caenegem, r. c. van. uma introducao historica ao direito privado

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  • 5/17/2018 CAENEGEM, R. C. Van. Uma Introducao Historica Ao Direito Privado

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    UMA INTRODUCAoH ISTOruCA AO

    DIRE ITO PRIVADOR. C. van Caenegem

    TraducaoCARLOS EDUARDO LIMA MACHADORevisao

    EDUARDO BRANoA.o

    \M artin s F on tesSo o Pau l o 2000

    . .

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    Esta abra fOI p u b fi c a da o r l gi n a hn e n te emf ra~ces com 0 t fruioI N TR ODUCT I ON H I Sf O RI QUE A U OR O IT P R IV i: :

    por E d it io n s S t or y -S c e nt ia , e m 1988, e r e ve " s u a primelra edicaoem Ing les pub ti cada por Press Syndica te o j Cambr idge

    University fm J992 com 0 tituloA N H I ST O R IC A L I II TR ODUCT I ON TO P R IV A TE L A W .

    Copyright R. c. ~'anCaenegem.Copyright Livrarta Martins Fontes ~dil(}ra Lrda.

    Sao Pav t o, 1995. p ar a a presente edi,ao.

    11 ed~aoj un ho d e 1 99 5

    2 ' - e d h; - ao- abril de 2000

    "adm3QC AR LO S E D U~ D O L IM A ' M AC H AD O

    Revtsac da tradu~oEduardo BrandcaRe"isao grafica

    Mana Lui za FravetMar ia Cecil ia de Moura Madaras

    P ro du ~ o g ra li c ..Gemtdo Alves

    Pagina-;il.o/fotolitosStudio 3Desenvolvimento Editorial (6957-7653)

    Dados Int ernaeion . .. de Catalugao na Pub ti

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    Tribunais e processo :.................. 35Ava lia ca o .; :............... 37Bibliografia _.... .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 39

    III. A Europa e 0 direito r o rn ano -g e rman ico , c . 1100-c.1750...................................................................... 43Carater do periodo :.............................. 43Antes e 'depois de 1500: continuidade.i..... 45o desenvolvimento do direito: linhas gerais. 47Direito consuetudinario 50o ius commune europeu 65Legislacao 121Ajurisprudencia /...... 134Os'tribunais e 0 pro cesso ' , 140Fatores ; .-,................................ 151Avaliacao ..: , 153Bibliografia : ;................. 154

    IV. Iluminismo, direito natural e o~ c6digos moder-nos: da metade do seculo XVIII ao inicio do se-culo XIX ,............................................ 161Caracteristicas ~ ' 161o Iluminismo 161o dire ito natural................................................... 164Os c6digos do Iluminismo : ~ , 170Fatores .. 175Os tribunais e 0 processo :.. 179o direito Ingles no Iluminismo 188Avaliacao do direitoracional.. :..- :..... 194o direito raeional e a Escola Historica, ,.. 198Bibliografia : , 202

    v . 0 seculo XIX: a' interpretacao .do Code civil e aluta pelo direito :................. 207Franca , , 207A Belgica e as Paises Baixas / 213

    .1. ~

    AlemaiiliaA Inglater;~~~~~~;~~;i~~~ '" .Inovacao na Inglatemi ::::::::::::::::::::::::::::::::::::Bibliografia :: .

    VI. Estatuto, jurisprudencia e erudicao : .A questao .: ; :..Vantagens e desvantagens : .Legisladores, juizes e-professores: competicao .o dire ito e 0 Volksgeist : .

    VII. Fatares 253Introducao 253Mudanca no direito 255Ideias e poder politico " 257.Os grupos sociais e 0 dire ito privado 259o intelectual e 0clima moral............................... 264Consideracoes finais 276

    Bibliografia geral ~ 279

    \

    218225228233239239239243249

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    o direito privado diz respeito aos individuos, homens emulheres, cujas relacoes, espera-se, devem ser harmoniosas;caso contrario, os tribunais intervem e resolvem suas dispu-tas de maneira pacifica e terminante. Como esse amplo e pe- .netrante corpo de leis regula nossas vidas, podemos nosperguntar como e quando ele foicriado. Se todos vivesse-mas sob urn unico c6digo civil, concebido e rapidamente es-crito par Napoleao, a resposta seria maravilhosamente sim-ples. Infelizmente ahist6ria do direito nao e tao simples as-sim:uma desuas complicacoes e que a atual direito do mun-do ocidental compoe-se de dais sistemas bern diferentes, 0Common Law Ingles e 0 Direito Civil continental, tambemdenominado direito da familia romano-germanica. Comoesses sistemas juridicos, ambos de origem europeia, surgi-ram e atravessaram varies estagios de desenvolvimento, sem-pre permanecendo alheios urn ao o~tro, e urn dos temas da :presente Introducao, com a qual 0 advogado continentalpode aprender algo sobre sua propria heranca, assim comosabre os acontecimentos que se desenvolveram do outro ladedo Canal, e vice-versa. Numa epoca em que osjuizes brita-nicos sentam-se lade a lade com seus confrades continentaisnos tribunals europeus, isto pode ser especialmente bem-vindo. P~dem-se encontrar com facilidade historias de di-reito nacional assim como obtas sobre direito romano e ca-,nonico ~naturalmente, boa parte de minha Introducao esta

    l~

    Prefacio a ediciio inglesa

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    x UMA INTRODUC;AO HISr6RICA AO DlRElTO PRIVADObaseada neles -, mas ainda sao raros as estudos que trans-cendem as fronteiras nacionais e tentam urdir os fios histo-ricos do Direito Civil e do Common Law num so tecido. Istopode justificar 0 presente estudo, que e fruto de meu ensino

    .~nas Faculdades de Direito das Universidades de Gand e -durante a ana academico de 1984-85 - de Cambridge.Este pequeno livro, que cobre 0 periodo entre os secu-

    los VI e XX, nao procura apresentar uma analise da subs- .tancia dodireito privado, mas tao-somente umahistoria fac-tual, explicando quem foram as grandes legisladores, juris-tas ejuizes que 0 modelaram, e quais as textos produzidospar suas contribuicoes. As normas juridicas sao discutidasapenas ocasionalmente, para ilustrar a curso dos aconteci-mentos.

    . Espero que o leitor de lingua inglesa receba bern estatentativa e julgue "queas arvores derrubadas para produzir apapel em que foi impressa nao cairam em vao.E com satisfacao que cumpro 0 dever de prestar meusagradecimentos ao tradutor, Dr. D. E. L. Johnston, que dedi-,coutanto de seu tempo precioso a essa tarefa ingrata. Gos-.taria de agradecer aos membros da Cambridge Universi tyPress que ', depois de acolherem alguns de meus primeirosmanuscritos, decidiram publicar minha obra sob seu ilustrepatrocinio.

    R. C. van CaenegemGand

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    I' K

    U M A I NT RO Du r;A :O H IS T6 RIC A A O D IR EIT O P R IV Al JOculo XVI a maior parte do condado de Flandres era legal-mente parte d a Franca, Todos os ingredientes essenciais (ger-manicos eoromanos) - costumes locais e regionais homolo-gados ou nao, 0 direito canonico, 0 direito romano, "livrosda lei" - faziam parte de urn patrimonio comum. 0mesmo

    0- se aplica as estruturas politicas, que em ambos os paises sedesenvolveram a partir das mesmas instituicoes feudais, ur-banase monarquicas, A introducao do Code civil na BeJ -gica nao foi, portanto, a imposicao abrupta de urn sistemajuridico completamente estranho; a Belgica estava no mes-mo estagio de desenvolvimento, e a codificacao estava entreas ideias do Iluminismo difundidas por toda a Europa",Naturalrnente, nem todas as normas do Code civil corres-pondiam aos velhos costumes belgas, e e interessante obser-var que, recentemente, na Belgica, foram dados passos nadirecao de uma volta ao direito consuetudinario que 0 Codesuplantara. Os direitos da esposa sobrevivente, por exemplo,eram muito mais extensos no antigo direito do que no Codecivil, ea modema legislacao belga nessa area representa urnretorno ao antigo costume 16. " ' II

    II-15. Ver a conclusao semelhante para os Paises Baixos em 1. van Kan,

    "Het burger lij k we tboek en de Code c iv il ", Gedenkboek burgerlijk wetboek1838-1938, ed. P. Schol ten e E. M. Mei jers (Zwol le , 1938) ,276.. 16~P. Godding, "L ignage e t menage. Les d ro its du con jo in t survivant

    dans Iancien droit beige", F a rn il le , d ro it e t c ha n ge me nt s oc ia l d a ns l es s oc ie -tes contemporaines (Bruxelas, 1978; Bibliotheque de la Faculte de droit deI 'Universite catholique de Louvain, XI), 296; J . P. Levy, "Coup d'cei l his tori -que d 'ensemble sur la s iruation pat rimoniale du conjoint survivant", Etude soffertes a Rene Rodiere (Paris, 1982), 177-96;

    VII. Fatores

    Introdueae84~Ha dois tipos de fatores na historia do direito. 1\s

    principais tradicoes juridicas e os metodos de formacao d~direito constituem urn tipo de fator que afetou 0desenvolvi-mento do direito na Europa. Foi nesse sentido q-qeT . F. T.Plucknett empregou 0 termo, ao discutir 0 tema "algun~ fa-tores na historia do direito'", em que abordou cinco elemen-tos: 0dire ito romano, 0dire ito canonico, 0costume, a legis-lacao e os precedentes. Todos eles podem ser chama~osfatores "tecnicos", ja que sao fontes de direito em sentidoestrito, fontes de normas formuladas e instituidas pelos ju-ristas. Ha outros tipos de fator, no entanto, que podem ser

    ochamados de "sociais"; eles encerram amplos desenvolvi-mentos e disputas de.ordem politica, socioeconomka, e in-telectual. Afetam a sociedade como urn todo e, atraves de-la 0direito, Embora seja indiscutivel que os fatores sociaiste~am impacto sobre a evolucao do direito, sU,ai~fluenciae mais dificil de detectar do que ados fatores tecmcos, queas vezes podem ser identificados nas 0 proprias fontes, porexemplo, ~uando urn texto estabelece expressamente q?e ~anorma e adotada do dire i to romano ou se refere a ratio

    o 1.Na terceira parte do primeiro livro desta obra fundamental sobre 0 ,. "Common Law" , A G en er a l S u rv ey o f L e g al H is to ry .

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    254 UMA I NT RO DU

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    256 UMA INTRODUC;lfo HISTORICA AO DlRElTO PRIVADOno entanto, estavam ansiosos para garantir 0bem-estar de Suapr6pria linhagem de descendentes e, sob a pressao deles, 0principio de feudos herdados foi reconhecido no reino fran-co durante 0seculo IX. E urn exemplo muito claro da evolu-ya O do direito feudal consuetudinario". Os senhores procu-raram preservar pelo menos seu direito ao relevium, a taxadevida ao senhor feudal pelo herdeiro ao tomar posse dofeudo. Isso gerou um novo conflito de interesses que teverepercussoes juridicas. Os senhores queriam a todo custo de-terminar 0 montante das taxas, de acordo com as condicoesdo herdeiro e seus meios financeiros. Mas os vassaIos, porsua vez, tambem queriam a todo custo evitar imposicoes ar-bitrarias e reivindicavam uma escala fixa para as taxas, NaInglaterra, eles conseguiram esta escala no artigo II daMagna Carta. Isso era uma reviravolta napolitica do rei Joao,que fora responsavel peia imposicao de relevia arbitrarias e

    . exorbitantes.Embora 0 direito esteja mudando constantemente, 0nivel de mudanca varia de urn periodo para 0outro, e perio-dos de estagnacao se alternam com periodos de rapida mu-danca. Este constante movimento ocorre seja qual for a fontepredominante de direito: 0 costume, 0precedente, a legisla-ya O ou a erudicao. As alteracoes no direito feudal consuetu-.dinario ja foramassinaladas, e ja relatamos como a criacaodo direito comercial Ingles surgiu atraves de uma ousada ju-risprudencia de Iorde Mansfield 7. Do.mesmo modo variesexemplos de influencia academica ja foram mostrados,enquanto a influencia da legislacao e obvia. No entaflto,sejam quais forem os meios de mudanca no direito, a inova-r;ao e geralmente 0 resultado da pressao coletiva de interes-ses ou de ideias e dos esforcos dos grupos sociais em busca

    6. F. L. Ganshof, Qu'est-ce que la feodaliter, 5~ ed. (Bruxelas,1982),218.

    7. V er se ca o 69 .

    11,

    FA TORES 257de emancipacao ou poder, Durante seculos, foi possivel jus-tificar - e impor - uma concepcao particular do dire itoinvocando a nocao de urn retorno a uma "idade de ouro".Durante 0 ancien regime, no entanto, a oposicao a ordem es-tabelecida predominava e 0argumento a favor de uma novaordem se difundira; 0 retorno "aos bons tempos de antiga-mente" era tratado como uma nocao que fora.corrompidapelo interesse particular de certos grupos sociais. Mas ate 0seculo XVII, inumeraveis insurreicoes e revoltas campene-sas surgiram sob a bandeira de urn retorno ao passado. NaInglaterra do seculo XVII, os motivos nacionalistas forne-ceram urn outro motivo para isso; hi 0 born direito antigo.era 0 direito anglo-saxao, que fora corrompido pelo direitocontinental imposto pelos normandos sob 0 tiranico Gui-Iherme 0 Conquistador (0 "jugo normando"). S6 no seculoXVIII os reformistas fixaram seus olhos resolutamente nofuturo. 0 velho direito perdera seu prestigio como 0 "borndireito" .

    Ideias e poder politico. 86. Ressaltar 0 papel dos movimentos sociais e 0 con-

    fli to entre os poderes e interesses nao significa subestimar ainfluencia das ideias que sao, em si, fatos hist6ricos. Atemesmo a melhor e mais justa das ideias s6 pode se afirmarquando as forcas sociais estao dispostas a adota-la. Sem avontade politi;a, 0 principio juridico tern pouca possibi.li-dade de exito ..Da Idade Media em diante, numerosos proje-tos de uma ordem supranacional na Europa foram lancados,entre outros por intelectuais do porte de urn Leib~iz. Ate aepoca de Bonifacio VIII, 0 papado era reconhecido comotendo uma autoridade internacional, acima dos Estados edos soberanos, mas essa situayao chegou ao fim na epoca

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    258 UMA INTRODUC;AO HISTORlCA AO DIRE/TO PRlVADOdo exilio papal em Avignon e desapareceu por completo noinicio da era moderna, quando ficou claro que a cristandadese encontrava definitivamente dividida. A nova situacao le-you juristas e filcsofos a fazerem varias tentativas de criaruma ordem juridica intemacional, fundada pelos propriosEstados, a qual os govemos nacionais deveriam subordinar-se, Essa ordem juridica asseguraria a paz intema e a segu-ranca externa (especialmente contra os turcos). No entanto,nenhum desses projetos deu frutos, e os Estados soberanosseguiram seus proprios destincis. No seculo XX esse cenariofoi retomado em escala global. Ficou claro, por f im, queuma organizacao mundial com poder efetivo sobre todas as 'nacoes, incluindo-se ai as superpotsncias, e urn sonho im-possivel; a melhor prova disso e 0 direito de veto dos mem-bros permanentes do Conselho de Seguranca das NacoesUnidas.

    Mas quando.ina historia do direito, uma ideia conseguede fato reservar para si urn papel central, tende a ser Ievadaas mais extremas consequencias logicas, Alguns conceitosjuridicos, portanto, terminam virtualmente como obsessoes,Aqui estao dais exemplos. 0 primeiro e a ascensao da teo-cracia pontificia, que e certamente 0 mais notavel modelo

    . . de uma ideologia levada ao extremo. Do se~ulo XI em dian-te, essa teoria, que e alheia a mensagem original da Cristan-dade, se desenvolveu e chegou a influenciar cada aspecto

    " das instituicoes da Igreja, ate a crise do seculo XlV. Por suavez, a pratica e a legislacao eclesiaticas afetaram os siste-mas juridicos europeus, tanto no direito privado quanto nodireito publico-Urn segundo exemplo e fomecido pela aspi-racao da monarquia a organizar e estruturar a sociedadecomo urn todo. Isso conduziu ao Estado absolutista do inicioda era moderna, Aqui tambem uma ideia embriomiria, a deque urn monarca designado por Deus estava destinado a go-vemar toda uma sociedade, desenvolveu-se em todos os

    FA TORES 259niveis da organizacao social. Na pratica, uma ideia era asvezes levada a cabo de modo excessivo, e so mais tarde seusexcessos conseguiam ser mitigados. Basta mencionar a tor-tura nos tribunais penais. Era rnissao do soberano garantir apaz e reprimir 0 crime; para assegurar a condenacao, nao sehesitava em permitir a interrogacao secreta de testemunhas(0 que por si so ja configurava uma restricao do direito dedefesa) e em permitir que as confissoes fossem obtidas sobtortura (0 que elimina esses direitos completamente).

    Os grupos sociais e 0direito privado87. A sobrevivencia do homem depende de sua inser-

    ((aO num grupo social que 0 protege e cujos membros defen-dem uns aos outros, dando suas contribuicoes individuaisao grupo. Ao longo dos seculos, varies tipos de grupos so-, ciais desempenharam esse pape1 com conseqiiencias para 0desenvolvimento do direito privado, que alguns exemplospodem ilustrar. A principio, os laces de parentesco consti-tuiam 0 rnais importante grupo social: a familia em sentidoestrito, a triba em sentido mais amplo. 0 individuo tinha de-veres para com sua parentela e, quando em dificuldade,podia recorrer a ela. Num estagio posterior do feudalismo, asolidariedade que unia as vassalos de urn determinado se-nhor, tanto a este quanto aos vassalos entre si, tomou-se fun-damental. 0 vinculo feudal compreendia tanto direitos quan-to deveres, especialmente no direito privado. Por fim, ja noseculo XII,a cidade e 0Estado se tornaram as formas basi-cas de organizacao; dai em diante, pertencer a uma cidadeou a urn reino adquiriu prioridade sobre qualquer outra for-ma de solidariedade e lealdade. 0 deseAvolvimento geral,assim como a integracao da Igreja n~ sociedade, podem serilustrados com exemplos.

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    26 0 UMA /NTRODU(_;AO H/STORiCA AO D/RE/TO PR/VADO

    o direito de sucessao e urn reflexo desse desenvolvi,mento social, ja que a devolucao da propriedade de umapessoa falecida foi regulamentada por diversos regimes ju-ridicos. As tribos primitivas tinham urn esquema relativa-mente simples: a propriedade rnovelera queirnada ou enter-rada com 0 cadaver, enquanto a propriedade real (a terra)pennanecia como posse do cla familiar. Nao havia, portan-to, problema de fragmentacao da heranca. Quando esta si-tuacao arcaica mudou, surgiu a questao do que devia aeon-tecer aos bens de raiz. No inicio da Idade Media, a impor-tancia da familia: era tal que a propriedade do falecido tinhade pennanecer em sua posse e 0 patrimonio tinha de.ser di-vidido entre osfilhos. A sucessao testamentaria era virtuaI-mente desconhecida, embora algumas formas especiais sedesenvolvessem, como as doacoes post obitum au pro ani-ma em favor da Igreja". A Igreja era prejudicada pela d evo - :lucao exclusiva dos bens para' os membros da familia, demodo que encorajou uma revivescencia da elaboracao detestamentos (0que fora comum no direito romano), pelo me-nos daqueles em favor das instituicoes eclesiasticas. Seusesforcos tiveram exito e, mesmo antes do renascimento dodireito romano, tornou-se costumeiro fazer urn legado emfavor da Igreja. No entanto, 0direito do ab intestato sofreuurn outro desenvolvimento, ditado pela natureza e a finali-dade do direito feudal: surgiu 0direito de primogenitura. Aexclusao do filho mais moco deve ser explicada pelo desejode manter a feudo em sua integridade, de modo a assegurarrendimentos suficientes para urn fidalgo curnprir suas obri-gacoes militares para com seu senhor. A divisao de urn

    _feudo entre varies filhos tarnaria isso impossivel. Assim,urna propriedade podia ser camposta de'uma massa divisi-

    .8. P.Jobert, La not ion de donat ion. Convergences: 630-750 (Paris, 1977;Publications de I'Universite de Dijon).

    FA TORES 261vel (alodia, a qual 0 antigo direita de sucessao ainda se apli-cava) e uma massa indivisivel (feoda, feudos, aos quais aprincipio feudal da primogenitura se aplicava). a.sistema ro-mana da sucessao unitaria so foi revivido com 0Code civil.o desenvolvimento das cidades, que aplicavam suas re-gras especificas, tambem exerceu um impacto sobre 0direi-to de sucessao. As municipalidades estavam ansiosas paraque os bens de seus cidadaos permanecessem dentro da eco-nomia geral da cidade e, por esse motivo, cobravam umataxa especial sobre os bens que saiam da cidade por meio deheranca, a droit d'issue (direito de saida). Essa taxa era co-brada quando um estrangeiro adquiria a propriedade de urncidadao por direito de sucessao au por urn outro meio, e ataxa da cobranca variava entre dez e vinte par cento de seuvalor", A parte taxada pela Estado e a que acabaria pesandomais sobre as propriedades; mas, a parte praticas como asdo rei Joao, que exigi a relevia~xorbitantes dos sucessoresde seus vassalos, os impostos sobre a heranca so se torna-ram significativas do ponto de vista fiscal em epoca maisrecente. Essa tendencia se tornol!:mais pronunciada nos diasde hoje (em parte par razoes ideologicas), de tal modo que asucessao para parentes 'em determinados graus. equivale aoconfisco. 0 peso da taxa praticamente anulou 0 significadoeconomico e juridico do sistema de sucessao estabelecidopelo Code civil.

    A liberdade para dispor da propriedade territoriaL pes-soale urn outro indicador social reveLador.Originalmente, apropriedade territorial coletiva sequer fazia sentido, ja quemuit!ls tribos levavam urna existencia noma de e deixavamsuas terras cultivadas assim que as exauriam. Mais tarde,formas de posse familiar e atemesmo iadividuais se desen-

    9. Em Flandres ja e encontrada desde 0 seculo XIII, por exernplo numaordenacao de Gand datada de 1286.

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    26 2 UMA INTRODUr:;AO HIST6RICA AO DIREITO PRIVADO

    volveram, mas ainda estavam sujeitas a restricoes coletivas.No que dizia respeito a familia, isso se manifestava atravesda proibicao de alienacao da propriedade territorial sem 0consentimento do cla. 0 direito de retrato (droit de retrait)foi uma dessas restricoes coletivas que sobreviveu no an-cien regime: quando urn pedaco de terra era vendido a urnterceiro (isto e, a alguem que nao era membro da familia),os membros da familia do vendedor podiam exercer seu di-reito de retratoe comprar de volta a propriedade, restauran-do desta maneira 0patrimonio familiar. De modo similar, asterras feudais eram consideradas inalienaveis, porque eramvistas como vinculadas diretamente a pessoa (ou as qualida-des pessoais) do vassaio. Esse principio foi atenuado maistarde, embora a alienacao nao pudesse ser feita sem 0 con-sentimento do senhor feudal. Por fim, os feudos se tornaramlivremente alienaveis'". E obvio que as restricoes sobre avenda da terra constituiam urn obstaculo para 0 crescimentoeconomico das cidades, numa epoca em que a necessidadede credito e capitalizacao das rendas exigia que a terra fossenegociavel. As cidades passaram entao a incentivar 0 indivi-dualismo dos empreendedores em detrimento do antigocontrole da terra pela familia. Assim, 0artigo 19da Carta deGand de 1191 autorizava a venda livre da terra. A Carta foipromulgada pela condessa de Flandres, que tinha poder le-gislativo para implementar essa mudanca na lei II.

    10. 0 e sta tu to ingl es Quia emptores de 1290 dava expressamente aosvassalos 0 direito de alienar: J. M. W. Bean, The Decline of English Feuda-lism (Manches ter , 1968) ,79 -103 . A li be rt acao da t er ra de t odas a s r es tri coe scolet ivas ( fami liares , feudais , rel igiosas ou comunais, das comunidades agr i-co la s p rimi tivas ) f oi uma das p rinci pa is t endenc ie s do des envo lv imen to j uri -dico europeu, que conduziu a propri edade indi vidua l da t err a e a integracaoda ter ra ao s is tema economico comum.

    11.0 texto esta em W. Prevenier, D e oorkonden der graven van Vlaan-deren (l191-aanvang 1206) II: Uitgave (Bruxelas , 1964) ; Comission royaled'histoire. Actes des princes Belges, 5), 15: "Ha talliberdade na cidade de

    FATORES 263Na Idade Media e no .ancien regime a sociedade era

    formada por ordens e corporacoes que tinham suas propriasadministracoes, regras e jurisdicoes". Tinham tambem seusproprios estatutos juridicos: 0 clero e a nobreza nao goza-yam apenas de privilegios fiscais, mas se beneficiavamtambem de privilegios no dire i to penal (como a isencao da .tortura)". Essa organizacao social sob 0ancien regime tinhasuas implicacoes no direito privado: em geral, so os grandesproprietaries de terra tinham assento nos tribunais (ja eraassim no caso do mal/us franco). Do mesmo modo, haviadiscriminacao a favor dos proprietaries de terras ou viri he-reditarii das cidades; suas declaracoes e as provas que mos-travam a urn tribunal possuiam urn peso bern maior do que ados outros cidadaos, O s privilegios estiveram na ordem dodia sob os regimes oligarquicos, mas a democratizacao dasinstituicoes politicas, especiaimente nas cidades italianas,trouxe consigo urn desenvolvimento em sentido contrario:as provas exibidas por urn nobre tinham menos peso que ade um outro cidadao. Mas a posicao privilegiada dos virihereditarii, cujas palavras de juramento tinham valor de

    .prova e prevaleciam sobre a evidencia trazida por qualqueroutra pessoa, vai reaparecer num contexto inteiramente di-ferente: 0artigo 1.781 do Code civil de 1804 distingue entreas declaracoes do empregador e do empregado: "as afirma-coes do patrao devem ser acreditadas"".

    Gand, que , se a lguem deseja r vende r ou h ipote ca r a p ropr iedade den tr o da j u-r is di cao da c idade, te rn permi ssao par a t al, s eja e st rangeir o ou c idadao , e n in -guem pode contesta-lo com base em quaisquer 'rela90es de sangue ou decasarnento."

    12. As numerqsa s r eg ra s exi stent es das guil da s e das cor po ra coes fo rammuito pouco estudadas,

    13. Como co ro la rio , no d ir eit o pena l a s c la ss es ma is a lt as e ram a s vezessuje ita s a penas r na is s evera s do que a s c las se s ma is baixas ,

    14. Ve r s ecao 6 .

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    264 UMAINTRODUr;AO HISTORICA AD DIREITO PRiVADO o intelectual e 0clima moralo direito deprova

    88.0 direito adapta-se ao desenvolvimento intelectual(ou mentalitei. Em alguns periodos, 0homem sentiu profun-damente que estava subordinado a forcas transcendentais oua seres sobrenaturais e que era parte de urn universo cosmicoacima de seu poder de observacao, conhecimento e com-preensao, Ern outras epocas, 0 pensamento logico e racional- exemplificado pela pesquisa cientifica empirica e materna-t ica - predominou. A transicao de uma mentalite para outra- de uma cosmologia platonica para uma aristotel ica - tevesuas repercussoes no direito de prova. Nao se pode esquecerque alguns povos, ern determinado estagio, viveram sob 0go-verno de uma c1assereligiosa, que exigia que os individuos ea comunidade respeitassem e seguissem os preceitos religio-sos (muitas vezes inscritos em textos sagrados). Esse.dorni-nio clerical, ern varios casos, foi extremamente importantepara a hist6ria do direito privado europeu.

    Durante os seculos XII e XIII, 0 direito de prova sofreuuma transformacao fundamental, passando de urn sistemairracional e primitivo para urn sistema racional .avancado".Sob 0 antigo sistema, ate mesmo em questoes civis (espe-cialmente em casos relacionados it propriedade territorial)os tribunais tomavam como provas os sinais divinos sob a,forma de ordalios. Isso podia assumir tanto a forma 'brutaldo duelo judicial quanto a forma rnais sutil do juramentoafiancado porterceiros. Na primeira, 0partido ou campeaoque conseguisse, com urn golpe de sua espada ou maca",

    15.Ver inter alia os volumes La preuve em-Recueils de laSociete JeanBodin XVI (1965-). ..

    16. Tarnbem aqui as diferencas de classe desempenhavam urn pape!,pois, num duelo, urn fidalgo usava suaespada e os carnponeses suas clavas,

    FATORES 265veneer seu adversario era visto como merecedor da ajudadivina para conquistar a vitoria, 0que implicava ajustica desua causa. No segundo caso, presumia-se que os possiveisperjuries receberiam 0 castigo divino e que 0 medo da iracelestial iria dissuadir a maior parte das pessoas a prestarurn juramento false". E claro que tambem se conhecia aprova por documentos e por testemunho na Idade Media,mas esses metodos podiam ser prontamente contestados ouneutral izados; por exemplo, quando 99is grupos opostos detestemunhas insistiam em sua prova conflitante. Para sair doimpasse, era necessario recorrer ao duelo judicial e invocar'a divindade. -A questao, no entanto, foi inteirarnente reformulada a.partir de uma profunda alteracao nas mentalites europeias,Urn novo direito de prova, em vigor ate hoje, foi elaborado..Baseava-se numa avaliacao critica e racional dos documen-tos, testemunhos e provas factuais. Descobrir as raizes des-sa transicao de uma concepcao magica do universo para urnaconcepcao mai~ racional e urn problema historico ainda naoresolvido; mas fica claro que a transicao trouxe implicacoespara 0 direito de prova. 0 sistema arcaico, introduzido sob ainfluencia germanica, teve de ser abandonado, embora fos-se dificil decidir 0que iria substitui-lo, Na Europa, fizeram-se experiencias com varies sistemas, alguns derivados doCorpus iuris, outros (como 0 juri) inspirados por metodosrudimentares ja existentes que foram desenvolvidos'trans-formando-se num verdadeiro sistema de provas.

    Urn aspecto da modemizacao do direito de prova foi 0crescente usa da escri ta . Depois de urn periodo no qual a es-crita era virtualmente desconhecida, a prova eserita tornou-se amplamente uti lizada a part ir do' seculo XII, ate mesmo

    17. Mesmo hoje ern dia a lei de processo civil recorre aos juramentos,ou suplementargs, ou detelminativos daacao.

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    266 UMAlNTRODUf:;AOfiISTORICA AO pIREITO PRIVADO FATORES 267num acordo entre ,pesso.ascomuns. Particularlnente notavelfoi a usa de documentos "autenticos" - istoe, documentos"autenticados", declarados dignos de fe, por pessoas ou ins-tituicoes que tinham autoridade publica para ta~to.. Houveuma grande variedade de formas de documentos e de auto-ridades responsaveis por sua redacao ou autenticacao, 0quedependia, em particular, da irnportancia do. direito eruditona regiao, No sul, desenvolveu-se a profissao de notario, apartir da Escola Bolonhesa de Direito. Eles eram investidosde autoridade publica pelo papa au pelo imperador, prepara-

    , dos atraves de estudos elementares em direito e, entao, po-diam se estabelecer nas cidades para redigir e produzir do-cumentos autenticos,

    Os notarios foram se espalhando pouco a pouco pelasregioes setentrionais, mas na Holanda.nao se implantou umapratica padronizada para os notaries antes do seculo XVI.No Norte, surgiu urn meio completamente diferente de au-tenticacao de documentos, as oeuvres de lois: as partes con-tratantes compareciam ante 0 tribunal e apresentavam seuacordo; este entrava para 0 registro judicial e uma c6pia po-dia ser entregue as partes, embora isso nao fosse uma for-malidade essencial. Ajurisdicao voluntaria era exercida pe-los tribunais comuns ou feudais, ou pelos tribunais dos con-selheiros municipais.junto com suas outras atividades judi-ciais. Durante a Idade Media tardia, esse sistema tornou-seextremamente importante,e sobreviveu ate 0 inicio da eramoderna contra a competicao dos notaries. Os tribunaisseclesiasticos, especialmente atraves de seus funcionarios",tambern exerciam essa jurisdicao nao-contenciosa.

    Originalmente, a prova escrita - e afortiori autenticada. - era opcional e nao tinha precedencia sobre a prova por tes-temunho. Mas este era urn ponto altamente controverso. Urn

    jurista tao eminente como 0. papa Inocencio III podia aindadecIarar-se firmemente favoravel a prova. atraves dosteste-munhos: "a palavra de urn homem vivo prevalece sobre apeh1.de urn asno morto' ' ( isto e, urn pe~gaminho). 0 direito

    .consuetudinario tern afirmacoes do tipo "a testemunho pre-valece sobre 0 escrito" ou "testemunhos de viva voce supe-ram 0. escrito". Mas era inevitavel que a prova documentalautentica se transformasse em padrao. A legislacao das ci-dades italianas orientou-se nessa direcao ja no. seculo XIV(Napoles em 1306, Bolonha em 1454 e Milao em 1498). NaFranca, as principais etapas do. desenvolvimento foram aOrdonnance de Moulins, de 1566'9, ao estabelecer que, parauma transacao acima de 100 libras, s6 era admissivel a pro-va escrita, e tambem 0 artigo 1.341 do Code civil de 18042 .Na Belgica, a principio 'po.de ser encontrado no' Edictum'Perpetuum de 1611. Na Inglaterra, aceitou-se no seculoXVIII que urn documento nao podia ser contestado apenascom base no testemunho oral", E em alguns contratos, es-pecialmente naqueles referentes a terra, 0 direito nao se sa-tisfazia com 0. mero testemunho escrito mas requeria urndocumento notarial autentico",

    18, Verespecialmente na se9ao 52.

    19.Ver secao 48.20, "Qualquer questao excedendo a soma ou valor de 150 francos deve

    ser documentada.diante dos notar ies ou sob assinatura pessoal, mesmo nocaso de depositos voluntaries, e a prova POf testemunho n~o e admissivel emrelacao aOconteudo dos documentos, ou em relacao ao que foi declaradoantes, no momento ou desde que foram escritos, mesrno que.esteja relaciona-da a uma soma ou valor menor do que 150 francos. Isto nao prejudica 0 queesta preserito nos estatutos re lativos ao cornerc io." . .

    21. Cf. J. Gilissen, "Individualisme et securite juridique: la preponde-ranee de la loi et l 'acte ecr it au XVI ' siecle dans l 'ancien droit beige", ' Indi-vidualisme et societe Iila Renaissance (Bruxelas, 1967),35-57; G. Vemeillene G.van de Perre, "De historiek van de beperking van het bewijs van verbin-tenissen door getuigen", Rechtskundig weekblad 32 (1968-9), col. 817-50.

    22.0 requisite da escrita foi tambem estendido a outras areas, alem daprova. Hoje em dia i: impossivel imaginar u rn estatuto que nao seja impresso~

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    - -268 UMA INTRODU(:AO HIST6RICA AO DIREITO PR/VADO FATORES 26 9

    ...Emprestimo absolutamente proibido a qualquer urn emprestar qualquercoisa com juros". Qualquer forma dejuros, isto e , qualquer ca-so em que 0 emprestador recebesse mais do que 0 que em-prestara era tratado como usura e,portanto, como pecado. Acondenacao geral nao se aplicava, pois, apenas a tax~s exor-bitantes dejuros ("usura" propriamente dita), obtidas pela ex-. ploracao de uma posicao de forca contra? devedor.Essa atitude moral correspondia a mentalidade do mun-do feudal, para 0qual qualquer ganho, mesmo vindo de ope-racoes comerciais perfeitamente legitimas, constituia urnpecado e uma conduta contniria ao costume social. Emboraseja dificil entender essa concep9ao no Ocidente contempo-raneo, ainda pode ser encontrada em paises islamicos, onde -as objecoes rel igiosas aos juros (isto e , a usura) ainda seaplicam. Durante os ultimos seculos da'Idade Media, 0 ho-mem europeu viveu urn dilema: emprestar a juros tornara-seuma pratica comum, mas a Igreja recusava-se a suspender aproibicao". A legislacao secular as vezes reforcava os pn~-cipios eclesiasticos, como se ve no exemplo da ~rdenac:;:aode .1199 decretada por Balduino IX, conde de Hainaut e dePlandres". Em conseqiiencia, 0 cornercio medieval foi obri-gado a recorrer a uma serie de subterfugios e ficcoes que lhepermitissem desenvolver urn sistema de credito ~orescentee indispensavel, enquanto pelo menos de manelra. f~rmalrespeitava as restricoes religiosas: venda sob condicao de

    89. As mudancas de concepcoes de moralidade, doutri-nas e de autoridades religiosas tambem tiveram conseqiien-cias importantes para 0 direito privado. Nao e surpreendenteque elas colidam constantemente com a politica das autori-dades seculares. Duas ilustrcoes sao suficientes: 0empresti-mo e 0 casamento.

    . A expansao economica doOcidente durante a Idade Me -dia tardia conduziu a urn ressurgimento do emprestirno. Meto-dos de credito ja haviam sido desenvolvidos e reconhecidosjuridicamente na Antiguidade Romana, mas desapareceramdurante os primeiros seculos da Idade Media. E extrema-mente dificil lancar urn empreendimento privado industrialou comercial, a menos que uma parte dos fundos necessariesseja emprestada; e,ja que 0 usa ternporario do capital e van-tajoso, e normal que, assim como os materiais e a mao-de-obra, tambem seja recompensado. Emoutras palavras, em-prestimos sao pagos com juros. Aqui, no entanto, as neces~sidades de desenvolvimento economico colidiam com pre-ceitos ' religiosos, pois desde a antiguidade crista a Igrejaproibira 0 emprestimo a juros (usura). A proibicao nao so-

    , mente foi mantida pelos padres da Igreja, como ainda seincorporou ao direito eclesiastico. 0 concilio ecumenico deNiceia de 325 d.C. proibiu 0clero de realizar emprestimos ajuros; os leigos foram inicialmente apenas advertidos pelaIgreja contra essa pratica, mas em seguida a proibicaoestendeu-se tambem a eles. Uma capitular de Carlos Magno'de 78 9 d.C. estabelecia de modo inequivoco a proibicao: " f :e publicado; antigamente, as coisas eram diferentes, e s6 a palavra do rei ti-nha peso legal. A respeito dodireito erudito, ver G. Dolezalek, "Scriptura nonest de substancia legis . A propos d'une decis ion de la Rote romaine de l 'anl3~8 environ", Diritto comune e diritti locali nella storia dell'Europa (Mi-lao, 1980),51-70.

    23. Como ajuda, podiam ser invocados text?s nao so da Bi~lia ("~rn-prestar sem esperar nada em retorno"), mas tambem da filosofia grega ( di-nheiro nao cria dinheiro"}. :24. W. Prevenier, "Een econornische rnaatregel van de Vlaarnse graf In1199: het verbod der leningen tegen interest", Tijdschrift voor geschiedenis78 (1965), 389-401. 0 texto da nrdenacao esta publicado em W. Prevenrer,

    . De oorkonden der graven van Vlaanderen (1191-aanvang 1206) II (Bruxelas,1964), nO124,276-8 (Comm. royale d'histoire. Actes de princes belges, 5).Sabre Balduino IX: Nat. biografisch woordenboek 1 (Bruxelas, 1964), col.225-38.

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    270 UMA INTRODUr ;/ lO HIST6RICA AO DIREITO PR/VADO FATORES271

    , recompra, hipoteca (mortuum vadium, em que 0 credor go-zava os frutos da propriedade dada como garantia), letras decambia, juros de mora (0 que era perrnitido pelos canonis-tas em certas circunstancias). Pouco a pouco, a teologia mo- ~ral comecou a reconhecer as juros como 0 preco do creditoe a autoriza-lo, desde que fosse eqiiitativo. Esse raciociniopodia ser concil iado com a teoria teologica do "preco jus-to", segundo a qual cada bem economico tinha urn iustumpretium que devia - especialmente nos acordos de credito -ser adotado.

    Apesar disso, as objecoes de principio aos juros comousura sobreviveram nos paises catolicos ate 0 f im do ancienregime. as mais altos juizes e numerosos autores de renomesustentavam que as clausulas dejuros dos contratos eram ab-solutamente nulas", A Revolucao Francesa, que estava pou-co disposta a respeitar os tabus rel igiosos e.era a favor dolivre comercio, estabeleceu imediatamente que 0 empresti-mo a juros era legitimo, com uma taxa fixada por estatuto",Urn estatuto de 1796, autorizando os cidadaos a fazer con-tratos como entendessem, ja fora interpretado como urn si-nal para que as partes fixassem de comum acordo sua pro-pria taxa de juros. Essa posicao foi adotada pelo Code civil(artigos 1..905e 1.907), mas logo em seguida a liberdade daspartes para fixar a taxa de juros foi de novo limitada, Urnpouco mais tarde, a liberdade das partes contratantes foi rea- _firmada", mas osjuros injustificados e exorbitantes (a usu-ra) passaram a consti tuir crime punido pelo direito penaL-Nos paisesyrotestantes, as doutrinas dos reformadores tinhamaberto 0 caminho para permitir osjuros. Calvino, par exem-plo, sustentava que os juros eram admissiveis; de acordocom ele, nao eram vedados pela Biblia, cuja unica proibicao .

    era em relacao ao emprestimo a juros desproporcionais, quecaracterizava 0 pecado da usura". Muitos juristas da Escolade Direito Natural e autores doIluminismo (Grotius, Montes-quieu e Voltaire, entre outros) eram a favor da liberdade decontrato, inclusive quanto ao emprestimo ajuros".

    o direito de casamento90 . Tanto as autoridades seculares quanto as eclesiasti-

    cas legislaram intensamente a proposito da familia, que eraa unidade social basica. Na Idade Media, particularmente, 0direito de familia configurava-se sem diivida como urn as-sunto que pertencia em grande' parte a competencia da Igre-ja, mas suas implicacoes para a sociedade em geral e para 0patrimonio da familia em particular eram tais que as autori-dades seculares nao podiam se abster completamente de sua.regulamentacao. Os tratamentos divergentes dados ao casa-mente" pelas autoridades seculares eeclesiasticas constituem,

    28. Sua tese foi, excepcionalmente, adotada por urn autor nao-calvinis-ta: De usuris, deC. du Moulin.29. C f J. Favre, Le pre t Ii i 'i nt eret dan s l 'an ci enn e F rance (Paris,1900); V. Brants, La / utt e contre l'usure dans le droi t moderne (Louvain,1906); J. Larneere, "Un chapitre de l'histoire du pret a l'Interet dans le droitbeige", Bul l. Acad Roy . Sc ien ces d e Belgique , classe des Iettres (1920), 77:104; G. Bigwood, Le regime j uridique et economique de l'argent dans faBe lgiqu e du Moy en Age (2 vols., Bruxelas, 1921-22);. G. Le Bras, "Usure",Dic tionaire de theolog ie catho lique XV, 2 (Pari s, 1950) , 2 .336-72; B. N.Nelson, The Idea of Usury (Princeton, 1949); J. T. Noonan, The ScholasticAna lysis o f Usury (Cambridge, Mass., 1957); B. Clavero, "The jurisprudenceon usury as a social paradigm inthe his tory of Europe", E.V. Heyen (org.),Historische Soziotogie der Rechtswissenschaft (Frankfurt, 1986),23-36 (Iuscommune, 26). .30. Ha numerosos estudos sobre 0 casamento. Urn estudo recente, Iuci-do e magis tral e 0 de J. Gaudemet, Le mari age en Occident . Les moeurs et ledroit (Paris, 1987..Cerf-Histoire).

    25. D'Argentre, Jean Bodin, Domat, Pothier e ajurisprudencia do Par-larnento de Paris.

    .26.Decreta da Constituinte de 3-12 dedezembro de 1789.27.Na Belgica ern 1865, sob Rogier e Frere-Orban.

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    272 UMAINTRODU(:AO HISTORICA AO DIREITO PR[VADO FATORES 273de fato, urn dos capitulos mais interessantes da'historia do rdireito na Europa. A divergencia mostra tambern como urnassunto do direito privado pode gerar uma disputa entre au-toridades cujos sistemas de valores e concepcoes da socie-dade sao diferentes. Certamente nenhuma outra instituicaoesteve tao it merce.de tendencias e ideologias opostas. Essaavaliacao leva em conta apenas as grandes linhas de desen-volvimento, deixando de lade as formas primitivas aindaconhecidas na alta Idade Media, como 0 casamento por rap-to ou por venda.E absolutamente fundamental distinguir entre 0 casa-mento como instituicao secular (urn contrato que afeta asociedade como um todo, e asfamilias e suas fortunas) e 0casamento como sacramento (urn instrumento de graca quepossui urn significado religioso e simboliza a uniao misticaentre Cristo e sua Igreja). Essas concepcoes do casamentorelacionam-se respectivamente asjurisdicoes secular e ecle-siastica e; na rnedida em que foram evoluindo, desempenha-ram urn papeI significativo na hist6ria do Ocidente. Na IdadeMedia, 0conceito sacramental da Igreja e de seus tribunaisprevaIeceu, enquanto no inicio da era moderna, acirna de tu-do no periodo contemporaneo, 0 elemento seculartornou-secada vez mais importante.

    De acordo com 0 ensino da Igreja, 0 casamento envol-via apenas as pessoas dosesposos. Apenas a sua livre von-tade e sua decisao contavam. Qualquer interferencia das fa-milias ou dos pais estava excluida, e qualquer questao denatureza patrimonial ou dinastica era irrelevante. 0 vinculomatrimonial era considerado indissoluvel, de acordo com.asEscrituras. 0 divorcio, antes admitido pelo direito romano,foi excluido, 0 direi to de casamento evoluiu dentro destamoldura basica, 0 carater puramente consensual do casa-mento reconhecido na Idade Media (isto e, 0 casamentocomo resultado do livre consentimento dos esposos, sem asformalidades de intervencao de urn sacerdote) foi abando-

    nado pelo Concilio de Trento (pelo decreto Tametsi de1563). Esse decreto impunha fonnalidades para 0 casamen-to (testemunhas, cornunicacao publica, celebracao por urn.sacerdote) com 0 objetivo principal de evitar casamentosclandestinos". A Igreja tambem desenvolveu uma teoria emque 0mero consentimento sem a consumacao (copula car-nalis) constituia urn casamento imperfeito (matrimoniuminitiatumi, que podia ser dissolvido, em contraste com 0 ca-samento em que 0 consentimento era seguido de relacoessexuais (matrimonium ratum). 0divortium (segundo 0Con-cilio de Trento:separatio) quoad forum et mensam tambemfoi introduzido, ou seja, a separacao fisica que tambem foigarantida pelo Code civil. Isso permitiu que a coabitacaoterminasse sem dissolucao (evitando dessa maneira urn novocasamento). Por fim, a Igreja reconheceu a anulacao do ca-samento, que podia ser declarada por urn juiz eclesiasticotendo como base uma falha no consentimento ou algum ou-tro impedimentum dirimens (como a existencia de urn casa-mente anterior, parentesco e assim por diante).

    Ate nos periodose lugar.es rnais catolicos, havia umaconcepcao secular contrastante do casamento que dava en-fase a suas consequencias sociais, familiares e patrimoniais,tanto quanto feudais e dinasticas, Essa visao era hostil aoscasamentos realizados (muitas vezes secretamente) sem 0consentimento dos parentes, porque ameacavam diretamen-te os esquemas de alianca entre familias e fortunas. Nos pe-riodos de ferreo catolicismo, essa visao, que era peculiar aosaltos circulos urbanos e feudais, nao podia prevalecer contra

    31. Essas formalidadesta1lllbem eram geralmente adotadas na Europaprotestante, inclusive na Republica das Provincias Unidas, embo~a com algu-mas modificacoes, Na Franca , 0 rei riiio queria que fossem publicadas destamaneira, mas elas foram introduzidas, apesardisso, em 1579pelaOrdonnancede Blois.

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    274 .UMA INTRODUr;AO HIST6RlCA AO DIREITO PRiVADOa Igreja, mas podia expressar-se atraves de sancoes civis epenais contra esposos que se casavam sem 0 consentimentodos pais. Na Idade Media, tais sancoes consistiam sobretu-do em deserdar os esposos ou em condenar 0 marido porrapto. Na Franca da era moderna, as tribunais 'seculares es-tendiam sua competencia aos casos matrimoniais, e as auto-ridades seculares tambem impunham regulamentos rigoro-sos, cujos tracos aindapodem ser encontrados no Code ci-vil. A Ordonnance francesa de 1566 instituiu a deserdacaode filhos com menos de 25 anos que secasassem sem 0con-sentimento dos pais. A Ordonnance de Blois, de 1579, puniao rapto, e a jurisprudencia tratava urn casamento realizadosem 0 consentimento dos pais como rapto. (As comedias deMo~iere ilustram claramente como a influencia dos pais, es-pecialmente a do pai, ainda determinava 0 casamento dosfilho.s, mesmo quando ja tinham alcancado a maioridade.)Pothier achava que urn casamento realizado sem 0 consenti-mento dos pais entre esposos corn menos de 25 anos era nuloe que se os esposos tivessem menos de 30 anos a ausenciado consentimento dos pais implicava a deserdacao, Na Ho-landa, mesmo na Idade Media, as ordenacoes municipais es-tabeleciam sancoes civis e penais contra os culpados de sedu-9ao, ou seja, contra a casamento sem a consentimento dospais. Em 1540, Carlos V ordenou que urn homem com menosde 25 anos ou uma mulher com rnenos de 20, que se casassesem 0 consentimento dos pais, perderia todas as vantagensdo esposo sobrevivente. Ja no direito canonico 0 consenti-mento dos pais nao constituia condicao nenhuma. 0 Codecivil de 1804 requeria 0 consentimento dos pais para homenscom menos de 25 anos e para mulheres com menos de 21anos. Acima dessa idade, as filhos ainda se encontravam su- .jeitos aoprocesso do acte respectueux ("ato respeitoso"), que '.os obrigava a pedir 0conselho dos pais; em caso de recusa, 0,casamento podia ser realizado depois de urn certo numero de

    FATORES 275

    j

    repeticoes do acte respectueux; ver os artigos 152 e 153 doCode civil.

    A concepcao secular nao prevaleceu ate a epoca do Ilu-minismo, que era hostil ao papel excessivo desempenhadopela Igreja e combatia os pontos de vista da Igreja sobrevaries assuntos. No fim do seculo XVIII, alguns paises in-troduziram a casamento puramente civil sem qualquer con-tendo religioso. Na parte austriaca dos Paises Baixos, Jose IIaboliu as jurisdicoes dos tribunais eclesiasticos com 0 editode 28 de setembro de 1784; dai em diante a casamento foiconsiderado urn contrato civil , e em nenhuma hipotese su-jeito aos canones da Igreja". A Revolucao Francesa consa-grou este principio em sua constituicao de 1791, com osmesmo termos empregados par Jose II em 1784: "A lei con-sidera a casamento apenas urn contrato civil ." No sistemado Code civil, 0 casamento era um ato civil solene, e so urnfuncionario do registro civil t inha competencia para unir osesposos em nome da lei. Entretanto, a grande maioria daspessoas continuava apegada ao casamento religioso, e, comoapenas 0 casamento civil tinha consequencias legais, 0 casa-mento religioso agora s6 podia ser celebrado apos 0 casamento .civil, se fosse 0caso. Na mesma epoca, a proibicao eclesias-iica do divorcio foiab-rogada. Aqui a Revolucao foi bastan-te radical: pelo estatuto de 20 de setembro de 1792, a divor-

    . 132. Art.I : "Ja que 0casarnento e considerado um contrato civil e que osdireitos civis e as 'Iigal;oes dele resultantes der ivam sua existencia, forca edeterminacao inteira e unicamente da autoridade civil, da :Jurisdi

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    2 7 6 UMAINTRODU9AO HIsrORICA AO DIRE/TO PRIVADO.cio que devia ser pronunciado por urn tribunal era autoriza-do quer por consentimento mutuo, quer por eerto mimero deoutros rnotivos reconheeidos. Quando essa legislacao entrouem vigor, 0 numero de div6rcios cresceu eonsideravelmen-te; em alguns anos, a proporcao entre easamentos e div6reioschegou a ser de tres para um", Quando ozelo revolucionariodiminuiu, 0 legislador reeuou urn pouco, Mas apesar de al-gumas restricoes, 0 div6rcio foi mantido, quer por consenti-mento mutuo, quer por razoes fixadas pelos artigos 229 a 232do Code civil (adulterio, crueldade ou injuria, condenacao porcrime hediondo)",

    FA TORES 27 7, .lucao do direito nao tem side uma questac dequalidadetQualitdtsfragei", mas, ao inves, 0 resultado de uma lutapelo poder entre interesses particulares, uma Interessenju-risprudenz". Avancar para alem das concepcoes tradicio-nais, frequentemente ingenuas, e aprofundar e enriquecerde maneira inegavel nossa compreensao dos verdadeirosfatores envolvidos na evolucao juridica. 0 direito 6 umaestrutura social mutavel, imposta a sociedade; e afetado parmudancas fundamentais dentro da sociedade e e , em amplaescala, urn instrumento assim como urn produto dos quedetem 0 poder.

    Mas osjuristas se perguntam se isso liquida de uma yeza questao ou se nao devemos atribuir alguma importancia ~principios fundamentais, que nao dependern das circunstan-cias politicas ou das acoes de grupos interessados; em ou-tras palavras, se ha uma estrela fixa no firmamento juridico.Ainda que, por exemplo, as leis de Nuremberg possuissern- formalmente _:a forca do direito, elas eram inegavelmentefonte de injustica, Esta reflexao conduz ao desejo de urncorpo de normas estaveis, acima e alem de estatutos muta-veis, e capaz de servir de pedra fundamental para assentar avalidade dos estatutos - algo, talvez, como as constituicoese a declaracao dos direitos do homern. Os juristas se per-guntarn nao s6 sobre 0papel do direito, mas tambem sabreo seu proprio papel na sociedade. Aqui tambern a pesquisahist6rica desempenhou urn papel desmistificador. Mostrouque osjuristas ficaram freqiientemente do lado dos que eram

    Conslderacoes finals91. A pesquisa hist6rica teve exito em destruir as mitos

    relativos ao direito. Destruiu antigas concepcoes consagra-daspelo tempo: a de que 0 direito e urn corpo de normasinstituidas por urn Deus onisciente e inscrita nocoracao dohomem; ou 0 produto de decisoes sabias de ancestrais vene-raveis (ou mesmo mitologicos)"; au urn sistema deduzidoda natureza da sociedade por homens guiados pela razao, Acritica hist6rica mostra que, na maiorparte das vezes, a evo-

    33. A H .Huus sen , "Le dr oit du ma ri age au cou rs de l aRevo lu ti on Fran-caise", Revue d'histoire du droit 47 (1979),9-52,99

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    2 7 8 UMAINTRODUC;JO HISTORICA AO DIREITO PRIVADOpoderosos e capazes de obter 0 seu' service para defendersuas causas, compor seus estatutos ou legitimar suas reivin-dicacoes, Esse ponto merece urn exame mais detido. Masno momento a impressao dominante indica que 0jurista quetrabalha por honorarios e urn fenomeno mais freqiiente doque 0 jur ista revolucionario, que fica acima daqueles queestao no poder e defende a-causa dos fracos e oprimidos",No direito, portanto, as respostas a estas duas perguntas es-'

    , .t~o entre as necessidades mais prementes de nosso tempo:quais sao os direitos fundamentais a que as estatutos devemse conf?rmar? Como podemo~ assegurar que asjuizes e ad-vogados sejam independentes e sempre prontos a defendero direito? A hist6ria do-direi to permite que essas questoessejam encaradas com a ajuda da experiencia humana acu-mulada ao longo de varies seculos. " ""-

    38. Mas devernos ter cuidado quanta a generalizacac. Houve muitos . 'juizes que resistiram a uma consideravcl pressao politica, pelos invasores es-trangeiros entre outros, e muitos advogados que se sentiram cornpelidos a de-fender os oprimidos, como 0 jovem advogado Ernest Staes, heroi de um.ro-mance popular com esse titulo do autor flaljengo Anton Bergmann (t 1874):

    . sua primeira vitoria foi sua bem-sucedida intervencaoa favor de urn trabalha-dor que iaserprejudicado peloartigo 1781?o Code civil (ver seyao 6)., .