calheiros, vanitas-entradas p um dicionário de estética

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ENTRADAS PARA UM DICIONARIO DE ESTETICA

http://www.ipv.pt/millenium/pers13_4.htm

Entradas para um Dicionrio de Esttica

VANITAS VANITAS ET VANITATEM VANITAS VANITATUM VANITAS VANITATIS ET OMNIA VANITAS

LUS CALHEIROS *

O que so as VANITAS?

As VANITAS (vaidades) so as expresses artsticas que traduzem, de maneira simblica e num registo eloquente, sibilino, a nossa relao conflituosa com a morte. So formas artsticas histricas, datadas no tempo (e no entanto de sentido intemporal), que nos confrontam com a maior doena colectiva da humanidade, que a angstia que resulta da conscincia aguda da mortalidade. So uma espcie particular, muito especfica e tpica, emblemtica, de natureza-morta. So pinturas de genere peculiares, com uma temtica de grande efeito e afirmao de diferena. Gnero singular de natureza-morta intensamente expressiva e de complexa significao, de bvia aluso filosfica (acentuada muitas vezes pelas legendas eruditas) e de comentrio a um tempo sarcstico e cnico, macabro, pretendendo expressar edificante sabedoria moral e imperativo aviso para reflexo radical, em que feita a comparao por contraste total, entre a precaridade efmera dos prazeres mundanos, o vazio das ostentaes vaidosas do Homem, o engano pelo apego excessivo pelas riquezas materiais de que se rodeia; e a realidade ameaadora do triunfo final da morte tudo nivelando num nada fctico, sendo representada a "mofina" em evidncia perturbadora, pelo seu emblema mais imediato e certeiro - a caveira - o crnio humano. Modelo paradigmtico muito recorrente e prolixo, particular forma de encenao retrico-alegrica, foi tema "na moda" pelos fins do sculo XVI e por todo o sculo XVII, e mesmo ainda glosado tardiamente no incio do sculo XVIII, por toda a Europa. Teve o gnero uma enorme divulgao, enquanto "ilustrao intelectual" em voga, nos pases-baixos pelos idos de 1620 e seguintes, interpretado de maneira muito singular pelos artistas da Escola de Leyden. As mais remotas vanitas, ou melhor o seu "antepassado directo", os memento mori (recorda a morte), a representao solitria da caveira, so ainda do sculo XV, flamengos, executadas em geral no verso dos volantes dos trpticos, sendo depois acrescentadas com os objectos mundanais em sugestivas composies (j verdadeiras vanitas), com a sua grande divulgao posterior ao Conclio de Trento e s convulses reformistas/contra-reformistas, meados e finais do sculo XVI, correspondendo tambm ao ambiente da terribilit nascido do exemplo edificante que foi o monumental Juzo Final, de Miguel ngelo Buonarroti

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Simoni, da Capela Sistina, do Vaticano, tendo-se desenvolvido o seu gosto estranho, que atravessa os vrios estilos (o tenebrismo, o maneirismo e finalmente os primrdios do barroco) por toda a Europa - Alemanha, Frana, Espanha, Itlia, Flandres, Pases-Baixos. O seu perodo ureo foi o do sculo XVII, alis o grande sculo das naturezas-mortas como gnero de excelncia nos repertrios pictricos. Essas naturezas-mortas, veristas e ilusrias, em minuciosa tcnica de trompe-l'oeil, so mesmo justificadas nos textos crticos legitimadores, os tratados, como um alegado regresso desejado s lendas mimticas dos antigos pintores da Grcia Clssica - Apeles, Zuxis e Parrcios - citados expressamente, inmeras vezes. O significado directo e ltimo das vanitas, explcitas que so na sua referencialidade bvia, sobretudo o de uma advertncia sria, severa, um verdadeiro aviso, uma repreenso lapidar sobre a ignorante leviandade das vaidades mundanas, a inconscincia alheada dos excessos e finitudes vrias do Homem - os seus vcios e horrores, as suas paixes desonestas, desvairadas de cegas, funestas, os seus apetites venais insaciveis, as suas perigosas irracionalidades, as suas pulses inconfessveis -; e, em geral, uma distncia circunspecta por tudo o que se aprecia, sem freio e pudor, com desbragado hedonismo, neste mundo de carnalidades e materialismos primrios, doentiamente consumista e fetichista, inundado pelos prazeres mais desatinados. Que tm um fim! - esse o aviso. A eficcia da advertncia e aviso conseguida pelo efeito de contraste violento estabelecido entre o crnio humano, a caveira, s vezes tambm as tbias, mesmo o inteiro esqueleto, sinais escatolgicos manifestos do ameaador fim dos fins, colocados em evidncia de primeiro plano, em recorte contrastante com os objectos que os rodeiam, de ostentao e aparato, de erudio e estudo, de pompa e fausto, dispostos em minuciosa e verista composio formal, de apurado sentido lumnico-cnico e forte carga dramtica. Temas apocalpticos milenaristas, dramaticamente ameaadores, mais escatolgicos que teleolgicos (mostrando mais o fim do que eventual redeno), so alegorias terrveis de eficcia significativa, composies muito elaboradas, mas com explcito artifcio de citao retrico-moralista, que conseguem invulgar eloquncia ao expressar, de modo artstico simblico, pela pintura, gmea da poesia (dizia Horcio), um comentrio categrico sobre a sabedoria irnica do "trabalho" da morte, finando cerce a iluso posta nas vaidades terrenas. Um apelo ao instante arrependimendo que tarda, pela vacuidade da vida guiada pela mais leviana iluso, ao aproximar-se, com o triunfo derradeiro da morte, o severo fim para as frivolidades mundanas. So histrias contadas visualmente, narrativas exemplares, com um recorte moral fortssimo, um registo severo de recriminao tica, com um alcance filosfico que poderemos chamar mesmo de proto-existencialista. Pretende-se com estas naturezas-mortas de particularssimo sentido pattico, traduzir o discurso melanclico-asctico, contemplativo, estico, puritano, sado das convulses ideolgicas e religiosas do sculo XVI, um discurso condenador das materialidades mais apelativas do viver mundano, e ainda das actividades predadoras e hieraquizadoras do viver social com todo um rol de evidentes iniquidades, a injustia revelada na desigualssima distribuio dos bens e riquezas, a roda da fortuna separando implacavelmente os poderosos, que tudo possuem, dos expoliados que nada tm de seu, morrendo igualmente todos e tudo deixando, muito uns, outros pouco, (justia final, ironia ltima do fim dos tempos!), das satisfaes cegas dos prazeres mais primrios e srdidos, dum hedonismo fetichista cada vez mais generalizado - sinal dos tempos - a modernidade do capitalismo emergente. Mrbidos, fnebres, macabros, ttricos, so bodegones intemporais, porque anunciam a verdade mais radical de todos os tempos, de sempre - a Morte - o fim sbito e derradeiro do epicurismo instante de todos os tempos, que aproveita com sofreguido a precaridade escassa dos momentos agradveis e felizes da

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existncia, as raras oportunidades de gozo, e deleite, dos chamados "pecados veniais" (os cabalsticos sete vcios). Para os "pecadores" a honesta volpia dos prazeres (infelizmente) demasiado efmeros. Os elementos mais constantes do repertrio habitual das vanitas so de trs ordens:

1 - Objectos aludindo vida terrestre espiritual e contemplativa (as cincias, as letras e humanidades, as artes, citadas ao modo alegrico por meio dos seus objectos/signos: livros, quadros, esculturas, mscaras, instrumentos musicais, mquinas e mecanismos cientficos), ou, por outro lado, figurando a vida terrestre mais materialista e de prosaico hedonismo, mais voluptuosa e sensual (a citao cannica dos cinco sentidos, ou objectos de amor profano como espelhos de dama, colares, prolas, jias e outros adornos femininos, e ainda flautas e charamelas, smbolos flicos e rotundos, que representam os prazeres libidinais e a luxria), a citao directa da fortuna (moedas de ouro e prata, objectos preciosos, coisas de grande aparato, de ostentao e fausto, ricos panos de armar com as suas borlas de ouro fino, panejamentos drapeados dos mais requintados tecidos, veludos, sedas e brocados, desdobrando os seus bordados de ornato rico) e do poder (a coluna de ordem clssica, o trono de potestade, os smbolos das hierarquias seculares, coroas, tiaras, mitras, medalhas e outros adereos de honra, ou ainda armas, armaduras, elmos, escudos, emblemas herldicos, e toda a panplia de instrumentos blicos e sinais de subida hierarquia). O que se perde. A glria e a fortuna, os prazeres que so deixados para trs com a derrota que a morte impe, provando que sobre os maiores poderes do mundo, um poder maior, csmico, sobre tudo impera e comanda.

2 - Objectos evocando a brevidade da vida fsica dos prazeres mundanos finados pela velocidade fgica do tempo que tudo traga e envelhece de maneira implacavelmente vil (ampulhetas e diversificados relgios, cronmetros, clepsidras), explicitando enfaticamente a degradao da matria (flores, elas prprias smbolos imediatos da efemeridade e finitude, perdendo as ptalas e definhando, frutos apodrecendo, folhas secando e murchando, pedras desgastadas e rachadas, gretadas, velas apagando-se, cachimbos pousados, ainda e fumegar, taas de vinho tombadas). Aquilo em que as coisas se tornam. A efemeridade da vida que mal se mostra exuberante de beleza e cor e de excelncia de aroma logo murcha e se fina.

3 - Os objectos de maior protagonismo simblico no todo das composies - a caveira, as tbias, s vezes o esqueleto completo, erguendo este muitas vezes um gadanho, uma arrepiante foice segadora. E inscries de aviso cruel sobre o fim dos fins, quase todas retiradas do livro Eclesiastes. A morte representando-se como derradeira vencedora. Tudo acabando com o passamento que provoca. A carga simblica de grande impacto das vanitas, muitas vezes com expressas legendas escritas, tm como referncia erudita segura as escrituras sagradas, o Antigo Testamento. So citaes literais das sentenas de recorte edificante, sarcsticas e destemperadas, do mais radicalmente crtico dos textos bblicos - um dos Livros Sapienciais - o Eclesiastes. O nome genrico vanitas vem portanto directamente do esprito da mxima bblica VANITAS VANITATUM ET OMNIA VANITAS (Ecc.1:2) - vaidade das vaidades, tudo vaidade. Julian Gallego sugeriu que o gnero vanitas poderia nomear-se, de maneira mais precisa e certeira como "desengano", palavra chave para os grandes pensadores do pessimismo espanhol, Quevedo e Gracian. O termo hebraico que traduz a palavra vaidade, Qohelet, significa etimolgica e literalmente "vapor de gua". Faz parte com gua, sombra, fumo, aragem, brisa, nuvem, do repertrio inefvel dos vocbulos que nomeiam

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imagens de substncia efmera, que ilustram eficazmente a ideia de "fragilidade humana", patente nos mltiplos momentos do pensamento hebraico antigo. O tema "vaidades" , por excelncia, o de Eclesiastes, o texto bblico que mais claramente acentua o vazio das coisas humanas. Nele se afirma: "Assim como saiu nu do ventre da sua me, do mesmo modo sair desta vida, sem levar consigo nada do que adquiriu" (Ecc. 5:15), ou "onde esto agora as brilhante insgnias do consulado? Onde esto os aplausos, os coros, os banquetes, os festins? Todas estas coisas passaram, foram noite e sonho". (Ecc. 10:17), nele se faz aluso ao entorpecimento pelos prazeres mundanais, um embriagamento que anula a reflexo serena, a lucidez, a clarividncia, e se avisa que o tempo na terra limitado - "todas as coisas tm o seu tempo" (Ecc. 3:1). A origem iconogrfica mais remota das vanitas na arte da pintura encontra-se, seguramente, na eleio como tema nobre do ambiente frugal e mitigado de clausura anacoreta, do retrato de S. Jernimo eremita, os livros e folhas volantes, smbolos da especulao intelectual de Doutor da Igreja, o crnio humano e a ampulheta, lembrando ao homem de carne e osso que ele no nada face ao poder aniquilador do tempo. E um desses memento mori/vanitas primeiros, exuberante indcio dessa futura moda, foi o original desaparecido do retrato de "S. Jernimo", do flamengo Jan Van Eyck, obra datvel da terceira dcada do sculo XV (de que o "S. Jernimo" do Institute of Arts of Detroit seria cpia mais ou menos fiel, ou variante). Essa obra foi o modelo fundador de uma iconografia prolixa, interpretada nos diversos estilos dos sculos XV, XVI, XVII, por numerosos artistas (Colantonio, Antonelo de Messina, Carpaccio, Lourenzo Lotto, Petrus Christus entre muitos outros). Excelente variante o "S. Jernimo" meditando melancolicamente sobre a caveira, da autoria do mestre alemo Albrecht Drer (1521), oferecido que foi a Rui ou Rodrigo Fernandes de Almeida, o fidalgo portugus que foi Embaixador do nosso Rei D. Joo III, e que nas suas viagens pelo norte-europeu ter conhecido pessoalmente aquele grande artista. Est hoje, como uma das preciosidades do acervo, no Museu Nacional de Arte Antiga, vulgo - Museu das Janelas Verdes -, em Lisboa. Claramente inspirado neste S. Jernimo que lhe serve de modelo, outro retrato do santo, da oficina dos discpulos de Quentin Massys, que acrescenta uma viso nostlgica do mundo com belssima paisagem a que o eremita volta ostensivamente as costas, e com um letreiro numa cartela sobre a sua cabea melanclica, com o dito latino COGITA MORI (Reflecte Sobre a Morte). O gnero nasce da dupla filiao ideolgica. Por um lado dos crculos humanistas centro-europeus e italianos dos sculos XV e XVI, revisitadores das antigas alegorias memento mori dos latinos clssicos (sendo a mais conhecida o mosaico de Pompeia), e por outro lado, da atmosfera intelectual e religiosa de Leyden, bastio calvinista, que condena com severidade puritana tudo o que considerado excessivamente hedonista e mundano. As vanitas so a expresso de uma curiosa identificao epocal, do diverso sincrnico, pois cruza transversalmente o universo contraditrio das mentalidades, num sculo de grande cisma religioso, o cinquecento, reforma e contra-reforma subitamente irmanando-se numa severa atitude moral condenadora dos excessos de ostentao material da mundanidade mais despudorada. A influncia do telogo reformista J. Rivet, Professor de Filosofia e tica de 1620 a 1632 em Leyden, detectada nas obras de pintores como David Bailly. Aquela cidade dos pases baixos , por esses idos, um centro importante de estudos filosficos, emblemticos/alegricos, e tambm anatmicos. Na mesma altura, o fervor religioso da contra-reforma foi tambm favorvel extenso e recorrncia desse gnero que explicitava a imediata meditao sobre a inevitabilidade fatal da morte. A reflexo sensata sobre a vaidade das coisas terrenas uma constante do pensamento humano, mas podemos balizar etapas, a partir da representao da tte de mort, o crnio humano, a caveira.4 de 20 19/02/07 18:25

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O exemplo conhecido mais remoto o j citado mosaico pompeiano, que do sculo I da nossa era. Na histria da pintura, isto , na exacta passagem da pintura annima (dos primitivos) para a pintura de autoria (pintura dos grandes mestres, os protagonistas), um dos primeiros exemplos de memento mori/vanitas o verso dum volante do "Trptico Braque", de Roger Van Der Weyden (de 1450). Do incio do sculo XVI o memento mori de Jan Gossaert, dito Mabuse, no verso do volante esquerdo do "Dptico de Carondelet" (de 1517), uma nature morte la tte de mort, com uma tarja com os dizeres latinos atribudos a S. Jernimo: FACILE CONTEMNIT OMNIA QUI SE SEMPER COGITAT MORITURUM (Aquele que considera sempre a proximidade da morte aceita facilmente tudo), algo prximo do lema que mais tarde, com algum cepticismo metafsico, tomou o pintor Caravaggio, Miguel ngelo Merisi ou Amerighi: "Perdida a Esperana, Perde-se o Medo": Do primeiro quartel do mesmo sculo tambm um belssimo memento mori de Albrecht Drer, (de cerca de 1528, ano da morte do pintor), tambm com legenda, em alemo arcaico de belos caracteres gticos que ameaa: "No existe nenhum escudo que vos possa defender da morte; quando chegar a vossa vez morrereis, crede em mim". Mas s a partir do segundo quartel do sculo XVII o gnero mais particularmente se tipifica e se consagra. David Bailly pintar em 1651 uma grande composio reunindo o seu auto-retrato, com o pitoresco do seu (outro) retrato (no retrato) "envelhecido" e uma exuberante vanitas, com todos os tradicionais objectos constantes. Contemporaneamente aderem ao gnero os irmos Harmen e Pieter Steenwyck, e ainda Pieter Claez, que fixam o estilo: tom geral de paleta fechada, de ocres e terras queimadas, luz razante de forte contraste, desordem complexa (mas muito estudada) de livros, cachimbos, bzios vazios, velas, relgios, vasilhas com flores, taas vertidas, e os crnios salientando-se, segundo um esquema de composio com predominncia de leitura diagonal. Muitos pintores flamengos e dos pases-baixos iro produzir variadas vanitas, em que iro aparecer outros diversos elementos, outros objectos figurando o poder, a guerra ou o conhecimento erudito, a saber: armaduras, couraas, espadas, elmos, estandartes, livros e aparelhos cientficos, globos terrestres, etc. Exemplos excelentes so tambm as vanitas de J.D. de Heem, de Anvers (1621), as de W. de Poorter e de G. Dou, e mais tardiamente, num estilo de grande pompa, ostentao e aparato, anunciando j a grandiosidade do sculo XVIII, as de M. Withoos. A vanitas foi introduzida em Frana pela importante comunidade flamenga de Saint-Germain de Prs. Philippe de Champaigne chegou a pintar uma vanitas, hoje de paradeiro incerto, que se conhece por uma gravura. O gnero ir desenvolver-se concorrentemente com o tema dos cinco sentidos. Entre os grandes pintores franceses, ou trabalhando na Frana, podem citar-se os nomes de J. Linard, Baugin, Sbastian Stoskopff (Grand vanitas, 1641), os pintores de Anvers, N. Peschier e S. Bonnecroy, ou ainda Simon Renard de Saint Andr e Nichollas de Largillierre (com uma vanitas da 1677, obra de juventude). O tema mais raro em Itlia. Aparece, contudo, na obra de Salvatore Rosa, que pintar mesmo uma verdadeira natureza-morta em vanitas, ou ainda em Giuseppe Recco. Em Espanha, Antnio Pereda pintar vrias vanitas. A mais conhecida "o sonho do cavaleiro" (cerca de 1670) que apresenta um jovem gentil-homem adormecido nos braos de um cadeiro, a cabea apoiada na mo. O resto da composio representa uma verdadeira vanitas, (conjunto catico, e contudo de bem ordenada composio formal), de objectos variados, smbolos do orgulho mundano, tudo envolvido pelo tom carregado de trevas. Livros, partituras, uma pistola, um globo, uma couraa e braais de armadura, flores,

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jias, cartas de jogar, moedas, uma mscara, um livro aberto, uma vela apagada, um relgio e dois crnios, (um frontal, muito iluminado, o outro rolado e visto por baixo, da mesma forma que vem representado nas gravuras do tratado do anatomista Andrea Vesallius, De Humani Corporis Fabrica, 1568). Por fim um anjo estende uma legenda que diz: TERNE PUNGIT CITO VOLA ET ACCIDIT (a glria eterna esvai-se como um sonho). O motivo um paralelo pictrico prximo na iconografia de uma passagem do drama de Caldern de la Barca, "La Vida es Sueo". ainda conhecida a "Alegoria da Caducidade", outra vanitas com os mesmos elementos, o anjo apontando o globo terrestre, e segurando um camafeu com o perfil de Carlos V, e todos os outros elementos; e quatro crnios em destaque de composio e luz. Pintado em 1640, um comentrio cido ao "comeo do fim" do Imprio dos Habsburgos, o Reino de Espanha de Filipe IV perdendo e posio hegemnica no mundo, aps a separao de Portugal e da Catalunha, e ameaado pelas guerras independentistas da Flandres e dos Pases Baixos, com a adivinhada degradao econmica que se aproxima. Igualmente cultor das vanitas, Juan de Valds Leal far grandes composies, as famosas "Alegorias", obras de grande impacto e sentido de monumentalidade, para o Hospital de la Caridad, de Sevilha. J Francisco de Zurbaran tinha citado o gnero, como pormenor no todo, do retrato de "Frei Gonalo de las Illescas" (1639). O tema, agora tratado como redundncia da morte no tema da natureza morta, ressurge apenas na modernidade, com Paul Czanne ("trs crnios"), Georges Braque ("Crnio, colar e crucifico", 1938) e Pablo Picasso ("Crnio com alho francs e vasilhas de cozinha", 1942). Este ltimo pertencendo ao acervo do Museu do Caramulo, Portugal. A ltima grande exposio antolgica sobre as vanitas foi apresentada em 1990, no Museu de Caen, e tambm no Museu do Petit Palais, em Paris.

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Harmen Stennwyck (c.1580-1649) Escola Flamenga, Sc. XVII, Vanitas, (as Vaidades da Vida Humana), cerca de 1645, 39x51 cm, leo s/madeira de carv, National Gallery, Londres.

Pieter Claesz (1590-1661), Vanitas, leo s/madeira, 1645, 39x61 cm. Coleco Particular.

David Bailly (1584-1657), Auto-retrato com smbolos de Vanitas, 1651, 89,5x122 cm, leo s/madeira de carvalho, Stedelijk Museum De Lakenhal, Leyden.

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Antnio de Pereda (1608-1678) "O Sonho do Cavaleiro", (1638), 152x217cm, leo s/madeira de carvalho, Real Academia de S. Fernando, Madrid.

Antnio de Pereda (1608-1678) Alegoria da caducidade, cerca de 1640, 139,5x174, leo s/madeira de carvalho, Kunsthistorisches Museum, Viena.

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Jacques Linard (1600-1645) Vanitas (vaidades) 1645, leo s/tela, 31x39 cm, Museu do Prado, Madrid.

Juan de Valds Leal (1622-1690), Finis Gloriae Mundi, 1671, leo s/tela, 216x220 cm, Hospital de la Caridad. Sevilha.

Gneros iconogrficos afins

(A arte representando a Morte como fatalidade irremedivel dos homens).

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Foram gneros iconogrficos afins, pertencentes mesma famlia simblica que poderemos nomear de "Iconografia Escatolgica", alm dos mais prximos, os memento mori, os "Apocalipses" e os "Juzos Finais", e sobretudo as "Danas Macabras" e os "Triunfos da Morte", as "Procisses de Esqueletos e Condenados", as "Mascaradas da Morte", as "Trs idades e a Morte", as "Degradaes dos ltimos tempos", que foram temas que marcaram a Alta Idade Mdia e os primrdios do Renascimento. Foram formas de representar a morte, realidade omnipresente por esses idos, devastados por pestes e insuficincias mdicas e sanitrias, subnutrio, promiscuidade e falta de higiene, tudo potenciando o "trabalho" eficaz do espectro final. Os quatro Cavaleiros do Apocalipse a Guerra, a Fome, a Peste... e a Morte. Tempos que despertam para a realidade quotidiana da "grande mofina" que vai ceifando vidas metodicamente, dizimando multides de "almas" de todas as classes e idades, sem excepes nem contemplaes, aceitando no seu seio maldito, a igual dignidade de mortais que existe na mais desvairada diversidade da espcie humana, que nos une a todos, para l de todas as diferenas - credo, ideal, tradio cultural, nao, etnia, tribo, cl, casta, linhagem, classe (condio social), raa, sexo, idade, idiossincrasias, loucuras, excessivas normalidades... So tempos que despertam, com uma lcida melancolia, para o sentimento trgico da vida, para a amarga pena que o viver dirio, e tambm, pela primeira vez, para o problema da individualidade irrepetvel de cada alma, para o sujeito humano uno e diferente, s consigo e com a sua incontornvel circunstncia, em que toda a conscincia de "si" uma forma extrema de solido, lucidez acrescida da separao do eu individual do inteiro solidrio da colectividade. Forma de conscincia ltima de que o ser (nico) a ausncia do outro-connosco. So tempos de uma grande reflexo sobre a finitude humana e os mundos desconhecidos, os fsico-geogrficos que vo sendo desbravados com as recentes descobertas, os metafsicos efabulados - o nascimento do Purgatrio - Inferno e Paraso, ltimas comarcas, Hades redescoberto, Thanatos triunfante... e mil e uma panaceias repetidas pela ensima vez do nosso medo, o constante recomeo dos discursos de redeno confortante, aberturas ao espiritual, apelos reflexo metafsica e ontolgica, existencial... salvaes desejadas, danaes temidas, viso receosa do desconhecido, ... medo do nada! As alegorias da morte abundam, tanto no brumoso norte europeu como no soalheiro sul mediterrnico. Na Bretanha armoricana levanta-se o Ankon, condutor dos mortos das danas macabras, que vemos desfilar nas tbuas terrveis de Hieronymus Bosch Van Acken ou Pieter Brueghel Van Breda, o Velho, o seu grandioso "Triunfo da Morte" uma obra-prima do gnero. Aparecem amide tambm nas obras dos grandes mestres da velha escola alem: Mathias Grnewald, Lucas Cranach, Nicholas Manoel Deutsch, Hans Baldung Grien ou Joaquim Patinir; revisitados pela modernidade expressionista, por autores como James Ensor, Flicien Rops, Edward Munch, Egon Schielle, Gustav Klimt, Oscar Kokoschka, Georges Grosz, Emil Nolde, Max Beckmann, ou ainda pelos pintores tenebristas novecentistas da Espanha Negra, Jos Gutierres Solana e Igncio Zoluaga. Impressionante o "Casal de insepultos - os amantes trespassados" - dois velhos amortalhados, trespassados por serpentes e cobertos de vermes, da autoria de Mathias Grnewald. Requintadas so as gravuras da srie Dana Macabra, de Hans Holbein, o moo. A par destas expresses da pintura erudita, a escatologia iconogrfica perpetua-se tambm nas Alminhas ("espanta diabos" lhe chama o povo), tbuas votivas com temtica post-mortem, com representao das penas do purgatrio, diabos e morte representadas em evidncia, dominando as chamas purificadoras (?!) onde vo10 de 20 19/02/07 18:25

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penando as almas dos mais dspares pecadores, representadas que so, invariavelmente, todas as classes sociais, os "estados seculares" (Papa, Imperador, Rei, nobres, burgueses, plebeus, monges, freiras...). Forma muito caracterstica de hagiografia popular, pequenas pinturas de grande tradio cultural folclrica, apareceram tambm nos idos do sculo XVII, as mais antigas ainda do sculo XVI, denunciando o mesmo discurso crtico social custico que se conhece do teatro vicentino - a passagem de todas as personagens da comdia humana para as barcas de Caronte - do clebre "Auto das Barcas", de Gil Vicente. So ainda exemplares iconogrficos da mesma famlia os retratos com o registo doloroso e de reflexo asctica de santos anacoretas, eremitas, mrtires ou monges contemplativos, todos identificados com a "maligna", pela presena macabra da caveira: o j citado S. Jernimo, sapientssimo Doutor da Igreja, eremita do deserto; St Maria Magdalena, Maria de Magdala, pecadora arrependida; S. Francisco de Assis, o heri cristo do despojamento; St Anto, abade do deserto; ou ainda S. Bruno, St Margarida de Cortona ou S. Francisco de Borja. Ainda semelhantes na composio simblica so inmeros tmulos de Papas, cardeais e prncipes da Igreja, que vemos em templos italianos, de que o magnfico tmulo do Bispo D. Manuel de Moura Manoel da Igreja de N Sr da Penha de Frana, da Vista Alegre, em lhavo, ser o melhor exemplo aplicado no nosso pas. Por fim, as "capelas de reflexo contemplativa penitente" feitas com ossos de mortos - tbias e caveiras - as "capelas dos ossos" dos mosteiros franciscanos (magnfica a do Convento de S. Francisco, de vora) com os seus letreiros de ameaa cruel: "Ns ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos" ou "Tu s o que ns j fomos e sers o que ns somos". Esta ltima legenda uma citao seguramente copiada do dito lapidar, anunciador de inevitabilidade ameaadora da morte, adornando o tmulo com esqueleto, que faz a pedrela do fresco "A Santssima Trindade" com figuras de "p da cruz" e doadores (Loureno Leni e sua mulher) da Capela Brancacci (de cerca de 1425) de Florena, pintada por Giovanni Guidi de Mone, dito Masaccio - IO. FV. GA. QUEL. CHE. VO: E. TE. EQUEL. CHISON. VOI. ACC. SARETE (Sentena em italiano arcaico que diz algo como: eu fui o que vs sois; e igual ao que sou tambm vs sereis). Por ltimo a morte representada pelo cannico esqueleto munido com a foice gadanha com que ceifa a vida, e acompanhado da ampulheta que lhe marca o tempo do "trabalho", no tema do arcano ligado ao nmero 13 (nmero do azar) do Baralho de Tart. Representa a fatalidade do Destino. Apela a uma reflexo questionadora dos vcios e defeitos, prope o arrependimento, o desprendimento, o aperfeioamento e a transformao radical e superao de tudo o que est ultrapassado, obsoleto e decadente. E todas estas so expressivas representaes simblicas iconogrficas do Mrbido, do Ttrico, do Macabro.

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Alegoria da morte num mosaico encontrado em Pompeia, memento mori, Sc. I D.C.

Albrecht Drer(1471-1528), memento mori (Pensa na Morte), leo s/tela, 37x29 Cm, assinado com o monograma, no

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datado, Museu do Ermitage, S. Petesburgo. Russia

Albrecht Drer (1471-1528), S. Jernimo, leo s/tela, 59,5x48,5 cm, no datado. Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.

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Oficina dos discpulos de Quetin Massys, "S.Jernimo", 1520, 77x105 cm, leo s/madeira, Kunsmuseum, Dsseldorf

Pieter Brueghel, o Velho (1525-1568), "Triunfo da Morte", leo s/madeira, no datado,117x162 cm, Museu do Prado, Madrid.

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Michael Wolgemut, "Dana Macabra", ilustrao da Weltchronik (crnica mundial), de Hartmann Schedel, Nuremberg, 1493.

Hans Holbein, o Moo, (1497-1543), Srie de Gravuras "A Dana

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Macabra".

VANITAS... (a sua razo!) comentrio final, talvez oportuno.

O Homem, apregoada maravilha suprema da natureza, no passa, afinal, de um ser finito e limitado, efmero e passageiro, incompleto. Acabado paradoxo. O ser mais capaz de gozar plenamente o prazer de viver , tambm, (talvez por isso mesmo), o mais carente de vida. Escassa e curta que ela , manifestamente curta! O Homem o nico animal de toda a criao que se descobre absolutamente infeliz. E a sua infelicidade resulta, precisamente, da mais-valia da sua condio- a razo, a conscincia de si. Fado insuportvel! Criatura Superior(?!), no vive naturalmente s, alegremente apenas, numa felicidade inconsciente, como todos os animais, no seio livre e generoso da natureza, da sua me geradora. No vive feliz, simplesmente, ... como todas as demais criaturas. Os seus raros momentos de felicidade plena duram pouco, so fugazes, breves instantes... momentneas iluminaes numa penumbra continuada. Vive, ... mas vive "acompanhado" da conscincia cabal da frgil condio da sua existncia... macaco nu e desamparado! Vive, ... mas vive revoltado, amargurado, inconformado, perante a impotncia de no comandar o seu devir, e, sobretudo, perante a lucidez de viso desolada da (sem) razo ltima da vida... que vive uma nica vez. Vive, ... mas vive dolorosamente o sem-sentido absurdo que retira, pesados todos os momentos, do estranho drama, trgico-cmico, que a sua vida entre a dos outros, seus iguais em condio. O homem vive em constante estado de insatisfao existencial, angustiado pela clarividncia da sua breve perenidade, amedrontado e inquieto pela conscincia do breve fim. o nico animal, do diverso da criao conhecida, com a viso cruel da sua finitude - os seus curtos limites. a nica criatura, depois do big-bang (e antes de outro qualquer cataclismo) com a conscincia lcida, desencantada, desesperada, de que no mais do que a mera sombra de um sonho alheio... (de alguma fico suprema, quimera desconhecida!). Ao arrepio da sua grande ambio feita ganncia desonesta, v glria de mandar, ... ao arrepio dos seus desvarios de grandezas, imprios a ganhar... puro engano! O Homem uma iluso feita de carne e osso, pequeno formato. Frgil marioneta de deuses loucos, dramaturgos de uma qualquer pea dum grand-gignol csmico. O Homem uma criatura precria, demasiado precria! Um ser provisrio, com termo sbito (mas esperado!). Com apertado prazo de validade! A sua existncia parca, transitria, pouco duradoura, uma passagem, leve brisa, pelo vale lacrimoso do mundo terreno.

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Em direco certa ao no-ser. Os seus passado, presente e futuro so a vspera, o hoje e o amanh duma rcita de curta durao: Uma novela biogrfica da qual conhece antecipadamente o desenlace... a ltima pgina. Escusado desprazer. O presente passa to veloz que no parece dar ntida certeza que exista. Os prestes dias que passam a galope no pouco que vive, breve estadia terrena de superfcie, fazem dele o louco perdido de sentido, um tonto alienado condenado ao absurdo de um drama que no comanda. Porque o destino imprevisvel vence a vontade mais indmita. As contingncias da vida no dependem dele, ultrapassam-no. O seu ltimo destino, futuro fatal, brutal, derradeiro, conclusivo, e anunciado como uma maldio desde o bero, a morte, voraz predadora. S ela definitiva e irreversvel - uma ameaadora entrada no mistrio insondvel da eternidade. A morte a comarca final, enigma ameaador, porque imensamente desconhecido e inteiramente indecifrvel, e por isso efabulado por uma filosofia meta-humana, e ainda assim demasiado humana, melanclica de esperana. A morte provoca uma ontologia amargurada pelo desespero e a mgoa. Perante a morte, como perante a vida, e o amor, impossvel, imperdovel, incontornvel, ficar indiferente. difcil permanecer inclume ao abeirar desse territrio terrvel de medonho. A morte marca-nos irremediavelmente, com o trago amargo do desencanto mais lcido e da revolta mais impotente. A morte feita de sucessivas perdas que fazem a enorme angstia omnipresente dos homens, tristes mortais. Porque o que fica, fica indelevelmente marcado como um lugar incompleto, ... magoado de falta, onde a nica verdade imediata o pesado e pungente silncio do vazio, da perda, da ausncia..., do "nunca mais", lamento irreparvel pela saudade "dos que vo indo" ( nossa frente!). Porque o que fica o lugar onde ficamos "mesmo" a ss connosco, e com essa imensa dor humana, indizvel de tamanha! E nada temos que nos conforte, nada temos que anule esta angstia que nos fina e nos consome. Nada temos que nos subtraia do mecnico trabalho da ceifeira maldita que nos vai levando uns aps os outros. E a morte o nico e irrepetvel momento da existncia que feito de absoluta individualidade. Nascemos acompanhados (pelo menos pela me), vivemos sempre com os outros... (mesmo se excludos os eremitas, ... mesmo esses seguiram a vocao solitria depois da experincia do "outro", a mais das vezes por causa dessa prpria experincia!)... mas morremos sozinhos. Irremediavelmente! A morte tambm, finalmente, o momento das certezas ltimas, ou melhor, da grande e cabal certeza que responde inteiramente ao nosso eterno questionar: quem somos, donde vimos, para onde vamos. O elucidativo momento em que as duas hipteses absolutamente antagnicas e excluidoras do nosso devir existencial se transformam numa s resposta: - ou matria que se transforma em matria (e j no haver disso conscincia, pois ela se ir fundir no todo!); ou um puro esprito que animar um "alm", que agora apenas pode ser sonhado pela esperana efabuladora, e nunca afirmado racionalmente, isto pela vivncia esclarecedora e confirmadora da experincia. Tudo ou nada! Deus ou um escuro sem fim! Um paraso eterno de luz junto de um pai divino que nos abraa no fim... reconfortante quimera, (que bom que fosse verdade!) ...ou p juntando-se ao p maior da terra. Certo haver morte depois da vida, como incerto haver vida depois da morte. Certa a morte de cada homem. Ningum escapa!

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"Animal transcendental" acossado pela revelao de que prdigo apenas na imensa solido csmica e no confirmado abandono da providncia (exista ela ou no!), o Homem um ser condenado "a caminhar a sua vida", pena irreversvel, a caminhar sempre para o fim - a morte certa... a hora incerta! O Homem pequeno e efmero. De uma pequenez insignificante. De excessiva finitude. tudo menos eterno. De cincia certa se sabe que tudo o que humano e terreno se fina e acaba.. num instante! Na terra nada eterno, tudo fogo-ftuo, extino sbita... ou reconverso, reciclagem! Sucessivos eternos-retornos do nada ao nada! IN TERRIS NIHIL TERNUS EST foi o escrito lapidar, sentena irrefutvel, mas tambm traduo de estado de alma melanclico, pattico, pois foi encontrado numa parede de uma casa de Pompeia, grafito nervoso e contudo sereno, talvez escrito por um romano lcido, iluminado pela hora amarga, em derradeiro instante de verdade, imediatamente anterior morte intempestiva nas lavas vulcnicas do Vesvio. "O Homem no passa de barro, p, cinza". Eis o juzo edificante que encontramos em todos os textos mais antigos e sagrados das mais diversas comunidades humanas. Mas a filosofia, a poesia, a arte, virtuosas gnoses, quando veculos da reflexo serena e dasapaixonada sobre a finitude do Homem, ensinam-lhe a sabedoria do desapego sensato das coisas e dos bens de que se rodeia - a elevao moral do despojamento -, e tambm, lucidez acrescida, a bondade do corao na generosa disposio para a fraternidade. "Estamos todos no mesmo barco, ... a mesma sorte; somos iguais marinheiros, ... irmos de navegao!" A filosofia, a poesia, a arte, ensinam-no a substrair-se da continuada condio de escravo cego do cansativo existir sobrio de todos os dias, do rotineiro e constante recomeo de guerras e escaramuas que movemos uns contra os outros, ... como se de obrigatria Tarefa de Ssifo se tratasse... outros Caim e Abel danados e amaldioados, mil geraes aps. Ensinam-no a escolher entre a idolatria interesseira, de primrio hedonismo, que comanda o generalizado fetichismo triunfante, as ganncias avulsas por mesquinhas coleces de pertences privados, que na essncia nada valem, prescindveis que so, caprichosamente egostas; e a autntica e genuna alegria, a inegvel satisfao, que se retira da partilha de tudo com todos, do gozo irmanado de todos os bens postos em comum com todos os outros, "terra da cocanha" feita paraso terreal. "Saudades do futuro" a feliz expresso que traduz a constante nostalgia do paradigma perdido, a "terra prometida", comarca da abundncia final, lenda, fico, utopia. Mais de trezentos e cinquenta anos aps, mas ainda (e cada vez mais) actualssima, a sentena condenatria a esse apego cego pelas materialidades - o monetarismo sacralizado, a prostituta universal que o dinheiro travestido de supremo bem - feita pela Padre Antnio Vieira: "Os antigos adoravam o bezerro de ouro, os modernos adoram o ouro do bezerro". Diziam os esticos latinos, na esteira dos cnicos gregos, de Digenes: QUI DIVES? - QUI NIHIL CUPIT! QUI PAUPER? - AVARUS! (Quem rico? - aquele que nada cobia! Quem pobre? - o avarento, o ganacioso insatisfeito!) A contemplao de horizonte potico-filosfico sobre a existncia fsica do Homem, aponta para o desprendimento parcimnico, circunspecto, das coisas de que se rodeia, por mais tentadoras e preciosas que paream, to precrias quanto ele! No extremo, a sabedoria asctica do total despojamento de si! Outra vez mais os esticos: "Mais vale salvar a alma, mesmo perdendo-se os bens. O mais importante salvaguardar a integridade do nosso ser mais genuno, a nossa serenidade do esprito e a dignidade ltima que a ns prprios devemos". A fama, vaidade mxima do Homem dura um "ai". Andy Warhol dixit: "15 minutos de fama"... quinze parcos minutos!18 de 20 19/02/07 18:25

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precrio tudo o que humano. E a filosofia aponta essa precaridade, essa escassez, que nos tabela e iguala inteiramente no fim do caminho. Fama, Glria, Fortuna so deixadas c... ao p dos tempos vindouros. (Stos desolados... memrias desbotadas, esmaecidas!... ou antigalhas para ostentao dos filhos e dos filhos dos filhos... novos enganos!). Bens e riquezas so banalidades terrenas, trivialidades, vaidades, apenas! tudo acaba um dia! Tudo passa... SIC TRANSIT GLORI MUNDI. Porque um p, apenas p, barro, terra, nos volvemos, todos iguais, no fim dos fins! Acrescente-se, agora, algum alento que ameniza a dureza azeda e cruel destas irrefutveis verdades, mrbidas e escatolgicas que so, a reflexo naturante, pantesta, rstia de moderada satisfao csmica-de Baruch Spinoza: "Os Homens so os modos finitos da Substncia Infinita". Remate final, andante presto deste retrato da tragdia humana, visto ao modo optimista prudente. Siga-se letra o lema horaciano: CARPE DIEM (aproveita o dia). Vive o teu dia intensamente! Como se fora o primeiro, ou o ltimo, ... o nico! D assim um passado vivido ao teu futuro! Ou como diz o povo, na sua sabedoria inata ancestral: "Goza o teu dia, goza-o bem, que esta vida so dois dias! Goza a vida enquanto s vivo, pois vais ter muito tempo para estar morto!"L.C. 1/1999

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SUMRIO

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