que não é necessária uma relação de natureza formal,

uma vez que uma proposta cognitiva levada às conseqüências espe-

radas não dá como relevante a identidade ou a diferença fonética

entre itens lexicais.

Que não se interprete, todavia, o trinômio estativo-evolutivo-

causativo em termos derivacionais. Convém deixarmos claro que

cada momento ordenativo tem sua base perceptual própria, melhor

dizendo, sua forma de codificar idiossincraticamente a realidade. Por

isto, não caiamos na falácia de estudiosos de vulto, como Dik (1989),

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que postula ser a ordenação causativa a base da evolutiva, por redu-

ção de valência. Assumir esta postura é voltar às premissas formalis-

tas que os funcionalistas tanto rejeitam, pelo menos em tese. Mas o

que tem a voz média de singular que a distingue perante a causativa?

Com o fim de caracterizarmos a construção média, agrupemos

aqui os traços semânticos da voz média apontados por lingüistas de

orientação funcionalista, sendo os três últimos também apontados

por estudiosos ligados à tradição gramatical, como Maciel (1914),

Ribeiro (1899), Ribeiro (1908) e Said Ali (1964): (a) relação com

uma construção ativa/causativa; (b) função de demoção do agente,

como estratégia discursiva para isenção de responsabilidade; (c) co-

dificação de eventos espontâneos; (d) admissão de uma causa externa

não intencional ou de uma causa interna.

Quanto à função de demoção do agente, propriedade intima-

mente ligada à relação causativa/média, consideramos que há um

problema ao relacionar a média com uma ativa, mostrando que o

objeto se transforma em sujeito na média e o agente é demovido, em

pares como Maria quebrou o copo/O copo quebrou. Há especificida-

des semânticas em cada diátese que não justificam esta propalada

relação ativa/média, a que já nos referimos ao tratarmos de Pottier

(1992) e Croft (1994).

Existem igualmente construções mediais que parecem não ter

vínculo nenhum com causativas. Trata-se daquelas em que o falante

dá o evento como espontâneo, sem nenhum agente ou causa, como

em o copo quebrou por si só. Ora, sabemos que, no mundo físico,

muitos processos descritos pela voz média têm um agente ou uma

causa específica, mas o falante os apresenta de modo a relevar o pro-

cesso em si, como se o agente ou a causa não existisse. Neste caso, o

que teria sido demovido? A propósito disto, vale a pena citar Cama-

cho (2002), segundo o qual a maioria das médias teria predicados de

um só argumento, não derivado de uma construção causativa, em que

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o sujeito teria alguma qualidade própria para gerar o processo que

emanaria só dele.

Sobre este mesmo assunto, Kemmer (1993) dedica breves pági-

nas por considerar os eventos espontâneos um tipo bastante distinto

dos outros domínios médios.

Um uso comum de marcadores médios entre as línguas é em situações que designam mudanças de estado de uma entidade, mas em que nenhuma entidade agente recebe codificação. (...) eventos deste tipo serão chamados eventos espontâneos. (KEMMER, 1993,p. 142)

A autora propõe um contínuo em que haveria eventos pouco

prováveis de ser associados a um agente humano e outros que seriam

candidatos prováveis a ter tal agente. A autora explica que, para

qualquer situação envolvendo uma entidade inerte sob uma mudança,

duas possibilidades de conceptualização existem, as quais são refle-

tidas na linguagem humana. O evento pode ser tratado como gerado

por uma causa direta, ou tratado sem referência a um causador. No

primeiro caso, o causador percebido é tratado como o iniciador do

evento e a entidade afetada como seu ponto final. Este tipo de con-

ceptualização é expresso por uma estrutura transitiva. Quando não há

nenhum participante que pode ser inscrito num papel “causal”, uma

estratégia típica é selecionar a entidade afetada pela mudança como o

principal participante nominal, caso em que o evento é tratado como

autônomo. (cf. KEMMER, 1993, p. 145)

Consideramos esta função não como demoção do agente, mas

como não-menção de um causativo, possibilidade já pré-configurada

no léxico, sem derivação e sem transformações, mas, como diz

Kemmer (1993), apenas como uma das possibilidades de codificação

diante de duas estruturas possíveis na língua: a estrutura transitiva e a

estrutura medial. Não negamos à média o fato de ser uma frase não-

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agentiva; o que contestamos é ser ela derivada de uma frase agentiva.

A média acha-se relacionada a uma construção causativa, em que

teríamos uma relação causativa/incoativa, pelo menos prototipica-

mente, em tese. Contudo, esta ligação não se dá por nenhum tipo de

vínculo transformacional: são apenas duas estruturas disponíveis aos

propósitos comunicativos do falante do português.

Cabe ainda uma questão: se a média nem sempre expressa even-

tos espontâneos, o que levaria o falante a optar por ela e não por uma

estrutura causativa na codificação de determinado evento? Nossa

hipótese é que seria uma estratégia do falante de evitar assumir res-

ponsabilidade, uma extensão da expressão de atos espontâneos com

uma clara função discursiva.

Por detrás da estacada apinham-se as mulheres, que segundo o rito pátrio não podem ser admitidas nas festas guerreiras.

De longe acompanham silenciosas, com os olhos, as velhas aos filhos, as esposas aos seus guerreiros, e as virgens aos noivos.

Exultam quando ouvem celebrar as façanhas dos seus; mas não ouvem murmurar uma palavra. (ALENCAR, 1926, p. 23)

Considerações finais

Partindo de pressupostos cognitivos, somos levados a caracteri-

zar a voz média como um tipo de codificação pertencente à ordena-

ção evolutiva, do tipo descritivo para nos valermos de Pottier (1978,

1992). Trata-se de construção endocêntrica (o sujeito é afetado) que

não tem vínculo transformacional nenhum com a construção exocên-

trica causativa, uma vez que referencia o mundo de forma sui gene-

ris: apresenta eventos espontâneos ou dados como tais. Se abraçamos

a hipótese de que a linguagem é fundamentalmente um fenômeno de

percepção e conceptualização, não há sentido algum em postular

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redução de actantes, um aspecto transformacional muito caro a pos-

turas formalistas.

Aspectos a investigar dizem respeito à abordagem cognitivo-

funcional de linha givoniana, tais como persistência do tópico, dis-

tância referencial, status informacional, relacionados à topicalidade.

Encetar a fusão da perspectiva de Givón (1993) com a de Pottier

(1992) não só nos parece possível, como também enriquecedor. Isto

fica como desafio para um outro trabalho.

Referências bibliográficas:

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MACAMBIRA, José Rebouças. Estrutura do vernáculo. Fortaleza: EUFC, 1986.

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NEVES, Maria Helena Moura. A gramática funcional. São Paulo, Martins Fontes, 2001.

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RIBEIRO, João. Grammatica da lingua portugueza. São Paulo: Francisco Alves, 1908.

RIBEIRO, Júlio. Grammatica portugueza. São Paulo: Miguel Melil-lo Editor, 1899.

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242

Interação da Semântica e da Semiótica na Aprendizagem da Língua

Maria Suzett Biembengut Santade (UERJ, FMPFM e FIMI – Mogi Guaçu/SP)

Palavras iniciais

Percebemos, ao longo de muitos anos de trabalho realizado em

uma mesma escola, que o processo de ensino-aprendizagem de nossa

língua sofre muitas influências da pronúncia de cada região. Nota-

mos ao longo dessa experiência que isto constitui um problema. En-

tretanto, essa mesma experiência nos demonstra que esse problema é

contornável. Os moldes de trabalho que atualmente a fonologia nos

oferece podem auxiliar-nos na descrição dos fatos fonéticos.

Ao pronunciarmos as palavras, muitas vezes suprimimos ou in-

serimos algum fonema ou ainda deformamos o som que uma ou ou-

tra letra representa(m). Por exemplo: no sintagma “os olhos” >

“zolhos” > “zóio” observamos apagamento no morfema-plural da

palavra básica e, no monossílabo átono (artigo) “os”, o elemento

pluralizante foi aglutinado na palavra básica, formando uma única

palavra. Como forma análoga (que contém metaplasmo de aumento),

podemos citar o caso de advogado “adevogado” dando surgimento à

vogal epentética “e”.

Sabemos que há grande variedade de contextos quando os en-

xergamos sob a ótica de conhecimentos bem ou mal elaborados.

Quando sofremos a influência de um contexto semanticamente bem

elaborado, temos o reflexo do mesmo. Situação idêntica ocorre

quando o contexto é mal elaborado também. Sabemos ainda que uma

língua tanto pode ser falada como grafada. Dentro dos moldes de

obediência da boa escrita utilizamos os morfemas pluralizantes, os

morfemas marcadores de modo e tempo verbais e número-pessoa,

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etc., legitimando dentro dos sintagmas nominal e verbal as concor-

dâncias. Contudo numa linguagem descuidada, uma pessoa mesmo

com influência escolar acaba também fazendo inserções, apagamen-

tos, junturas, deslocações acentuais, etc. Essa pessoa com influência

escolar e com motivação à leitura resgata numa linguagem melhor

cuidada oral e principalmente na escrita a língua padrão. Todavia, a

pessoa que sofre no seu ambiente sócio-lingüístico as influências de

variações dialetais e que também tem pouca motivação à leitura de-

monstra nos seus contextos orais alterações fonéticas resultantes de

uma variedade não-padrão e, ao registrar tais fatos numa linguagem

escrita, praticamente transfere para ela os reflexos dessas suas varia-

ções lingüísticas, fazendo assim uma escrita pseudofonética fora das

normas gramaticais.

Assim, sentimos que há um momento na fase de aquisição da

escrita em que os signos gráficos serão utilizados para a concretiza-

ção da linguagem escrita. A partir do instante que a criança começa a

lidar com esses signos duplamente arbitrários, ela irá registrar seus

contextos lingüísticos, aproximando a escrita da fala. Nesse proces-

so, a criança é levada a criar textos e textos, desenvolvendo sua habi-

lidade na escrita. Contudo, se não interviermos em algum momento

em sua linguagem, estaremos de forma linear, contemplando e ma-

peando a criança como simplória sem darmos o respaldo lingüístico

para a sua ascensão cultural.

Para se compreenderem as alterações fonológicas apresentadas

pelos educandos e suas escritas pseudofonéticas, exercitamos a gra-

maticalidade visual em sala de aula através dos desenhos, dos es-

quemas, no propósito de raciocinarem sobre a estrutura da língua (cf.

BIEMBENGUT SANTADE, 1998, 2002).

Essas distorções nos remetem à interdisciplinaridade, fazendo

reconhecer sua importância para um melhor entendimento e avalia-

ção dos problemas inerentes a esse tipo de aprendizagem. Surge,

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então, a nossa preocupação em colocá-los à luz das proposições que

nos são oferecidas pelo processo lingüístico de interlocução. Acredi-

tamos que a interação da semântica e da semiótica possa contribuir

para que o trabalho do professor de língua seja mais eficaz (cf.

BIEMBENGUT SANTADE, 2006).

Apoiados na teoria peirciana, temos buscado mediar a gramática

tradicional através de uma “alfabetização visual” (aquisição de es-

quemas de leitura e interpretação de sinais gráficos presentes na lín-

gua escrita – cf. SIMÕES, 2005), exercitando a modalidade padrão

em cotejo com a linguagem dialetal das crianças. Aplicamos uma

“gramática do cotidiano do aluno” ou pelo menos próxima a ele, para

podermos (professor-aluno) entender seu jeito de oralizar o pensa-

mento e seu registro escrito cheio de criatividade e de valores pesso-

ais.

A necessidade de transformação do quadro metodológico tradi-

cional ao ensino-aprendizagem da língua portuguesa levou-nos a

desenvolver com seriedade a arte do desenho na percepção da língua

e, de alguma forma, a reconhecer os inúmeros aspectos nela implica-

dos. Assim, é relevante pensar, por exemplo, nos conceitos gramati-

cais fora da compreensão do aluno, principalmente nas séries

intermediárias do ensino fundamental, e que muitas vezes são utili-

zados de forma fragmentada, nas diferentes categorias da norma

lingüística sem os materiais de recursos impressos e tecnológicos.

Assinalamos aqui que, na diversidade das características territoriais,

socioeconômicas e culturais múltiplas, nas diferentes demandas e

necessidades de alunos, a língua está sendo posta e exposta como

objeto fora dos sujeitos-alunos sem o apelo da percepção.

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A arte do desenho

A arte acompanha o homem nas investigações mais simples. Do

latim “ars, artis” significa “maneira de fazer uma coisa segundo as

regras”, como: arte poética, arte literária, arte militar, arte pela arte,

arte culinária, etc. Na publicidade, arte é o conjunto das atividades

ligadas aos aspectos gráfico-visuais de anúncios, jornais, livros, re-

vistas, mapas, criação de desenhos, fotografias, gravuras e quaisquer

elaborações icônicas.

Na Idade Média, “artes” eram as diversas disciplinas ensinadas

nas escolas e universidades, divididas em dois grupos distintos: um,

trivium, composto de gramática, retórica e dialética; outro, quadrivi-

um, formado de aritmética, geometria, astronomia e música.

A partir da Renascença, arte traduzia o ofício ligado à arquitetu-

ra, escultura, pintura, gravura, as quais juntamente com a música e a

coreografia formavam as atividades intelectuais do bom-gosto. As-

sim os artistas renascentistas tinham uma posição de maior prestígio

em relação aos da Idade Média. Os pintores, arquitetos e escultores

podiam nessa época colocar seus estilos na contribuição das artes

decorativas ou aplicadas. A opressão à criatividade era constante,

alterando a expressão espontânea do artista. Muitos artistas foram

perseguidos pelas lideranças religiosas e políticas e mesmo talento-

sos acabavam desviando suas produções existenciais àquelas ima-

gens decorativas de acordo com o gosto médio da maioria do público

consumidor. Observa-se que o artista em solidão expressava sua arte

a qual não era valorizada quando ele deixava de seguir as regras de

interesse e poder do público.

A liberdade artística teve início no século XIX, porém consagra-

se no século XX. Essa nova exigência de liberdade faz surgir o artis-

ta mais vulnerável ao aspecto socioeconômico-cultural. Dessa forma

a obra artística passa a ter valor segundo o mercado econômico e o

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artista sofre as especulações daqueles que vivem através da obra-

mercadoria.

Vendo a arte como algo a ser consumido, o indivíduo-

consumidor não constrói princípios de beleza, de técnicas de expres-

são e compreensão sobre o valor da obra em si. Qual a indagação do

artista no momento sócio-histórico em que viveu? Qual a participa-

ção do artista enquanto sujeito-artista? No entanto, a “arte engajada”

sempre se perpetuou através do comportamento subversivo do artis-

ta, amante da arte, revelando-se no processo da criação apenas. O

artista transcende-se numa espécie de liberação da vida com sua pró-

pria arte numa só obra.

Os ícones, ou imagens, foram utilizados nas igrejas russa e gre-

ga na retratação de anjos e santos os quais eram feitos em pedra ou

madeira. Os ícones são signos qualitativos que mantêm uma relação

direta com a realidade empírica, aproximando-se do objeto represen-

tado como fotografias, desenhos, caricaturas, figuras, etc. Também a

origem dos ícones surgiu na retratação dos mortos a fim de eternizar

os ídolos na Antigüidade greco-romana. Mesmo a escrita ideogramá-

tica dos povos egípcio, chinês, fenício, etc. pode-se considerar icôni-

ca porque as letras estilizadas aproximam-se do objeto representado.

Conforme a teoria dos signos de Peirce (1978), um signo tem

uma materialidade que se percebe com um ou vários dos sentidos; é

possível vê-lo (um objeto, uma cor, um gesto), ouvi-lo (linguagem

articulada, grito, música, ruído), senti-lo (vários odores: perfume,

fumaça), tocá-lo ou ainda saboreá-lo. Essa coisa que se percebe está

no lugar de outra; esta é a particularidade essencial do signo: estar

ali, presente, para designar ou significar outra coisa, ausente, concre-

ta ou abstrata, existente ou fictícia. O rubor e a palidez podem ser

signos de doença ou de emoção, assim como certo gesto com a mão,

uma carta ou um telefonema podem ser sinais de amizade. Vê-se,

portanto, que tudo pode ser signo, a partir do momento em que dele

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se deduz uma significação. Para Peirce, um signo é algo que está no

lugar de alguma coisa para alguém, em alguma relação. O mérito

dessa definição é mostrar que um signo mantém uma relação solidá-

ria entre pelo menos três pólos (e não apenas dois como em Saussu-

re): a fase perceptível do signo, “representâmen”, ou significante; o

que ele representa, “objeto” ou referente; e o que significa, interpre-

tante ou significado. Essa triangulação também representa bem a

dinâmica de qualquer signo semiótico, cuja significação depende do

contexto de seu aparecimento assim como da expectativa do recep-

tor. Para este mesmo autor, os signos mais perfeitos são aqueles em

que o caráter icônico indicativo e o simbólico estão amalgamados em

proporções tão iguais quanto possíveis.

A semiótica peirceana conclama esses três tipos de signo que se

integram, mas o desenho parece ser bem mais espontâneo e também

consiste na recepção e reprodução de um objeto concreto, ou melhor,

de um mapeamento de algo da realidade; e, ainda, o desenho pode

representar seres alegóricos, fictícios, imaginários, fantásticos dentro

do impossível possível. Essa representação do fantástico acontece

quando a poesia redesenha a vida comum. Nas palavras de Fernando

Pessoa “A minha alma é como um barco pintado/ que flutua qual

cisne adormecido/ Sobre as ondas prateadas do teu doce canto.” (“ O

Teu Doce Canto”- Fernando Pessoa. Texto disponível em:

http://www.prahoje.com.br/pessoa/)

Na essência da palavra, o desenho é a arte de representar visu-

almente objetos ou figuras através de traços, formas. Na verdade, o

desenho é o esboço de qualquer arte por mais simples que seja. As

ciências utilizam o desenho como um passo primeiro na idealização

do objeto para depois materializá-lo na industrialização. O desenho

artístico ou técnico representou e representa as indagações do ho-

mem influenciado por seu meio sócio-cultural. Antes das imagens

fotográficas, cinematográficas e televisivas, o desenho era praticado

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pelos artistas na representação fiel da natureza e da figura humana.

Hoje a arte de desenhar multiplica-se em desenhos técnico-

industriais, artísticos, humorísticos e satíricos, gráficos, figurativos,

etc. Porém, o desenho na infância apresenta características ligadas ao

desenvolvimento cognitivo e afetivo da criança. Ela se expressa atra-

vés do desenho a compreensão daquilo que a circunda.

Assim, o desenho como a arte mais primitiva do homem, não se

perde no percorrer dos séculos e no século XXI, a cada instante, for-

talece-se em efeitos computadorizáveis comungados à linguagem

verbalizada.

Desenho na percepção da língua

Na história da gramática, sabemos que os filósofos se preocupa-

vam com a contextualização dos significados da palavra. A significa-

ção da palavra multiplica-se em vários conceitos os quais podem ser

denotativos ou conotativos de acordo com o contexto trabalhado. Há

uma geografia sócio-lingüística onde as palavras são usadas de dife-

rentes formas semânticas num mesmo país e até numa mesma região,

dependendo do grau de instrução, idade, raça, sexo, entre outros.

O mesmo fenômeno acontece na imagem, pois cada leitor-visual

interpreta-a de múltiplas maneiras perceptivas. Segundo Almeida Jr.

(1989, p. 95) “o significante do signo icônico situa-se no plano da

expressão e é de natureza material (linhas, pontos, contornos, cores,

etc.), enquanto que o significado ou a pluralidade de significados

possíveis (polissemia) situam-se no plano lógico do conteúdo, sendo

de natureza conceitual e cultural”.

A interação feita em sala de aula entre a informação gramatical

e o desenho é simplesmente uma provocação perceptiva para que a

aprendizagem do educando escoe numa metodologia leve sem dis-

tanciá-lo do conteúdo-programático necessário no avanço escolar. O

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aluno deve sentir sua pessoa na participação da oralidade e sua voz

deve sair da cavidade bucal numa prévia produção dos fonemas,

depois de ter passado pelo processo de decodificação e codificação.

Ao escrever o texto, deve refletir sobre a produção do mesmo, pois

cada palavra reproduz em leitura seu pensamento. O pensamento

deixa de silenciar-se a partir do barulho da palavra articulada. Quan-

do se lê ou fala, as imagens internalizadas em cada indivíduo concre-

tizam as palavras. O discurso surge da/na prática, e do/no vivido de

cada ser e a compreensão das palavras formam a enunciação dirigida

pelas polissignificações de cada uma delas e juntas formam a enunci-

ação. Na enunciação espraiam as imagens de cada enunciado que

somadas formam a ideologia do texto.

Santaella (1998, p. 36), apoiada na teoria geral dos signos peir-

ceanos, relata que o processo perceptivo acontece entre o frescor das

coisas em si mesmas e o processo da aprendizagem. Assim, diz que,

dentre as centenas de definições de signo, ou variações em torno de

um mesmo tema, Peirce nos legou a definição de signo dando múlti-

plas possibilidades fenomenológicas na compreensão da realidade.

Na visão peirceana, Santaella diz que o signo representa o objeto

porque, de algum modo, é o próprio objeto que determina essa repre-

sentação. Porém, aquilo que está representado no signo não corres-

ponde ao todo do objeto, mas apenas a uma parte ou aspecto dele. O

signo é sempre incompleto em relação ao objeto. Para a autora, a

percepção, que na sua realidade de acontecimento sempre aqui e

agora está sob o domínio da secundidade, o que não quer dizer que

ela não tenha também a marca da terceiridade, pois é essa marca que

lhe dá condições de generalidade para significar. Para Peirce (apud

SANTAELLA, op. cit., p. 38 [CP 6.347]) um signo intenta represen-

tar, em parte (pelo menos), um objeto que é, portanto, num certo

sentido, a causa ou determinante do signo, mesmo que o signo repre-

sente o objeto falsamente. Mas dizer que ele representa seu objeto

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implica que ele afete uma mente, de tal modo que, de certa maneira,

determina, naquela mente, algo que é mediatamente devido ao obje-

to. Essa determinação da qual a causa imediata ou determinante é o

signo e da qual a causa mediata é o objeto pode ser chamada de in-

terpretante.

Para Santaella, essa definição a agrada muito, pois há um grande

número de modalizações do tipo: “em parte (pelo menos)”... “num

certo sentido”... “de certa maneira”... “pode ser”... A autora, valendo-

se da citação mencionada, afirma que as expressões indicam inde-

terminação que cerca a definição embora haja a lógica de indetermi-

nação na relação do signo com o objeto e na relação do signo com o

interpretante. Assim extrai da definição (1998, p. 39): (1) que o signo

é determinado pelo objeto, isto é, o objeto causa o signo, mas (2) o

signo representa o objeto, por isso mesmo é signo; (3) o signo só

pode representar o objeto parcialmente e (4) pode até mesmo repre-

sentá-lo falsamente; (5) representar o objeto significa que o signo

está apto a afetar uma mente, isto é, produzir nela algum tipo de efei-

to; (6) esse efeito produzido é chamado de interpretante do signo; (7)

o interpretante é imediatamente determinado pelo signo e mediata-

mente determinado pelo objeto, isto é, (8) o objeto também causa o

interpretante, mas através da mediação do signo.

Valendo-nos dessa indeterminação da apreensão do signo com o

objeto e do signo com o interpretante, observamos que o domínio

perceptivo do intérprete-aluno em sala de aula aguça-se através dos

seus próprios desenhos na compreensão dos aspectos da língua, pois

o espontâneo das idéias passa a criar formas imagéticas no seu jul-

gamento lingüístico. Santaella acredita que a percepção é o processo

mais privilegiado para colocar na frente do nosso pensamento a mas-

sa dos três elementos de que somos feitos: o físico, o sensório e o

cognitivo. O papel cognitivo na percepção é desempenhado pelo

julgamento perceptivo. No que diz respeito ao julgamento, a autora

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observa que o julgamento de percepção, por ser um signo, ocupa a

posição de um primeiro. Diante da porta que vemos, o que vem pri-

meiro é o julgamento de percepção. Este é o efeito que ela produz em

nós, caso contrário estaríamos totalmente desprovidos de qualquer

capacidade de sobrevivência, incapazes de orientação, reação e com-

preensão. Mas o julgamento de percepção, da natureza de um signo,

é determinado por um objeto dinâmico, que tem primazia real sobre

o signo. Esse é o percepto. É na interação corpo-a-corpo com ele que

o papel físico da percepção é desempenhado. O percepto é aquilo que

aparece e se força sobre nós, brutalmente, no sentido de que não é

guiado pela razão. Não tem generalidade. É físico, no sentido de que

é não-psíquico, não-cognitivo, quer dizer, ele aparece sob uma ves-

timenta física. É um acontecimento singular que se realiza aqui e

agora, portanto irrepetível. Trata-se de um cruzamento real entre um

ego e um não-ego, secundidade. Percepto etimologicamente tem o

significado de apoderar-se, recolher, tomar, apanhar, ou seja, alguma

coisa, que não pertence ao eu, é tomada de fora. É algo compulsivo,

teimoso, insistente, chama a nossa atenção. Algo que se apresenta

por conta própria e, por isso, tem força própria (1998, p. 91-92).

A necessidade de transformação do quadro metodológico tradi-

cional ao ensino-aprendizagem da língua portuguesa levou-nos a

desenvolver com seriedade a arte do desenho na percepção da língua

e, de alguma forma, a reconhecer os inúmeros aspectos nela implica-

dos. Assim, é relevante pensar, por exemplo, nos conceitos gramati-

cais fora da compreensão do aluno, principalmente nas séries

intermediárias do ensino fundamental, e que muitas vezes são utili-

zados de forma fragmentada, nas diferentes categorias da norma

lingüística sem os materiais de recursos impressos e tecnológicos.

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Palavras finais

Em nossa compreensão, enquanto educadoras, sabemos que a

criança ao compreender a linguagem de outro falante necessita de

referência do objeto e/ou das coisas em plano de idéias para ter a sua

noção como intérprete. No entanto, a noção de interpretante ratifica a

semiótica como um processo dinâmico em que a essência do signo

existe na interpretação acoplada com outra interpretação formando

uma nova interpretação.

A essência da fala está no fonema que é unidade mínima distin-

tiva da língua capaz de diferenciar os signos e, por sua vez, os signi-

ficados ali expressos. O fonema representa a interação do som e do

sentido e é definido como feixe de traços distintivos para diferenciar

significações. Para Peirce, cada fonema é o próprio ícone, pois há

nele toda a completude de sua unidade que o diferencia dos outros

fonemas. As idéias peirceanas, sobretudo aquelas que se referem aos

elementos icônicos da linguagem, alargam a dicotomia saussureana,

significante e significado.

Simões & Martins, em abordagem pautada na semiótica norte-

americana de Charles Sanders Peirce, mais particularmente na teoria

da iconicidade e por elas aplicada no sentido de captar nos textos as

marcas sígnicas, que podem conduzir o leitor à mensagem básica lá

inscrita, tomam os fonemas da língua como signos sonoros (verbais

vocais) representáveis na escrita, cuja combinação dá origem a novos

signos sonoros mais complexos (sílabas, vocábulos, grupos de força,

etc.), passíveis de uma análise a que as autoras chamam fonossemió-

tica, que é uma interpretação por meio da qual os fonemas (ou outra

unidade fônica superior) sejam observados em seu potencial icônico

ou indicial. (SIMÕES, Darcilia & MARTINS, Aira Suzana R. “Fo-

nologia, estilo e expressividade”. Texto disponível em:

www.darcilia.simoes.com/textos/docs/texto09.doc)

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Tomando o fonema como unidade mínima de material sonoro e

colocando-o na corporalidade para pontuar a produção na cavidade

bucal, vemos que o fonema possui uma estrutura melódica em cada

falante. A melodia é uma seqüência temporal dos ícones fônicos e

essa melodia reflete com a harmonia, a qual é um feixe de sons si-

multâneos e agrupados, dando, assim, a fala uma marca de identida-

de ao falante.

Ressalta Santaella (2004), em seus escritos sobre semiótica apli-

cada, que o interpretante possui vários níveis de realização, sendo: o

imediato (primeiridade), o dinâmico (secundidade) e o final (terceiri-

dade). Tomando essa afirmação e correlacionando esses níveis ao

contato que os emissor & receptor travam com a linguagem em sala

de aula, fazemos a seguinte analogia: o aprendiz quando recebe a

informação do professor entra em contato com o conteúdo da disci-

plina ainda de forma abstrata. Mas, em seguida, cria significação

imediata àquilo que lhe está sendo transmitido. Desse modo, os as-

pectos lingüísticos da fala do professor provocam no aprendiz rea-

ções e ações físicas e cognitivas além das percepto-sensoriais

acopladas àquelas significações já realizadas por ele [aprendiz].

O signo compõe-se a partir da associação de elementos constitu-

intes de um plano (fonemas, desenhos, gravuras, letras, etc.) a um

plano ou mais elementos de um plano de conteúdo, ou seja, conceitos

(idéias, palavras). A interpretação de um signo atravessa por outros

signos que o definem numa relação triádica – signo, objeto e inter-

pretante. Assim, o tratamento semiótico do desenho engloba a totali-

dade dos seus processos, o espectro completo dos seus objetos, seus

meios, suas situações, assim como o contexto deles (cf. PEIRCE,

2003, p. 45-48). O signo é tudo o que representa alguma coisa. O

desenho de uma “casa” que está no papel é um signo, ou seja, algo

que está representando a “casa” (portas, janelas, telhado, paredes,

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etc.) e esse signo “casa” transmite os conceitos de “construção”,

“moradia”, ‘habitação”, “morada”, “lar”.

É impossível imaginarmos a nossa vida sem a comunicação e

esta sem os signos verbais e não-verbais. Durante toda a vida traça-

mos idéias, desenhamos e redesenhamos o que entendemos e nem

sempre os objetos desenhados por nós estão diante dos nossos olhos.

O interpretante é como o signo está sendo compreendido pelo recep-

tor e o objeto é a coisa em si. Assim, a relação triádica –signo, objeto

e interpretante – representa o processo relacional que se cria na men-

te do intérprete (o que acontece na mente da criança [do aprendiz])

quando desenhamos a gramaticalidade-de-pé-no-chão e que faz que

ela, ao olhar o desenho elaborado pelo professor na lousa ou em car-

tazes, associe-se com o objeto, ou analogamente, com os aspectos

gramaticais da língua (cf. SANTAELLA, 1987 e 1995).

Peirce (apud SANTAELLA, 1987) estabeleceu para ele mesmo

uma série de classificações, sempre seguindo o modelo triádico [con-

forme já mencionamos], desenvolvendo as dez relações que se mul-

tiplicam triadicamente. E esse estudioso classificou os signos em

mais de 60 diferentes classes que resultam infinitas relações de tipos

de signos diferentes. No entanto, aquelas mais divulgadas são: (i) as

que tomam a relação do signo com ele mesmo; (ii) as que tomam a

relação do signo com seu objeto dinâmico; e (iii) as que relacionam o

signo e seu interpretante.

Cremos que a arte do desenho à palavra não necessita, em prin-

cípio, da formalidade de regras, pois a arte é signo. Na imaginação

dos aprendizes em sala de aula, o ícone é o signo da criatividade e

está ligado à faculdade de ver os desenhos nos aspectos gramaticais e

de sentir a vida em linguagem. No entanto, como a própria primeiri-

dade na teoria dos signos segundo Peirce (2003), o ícone puro sim-

plesmente não poderia existir se não houvesse a interação da

comunicação. E, para isso, o signo depende não só de uma lei, ou

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melhor, de uma forma fixa, mas principalmente dos atos perceptivos

sem as amarras da arbitrariedade.

Referências bibliográficas

ALMEIDA JR., João Baptista de. Ter Olhos de Ver: subsídios meto-dológicos e semióticos para a leitura da imagem. Dissertação de Mestrado, FE-UNICAMP, 1989.

BIEMBENGUT SANTADE, Maria Suzett. Oralidade e Escrita dos Esquecidos numa Gramaticalidade Visual. Dissertação de Mes-trado. PUC-CAMPINAS, 1998.

BIEMBENGUT SANTADE, Maria Suzett. Apreciações Semânticas de Relatos de Aprendizagens. Tese de Doutorado. UNIMEP-Piracicaba, 2002.

BIEMBENGUT SANTADE, Maria Suzett. A PALAVRA E O DESENHO: uma interação da semântica e da semiótica na a-prendizagem da língua. Trabalho Pós-Doutoral. UERJ-Rio de Janeiro, 2006.

PEIRCE, Charles Sanders. Ecrits sur lê signe. Paris: Seuil, 1978.

PEIRCE, Charles S. Semiótica. 3 ed. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 2003.

SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. 5 ed. São Paulo: Brasilien-se, 1987.

SANTAELLA, Lúcia. A teoria geral dos signos: semiose e autoge-ração. São Paulo: Ática, 1995.

SANTAELLA, Lúcia. A percepção: uma teoria semiótica. 2 ed. São Paulo: Experimento, 1998.

SANTAELLA, Lúcia. Semiótica Aplicada. São Paulo: Thomson, 2004.

SIMÕES, Darcilia. Fonologia em nova chave. Considerações sobre a fala e a escrita. 2 ed. corrigida e atualizada. Rio de Janeiro: HP Comunicação, 2005.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 7, V 7 (Jan/Jun 2007) – ISSN 1806-9142

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Textos em endereços eletrônicos

SIMÕES, Darcilia & MARTINS, Aira Suzana R. “Fonologia, estilo e expressividade”. Disponível em:

www.darcilia.simoes.com/textos/docs/texto09.doc

PESSOA, Fernando. “O Teu Doce Canto”. Disponível em: http://www.prahoje.com.br/pessoa/

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O substantivo em Português: proposta para sua descrição

Paulo Mosânio Teixeira Duarte (UFC)

Introdução

O substantivo foi uma das primeiras classes de palavras a ser

depreendida no âmbito das chamadas partes do discurso, sob a égide

da filosofia grega. Platão identificou-o na classe dos onómata ao lado

da dos rhémata, que abrangia, no domínio da predicação, o verbo e o

adjetivo. A classe dos onómata foi mantida por Aristóteles. Um e

outro pensador não tinham como escopo finalidades lingüísticas, pois

o viés era lógico: estavam interessados na relação da linguagem com

o mundo e, para tanto, privilegiavam o discurso declarativo, acerca

do qual se podia afirmar a verdade ou a falsidade, o chamado discur-

so apofântico.

A gramática só ganhou certa autonomia com a obra de Dionísio

da Trácia, que nos legou a primeira gramática do Ocidente, cuja in-

fluência sobre as obras gramaticais até a modernidade é irrefutável.

Entre as classes identificadas, persistia a classe dos onómata, descrita

com maior apuro, porque se valiam das chamadas propriedades aci-

dentais ou acidentes (parepómena). Constituíam, por exemplo, aci-

dentes nominais o gênero (génos), número (arithmós) e caso (ptósis).

Semelhantemente aos filósofos estóicos, que deram um grande passo

na descrição das classes gramaticais através das categorias, Dionísio

julgava importante transcender o aspecto conceitual para referir as

marcas acidentais.

Nome de relevo na descrição das classes gramaticais foi Apolô-

nio Díscolo, que procurou tratar de modo filosófico as classes voca-

bulares, retrocedendo, pois, a um enfoque que evocava aquele

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estabelecido por Platão e Aristóteles. Naturalmente, tendo por base o

legado de Dionísio, Apolônio tinha que operar com um maior de

classes já identificadas. O modelo lingüístico, em si, mesmo, era

fundamentalmente de natureza sintática. Com base neste, perspecti-

vou o encadeamento das unidades menores nas maiores, ensaiando

uma hierarquia. Tomou o substantivo e o verbo como classes polares

no contexto da frase e as dispôs de modo a mostrar que eram a base

para a formação de uma proposição completa. Como dissemos, man-

teve o essencial do ensinamento de Dionísio, mas repensou as cate-

gorias, sua ordenação e seu conceito, de tal sorte que sua doutrina, de

extração filosófica, teve repercussão no pensamento lingüístico me-

dieval.

As considerações filosófico-gramaticais oriundas de Apolônio

Díscolo nos chegaram através de seu discípulo romano, Prisciano.

Elas obnubilaram por completo contribuições de cunho mais acentu-

adamente lingüístico, como a de Varrão (1990), que apresentou um

quadro formal das classes de palavras, baseado em categorias, inclu-

sive a de aspecto, vislumbrada com notável precisão para caracterizar

a classe verbal.

O eminente estudioso, em seu livro III, cunhou o termo declina-

tio, que se relaciona não somente com a classe nominal, mas também

com a verbal (conjugação, no domínio gramatical). Fez distinção

entre uma declinatio naturalis, a flexão, em termos de lingüística

moderna, imposta pela natureza da frase, e a declinatio uoluntaria,

relacionada com a derivação e decorrente da vontade do falante. Ba-

seado na noção de declinatio naturalis, Varrão identificou os seguin-

tes microssistemas de classes: o que comporta palavras com flexão

de caso (nomes), o que comporta palavras com flexão de tempo (ver-

bo), o que encampa palavras com ambas as flexões retrocitadas (par-

ticípio) e, por fim, palavras sem flexão de caso e de tempo (advérbios

e conjunções).

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Varrão foi sem dúvida nenhuma o mais notável dos gramáticos

latinos. Além de distinguir a categoria aspectual, na qual reconhecia

a subdistinção perfectivo X imperfectivo, identificou as noções de

tempo e de voz. Pelo exposto acima, reconheceu as marcas casuais

como próprias do nome em geral. Porém, apesar de apresentar uma

proposta formal para identificar as classes, sua proposta foi sobrepu-

jada pela de outro gramático sem originalidade, Prisciano, discípulo

de Apolônio Díscolo.

O pensamento de Apolônio influenciou sobremaneira não ape-

nas a doutrina gramatical de Prisciano, que reconheceu o nome (no-

men) e o verbo (verbum) como classes fundamentais, ao lado de

outras pertinentes ao latim, mas também os filósofos medievais – os

modistas ou gramáticos especulativos - que julgavam a linguagem

um reflexo ou espelho (lat. speculum) do pensamento. Chamavam-se

modistas porque reconheciam as classes vocabulares segundo a dou-

trina dos modos de significar (modi significandi), que são de crucial

importância na teoria da linguagem que desenvolveram. Cabe desta-

que aos modos de significar passivos (modi significandi passivi), que

são as qualidades das coisas tais como nos chegam por meio das

palavras. Por isto, não é de estranhar-se a ênfase no estudo das clas-

ses vocabulares e ao modo como estas se articulam num discurso

para engendrar sentido completo.

Os gramáticos especulativos baseavam-se não só em Apolônio

Díscolo, mas também na filosofia aristotélico-tomista referente à

tipologia das causas: a material, a formal, a eficiente e a final. Des-

tarte um discurso pressupõe a existência de palavras (causa material),

a união destas palavras nas mais variadas construções (causa formal),

o vínculo gramatical entre elas, expressos nas línguas clássicas atra-

vés de mecanismos flexionais (causa eficiente) para culminar na

expressão de um pensamento completo (causa final).

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Sendo o substantivo e o verbo as classes primordiais para gerar

um discurso, era mais que natural que se constituíssem eixos por

meio dos quais se articulava a produção discursiva. O primeiro, que

nos interessa de perto, nos moldes da descrição clássica, era tipifica-

do quanto a ser primitivo ou derivado, simples ou composto, isto sem

mencionar as categorias de gênero e número.

De especial relevo é distinção entre classes categoremáticas e

classes sincategoremáticas. As primeiras são assim chamadas por

serem significativas por si mesmas. Provavelmente a distinção pro-

mana, em parte, dos estudos estóicos, no tocante à distinção entre

discurso perfeito e discurso imperfeito, a exemplo de Sócrates dis-

cursa e discursa, respectivamente: o primeiro consta de uma proposi-

ção completa fundada no nome e no verbo, enquanto o segundo só

tem o constituinte verbal, carecendo, portanto, do agente. As segun-

das, por seu turno, dizem respeito àquelas partes do discurso como

conjunções, preposições, advérbios etc., que não têm significado por

si mesmas, mas só o adquirem em contacto com outras partes. Em

português, por exemplo, a marca de definitude do artigo o só se ple-

nifica se projetada num substantivo. A marca de próximo ao falante,

do demonstrativo este, só tem plenitude quando referente a um subs-

tantivo.

Assim é nosso entender. Discordamos daqueles que associam os

significados categoremático e sincategoremático aos significados

léxico e gramatical respectivamente, bem como o significado léxico

ao significado extralingüístico. O substantivo livro tem um significa-

do definido no léxico e uma classe de referentes a que se aplica. Já o

pronome eu tem um significado léxico de 1ª pessoa do singular e, por

força da intensão diminuta, uma gama potencialmente ilimitada de

referentes a que se deve aplicar com o traço [+ humano], com a con-

dição pré-estabelecida:” aquele que fala”.

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Eu tem, pois , significado léxico (e gramatical). Por força de de-

pender da substância, que é indeterminada a priori, e só determinável

pragmaticamente. Para falarmos em termos modernos, parece razoá-

vel interpretarmos eu como sincategorema (assim como qualquer

pronome). Classes gramaticais dependentes discursivamente quer do

nome, quer do verbo, são também sincategoremas. O conceito de

categorema parece, pois, depender de um viés discursivo-pragmático.

Mas deixemos para outro momento o alongarmo-nos nesta digressão,

que merece um tratamento verticalizado.

Como podemos constatar, o legado clássico permaneceu por to-

do o medievo e as classes gramaticais tiveram um tratamento notori-

amente filosófico norteado pela gramática especulativa.

Os reflexos da descrição greco-latina chegaram ao Renascimen-

to. Na gramática portuguesa de João de Barros (1957), por exemplo,

o nome e o verbo eram considerados partes principais da oração. De

menor importância são as demais: o pronome, o advérbio, além do

particípio, do artigo, da conjunção e da interjeição. Semelhantemente

aos mestres gregos e latinos, o gramático português se amparava no

reconhecimento dos acidentes que, no caso do substantivo, eram: a

qualidade (próprio ou comum), a espécie (primitivo ou derivado), a

figura (simples ou composto), o gênero (masculino e feminino), o

número (singular e plural) e o caso (nominativo, genitivo, dativo,

acusativo, ablativo e vocativo). A manutenção do sistema de casos

para a classificação do substantivo é uma prova inequívoca da vigên-

cia da gramática greco-latina como eixo para a descrição das línguas.

Seguiram-se outras descrições, mas hemos por bem nos deter

aqui porque é o bastante para circunstanciar a descrição das classes

gramaticais, em particular do substantivo em português, nos estudos,

quer descritivos, quer prescritivos, que, em substancial parte, preser-

vam o legado clássico ou tentam reformulá-lo em maior ou menor

medida.

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Isto posto, passamos à descrição do substantivo na próxima ses-

são, tomando como base o critério semântico, baseado no significado

do signo ou da relação deste com a realidade extralingüística. Por

este motivo, o critério poderia também chamar-se semântico-

pragmático, que tem especial relevo em nossas gramáticas normati-

vas e mesmo em obras de cunho lingüístico-estrutural (cf.

CARVALHO, 1983, que adota uma orientação nitidamente aristoté-

lica). Em seguida ao critério semântico, analisaremos o critério mór-

fico sob diferentes orientações diferentes, para culminarmos no

critério sintático.

Urge esclarecer que a alusão a um dado critério não implica que

o autor se tenha valido apenas dele. Isto raramente acontece em des-

crição lingüística. A eleição do critério implica apenas ou que ele foi

tomado como ponto de partida ou que faz parte do repertório de pro-

cedimentos de descoberta.

A nossa detença maior no critério semântico é que ele é o mais

saliente na descrição do substantivo, sob formas mais ou menos se-

melhantes, com diferenças, porém de detalhes a serem destacados, ou

com uma ou outra acentuada divergência de fundo em relação aos da

mesma natureza básica, que é o significado.

1- O substantivo: aspectos conceituais

A nosso ver, mesmo decorrido tanto tempo da herança greco-

latina, o viés lógico ou semântico persevera em nossa tradição gra-

matical. Cunha (1983, p. 121) define o substantivo como “palavra

com que designamos ou nomeamos os seres em geral”. Apela, como

boa parte dos gramáticos, para a noção de ser, sem que seja explici-

tado o que essa noção, de origem filosófica, significa. Na mesma

senda de Cunha (1983), encontram-se inúmeros gramáticos, como

Cegalla (1980) e Lima (1976).

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A noção de ser, tal como se encontra nos referidos compêndios,

traz mais desvantagens do que proveito. Introduz-se uma noção, no

caso a de ser, sem que ela tenha sido previamente objeto de definição

rigorosa, consentânea com os fatos da língua. Além da noção de ser,

insere-se outra, de natureza filosófico-pragmática, a de designar (e

suas correlatas: denotar, nomear, referir-se, dentre outras que consti-

tuem repertório terminológico da teoria da referência). As conse-

qüências científico-pedagógicas são consideráveis. Acaba-se, em

muitos manuais, por fazer longa digressão sobre seres míticos, histó-

ricos, entes abstratos que sempre foram obstáculos para qualquer

teoria da referência, como bem justifica e argumenta Kempson

(1980).

À guisa de exemplo, tomemos a gramática de Pereira (1943, p.

73). Após definir o substantivo, segundo o cânon tradicional, faz

uma longa incursão sobre os termos da lógica, compreensão e exten-

são, respectivamente “os caracteres distintivos do ser nomeados pelo

substantivo” e “todos os seres abrangidos nessa compreensão”. A

obra se despoja, pois, do mister de ensinar gramática para a árida

tarefa de ensinar lógica àquele que a compulsa.

Ribeiro (1893, p. 80) parte da definição já problemática, basea-

da na noção de ser, para complexificá-la ainda mais com uma afir-

mação como a que segue abaixo, de natureza ontológica em que se

perspectiva o ser sob a ótica da categoria aristotélica da substância

conjugada à noção de qualidade:

Tudo que existe na natureza ou no entendimento é um substantivo: flor, gloria.

A noção de ser ou substância só póde resultar do conspecto das qualidades, que são representadas pelo adjectivos. Assim todo o substantivo representa uma synthese de atributtos (flor) ou um mesmo atributto (brancura).

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Como vemos, a definição de substantivo como palavra que de-

signa um ser foi se complicando a ponto de tornar-se ininteligível ao

final. Ao referir-se a tudo que existe no entendimento como substan-

tivo, o autor cometeu uma impropriedade, pois esqueceu outras cate-

gorias, como processo, espaço e tempo. Em seguida, deixa-nos

confusos, pois se refere ao substantivo como um ente dotado de subs-

tância e qualidade ou apenas de qualidades. Segundo nosso parecer,

Ribeiro perdeu completamente de vista a definição original.

Essa mistura de categorias semânticas longe de ser benéfica pa-

ra a descrição da língua, prejudica-a. Exemplo disto se encontra em

Lima (1976) que ao definir o substantivo não apenas se reporta aos

seres em geral, mas também às qualidades, ações ou estados, consi-

derados em si mesmos, independentemente dos seres com que se

relacionam. A dificuldade pedagógica em dar a entender uma defini-

ção multicategorial como esta é procurar emprestar rigor que o autor

em nenhum momento confere às categorias em jogo. Aliás, sequer

ensaiou fazê-lo. Outra dificuldade, justamente por causa dessa mes-

cla de categorias, é demarcar no plano da obra em tela o adjetivo e o

verbo.

Noutros casos, em vez da complicação teórica e do vazio descri-

tivo dela oriundo, origina-se um empobrecimento definicional, como

se pode constatar na gramática de Bechara (s/d), que confere à noção

de ser, enquanto gênero, as espécies semânticas de pessoas, animais

e coisas. A noção filosófica de respeitável tradição foi extremamente

simplificada. Perguntamo-nos onde o autor situaria entes abstratos,

nomes de ação (corrida, jogada) e nomes de qualidade (brancura,

lealdade).

Noutra obra, porém (BECHARA, 1999, p. 112), o autor segue

no mesmo esteio da complexidade filosófica da noção de ser e corre-

latas quando define o substantivo como se segue:

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É a classe de lexema que se caracteriza por significar o que convencionalmente chamamos objetos substantivos, isto é, em primeiro lugar, substâncias (homem, casa, livro) e, em segundo lugar, quaisquer outros objetos mentalmente apreendidos como substâncias, quais sejam qualidades (bondade, brancura), estados (saúde, doença), processos (chegada, entrega, aceitação).

O autor fica por explicar o que é ser convencionalmente chama-

do objeto substantivo e o que é apreender qualidades, estados e pro-

cessos como substâncias. Nós, particularmente, não entendemos

aonde a definição pode nos conduzir com êxito. Um grave problema

é separar com nitidez estados de qualidades.

Devido, talvez, à fragilidade da definição, os autores sentem ne-

cessidade de amparar-se em critérios mais tangíveis. Assim, Luft

(1974, p. 102) apela para um critério complementar de natureza sin-

tática, referindo-se às funções de núcleo do sujeito, predicativo e

objeto. O mesmo faz, em essência, Cunha (1983, p. 121) e Melo

(1978, p. 64).

Muitos autores, que não aqueles de orientação normativa, ado-

tam o critério semântico sobre o qual vimos nos estendendo. Vilela

(VILELA e KOCH, 2001, p. 184) define o substantivo como a classe

que “permite a representação lingüística ‘objetivizada’ de coisas,

processos, relações, propriedades”. O adjetivo objetivizada é uma

forma indireta de asseverar o mesmo que afirmou Bechara (1999): o

substantivo teria a possibilidade de apreender como substância uma

gama de categorias embasadas no mundo extralingüístico, os proces-

sos, as relações e as propriedades. Como que arrefecendo o radica-

lismo da definição, admite que certos substantivos, como os

abstratos, denotam propriedades similarmente aos adjetivos. Por

analogia, podemos estender o espectro semântico do substantivo a

outras noções, como processo (desfile), cognição (aprendizado),

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afetação (paciência) e ação-processo (matança), que são essencial-

mente as mesmas propriedades semânticas dos verbos, definidas na

gramática dos casos (cf. CHAFE, 1979).

Vilela, no entanto, retroage e, no elenco de propriedades atribu-

ídas ao substantivo, aponta a de nomeação: é para ele a classe nome-

adora por excelência, pois exprime um mundo extralingüístico como

constituído de objetos/ coisas, ou seja, “exprime a ‘objetalidade’/

‘coisificação’ extralingüística”. Cremos que o autor expenderia mui-

tas linhas para explicar o que significa os termos básicos da definição

abraçada.

No item g, concernente aos aspectos semânticos, afirma que os

substantivos “detêm a capacidade de designar um objeto ou uma

classe de objetos”. No item h, estabelece que são autossemânticos

por conta do que apresentam significado denotativo e valência.

Todavia, como que se dando conta do caráter intangível das ca-

racterizações de base semântica, apresenta complementarmente pro-

priedades gramaticais, morfológicas e sintáticas para o substantivo:

flexionam-se em gênero e número;

são determináveis por meio do artigo e de determinantes;

são caracterizados e especificados por meio de adjetivos;

constituem núcleo de um sintagma nominal;

aliados às preposições, engendram sintagmas preposicionais,

exercendo neste conjugado uma função equivalente a adjuntos ad-

verbiais ou adjuntos adnominais.

No tocante aos aspectos sintáticos complementares, convém as-

sinalar que só têm valia se forem previamente definidos e sem tauto-

logia, mas o autor só trata do que chama gramática da frase (por

oposição à gramática da palavra) após tratar das classes vocabulares.

No referente ao aspecto morfológico do gênero e do número, não

assinala uma distintividade em relação à classe dos adjetivos e mes-

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mo à do artigo, já que, segundo o autor, em qualquer caso haveria

processo flexional.

Vilela não apresenta, portanto, uma caracterização sólida sobre

a classe substantival. É o que constatamos da afirmação abaixo, após

apresentados nove traços de jaez diverso sobre a classe:

Como afirmamos, a delimitação dos substantivos nem sempre é fácil, pois designa propriedades como os adjetivos (os abstratos), designa atividade processo como os verbos (os deverbais), serve para formar adverbiais e locuções preposicionais (à base de, por causa de, à força de, etc.), aproximando-se assim da função adverbial, ou comportam-se como verdadeiros advérbios (ele, apesar da idade, veste sempre jovem) (VILELA e KOCH, 2001, p. 1986).

Descontados os aspectos semânticos, os de natureza sintática

merecem reparos. Não vemos por que, com base nos exemplos aci-

ma, considerar os substantivos como locuções adverbiais ou preposi-

cionais. O que ocorre é um processo de encaixe, gerando sintagmas

preposicionais, constantes de preposição ou locução prepositiva junto

a sintagmas nominais.

Neves (2000) tenta estabelecer com precisão o critério semânti-

co, com base no sentimento lingüístico do falante. Os substantivos

seriam empregados para referir-se às diferentes entidades (coisas,

pessoas, fatos, etc.) denominando-as. Segundo ela, o senso comum se

percebe disto, em frases como chamamos amor um sentimento que

liga pessoas sem interesse, meu amigo se chama Paulo. Paulo e a-

mor, por conta deste teste “natural”, seriam substantivos. Não é ne-

cessário utilizarmo-nos de testes com o verbo chamar. Outras

expressões podem ser utilizadas, como denominar, nomear, dar o

nome de e quejandas: denomino dependência um sentimento que

aprisiona uma pessoa à outra, nomeamos libertinagem o abuso da

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liberdade, dei o nome de João a meu filho mais velho. Dependência,

libertinagem e João seriam, assim, substantivos.

Neves procura, pelo teste supra, afastar o fantasma da filosofia e

conferir um rigor técnico à definição “palavra que dá nome aos se-

res”. Nós, porém, temos restrições à suposta prova. Nada impede

proferirmos uma frase como: denomino amar o que muitos chamam

apaixonar-se, damos o nome de formoso ao que tem somente beleza

externa. Amar, apaixonar-se e formoso seriam, desta forma, substan-

tivos. Pelo nosso juízo de falante, outras classes, como o verbo e o

adjetivo se prestam ao teste postulado por Neves. Inclusive sintag-

mas nominais aceitam o teste. Por exemplo: Santo Agostinho cha-

mava douta ignorância o dar-se conta de que nada se sabe.

Neves, no entanto, adota, o teste como certo e inclusive chega a

utilizá-lo como ponto de partida para aproximar substantivo próprio

de substantivo comum, mas não nos deteremos neste pormenor. Os

pontos de aproximação e divergência entre as duas subclasses, pela

complexidade, podem ser objeto de outro trabalho. Para nós, o teste

estabelecido por Neves transcende o substantivo porque a referência

não se confina a esta classe. Rigorosamente andar e andança nomei-

am, denotam.O teste de Neves mascara a grande confusão que se dá

no plano filosófico e lingüístico quando lidamos com classes de refe-

rentes, conceitos, nomes abstratos e adjetivos e casos em que não é

nítida a separação entre o referente e o sentido, que começa quando

tratamos de classes de entes concretos e se embaralha quando trata-

mos dos abstratos e classe de abstratos. Não podemos encarar como

de mesmo jaez o denominar um animal como gato, o denominar gato

como classe dos felinos e o denominar amor como um sentimento de

aproximação.O verbo denominar não tem a mesma aplicação e a

mesma problemática. Entra em cena, por mais adiada que seja, a

questão dos universais e as velhas querelas entre platônicos, aristoté-

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licos e ockhamianos (seguidores do nominalismo de Guilherme de

Ockham).

Destoante dos autores acima, pelo critério semântico utilizado, é

Lenz (1935), que segue um viés conceptualista e psicologicista se-

gundo o qual há palavras que: expressam conceitos; repetem ou subs-

tituem conceitos; relacionam e determinam conceitos ou orações;

reforçam conceitos ou orações. O critério não se sustenta para definir

com precisão nem o substantivo nem qualquer outra classe. Os pro-

nomes eu e tu não substituem nem repetem conceitos, mas têm um

significado léxico; primeira e segunda pessoa do singular respecti-

vamente.Uma preposição como contra relaciona termos e orações,

mas apresenta idéia de oposição bem marcada, similar à do adjetivo

contrário. Não temos condição alguma de separar, com base na pro-

posta de Lenz, substantivos, adjetivos e verbos.

Proposta também destoante da tradição é a de Bröndal (apud

BIDERMAN, 2001, p. 226-227), que adotou para classificação vo-

cabular um ponto de vista lógico baseado na doutrina de Kant, que

postulara quatro categorias básicas: a substancia, a qualidade, a

quantidade e a relação. Estas categorias poderiam sofrer combinação

ou manifestar-se em sua pureza absoluta. Examinemos o trecho abai-

xo:

As quatro modalidades, em sua pureza absoluta manifestam-se respectivamente no substantivo, no numeral e preposição. O verbo, por exemplo, expressa uma combinação da relação com a qualidade. Embora Bröndal exija que as quatro categorias sejam despojadas do caráter metafísico e absoluto que lhes deu a tradição filosófica, não se pode negar que, em ultima instância, seu ponto de partida é de base lógica e é a causa dos pontos fracos da doutrina. Contudo, o autor, de acordo com sua orientação estrutural, afirma que dentro de qualquer

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sistema lingüístico cada membro adquire seu valor por suas relações com os demais.

De fato, a proposta de Bröndal se nos apresenta abstrusa e de di-

fícil aplicação numa língua natural. Como dizer que vocábulos como

gato, amor, corrida, amadurecimento possam ser incluídas sem ne-

nhum problema na categoria da substancia, de forma a preservar a

pureza a pureza absoluta desta? Sob que bases se afirma que o verbo

reúne relação e qualidade? Afinal de contas, os matizes semânticos

desta classe são os mais diversos: estado, processo, ação, ação-

processo, para nos valermos aqui da terminologia de Chafe (1979).

Para não sobrecarregarmos a presente seção, que se vai esten-

dendo muito, vamos nos ater agora ao critério mórfico.

2- O substantivo: aspectos mórficos

O aspecto mórfico tem relativa limitação, mas exibe mais van-

tagens que o semântico. No referente a este critério, há que se consi-

derar dois grupos de autores: os que consideram as categorias de

gênero e número do substantivo da mesma espécie da dos adjetivos e

de alguns pronomes; os que diferem a manifestação do gênero e do

número no substantivo de natureza diversa da de outras classes. Na

primeira posição, encontram-se autores como Camara Jr. (1981),

Macambira (1978, 1987), Monteiro (2002), entre outros. Na segunda,

autores como Rocha (1998).

Segundo os que seguem o ensinamento de Camara Jr. (1981), as

marcas flexionais não são distintivas: zero do singular, por oposição

ao –s do plural; zero do masculino por oposição ao –a do feminino.

Em essência, aconteceria o mesmo com adjetivos, alguns pronomes e

artigos. Autores há que formulam pequenas variações na proposta de

Câmara Jr.: Silva e Koch (1986), Khedi (1992) e Carvalho (1974).

As autoras da primeira obra postulam alomorfia no plural: -is e -es,

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de países e animais, por exemplo, (estamos desconsiderando, por

economia descritiva, as transcrições fonológicas e levando em conta

a grafia, que deve ser, claro, tomada apenas como signo da matéria

fônica). Os autores da segunda e terceira obra consideram o –o de

aluno e menino como marca de masculino e ao mesmo tempo vogal

temática nominal de sorte a termos a descrição: zero~-u~ -o, nos

exemplos mestre, europeu, menino (isto é, morfe zero, semivogal

velar e vogal média posterior). A marca típica de feminino continua

–a.

Isto posto, resta concluir pelas limitações do critério mórfico-

flexionais para a caracterização do substantivo porque, seja a abor-

dagem de Câmara Jr. ou as abordagens variantes de Silva e Koch

(1986), de Khedi (1992) e de Carvalho (1974), não temos traços

distintivos para delimitarmos o substantivo. Só nos sobra o critério

mórfico-derivacional, adotado com reservas por Macambira (1987).

Existem sufixos próprios de substantivos como -eza, -ez, -ice, -

ura, -dade, entre outros, de natureza transcategorizadora, formadores

de substantivos abstratos, como em beleza, estupidez, meninice, feiú-

ra, bondade. Outros ficam a depender do significado que têm: é o

caso de –al, que pode ser transcategorizador ou não, sendo, neste

último caso, portador do significado de “coleção, reunião”. Exempli-

ficamos: teatral, bananal. Temos, classes distintas: adjetivo e subs-

tantivo. Certos sufixos são marcadamente dessubstantivais

produtores de substantivos como -eiro em leiteiro (idéia de profis-

são), cinzeiro ( idéia de recipiente) e nevoeiro ( conjunto).

Porém, as fronteiras nem sempre são claras nas derivações. Os

afixos finais gentílicos, os sufixos designadores de tendências ou

adesão a uma doutrina, por exemplo, tendem a formar vocábulos que

flutuam entre substantivos e adjetivos, como francês, machadiano,

budista, cristão, fofoqueiro. A propósito, muitas formas primitivas

flutuam entre uma classe e outra, como pobre, amigo, companheiro.

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Trata-se de fenômeno que deve estudar. Não se pode também negli-

genciar a conversão, muitas vezes já consagrada em sincronia, como

a passagem de adjetivos, pronomes, verbos e advérbios e a substanti-

vos: o belo, o alguém, o querer, o hoje.

O critério mórfico não deixa der interessante e tangível, tomadas

as devidas precauções, mas infelizmente sua aplicação é limitada,

porque, obviamente, não se aplica a palavras primitivas. Macambira

julga que o teste relacionado aos sufixos -inho e -ão tem validade

quando os relacionamos às noções dimensionais de pequeno e grande

respectivamente.Trata-se de uma operação que requer cuidado. Se-

gundo Rosa (1982, p. 19), “pode-se geralmente acrescentar –inho , -

zinho a qualquer substantivo, mas é relativamente diminuto o núme-

ro de vocábulos a que é possível ajuntar –ão ou algumas das varian-

tes” Os sufixos diminutivos podem indicar não apenas dimensão,

mas também afeto,valores axiológicos positivos ou negativos. Aliás,

a noção de dimensão pode presentificar-se ou não. Para Rocha (1998,

p. 198), a questão da afetividade precede a questão dimensional. Em

sendo assim, o estudo do chamado grau é de domínio estilístico.

Segundo nosso parecer, pode-se pensar em questões dimensio-

nais, num plano muito abstrato, fora do uso da língua, mas, mesmo

assim, os resultados seriam muito duvidosos com os abstratos. Outro

caso a estudar-se seria o valor axiológico de –inho –ão com adjetivo.

Parece-nos que -ão introduz idéia superlativa, mas –inho/-zinho não

acarretariam fundamentalmente quantificação, mas matizes predomi-

nantemente afetivos de avaliação positiva ou pejorativa. Isto só é

intuição. O estudo destes sufixos fica como sugestão para trabalho

para se analisar em que medida substantivos e adjetivos se aproxi-

mam ou se afastam, mormente através do sufixo -inho-/zinho. No

caso dos adjetivos, parece que a base pode influir notavelmente na

interpretação semântica dos sufixos avaliativos.

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Falemos agora do gênero e do número, que são enfocados de

modos diverso pelos que não seguem a orientação de Camara Jr.

(1981). Neste ponto, podemos obter alguma generalidade, fundamen-

talmente quanto à categoria de número.

A categoria de número, morfologicamente expressa nos substan-

tivos, é, nesta segunda perspectiva, de natureza derivacional, com o

que concordamos plenamente. Afinal, criam-se novas referências.

Uma coisa é menino, outra coisa, menina. Não se pode dizer com

propriedade que menina é forma marcada de menino. Desta forma as

marcas de feminino são -a/-esa /-essa/-isa.

Já nos adjetivos e pronomes que aceitam variação de gênero, há

a chamada deriuatio naturalis porque o processo é imposto pela natu-

reza da frase, pelo substantivo, sendo, pois, de cunho não apenas

morfológico, mas morfossintático. No substantivo, é mórfico apenas.

Pode-se dizer apenas menina não chora e menina seria substantivo

feminino sem necessidade de, na frase, haver imposição externa. Já

em aquela bela menina, as formas aquela e bela são femininas por

força do contexto substantival. Eis aí uma boa maneira de diferenci-

ar-se substantivo de adjetivo. No primeiro caso, há derivação; no

segundo, flexão, do domínio da morfossintaxe. Porém esta diferença

se pauta em bases frágeis. Segundo estudos empreendidos por Rocha

(1998:196), 95,5% dos substantivos refere-se a seres assexuados e

apenas 4,5% a seres sexuados. Ainda assim, entre estes 4,5% , nem

todos recebem a marca mórfica de gênero, a exemplo de criança,

cônjuge, jacaré. Prevalece a marca sintática de gênero e, em segundo

plano, aparece a supleção ou heteronímia.

Quanto à chamada variação numérica, há uma relativa regulari-

dade (cf. LIMA e DUARTE, 2003, p. 95), sendo desprezíveis os

casos de substantivos invariáveis, como ônibus, tórax, atlas. Nos

substantivos, a forma plural é mórfica, enquanto nos adjetivos e pro-

nomes é morfossintática, ditada pela natureza da frase. Por causa da

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notória regularidade entre os substantivos, o plural seria uma semi-

flexão ou semiderivação para Rocha (1998, p. 195). Para nós, trata-se

de derivação bem regular em virtude dos ambientes relativamente

bem delimitados para a recepção da marca básica de plural e de seus

alomorfes.

Passemos agora a analisar o enfoque sintático.

3- O substantivo sob o prisma sintático

A adoção do critério sintático, vale a pena ressaltarmos não leva

necessariamente a um tratamento unívoco das classes vocabulares.

Poderíamos citar diversos autores para ilustrar o referido critério,

mas nos restringiremos a Jespersen (1951a, 1951b), Hjelmslev (apud

BIDERMAN, 2001), Lhorach (2000) e Duarte (1983). Um ou outro

autor que surja adicionalmente não terá o peso significativo destes.

Jespersen (1951a) considera fundamental o estabelecimento de

uma ordem hierárquica. Reconhece basicamente três graus:

o papel primário: representado pelo substantivo;

o papel secundário: representado pelo adjetivo e pelo verbo;

o papel terciário: representado pelo advérbio.

Cabem algumas considerações sobre a proposta do lingüista di-

namarquês. A proposta, fundada no eixo sintagmático, tendo o subs-

tantivo como constituinte primordial da expansão (cremos que o

estudioso enfoca a função sujeito), merece alguns reparos: um deles

diz respeito ao fato de que atipicamente advérbios podem ser primá-

rios como em: aqui me faz bem, hoje me recorda um dia triste na

minha vida. Para casos assim, duas saídas se impõem: ou se leva o

conceito de primário às ultimas conseqüências e se considera aqui e

hoje como substantivos ou se atenua a noção de primário, asseveran-

do-se que o substantivo é prototipicamente um primário (posição esta

assumida em JESPERSEN, 1951b).

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O mesmo vale para o papel secundário. Em sintagmas como o

então rei da França, o hoje Presidente do Brasil, as formas então e

hoje ou são consideradas adjetivos, levada às últimas instâncias a

noção de secundário, ou se considera o adjetivo (e o verbo) como

prototipicamente classes secundárias.

A proposta de Jespersen parece muito viável quando vista criti-

camente (obviamente cabe falar de um papel quaternário, em casos

de modificadores de advérbios, bem como de adjetivos em papel

terciário, muito similares ao advérbio). No que concerne ao substan-

tivo, a depender da solução adotada, podemos admitir formas como

hoje e aqui como substantivos ou não. A variação genérica e numéri-

ca no primeiro caso fica relegada a segundo plano. Não vemos, a

principio problema em radicalizar a noção de primário. Naturalmen-

te, não julgamos inpertinente assumir como primarias as formas pro-

nominais pessoais, demonstrativas e indefinidas, que ficariam

inclusas as classes dos substantivos. Isto, todavia, é ponto de vista

nosso.

A proposta de Jespersen logrou razoável êxito entre nós. Cama-

ra Jr.(1981) em sua doutrina de classes e funções, admite o substan-

tivo como subdomínio funcional do nome e do pronome ( que

englobam substantivos, adjetivos e advérbios). A classe é de natureza

morfossemântica, paradigmática, enquanto a função é de natureza

sintática, sintagmática. Segundo leituras nossas, Camara Jr. tende a

adotar a prototopia no domínio das classes e das funções, embora não

a explicite. Deste modo, aqui e hoje seriam tipicamente pronomes

adverbiais. Adotada esta solução, gera-se um impasse: um advérbio

passaria a ter possibilidade de exercer a função de sujeito.

A proposta do estudioso dinamarquês, encampada por Câmara

Jr., é rica de conseqüências uma vez que permite estabelecer liames

entre as funções, tais como entendidas pela tradição e as classes de

palavras reinterpretada funcionalmente pelo lingüista brasileiro. Por

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exemplo, a função substantivo se articula com as subfunções sujeito

e objeto direto (melhor dizendo, núcleo destas funções). A função

adjetivo por seu turno se traduz por subfunções do tipo adjunto ad-

nominal e predicativo do sujeito.

Com pequenas variações, a proposta de Jespersen foi adotada

por outros autores como Hjelmslev (apud BIDERMAN, 2001, p.

226). Segundo este autor, há cinco classes fundamentais: o substanti-

vo, o adjetivo, o verbo, o advérbio e o pronome. O substantivo é

claramente definido por sua função primaria, tal como estabelecera

Jespersen.

Outro estudioso que admite explicitamente o critério sintático é

Llorach (2000), que propõe, à semelhança de Jespersen e Hjelmslev,

um sistema simplificado de classes. Embora a proposta tenha sido

estabelecida pelo autor para o espanhol, podemos sem dificuldade

aplicá-la ao português.

Llorach não faz distinção entre significado lexical e significado

gramatical à maneira de vários autores. Estes separam, por exemplo,

substantivo e pronome, estabelecendo para este último um significa-

do de tipo gramatical por oposição ao significado do primeiro, de

tipo lexical, relacionado à referência ao mundo extralingüístico. Para

Llorach, o significado lexical diz respeito ao que fixado na língua,

dicionarialmente. Ele contém, em germe, as potencialidades de item

léxico no que respeita as suas aplicações discursivas. Assim a forma

ele tem como significado lexical 3ª pessoa (do singular) e, como tal

possui o potencial de aplicar-se a itens lexicais como homem, livro,

amor, entre outros. Alguém e algo têm como marca, além da 3ª pes-

soa do singular, a de [+ personativo] e [- personativo], respectiva-

mente, ao lado da marca de indefinitude, o que torna o campo de

aplicação das referidas formas menor que de ele. Em termos lógicos,

podemos dizer que, em virtude de uma maior intensão, a forma ele,

tem uma extensão maior. Assim, asseveramos que, na língua, o signi-

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ficado lexical de ele é menor do que de alguém e ainda menor que o

de livro. Todavia eles apresentam em comum o traço de 3ª pessoa.

Llorach parte do tripé função, forma e sentido para classificar o

item lexical. O autor não confia no critério semântico para ser um

critério de base, mas tão somente um critério adjunto, complementar.

A passagem abaixo, referente aos demonstrativos, é ilustrativa para

nos darmos conta do tratamento a ser dado aos substantivos:

Embora se tenha insistido muito em separar as palavras destinadas a designar “o campo mostrativo” das que aludem ao chamado “campo simbólico”, o certo é que a função lingüística que uma e outras desempenham não é diversa. Ambos os tipos de palavras possuem uma significação fixa e constante; a diferença reside na diferente realidade extralingüística que denotam. Se a denotação levada a efeito por um demonstrativo (ou outras unidades da língua ) é ocasional, quer dizer variável segundo cada ato de fala, sua significação, ou seja, seu valor diferencial e sua função, é sempre a mesma. As referencias englobadas no campo mostrativo não deixam de ser também conceituais ou simbólicas. Manifestam-se idêntica referência real dizendo-se tanto “nas presentes circunstancias”, como nestas circunstâncias; apesar disso, ninguém considera presentes como um demonstrativo. Por conseguinte, interessa determinar que traços funcionais justificam a agrupação à parte dos demonstrativos (2000, p. 107-108).

Em resumo, o autor não aceita como abalizada a distinção entre

campo simbólico e como mostrativo, que norteia o pensamento de

Camara Jr. (1981) para o reconhecimento das classes vocabulares

nominais e verbais. Chega a um resultado, por via dia diversa, seme-

lhante ao de Hjelmslev e ao de Jespersen. Identifica as seguintes

classes funcionais: substantivo, adjetivo, verbo e advérbio. O subs-

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tantivo, que de perto nos interessa, abrange o que tradicionalmente

que já é consagrado como substantivo, a exemplo de casa, amor,

amizade e os pronomes de toda natureza, capazes de exercer núcleo

de função sintática, como sujeito e objeto direto. Quer dizer: a classe

pronominal deixa de existir e se dissolve por completo na classe

substantival (PERINI, 1995, apresenta proposta similar para os subs-

tantivos).

Por fim, para não estendermos demasiadamente a proposta, resta

aludir à proposta gerativista de Duarte (MATEUS et al., 1983). Se-

gundo ela, existem cinco classes lexicais maiores: o nome, o verbo, o

adjetivo, o advérbio e a preposição. Estas classes são identificadas

pela possibilidade de engendrar sintagmas: SN, SV, SDJ, SADV,

SPREP. A princípio, somos levados a crer que, por nome, se entende

apenas o substantivo. Ao longo da obra (cf. MATEUS, 1983), cons-

tatamos, todavia, que o nome também encampa o que a tradição

chama pronome, embora a expansão sintagmática deste seja diversa

do substantivo típico. Pronomes pessoais, por exemplo, não admitem

adjetivos. Quando admitem quantificadores, admitem apenas formas

como alguns de e nenhum de: alguns de nós, nenhum de nós, jamais

*alguns nós ou *nenhum nós. Os demonstrativos e os indefinidos se

deixam expandir por adjetivos (acompanhados de preposição, no

caso dos demonstrativos): algo bom, aquilo de bom. Em suma, mes-

mo como classe isolada dos substantivos, os pronomes constituem-se

de subclasses bastante heterogêneas.

Conclusão

Face ao exposto, chegamos a conclusão que se segue. Para nós,

enquanto classe estudada em si mesma, o substantivo é muito mais

bem definido pelo critério sintático, qualquer que seja a proposta que

abracemos. O ônus a pagar, pela economia descritiva, é o incluir,

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numa espécie de superclasse, uma ampla gama de itens lexicais, a

exemplo de casa, Pedro (nome próprio de expansão muito limitada),

nós, isto, alguém, quem (pronome interrogativo), entre outros. Por

isto, somos concordes com Llorach (2000) em tipificar os substanti-

vos conforme o comportamento sintagmático: substantivos comuns,

pessoais (nós, vocês), demonstrativos, indefinidos (alguém, algo),

interrogativos (quem, o que). O que os irmana é a possibilidade de

assumirem funções sintáticas, como sujeito e objeto direto. As po-

tencialidades combinatórias limitam a aproximação das subclasses

substantivais. O adjetivo, por exemplo, se combina com os substanti-

vos comuns, demonstrativos e indefinidos, mas não se combina com

os pessoais. Os quantificadores definidos e indefinidos, como oito e

alguns só se combinam com os substantivos comuns. Os exemplos

de diferença combinatória poderiam se multiplicar ad libitum. Poder-

se-ia se indagar se estas diferenças combinatórias poderiam ser moti-

vo para se criarem novas classes de palavras em base sintática. Nossa

intuição de falante nos diz que sim, mas o custo seria uma prolifera-

ção categorial.

O critério mórfico também nos parece de relativa importância

não tão grande quanto o sintático. Baseado em Rocha (1998), que

estabelece diferença entre o gênero e o número como categorias mór-

ficas no substantivo, e o gênero e número como categorias morfos-

sintática para os determinantes do substantivo, cremos que o sufixos

de número, de natureza referencial é relevante. Outras marcas sufi-

xais podem ser aludidas como os sufixos -eza, -ês, -ura, -ice entre

outros, podem ser evocadas. No entanto a maior parte dos substanti-

vos da língua não ostentam estas marcas. O sufixo de gênero é por

demais circunscrito e seu valor é muito limitado. Não se aplica a

grande parte dos substantivos comuns e de outros arrolados por Llo-

rach.

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A propósito, a flexão numérica não de quase nenhuma serventia

entre os substantivos pronominais. Eu e tu, bem como isto não apre-

sentam flexão de número. Nós e vós não são plurais de eu e tu, se

quer por supressão ou heteronímia, uma vez que nós não é eu+eu+eu

nem vós é igual a tu+tu+tu ..., necessariamente. Também equivale a

tu + ele (s).

O critério semântico é o mais frágil. Não vamos aqui recapitular

a nossa argumentação em favor da fragilidade desse critério uma vez

que nos debruçamos longamente sobre ele. O lado mais operacional

do citado critério se encontra em Neves (2000), que se vale da intui-

ção do falante para a noção deve nomear ou denominar, a fim de

afastar, pelo menos inicialmente, o fantasma da lógica e da referên-

cia. Contudo, embora não seja exagero afirmar com a autora que o

substantivo seja a classe nomeadora por excelência, duas objeções se

impõem: o nomear não é circunscrito ao substantivo; com a introdu-

ção do critério sintático em amplitude máxima, o critério semântico

se torna problemático porque deve dar conta também do que a tradi-

ção chama pronomes, que Neves (2000) reconhece como classe dis-

tinta, nos moldes da gramática normativa, ainda que com maior rigor

analítico.

Cremos que outro resultado seria obtido se estabelecemos traços

semânticos para cotejarmos o que se convencionou chamar substan-

tivo próprio, substantivo comum e pronome para verificarmos um

continum entre estas categorias lingüísticas. Veríamos, por exemplo,

que ele está no extremo da escala quanto às marcas intensionais em

relação a algo (que só possui sema de classe: coisa) e mais ainda em

relação a livro e a caderno. As marcas intensionais poderiam conju-

gam-se a marcas sintáticas, quer pela função desempenhada no con-

texto frasal quer pela combinatória sintagmática. Isto, porém,

constituirá objeto de outro trabalho.

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Leitura em Aula de Língua Portuguesa: Uma Abordagem Enunciativa

Silvana Silva (UNISINOS)

(...) o que eu agradecia a Deus, era ter me emprestado essas vantagens, de ser atirador, por isso me respeitavam. Mas eu ficava imaginando: se fosse eu tivesse tido sina outra, sendo só um coitado morador (...) então, aqueles que agorinha eram meus companheiros, podiam chegar lá, façanhosos, avançar em mim, cometer ruindades. Então?”

(Rosa, G. Grande Sertão: Veredas, 2001 p. 243)

Introdução

Segundo Leffa (1999, p. 16), uma das práticas mais recorrentes

de leitura, especialmente até os anos 80, era a leitura de extração de

informações do texto. Em outras palavras: o texto era lido da mesma

maneira por todo e qualquer leitor. Vejamos:

a leitura não visava apenas deixar o texto transparente para o leitor, mas partia-se, também, do pressuposto de que o texto deveria ser processado na sua totalidade. A leitura não era vista como um processo seletivo, onde o leitor busca no texto, de modo ativo, as informações que lhe interessam, mas um processo passivo, onde tudo é importante, cada frase e cada palavra. Devido à transparência do texto, que de tão familiar se torna invisível, o processamento se dá de modo total e inconsciente, já que conscientemente não seria possível processar tanta informação.

A citação ilustra uma das concepções de leitura que circulam no

ensino de língua, a saber, a de leitura total de um texto. Tal concep-

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ção tem seu corolário na produção de fichas de leitura, ou seja, nos

registros escritos objetivos de um texto. Assim, a compreensão tex-

tual é estabelecida na base da extração de informações. No entanto,

como afirma Leffa, o texto torna-se, dessa forma, invisível para o

aluno.

A fim de propor uma concepção de leitura que não vise à invisi-

bilidade ou à ausência do texto e sim à densidade ou presença do

mesmo, investigaremos a Teoria da Enunciação de Émile Benvenis-

te. A leitura não foi tematizada como objeto por Benveniste (1988,

1989). No entanto, o autor nos autoriza a empreender tal estudo,

desde que se considere o quadro teórico da enunciação. Apesar do

autor não se deter nos processos de leitura, ele estabelece alguns

posicionamentos quanto a esse assunto ao definir conceitos como

compreensão, tu, co-referência e inversibilidade da relação dialógica

eu-tu. Com isso, objetivamos explorá-los, de forma a que nos condu-

zam a uma visão o mais clara possível de uma abordagem enunciati-

va da leitura. Objetivamos principalmente melhorar a relação

professor-aluno, acreditando que, dessa forma, será possível propor

leituras mais produtivas para os alunos.

Tal estudo justifica-se não apenas pela precariedade de explora-

ção textual que os livros didáticos trazem, mas também pela atitude

do professor frente às interpretações textuais em língua portuguesa.

Ainda é uma novidade para muitos professores, ou um desafio in-

transponível, considerar interpretações textuais muito diferentes das

suas.

2. Ancoragem teórica: enunciação e leitura em Benveniste

Entendendo as noções de enunciação – apropriação do aparelho

formal da língua e atualização de sua posição de locutor (1989, p. 82)

– pessoa – relação de reciprocidade e transcendência daquele que diz

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eu sobre aquele a quem remete como tu (PLG I, p. 286) – diálogo –

colocação de duas figuras na posição de parceiros alternativamente

protagonistas da enunciação (1989, p. 87) e não-pessoa – terceira

pessoa (“ele”) responsável pelas referências de objeto,– como cen-

trais podemos dizer que a leitura caracteriza-se por um processo de

apropriação simultânea do texto (ELE), do interlocutor (TU) e de si

mesmo (EU) em um dado momento (AQUI-AGORA) para a atuali-

zação de uma posição de leitor. Assim, a leitura atende, simultanea-

mete, a funções cognitivas e subjetivas. Em outros termos: a leitura

tem a função de estabelecer uma relação entre informação (ele) e

pessoa (eu-tu), ou seja, produzir um sentido novo acoplado a um

sentido existente. Podemos denominar tal processo de leitura enunci-

ativa. É necessário fazer a ressalva de que tu não precisa ser uma

pessoa real, podendo ser um interlocutor imaginário (1989, p. 87-8).

Tal ressalva nos faz atentar para o fato de que o tu, assim como o eu,

nunca equivale a uma pessoa real, quer dizer, é sempre resultado de

um ponto de vista particular e irrepetível.

Cabe-nos precisar melhor a relação – ou o diálogo – entre as

pessoas eu e tu. Como vimos, essa relação é recíproca, uma vez que

eu e tu são alternativamente protagonistas da enunciação, ou seja,

ambos têm a mesma importância. Além disso, essa relação é irrepetí-

vel, uma vez que eu e tu são únicos em cada instância espaço-

temporal – o “eu” que enuncia, o “tu” ao qual “eu” se dirige são a

cada vez únicos (1988, p. 253).

Ora, se a enunciação é um processo dialógico, a leitura enuncia-

tiva atual é sempre um processo resultante de uma enunciação ante-

rior e projeta uma enunciação posterior. Costa Silva (2000, p. 57)

lembra que, para Benveniste, a enunciação é constituída não apenas

na simultaneidade da relação eu-tu, mas também a consecutividade, a

sucessão de três enunciações.

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Para Benveniste, compreender ocorre simultaneamente a reco-

nhecer. O autor define esses termos da seguinte forma: reconhecer é

perceber a identidade entre o anterior e o atual e compreender é per-

ceber a significação de uma enunciação nova, de outra (1989, p. 66).

Com isso, vemos que, para Benveniste, o leitor reconhece o texto ao

identificá-lo com leituras anteriores e produz uma interpretação no-

va, única a cada vez que lê um texto. As atividades de reconhecimen-

to e compreensão são o suporte teórico de que a enunciação

apresenta um duplo eixo da consecutividade e da simultaneidade

temporal.

Benveniste descreve ainda a relação eu-tu não apenas como uma

relação recíproca, mas também como uma relação possível. Veja-

mos: “A condição mesma dessa [relação da língua com o mundo] é,

para o locutor, a necessidade de referir pelo discurso e, para o outro,

a possibilidade de co-referir identicamente” (1989, p. 84, grifos nos-

sos). Haveria aí um paradoxo? Como pode toda enunciação, ao

mesmo tempo, postular obrigatoriamente um tu e esse tu ser possí-

vel? Trata-se, no entanto, de um aparente paradoxo. Toda enunciação

de eu postula, certamente, um tu, mas o tu, ao tomar a palavra e se

tornar eu, pode ou não manter o mesmo sentido, a mesma referência,

pode ou não co-referir.

A partir dos conceitos de pessoa, diálogo, tempo-espaço, refe-

rência e co-referência, podemos formular uma definição de leitura

enunciativa, qual seja, a de apropriação e atualização de um signifi-

cado novo resultante da intersecção de um texto (ELE), da visão de

um interlocutor (TU), de si mesmo (EU) e de um tempo-espaço

(AQUI-AGORA) por um sujeito leitor.

Como é operacionalizado tal significado novo, isto é, como o-

correm as diferenças de leitura? Certamente, como vimos na citação

de Leffa, esse processo não se dá através de uma leitura total, que

procura apagar a apropriação individual do texto. Trata-se, em uma

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primeira aproximação, de uma leitura parcial, que procura dar relevo

a certas formações lexicais e sintáticas e não outras. Benveniste

(1989, p. 233-4) apresenta um conceito interessante para descrever

essas leituras parciais: sintagmatização. Sintagmatização é o signifi-

cado resultante do amálgama do significado de duas palavras. Ben-

veniste exemplifica isso com ir e vir que, em Ele vai vir, não

significa a soma do significado de duas palavras, nesse caso semioti-

camente opostos, e sim um amálgama: vai indica que o processo de

vir ainda não começou. Nesse caso, o leitor leu vai vir como uma

locução verbal. Além disso, pode-se pensar que outro leitor possa

apropriar-se dessa frase e produzir outro significado como “essa

frase não é gramatical, devo dizer Ele virá ou Ele irá”. Nesse caso, o

leitor leu vai vir como dois signos verbais plenos. Assim, cada leitor,

cada EU, ao se apropriar da leitura, produz uma certa sintagmatiza-

ção de um texto.

Dado esse conceito, é necessário ver como ele se concretiza na

situação dialógica da sala de aula.

3. Análises de leitura enunciativa

Se, como dissemos, a leitura é o resultado da intersecção de fa-

tores envolvendo a instância de discurso, a saber, eu-tu-este-aqui-

agora, como poderíamos designar tais fatores na situação de discurso

de sala de aula?

Em situações de leitura precedidas por uma interpretação do

professor e realizadas por grupos de alunos, o sujeito aluno (EU), ao

produzir sua leitura do texto (ESTE), igualmente produz uma visão

do TU (professor ou colegas com quem compartilha o processo de

leitura) e do espaço-tempo (presente aula).

Acreditamos que a análise da leitura enunciativa do aluno é uma

forma de descrever a relação aluno-professor (eu-tu), podendo servir

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de instrumento ao professor que procura um meio para comprometer

seus alunos com as atividades de sala de aula.

Para isso, faremos o levantamento dos três casos a seguir: 1) co-

referência total de leitura aluno-professor; 2) co-referência parcial de

leitura aluno-professor; 3) não co-referência de leitura aluno-

professor. Faremos a análise do caso 3, uma vez que nosso objetivo

inicial é observar casos extremos de falta de coincidência de leitura

entre professor e alunos. 3.1 Do objeto de estudo

Nosso objeto de estudo serão 15 interpretações textuais realiza-

das por alunos do Curso de Ciências Jurídicas e Sociais de uma uni-

versidade do Rio Grande do Sul em uma aula da disciplina de Língua

Portuguesa, durante o segundo semestre de 2005. Deteremo-nos es-

pecificamente na análise de duas leituras: a do professor e a de um

aluno apresentando leitura não co-referencial a do professor. 3.2 Metodologia de análise

O corpus de análise será descrito de acordo com a seguinte me-

todologia:

1ª Instauração da relação dialógica (Enunciação anterior): apon-

tamento das diretrizes de leitura do professor;

2ª Implantação da relação dialógica (Enuciação atual): Classifi-

cação das interpretações em três tipos, a saber, co-referência total,

co-referência parcial, não co-referência;

3ª Co-referência da relação dialógica (Enunciação posterior):

Análise de uma interpretações de co-referência – do professor – e

uma interpretação de não-co-referência – de um aluno - , procurando

descobrir uma sintagmatização coerente com a proposta do profes-

sor; 3.3 Análises dos processos de leitura enunciativa

1º) Enunciação anterior

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O professor trabalhou com noções de estrutura argumentantiva

do texto (ADAM, 1992). Inicialmente, ele apresentou um texto e

demonstrou sua segmentação em quatro partes para os alunos, fri-

sando que as partes devem ser apresentadas sempre na mesma or-

dem, a saber, tese anterior-tese-comprovação-conclusão, em um

texto que se pretenda bem argumentado. As quatro partes foram de-

finidas da seguinte forma: tese ou situação anterior – parte textual em

que o autor contextualiza o assunto de acordo com suas definições

geralmente aceitas pela sociedade, do senso comum, tradicionais,

antigas; tese – parte textual em que o autor posiciona-se frente ao

assunto, geralmente de forma diferente da posição do senso comum,

ou apresenta um problema; comprovação – parte textual em que o

autor apresenta provas pertinentes (exemplos, estatísticas, casos da

realidade) para demonstrar sua tese; conclusão – parte textual em que

o autor propõe uma solução para o problema ou faz uma generaliza-

ção da tese.

2º) Enunciação atual

A partir do texto abaixo, os alunos produziram leituras que co-

incidiram e que não coincidiram com a do professor:

Consumidor sem garantia.

Antônio Carlos de Lima (Delegado Titular do Decon/GO/ Dou-

torando em Direito)

Os denominados shoppings populares, camelódromos ou mes-

mo, os camelôs de rua, estão abarrotados de mercadorias oriundas da

Cidad del Leste, Paraguai. São aparelhos eletrônicos diversos, brin-

quedos, cosméticos, ferramentas, cds, utensílios etc. Será que estes

produtos possuem garantias? E se apresentarem defeitos de “fabrica-

ção”, o nosso código de proteção e defesa do consumidor está apto a

defender este consumidor?

A Lei n. º 8.078/90 criou o conhecido Código do Consumidor,

que, em seus artigos 2º e 3º, define o que seja: consumidor, fornece-

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dor, produto e serviço. Equiparando a fornecedor “os entes desperso-

nalizados”, denominação que abarcaria estes comerciantes informais

e, por conseguinte, esta lei protetiva se aplica a essa modalidade

ilícita de fornecedores.

A teoria assim preconiza, mas a pratica é bem outra, senão ve-

jamos: estes produtos não são importados legalmente, pelo contrário,

trata-se de mercadorias de procedência criminosa, fruto de contra-

bando (artigo 334, do Código Penal). Assim sendo, como estes for-

necedores, denominados pela lei de “entes despersonalizados” vão

emitir a devida nota fiscal, a qual é obrigatória, em conformidade

com o artigo 1º, inciso V, da Lei nº 8.137/90 (penaliza com pena de

reclusão de 2 a 5 anos a não emissão da nota fiscal).

Seriam então estes consumidores amparados pelo artigo 18 do

Código do Consumidor, que prevê a garantia obrigatória, não neces-

sitando de nota fiscal. Pois estes “fornecedores” teriam 30 dias para

reparar os vícios de qualidade dos produtos que comercializaram ou

devem substituir, este produto por outro da mesma espécie, caso não

seja possível, restituir a quantia paga ou fazer um abatimento propor-

cional ao preço.

Em tese, a resposta é afirmativa, mas, sem a nota fiscal, fica di-

fícil fazer prova da data da aquisição e da espécie do produto, o que

prejudicaria as reclamações administrativas do consumidor. O que,

necessariamente, remete o consumidor ao Poder Judiciário comum

ou ao Juizado Especial Cíveis, situação de que nenhum de nós, brasi-

leiros, gostamos, pois é sinônimo de muita demora crônica.

Vimos que, pelo caminho legal, a vida do consumidor, para es-

tes casos, não é nada fácil. Entretanto, vislumbro que, pela estrada da

cidadania, ela é perfeitamente possível. Vivemos em um estado de

direito de um regime democrático, em que cidadania nada mais é de

que um conjunto de direitos e deveres. Adquirir um produto de um

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fornecedor legalmente estabelecido, exigir a nota fiscal e o termo de

garantia devido fazem parte deste contexto.

Na hipótese de ser o consumidor uma pessoa de poucos recursos

financeiros, também sugerimos uma conduta legal e de bom senso:

adquirir seus produtos em lojas populares, conhecidas coloquialmen-

te por “1.99”. Apesar da baixa qualidade dos produtos lá encontra-

dos, o consumidor tem condições de fazer valer seus direitos, pois se

presume que a importação é legal e a expedição do documento fiscal

é perfeitamente possível. O que, tanto para o consumidor, quanto

para o fornecedor e o Estado fica de bom tamanho, havendo o reco-

lhimento do imposto devido, o que é vantajoso para todos.

Assim, o consumidor deve se conscientizar de que seus direitos

dificilmente lhe serão ofertados, sendo que ele terá que conquistá-

los, e sua luta e árdua, nestes casos. Porém, fazendo sua parte, que é

fazer suas compras em lojas estabelecidas. Agindo como cidadão, as

coisas ficam bem mais facéis para todos, inclusive para os órgãos de

defesa do consumidor. Portanto, consumidor, faça o seu dever de

casa, aplique cidadania nos “pirateiros”. (http://www.ambito-

juridico.com.br/aj/dconsu0040.htm, em 20/09/05)

Referência ou leitura enunciativa do professor:

Tese anterior: “Os denominados shopping centers... até....essa

modalidade implícita de fornecedores” (1º e 2º parágrafos); Tese: “A

teoria assim preconiza.... até... muita demora crônica (3º a 5º parágra-

fos); Comprovação: “Imagine a situação de.. até... “ela é perfeita-

mente possível” (6º e metade do 7º parágrafo); conclusão: “Vivemos

em um estado de.. até... aplique cidadania nos “pirateiros” (metade

final do 7º parágrafo até o 9º parágrafo).

Para o professor, a tese anterior refere-se à contextualização ju-

rídica dos consumidores de produtos piratas. Segundo a lei, tais con-

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sumidores têm garantias. A tese do autor, enunciada também no títu-

lo, ou seja, consumidor (não tem) garantia, começa a ser apresentada

quando o autor mostra que na prática a realidade é outra. Ou seja,

para o professor, a tese é marcada pela seguinte expressão “A teoria

assim preconiza mas a prática é bem outra” (início do 3º parágrafo).

3º) Enunciação posterior:

Ao analisar as interpretações de não co-referência que, em outro

caso, poderiam nos levar a uma desqualificação da leitura, uma in-

terpretação de aluno nos chamou atenção. Vejamos:

Segmentação do aluno R.G.M: Tese anterior: “Os denominados

shoppings populares... até ferramentas, cds, utensílios, etc.”; Tese:

“Será que esses produtos... criou... até... este consumidor?”; Tese

anterior: “A lei nº 8078/90 criou o conhecido Código do Consumi-

dor... até... nota fiscal); Tese: “Seriam então... até... demora crônica”;

Comprovação: “Imagine a situação... até... perfeitamente possível”.

Conclusão: “Vivemos em um estado de direito... até... aplique cida-

dania nos “pirateiros”. Logo, o aluno observa uma descontinuidade

na estrutura argumentativa desse texto, a saber, tese anterior – tese –

tese anterior-tese- comprovação-conclusão. Ao observar que a tese,

para esse aluno, começa na pergunta “Será que esses produtos possu-

em garantias?”, passamos a observar que a tese também pode ser

apresentada através de uma dúvida, primeiro indício de uma contra-

posição ao senso comum e não apenas de uma afirmação. Este fato

também foi comentado em aula pelo professor na enunciação anteri-

or. Assim, o aluno co-refere a essa parte da enunciação do professor

e não co-refere à parte de sua enunciação em que ele havia dito haver

uma ordem rígida na estrutura argumentativa. 3.4. Discussão dos resultados

Podemos falar, nesse caso, de uma não co-referência do aluno à

leitura enunciativa atual do professor e de uma co-referência parcial

à leitura enunciativa anterior do professor. Portanto, ao invés de des-

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qualificar a leitura dos alunos R. G. M., o professor deve considerar

sua leitura, uma vez esse sujeito inseriu-se na relação dialógica com

o professor estabelecida em sala de aula. Como vimos, se a leitura é

um processo dialógico único, diferente para cada aluno (o que justi-

ficaria o alto índice de co-referência parcial na tabela 1), isso tam-

bém significa levar em consideração uma dupla temporalidade: a

enunciação anterior e a enunciação atual do professor. Sem essa du-

pla consideração, o professor pode avaliar as interpretações dos alu-

nos de forma incoerente e, arriscaríamos dizer, injusta.

Tal interpretação é devida a diferentes sintagmatizações do tex-

to: a) do professor é o fato da referência da tese ser resultado de uma

afirmação como contraposição explícita ao senso comum; b) do alu-

no R.G.M: a do aluno é o fato da referência da tese ser resultado de

uma dúvida inicial, contraposição implícita ao senso comum. Essa

interpretação fez com que constatássemos uma contradição entre

duas enunciações do professor.

Considerações finais

Os alunos sintagmatizam diferentemente a partir das diversas in-

formações dadas pelo professor. Ao promoverem leituras diferentes

sobre o objeto de estudo, os alunos assumem, ao mesmo tempo, po-

sições diferentes dos professores, os quais devem estar sensíveis a

essas divergências.

O professor deve cuidar para tratar os alunos como pessoas sin-

gulares ou estritas (tu – eu) e não como pessoas amplificadas (vocês

– eu) (Benveniste, 1989, p. 259), isto é, deve evitar conceber uma

homogeneização de respostas. Isso exige um trabalho de interpreta-

ção diferente do texto por parte do professor. Ainda assim, o profes-

sor deve saber reconhecer os casos em que o “tu” escapa à relação de

enunciação e quer reinar absoluto, assumindo uma posição cujo sen-

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tido, lógica ou sintagmatização escapam da lógica proposta em aula.

De qualquer forma, a análise da interpretação do aluno R.G.M con-

duz o professor a uma reconsideração da interpretação do aluno,

atitude esta esperada para o professor que tomar a leitura como um

processo enunciativo.

Além disso, o professor deve estar atento para a abordagem téo-

rica que subjaz à sua exploração da estrutura de um texto. Como

vimos, no caso estudado, o professor baseia sua análise em Adam,

autor que, segundo Barbisan (2001, p.131), tem uma visão pragmáti-

ca de argumentação. Caso queira tomar uma abordagem enunciativa

de leitura, nunca pode tomar suas afirmações, suas palavras, como

elementos isolados, deve sempre relacioná-las a outras afirmações

para buscar a lógica (ou a falta de lógica) do aluno.

Como as conclusões apresentadas são provisórias, questões rela-

tivas à leitura enunciativa devem ser exploradas em artigo futuro,

como, por exemplo, o estatuto da co-referência parcial na avaliação

do professor. De qualquer forma, esperamos que o conceito de leitura

enunciativa, ora apresentado, sirva para auxiliar o professor na avali-

ação das leituras de seus alunos.

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Violência na tragédia grega

Verônica Ribas Cúrcio (UFSC)

Ao pensar na possibilidade de se trabalhar com a representação

da violência na forma artística, deve-se dar atenção especial às tragé-

dias. Oriunda das práticas de poesia lírica da civilização helênica, a

tragédia é uma das formas mais antigas da representação artística

escrita por poetas. Elas surgiram de lendas, de fábulas e temas já

conhecidos pelo povo. Como concorda Aristóteles, o ideal era traba-

lhar histórias conhecidas – os mitos; pois é mais difícil acreditar em

coisas que não se passaram com ninguém “o que não aconteceu não

cremos de imediato que seja possível, mas o que aconteceu o é evi-

dentemente” (ARISTÓTELES, 1997, p. 29). Muitos poetas inclusive

aproveitavam a extensa reunião de acontecimentos que abarca a O-

disséia e a Ilíada de Homero para representarem, de uma forma mais

ampla, em suas tragédias. É como ilustra W. Jaeger (1944, p. 287)

nas seguintes palavras: “A epopéia e a tragédia são como duas for-

mações montanhosas ligadas por uma série ininterrupta de serras

menores”.

Momentos que trazem à luz a violência como intrínseca à tragé-

dia grega podem ser enumerados: a possessão de Agave exercida em

As Bacantes de Eurípides; o sofrimento dos heróis trágicos de Sófo-

cles em Édipo Rei, com a sua auto-flagelação, o suicídio que aparece

em Antígona; nas histórias do ciclo dos Labdácidas: as maldições

(em torno de Tebas), as punições ou auto-punições, os castigos, as

desgraças, e os exílios.

Além de abordar um breve estudo histórico das tragédias, se-

gundo informações de diferentes autores, o que se pretende como

questionamento aqui, é investigar de que maneira se dá e para que

serve essa prática da representação da dor, da violência no teatro

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grego. Partindo de pensadores como Aristóteles e Nietzsche faz-se

aqui uma aproximação ou comparação desses dois ideais distintos,

trazendo suas leituras sobre as tragédias. Através de exemplos bem

particulares, ilustra-se essa forma de representação da violência na

tragédia grega.

Pode-se notar que durante a formação da civilização grega exis-

tiu uma forte crença religiosa e todas as medidas políticas tomadas

não se separavam das consultas ao oráculo de Delfos, talvez para se

informar sobre alguma oportunidade de expedição, se seria venturoso

ou não, que rotas tomar, entre outros. Festas religiosas também eram

muito comuns, para cada fundação de uma Metrópole era regida uma

manifestação religiosa, a exemplo disso, tinha-se na própria entrada

da cidade de Atenas, um altar de Atena Políade (protetora da cidade)

em frente e no alto da muralha que protegia todo o povoado (JAR-

DÉ, 1977, p. 5-11).

Junto a essas práticas religiosas surge um evento que irá se repe-

tir no mínimo três vezes por ano: são as festas que acompanhavam o

calendário agrícola destinadas ao deus do vinho, Dioniso; eram festas

de caráter alegre, onde se fazia muita dança, música e também apre-

sentações dramáticas, o que mais tarde se nomearia de tragédias.

Embora a sua origem ainda seja muito discutida, a tragédia, vin-

da do folclore grego, teria o seu aparecimento a partir do século V

a.C., porém, consoante W. Jaeger (1994, p. 292), seu desenvolvimen-

to se deu em companhia do poder civil, ou seja, a tragédia teve em

século inteiro de existência e de total hegemonia, teve essa durabili-

dade junto ao desenvolvimento, auge e decadência do Estado ático.

Sobre seu surgimento, J. Brandão esclarece que a tragédia seria uma

“evolução do ditirambo através do drama satírico”, também a própria

palavra teria uma ligação com a figura dos Sátiros, que eram “ho-

mens-bodes”, dessa mistura saíram as palavras bode + canto = trai-

gós + oidé (BRANDÃO, 2002, p. 128). Existe uma outra versão para

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o surgimento da palavra, uns acreditam no fato de que era comum o

sacrifício de um bode a Dioniso, para a purificação da pólis.

A tragédia surgiu em conjunto com as festas que celebravam a

safra da uva e o cultivo do vinho. Junito Brandão explica que durante

alguns meses do ano a civilização grega preparava rituais festivos em

torno do calendário agrícola e também para celebrar o deus do êxta-

se, entusiasmo e da vegetação: Dioniso, o deus do vinho. Para Bran-

dão as festas se diferenciavam em quatro tipos: as Dionísias Rurais

que aconteciam na segunda metade de dezembro, com o intuito de

provocar fertilidade nos solos, nos campos e nas casas; o evento cen-

tral consistia num Komos, uma espécie de procissão em que, carre-

gando um enorme falo, as pessoas usavam máscaras ou disfarçavam-

se de animais, cantavam e dançavam. Essa Dionísia rural ganhou

mais corpo, a partir do século V a.C., com as participações dos poe-

tas e suas tragédias e comédias. Outro tipo de festa eram as Lenéias,

celebradas entre fins de janeiro e início de fevereiro, tinham a mesma

intenção das Dionísias Rurais. Existiam também as Dionísias Urba-

nas ou Grandes Dionísias, celebradas em fins de março, realizavam-

se concursos de Coros Ditirâmbicos e concursos dramáticos: somente

tragediógrafos participavam, mais tarde, após as apresentações das

tragédias, o concurso seguia com a apresentação de um drama satíri-

co. E finalmente as Antestérias (a “festa das flores”), aconteciam na

época da primavera, era uma celebração feita pela espera de uma

nova brotação das parreiras. Era o momento em que se abriam os

tonéis onde se estocava o vinho da colheita de outono (BRANDÃO,

2002, p. 126-128).

J. Brandão acredita que a tragédia teria surgido a partir de uma

evolução do ditirambo juntamente com o drama satírico, ou seja,

com o passar do tempo a tragédia foi ganhando mais conteúdo e mais

texto, partindo primeiramente de fábulas curtas para, posteriormente,

o aparecimento de mais elementos complexos. W. Jaeger (1994, p.

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300

293-294) chama a atenção para a inexistente ligação entre o conteúdo

das peças e o culto ao deus que se homenageava nas festas, pois ra-

ramente a figura de Dioniso participava das representações, salvo em

Licurgia de Ésquilo e em As Bacantes de Eurípides. Jaeger diz que

esta característica dionisíaca ficou com os dramas cômicos, satíricos

e burlescos que se acostumava apresentar posterior à trilogia trágica,

mas essa característica se manifestava realmente no êxtase dos atores

e no coro, que exprimiam através do canto e da dança.

O drama satírico se salvou através da reforma de Prátinas que

procurou satisfazer o povo que no momento buscava entender o que

havia restado de dionisíaco naquelas histórias de caráter fúnebre,

“(...) afastando-se consideravelmente de Baco e buscando seus temas

noS ciclos heróicos, a tragédia perdeu muito de seu caráter dionisía-

co” (BRANDÃO, 2002, p. 129). O autor questiona o caráter sócio-

político da época apogística das grandes produções trágicas: “Ora, se

a tragédia é uma liturgia e um verdadeiro apêndice da religião grega,

como admiti-la, se o deus do Teatro, na ótica da pólis, é exatamente

o ‘contestador religioso’ da religião política dessa mesma pólis?”

(BRANDÃO, 2002, p. 130) Ele afirma que os poetas trágicos tinham

um propósito educativo, que consistia numa espécie de campanha

apolínea educativa, uma ética trágica nessas produções dramáticas e

poéticas, com teor de moderação e de medida, vinda da doutrina

“conhece-te a ti mesmo”. Essa campanha iria contra a própria adora-

ção dionisíaca, pois durante essa celebração, seus devotos, através de

um frenético ritmo de dança, “saíam de si” (como se o adorador in-

corporasse a divindade dionisíaca) alcançando assim uma liberação

total, recebendo o entusiasmo e o êxtase, tendo um prazer de imorta-

lidade heróica, uma catarse, uma purificação, pois ultrapassou o me-

tro, aquela medida apolínea de cada um, transformando-se então num

ator, num herói (BRANDÃO, 2002, p. 130-132). Essa libertação é

chamada de mania (loucura sagrada) e orgia (movimentação incon-

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trolável). Para uma visão apolínea, isso seria a chamada hybris, ou

seja, um descomedimento, uma desmedida, uma violência a si e aos

próprios deuses, pois estimulava a abolição da distância entre mortais

e imortais (Dioniso era um “deus do povo” libertário e político),

desencadeando assim um ciúme divino, uma punição pela injustiça

feita: o destino cego (cegueira da razão), a Moîra:

’Desdionizada’ em seu conteúdo, ‘punida’ em sua essência e exorcizada por Apolo, a tragédia se tornou mais apolínea que dionisíaca. Despindo-se de Dioniso e revestindo-se da indumentária solar e patriarcal de Apolo, pôde ser tranqüilamente agasalhada como liturgia (BRANDÃO, 2002, p. 133).

Para uma discussão sobre o conteúdo e a forma da tragédia tem-

se a contribuição de Aristóteles, que, descendendo de uma outra ge-

ração de filósofos socráticos, parte da idéia de imitação discutida em

A República da Platão para ampliar o seu conhecimento sobre a imi-

tação, a mímese. Ele adota a arte dramática a fim de explicar metodi-

camente sua composição. Através de uma espécie de tratado de

criação dramática (valendo tanto para a criação quanto para a críti-

ca), Aristóteles afirma que a tragédia se diferencia da comédia, por-

que a primeira imita seres superiores e a segunda, inferiores:

(...) aqueles que imitam imitam pessoas em ação, estas são necessariamente boas ou más (pois os caracteres quase sempre se reduzem apenas a esses, baseando-se no vício ou na virtude a distinção do caráter), isto é, ou melhores do que somos, ou piores, ou então tais e quais, como fazem os pintores (ARISTÓTELES, 1997, p. 20).

Aristóteles acredita ser a tragédia nascida, em princípio das im-

provisações (vindas do ditirambo), que foi crescendo e desenvolven-

do elementos que se revelaram próprios dela, estabilizando-se depois

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de ter adquirido natureza própria (ARISTÓTELES), e que a tragédia

se aproxima do poema épico por ambos tratarem de imitação métrica

de temas e de seres superiores, diferenciando-se assim da comédia.

Ele diz que a comédia é a imitação de pessoas inferiores, pelo caráter

do cômico ser uma espécie de feio: “A comicidade, com efeito, é um

delírio e uma feiúra sem dor nem destruição, um exemplo óbvio é a

máscara cômica, feia e contorcida, mas sem expressão de dor” (A-

RISTÓTELES, 1997, p. 24).

Aristóteles lembra que a única diferença entre o poema épico e a

tragédia é que o primeiro, tem uma métrica uniforme e é uma narra-

tiva de tempo ilimitado e a segunda não pode ultrapassar a duração

de um dia.

Baldry (?, p. 75-76) diz que dentro da discussão sobre a origem

da tragédia, uma das teses prováveis é que a tragédia tenha surgido

da apresentação lírica de um coro e que o coro é quem narrava a

lenda, mais tarde houve então, em algum momento do século VI a.

C., provavelmente com o poeta Téspis, uma inovação da estrutura,

com a introdução de um hipokrites (um replicador ao coro, um pri-

meiro ator). Segundo Aristóteles, foi Ésquilo o primeiro poeta a au-

mentar o número de atores (de um para dois), diminuído assim o

papel do coro, dando prioridade ao diálogo. Sófocles aumentou então

o número de atores para três, incluindo a presença do cenário. Oriun-

da de fábulas curtas e de linguagem cômica (de origem satírica), a

tragédia passou de seu metro tetrâmico prosaico para o metro jâmbi-

co (por ser esse mais coloquial e moldável aos diálogos), pois a es-

trutura da tragédia era uma mistura entre atores, coro e canto com

diálogo. Para Aristóteles a tragédia se caracteriza como uma repre-

sentação de uma ação grave que tenha alguma extensão e seja com-

pleta, dividida em partes cantadas, em ritmo e melodia, e outras não

cantadas, com atores agindo e não narrando. Em uma linguagem que

deva inspirar pena e temor, operando a catarse dessas emoções.

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Distinguindo dois tipos de fábula (simples e complexa) pelo teor

de suas ações, Aristóteles mostra que a melhor tragédia é aquela em

que se verificam as peripécias (o exemplo citado pelo autor é o de

Édipo, sendo que na fábula, quem veio com o propósito de dar ale-

gria ao rei de Tebas – o mensageiro da outra cidade -, acaba desper-

tando o oposto ao revelar quem era ele: “viravolta das ações em

sentido contrário, como foi dito”) (ARISTÓTELES, 1997, p. 30) e o

reconhecimento “a mudança do desconhecimento ao conhecimento,

ou à amizade, ou ao ódio das pessoas marcadas para a ventura ou

desdita” (ARISTÓTELES, 1997, p. 30). E para causar um efeito

mais trágico ao espectador, é aconselhável, por Aristóteles, que a

execução seja feita durante a ação sem conhecimento, pois após pra-

ticá-la é que deve surgir o reconhecimento, produzindo conseqüen-

temente o abalo. Um exemplo de reconhecimento em Édipo Rei:

Ai de mim! Ai de mim! As dúvidas desfazem-se! / Ah! Luz do sol. Queiram os deuses que esta seja / a derradeira vez que te contemplo! Hoje / tornou-se claro a todos que eu não poderia / nascer de quem nasci, nem viver com quem vivo / e, mais ainda, assassinei quem não devia! (SÓFOCLES, 2002, p. 82)

Quanto às fábulas, Aristóteles afirma que as mais belas tragé-

dias contemporâneas a ele são compostas por algumas poucas famí-

lias: as de Alcmeão, Édipo, Orestes, Meléagro, Tiestes e Télefo.

Sófocles trabalha, por exemplo, com a maldição dos Labdácidas.

Analisando esse ciclo dos Labdácidas, J. Brandão (2001, p. 37-

38) apresenta um estudo sobre maldições distinguindo dois tipos de

vingança: a ordinária que seria a falta cometida entre parentescos do

tipo “em profano”, ou seja, pessoas que são ligadas por vínculos de

obediência, como no caso dos cunhados, esposos, tios e sobrinhos. E

a extraordinária, falta cometida entre pessoas bem mais próximas por

laços de sangue “em sagrado” (pais, filhos, netos, irmãos, etc.) Qual-

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quer crime atuado entre ligações parentescas, “em profano” ou “em

sagrado” liberam maldições sobre todos os parentes, inclusive des-

cendentes. A maldição concedida para a família dos Labdácidas, por

exemplo, caiu sobre Laio e Jocasta (pais de Édipo). Ao consultar o

Oráculo de Delfos, descobriram que se tivessem um filho, o mesmo

mataria o pai e desposaria a mãe. Mas essa maldição tem uma outra

origem, segundo a lenda, Laio, quando jovem, fugiu para a corte de

Pélops, onde foi muito bem recebido. Com o passar do tempo, Laio

foi se aproximando cada vez mais do filho do rei, Crisipo, através de

uma amizade. Tiveram uma relação pederasta e acabaram fugindo,

Pélops o amaldiçoou. Mais tarde Laio volta a Tebas, agora para go-

vernar e casar-se então com Jocasta. Ao nascer o primeiro menino do

casal temendo a profecia, os reis entregaram a criança a um pastor,

de modo que este deveria matá-la. Ele amarrou os pés da criança a

uma árvore no monte Citéron. Porém, apiedado, o pastor não execu-

tou a criança e resolveu oferta-la a um conhecido da cidade de Corin-

to, pois sabia que os reis de lá (Pólibo e Mérope) não tinham filho.

Eles o criaram e lhe deram o nome de Édipo por conseqüência de

seus pés inchados (inflamação provocada pelas amarras das cordas).

Ao tornar-se adulto ouviu dizer que não era filho legítimo dos reis de

Corinto, resolveu então consultar o oráculo, cuja mensagem foi a

mesma que seus verdadeiros pais receberam anos anteriormente,

dizendo que ele mataria o pai e se casaria com a própria mãe. E por

esse motivo, foi embora de Corinto rumando em direção a Tebas,

que naquele período estava passando por maus momentos, pois havia

uma Esfinge na entrada da cidade que sempre lançava um enigma

para os homens e devorava todos que não conseguiam revelar. Ao

chegar em Tebas, Édipo desvendou o enigma e ganhou o trono da

cidade e a esposa (Jocasta) do falecido rei (Laio já havia sido assas-

sinado por Édipo, sem que ele soubesse que matava o rei, seu pai).

Deste casamento nasceram quatro filhos: Etéocles, Polinice, Antígo-

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na e Ismene. Anos mais tarde, Tebas sofre com uma peste, os solos

estão inférteis, e é nesse momento que se inicia a tragédia Édipo Rei.

Sobre todos esses filhos de Édipo continuarão surgindo vinganças e

maldições que serão retratadas em tragédias como Antígona de Sófo-

cles e Sete contra Tebas de Ésquilo.

A respeito do duplo caráter da tragédia, o dionisíaco e o apolí-

neo, indicado no texto por Junito Brandão, Nietzsche (2003, p. 13)

reflete em um prefácio sobre o questionamento da própria cultura

grega, afirmando que o nascimento da tragédia se origina do espírito

da música. Propondo a pergunta “o que é dionisíaco?”, Nietzsche

ressalta um ponto fundamental: a relação do povo grego com a dor e

o seu desejo por festas, diversão e cultos gerados a partir dessa ca-

rência, dessa melancolia, dessa dor (NIETZSCHE, 2003, p. 17). O

autor, porém, aborda uma outra tendência: o desejo ao oposto, ao

pessimismo, ao mito trágico, ao que há de mais terrível e maligno.

Tomando os dois deuses dessa arte helênica, Dioniso e Apolo,

Nietzsche trabalha a noção que se tem do mundo grego para fazer

uma distinção desses dois pólos. O primeiro deus seria o da música,

da realidade embriagada e o segundo da arte plástica, da experiência

onírica, mas também da música:

(...) por um lado, como o mundo figural do sonho cuja perfeição independe de qualquer conexão com a altitude intelectual ou a educação artística o indivíduo, por outro, com realidade inebriante que novamente não leva em conta o indivíduo, mas procura inclusive destruí-lo e libertá-lo por meio de um sentimento místico de unidade (NIETZSCHE, 2003, p. 32).

Para uma justificativa da criação dos deuses olímpicos e de toda

a sabedoria popular, Nietzsche afirma que o povo helênico tinha uma

aptidão ao sofrimento, por ter o conhecimento do temor e do horror

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de existir, ou seja, por ter a consciência da morte: “para que lhe fosse

possível de algum modo viver, teve de colocar ali, entre ele e a vida,

a resplandecente criação onírica dos deuses olímpicos”

(NIETZSCHE, 2003, p. 36). O autor diz que ambos (Apolo e Dioni-

so) geraram a tragédia e o ditirambo, exemplificando com as histó-

rias de Prometeu, de Édipo, de Orestes afirmando que foi através de

uma profunda necessidade de viver que criaram esse mundo onírico

paralelo: da teogonia primitiva à teogonia olímpica de júbilo.

Pensando ainda a partir de Schopenhauer, Nietzsche utiliza mui-

to em seu texto o termo principium indivituationis para designar uma

lei que é do indivíduo, quer dizer, com o princípio de que Apolo é

um endeusador da individuação, Nietzsche explica que a medida do

povo helênico é fruto da divindade ética de Apolo, ou seja, de caráter

educativo, do auto-conhecimento e da moderação. Porém, lembra o

autor que Apolo não viva sem Dioniso: “O indivíduo, com todos os

seus limites e medidas, afundava aqui no auto-esquecimento do esta-

do dionisíaco e esquecia dos preceitos apolíneos. O desmedido reve-

lava-se como a verdade, a contradição, o deleite nascido da natureza”

(NIETZSCHE, 2003, p. 41).

Nietzsche considera Eurípedes responsável por combater o po-

der de Dioniso nas tragédias, ela acredita também que em As Bacan-

tes, Eurípides, pelo contrário, tenta recuperar o caráter dionisíaco

(que já havia sido há muito repelido) através dos papéis do profeta

Tirésias e do (agora também velho) rei Cadmo. Essas figuras, para

Nietzsche, refletem o próprio pensamento de Eurípides (também já

em seu “entardecer da vida”) da crença de que nem o mais astuto

indivíduo pode romper com as tradições populares (as celebrações e

venerações ao deus do entusiasmo: Dioniso). Mas isso não passava

de uma tentativa de reconciliação, pois a tragédia grega nesse mo-

mento já havia sido corrompida pelo pensamento de Sócrates (com o

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advento da dialética: “tudo deve ser consciente para ser bom” e “tudo

deve ser consciente para ser belo” (NIETZSCHE, 2003, p. 83).

Como intuito de demonstrar esse raciocínio socrático, Nietzsche

comenta também sobre a peculiaridade do prólogo de Eurípides.

Caracterizado no início da fábula por uma personagem que se apre-

senta contando parte da ação (o que precedeu a ela e o que irá acon-

tecer). Eurípides acreditava que com o decorrer da ação, o espectador

ficasse somente concentrado em tentar resolver algum problema

desenvolvido na história antecedente (que causara a ação) e não pres-

tava atenção na beleza poética. Um exemplo desse prólogo euridipi-

ano pode-se notar na primeira fala da ação que vem de Afrodite em

Hipólito:

(...) Vou demonstrar que é certa a minha informação. / O filho de Teseu, criança da Amazona / - Hipólito -, pupilo do casto Pitéu, / é o único entre os habitantes de Trezena / que ousa chamar-me de pior das divindades; / ele foge do amor e evita o casamento / (...) mas pelas ofensas / para comigo, Hipólito será punido / ainda hoje sem maior esforço meu. / (...) e esse rapaz que me é hostil há de morrer / ferido em cheio de maldição paterna, / (...) (EURÍPIDES, 2003, p. 93).

Conforme Nietzsche, Sócrates via a tragédia com uma arte sem

utilidade, que existia somente para agradar e era dirigida para aque-

les que não tinha muito entendimento, ou seja, não era destinada aos

filósofos, motivo pelo qual os afastava mais ainda da arte.

Chamando a atenção ainda ao caráter das peças de Eurípides,

Nietzsche propõe então um combate: o “dionisíaco-apolíneo” contra

o socrático.

(...) o drama euripidiano é ao mesmo tempo uma coisa fria e ígnea, capaz de gelar e de queimar; (...) de outro lado, libertou-se o mais possível do elemento dionisíaco e agora, para

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produzir efeito em geral, precisa de novos meios de excitação, os quais já não podem encontrar-se dentro dos dois únicos impulsos artísticos, o apolíneo e o dionisíaco. Tais excitantes são frios pensamentos paradoxais – em vez das introvisões apolíneas – e afetos ardentes – em lugar dos êxtases dionisíacos – e, na verdade, são pensamentos e a afetos imitados em termos altamente realistas e de modo algum imersos no éter da arte (NIETZSCHE, 2003, p. 80-81).

Poderia-se propor aqui um complemento de Jardé (1977, p. 74)

a esse pensamento de Nietzsche, quando aquele afirma que por influ-

ência dos filósofos, Eurípides insere nos diálogos de suas tragédias,

máximas e até discussões filosóficas ou morais que exprimem o pen-

samento do autor através dos personagens. Em As Bacantes pode-se

notar traços da moral euridipiana por meio do personagem Penteu

nos seguintes versos: “(...) Digo que não há pureza em festas onde o

vinho é servido às mulheres!” (EURÍPIDES, 1999, p. 214), “Ide em

seguida percorrer nossa cidade / à procura de pistas desse efeminado,

/ núncio de novo mal para nossas mulheres, capaz de corrompe-las

nos lares tebanos!” (EURÍPIDES, 1999, p. 218). E máximas como

na fala de Dioniso: “O rude achará tola uma linguagem sábia” (EU-

RÍPIDES, 1999, p. 224) e do coro: “(...) Quem pensa apenas / como

uma frágil criatura efêmera / leva uma vida isenta de tormentos”

(EURÍPIDES, 1999, p. 251).

Jardé (1977, p. 74) diz também que Eurípides é um “pintor das

paixões, amor, ciúme” mostrando predileção aos caracteres femini-

nos, informa ainda que Eurípides modificou profundamente as lendas

(utilizadas na composição das peças) para adapta-las ao seu mundo e

aos cidadãos contemporâneos. Modificou também a própria estrutura

da tragédia: tendo uma apresentação com um monólogo explicativo

(isolado da peça) e no desfecho uma intervenção artificial, algumas

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vezes inesperada, de alguma divindade. O coro ganha um papel re-

duzido, chegando às vezes à parte da ação.

Pensando novamente em As Bacantes pode-se ilustrar através

desses traços citados e comentados nos parágrafos anteriores, carac-

terizados por Nietzsche (2003, p. 80-81) e Jardé (1977, p. 74), por

exemplo, o próprio desconhecimento pela parte de Penteu em relação

ao novo deus, o Dioniso, pode ser notado com um certo tom de here-

sia:

Estive ausente da cidade e me falaram / sobre o novo flagelo que perturba Tebas: / a deserção dos lares por nossas mulheres, / sua partida súbita para aderirem / a pretensos mistérios, sua permanência / na floresta sombria só para exaltarem / com suas danças uma nova divindade / - um tal de Dioniso, seja ele quem for (EURÍPIDES, 1999, p. 213).

Apesar de Eurípides demonstrar essa incredibilidade divina, e-

xiste aí uma “ambigüidade”, pode-se perceber o contrário nos papéis

de Cadmo e Tirésias, como por exemplo, na fala Cadmo: “Respeito

os deuses, pois sou um simples mortal” (EURÍPIDES, 1999, p. 212).

Ou ainda, no final da tragédia: “Se ainda existe alguém que desafie

os deuses, / diante dos restos mortais desse infeliz / comece a respei-

tá-lo desde este momento!” (EURÍPIDES, 199, p. 268).

Sobre a questão do desfecho inesperado por alguma intervenção

artificial, em Medéia existe um bom exemplo; depois de ter matado

seus dois filhos: “MEDÉIA aparece por cima da casa, num carro

flamejante, no qual se vêem, também, os cadáveres de seus dois fi-

lhos” (EURÍPIDES, 2003, p. 73).

Quanto às partes que constituem a fábula, já abordadas com A-

ristóteles (peripécia e reconhecimento), o autor propõe uma terceira

parte chamada patético, que consiste em um “ação que produz des-

truição ou sofrimento, como mortos em cena, dores cruciantes, feri-

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mentos e ocorrências desse gênero” (ARISTÓTELES, 1997, p. 31).

Ou seja, a reprodução da violência na sua forma mais crua. O patéti-

co que também causa mais impacto seria aquele executado entre

pessoas que se querem bem, pois se o evento acontecesse entre pes-

soas inimigas, resultaria indiferente. É o que acontece, por exemplo,

em As Bacantes no momento do esquartejamento do corpo de Pen-

teu, que é feito pelas mãos de sua própria mãe e das tias. A cena da

morte de Penteu é contada por um mensageiro para o corifeu:

Agave, pondo muita espuma pela boca / e revirando os olhos desvairadamente, / (...) prendeu com suas mãos o braço esquerdo / do filho, e com um pé premindo um de seus flancos / deslocou-lhe a espádua e arrancou-a, / (...) Inó fez sobre o outro flanco a mesma coisa / e lacerou as carnes do pobre Penteu / (...) Só se ouviam lamentações confusas e Penteu gemia / nos momentos finais de sua luta contra a morte; / ao mesmo tempo as três irmãs, gritando uníssonas, aceleraram o esquartejamento (...) e as três tiraram de seus flancos lacerados / as carnes palpitantes. Com as mãos sangrentas, / (...) elas lançavam em todas as direções restos do corpo de Penteu (...) (EURÍPIDES, 1999, p. 256).

Mas no reconhecimento de Agave, ao retomar sua lucidez (sente

uma mudança em seu espírito), ela surge em cena com a cabeça de

seu filho nos braços (acreditando ser uma cabeça de leão) o corpo de

Penteu aparece em cena, totalmente esquartejado. E sua mãe faz

tentativas de recompô-lo:

Ajuda-me, ancião, a ajustar o tronco / deste infeliz sua cabeça ensangüentada!... / Recomponhamos, se pudermos, este corpo / até há pouco tempo sem rival força... / (...) Vou ocultar com este véu tua cabeça / e teus membros desconjuntados e sangrentos / onde

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minhas unhas cavaram estes sulcos!... (EURÍPIDES, 1999, p. 268-269).

Ou seja, as cenas de violência em Eurípides (nas tragédias As

Bacantes e Medéia) são contadas por algum personagem, no dois

casos por um mensageiro, isto demonstra que as cenas de horror

(com um envolvimento, na maioria das vezes, sanguinolento) não

são mostradas ao público no momento do espetáculo, são apenas

narradas. Os atos violentos são contados e não mostrados ao público,

porém os corpos mortos ou feridos, ou até mesmo, pedaços desses

corpos, podem vir à cena como foi visto em As Bacantes, quando são

mostrados em cena os ferimentos e os restos mortais de Penteu. Tudo

isso resume o que Aristóteles definiu como patético.

No caso de Medéia, o patético é trazido de uma maneira diferen-

te, a cena de morte dos filhos é ouvida, não através de algum perso-

nagem que a narra, mas o espectador pode ouvir simultaneamente as

falas das crianças enquanto ocorre o infanticídio, pois ele acontece

no interior da casa. Segue a fala do segundo filho: “Já fomos domi-

nados! Vemos o punhal!” (EURÍPIDES, 2003, p. 71). No final da

tragédia aparecem os corpos das duas crianças dentro de um carro

flamejante enviado pelo Sol, pai de Medéia (desfecho Deux ex Ma-

china). O mesmo tipo de patético se passa com Ésquilo na tragédia

Agamenon, onde este ao entrar no palácio é atingido por Clitemnes-

tra: “Ai que me matam!... Fui ferido mortalmente!” (ÉSQUILO,

1991, p. 69), mas o assassinato já é previsto pela personagem Cas-

sandra que está em frente ao castelo dialogando com o Corifeu: “Ai

estrangeiros! (...) Apenas peço-vos que após meu triste fim / teste-

munheis no dia predeterminado / a morte que por mim, mulher, de

outra mulher / e o mesmo fim de um homem para desagravo / de

outro homem morto agora pela própria esposa (...)” (ÉSQUILO,

1991, p. 68). Após os homicídios, os corpos dos cadáveres também

são mostrados em cena, no interior do palácio, “estirados no chão e

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cobertos com panos. Ao lado dos cadáveres, em pé, CLIMNESTRA,

como o rosto e as mãos manchados de sangue” (ÉSQUILO, 1991, p.

71).

Na tragédia grega, o espetáculo de horror, os momentos de vio-

lência como o suicídio (em Antígona), o infanticídio (Medéia), a

auto-flagelação (Édipo Rei) e outros casos não eram mostrados dire-

tamente ao público, eram simplesmente narrados por uma persona-

gem que testemunhou o infortúnio ou que ouviu o acontecimento.

Mas em algumas vezes essa violência é demonstrada de uma forma

mais aproximada ao espectador como os casos citados no parágrafo

anterior, em Medéia e Agamêmnon, o público é envolvido concomi-

tante pelo ato de violência e acaba sendo a própria testemunha.

Nota-se que existiram então três movimentos dentro dessa mes-

cla de religião, arte e filosofia que é a produção das tragédias. Talvez

poderiam-se dispor na seguinte forma ilustrativa (lembrando que

esses movimentos não tiveram delimitações explícitas – com marcos

iniciais ou finais – mas que ocorriam, de uma certa forma, sincroni-

camente): inicialmente um movimento dionisíaco, caracterizado por

festas, pelo prazer da alegria e da embriaguez, da euforia e do êxtase,

o movimento seguinte seria o apolíneo, que traria um caráter mais

sério e reflexivo, comedido, com o ideal do auto-conhecimento, po-

rém permaneceria ainda com um caráter onírico, com uma fervorosa

intervenção dos deuses. O terceiro e último movimento seria o socrá-

tico, com a busca da consciência para o bom e o belo, com caráter

moralista, que traria o interesse de educação ao espírito grego.

Platão traz também em seus diálogos assuntos abordados pelas

tragédias e comédias ilustrando através de uma discussão entre Só-

crates e Adimanto que leva em consideração algumas partes de poe-

mas homéricos (Odisséia e Ilíada) e algumas partes de tragédias (de

Ésquilo e Eurípides, por exemplo) para argumentar sobre o que os

jovens (lembrando que esses jovens seriam guerreiros ou guardiões

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da cidade) não devem ler, escutar ou ver: “Estar junto de mesas re-

pletas / de pão e carnes, e o escansão haurir o vinho / dos crateres,

para o vir deitar nas taças” (HOMERO apud. PLATÃO, 1996, p.

110). E o exemplo que os cidadãos devem seguir : “batendo no peito,

censurou o seu coração: / aguenta, coração, que já sofrestes bem

pior!” (HOMERO apud. PLATÃO, 1996, p. 111) Esses exemplos

mostram vestígios, ou mesmo, resquícios do comedimento de cada

um e da contenção contra os prazeres comentados aqui a respeito da

baliza apolínea. O diálogo segue mais explícito:

Se imitarem, que imitem o que lhes convém desde a infância – coragem, sensatez, pureza, liberdade, e todas as qualidades dessa espécie. Mas a baixeza, não devem praticá-la nem ser capazes de imitar, nem nenhum dos outros vícios, a fim de que, partindo da imitação, passem ao gozo da realidade (...) não ordenaremos (...) que, sendo homens, imitem uma mulher, nova ou velha, ou a injuriar o marido, (...) ou dominada pela desgraça, pelo desgosto e pelo gemidos; muito menos quando está doente, ou apaixonada ou com dores da maternidade. (...) Nem homens perversos nem cobardes (...) que falam mal e troçam uns dos outros e dizem coisas vergonhosas, tanto quando estão embriagados como sóbrios (...) entendo ainda que não devem habituar-se a assemelhar-se aos loucos em palavras nem em actos (PLATÃO, 1996, p. 20-122).

A violência trouxe um papel fundamental para esses movimen-

tos, pois era por intermédio dela que se manifestavam as políticas e

as doutrinas do Estado contemporâneo a elas. Tal violência foi ilus-

trada através de intervenções divinas, como o castigo dos deuses, as

transmissões de maldição entre pais e filhos, promessas de sacrifício,

destino inevitável, ou até mesmo, sentimentos como a inveja, a raiva,

o ciúme, a vingança entre homens (essa demonstração de sentimen-

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tos totalmente mundanos tem-se como exemplo claro em Medéia). A

violência tinha como intenção provocar o espectador, para que este

sentisse as dores do herói trágico, e tomado por essas emoções, so-

fresse uma espécie de catarse realizada por estas mesmas, para a

partir de então “ser moldado”, segundo alguns parâmetros morais

eleitos aos cidadãos.

Referências bibliográficas

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