camadas relacionais de prescrição - metodologia analise jogos eletronicos

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RESUMO ABSTRACT RESUMEN 145 Camadas Relacionais de Prescrição: Rascunhos para uma Metodologia de Análise dos Jogos Eletrônicos Relational layers of prescription – drafts for an electronic games analysis methodology Thiago Falcão Aluno do curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia E-mail: [email protected] Discutimos aqui as bases para o desenvolvimento de uma metodologia de análise dos jogos eletrônicos que atente, através de correntes de pensamento oriundas das teorias sociais, não apenas para as características estruturais destes artefatos: seus sistemas computacionais e do game worlds. O objetivo é interpretar a relação entre homem e máquina como um complexo processo de interação sócio-técnica no qual artefatos e homens se auto-influenciam e, no qual é precisamente tal fluxo de influências o fator determinante dos caminhos pelos quais se faz presente a produção de significado. Palavras-chave: Jogos Eletrônicos, Agência, Estrutura, Cibercultura Discutimos aquí las bases para el desarrollo de una metodología de análisis de los juegos electrónicos que atente, a través de corrientes de pensamiento oriundas de las teorías sociales, no sólo para las características estructurales de estos artefactos: sus sistemas computacionais y del juego worlds. El objetivo es interpretar la relación entre hombre y máquina como un complejo proceso de interacción socio-técnica en el cual artefactos y hombres si auto-influéncian y, en el cual es precisamente tal flujo de influencias el factor determinante de los caminos por los cuales se hace presente en producción de significado. Palabras clave: Juegos Electrónicos, Agencia, Estructura, Cibercultura We discuss here the bases to the developpement of an electronic games analysis methodology that responds, through its chains of thought deriving from the social theories, not only to the structural characteristics of these artifacts: their computing systems and the game worlds. The goal is to read the relation between man and machine as a complex process of socio- technical interaction in which artifacts and men influence themselves and in which it is precisely this or that influencial flow the determinant factor of the ways through which is present the production of meaning. Keywords: Electronic games; Agency; Structure; Cyberculture. Capas relacionáis de prescripción – borradores para una metodología de análisis de los juegos electrónicos Maria Clara Aquino Bittencourt Doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pós-Doutoranda na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: [email protected] v artigo submetido em março de 2013 e aprovado para publicação em junho de 2013

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Thiago Falcão

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  • RESUMO ABSTRACT RESUMEN

    145Camadas Relacionais de Prescrio:Rascunhos para uma Metodologia de Anlise dos Jogos Eletrnicos

    Relational layers of prescription drafts for an electronic games analysis methodology

    Thiago FalcoAluno do curso de Doutorado do Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Cultura Contemporneas da Universidade Federal da Bahia

    E-mail: [email protected]

    Discutimos aqui as bases para o desenvolvimento de uma metodologia de anlise dos jogos eletrnicos que atente, atravs de correntes de pensamento oriundas das teorias sociais, no apenas para as caractersticas estruturais destes artefatos: seus sistemas computacionais e do game worlds. O objetivo interpretar a relao entre homem e mquina como um complexo processo de interao scio-tcnica no qual artefatos e homens se auto-influenciam e, no qual precisamente tal fluxo de influncias o fator determinante dos caminhos pelos quais se faz presente a produo de significado.

    Palavras-chave: Jogos Eletrnicos, Agncia, Estrutura, Cibercultura

    Discutimos aqu las bases para el desarrollo de una metodologa de anlisis de los juegos electrnicos que atente, a travs de corrientes de pensamiento oriundas de las teoras sociales, no slo para las caractersticas estructurales de estos artefactos: sus sistemas computacionais y del juego worlds. El objetivo es interpretar la relacin entre hombre y mquina como un complejo proceso de interaccin socio-tcnica en el cual artefactos y hombres si auto-influncian y, en el cual es precisamente tal flujo de influencias el factor determinante de los caminos por los cuales se hace presente en produccin de significado.

    Palabras clave: Juegos Electrnicos, Agencia, Estructura, Cibercultura

    We discuss here the bases to the developpement of an electronic games analysis methodology that responds, through its chains of thought deriving from the social theories, not only to the structural characteristics of these artifacts: their computing systems and the game worlds. The goal is to read the relation between man and machine as a complex process of socio-technical interaction in which artifacts and men influence themselves and in which it is precisely this or that influencial flow the determinant factor of the ways through which is present the production of meaning.

    Keywords: Electronic games; Agency; Structure; Cyberculture.

    Capas relacionis de prescripcin borradores para una metodologa de anlisis de los juegos electrnicos

    Maria Clara Aquino BittencourtDoutora em Comunicao pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ps-Doutoranda na Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

    E-mail: [email protected]

    v artigo submetido em maro de 2013 e aprovado para publicao em junho de 2013

  • Ano 1, no 2, janeiro a junho de 2013

    146De Iniciativas Epistemolgicas

    Uma das abordagens mais exploradas no campo cientfico dedicado aos jogos eletrnicos a que os considera como mera evoluo dos dispositivos tradicionais utilizados como suportes para o ato de contar estrias. Tal corrente, conhecida no mbito dos game studiescomo abordagem narratolgica, trata jogos eletrnicos como se estes fossem meramente vetores de uma forma particular de drama (MURRAY, 1997), minimizando a importncia que outras caractersticas apresentam no decorrer do processo de produo de significado.

    A defesa a tal corrente, abertamente devota s dimenses narrativas de um game em detrimento dos sistemas que se formam a partir das caractersticas de jogo, provou ser uma tarefa herclea, desencadeando um embate acadmico que ainda hoje estigmatiza os estudos dos jogos eletrnicos: o da dita dicotomia narratologia-ludologia, na qual cada uma das abordagens privilegia um aspecto estrutural dos games aspectos do sistema de regras ou aspectos narrativos.

    O intuito em evocar esta discusso pontuar que o modo pelo qual os estudos em videogames foram estruturados deve, em muito, quantidade de reflexo dispensada a esta dicotomia. Embora hoje o clima seja de reconciliao, alguns tratados considerados importantes no estudo dos jogos eletrnicos so devedores diretos da contraposio entre regras e fico (AARSETH, 1997; RYAN, 2001; MURRAY, 1997; entre outros). O ponto, logo, afirmar que tal alinhamento de trabalhos posteriores para com ideias de cunho estruturalista ajudou a condicionar ou a enquadrar a produo cientfica posterior ao embate.

    Neste sentido, faz-se necessria a percepo de que a anlise estrutural ou mesmo as perspectivas nela originadas no consegue, por uma simples questo de foco epistemolgico, se aproximar do fenmeno como um todo. A razo principal pela qual se faz necessria uma crtica da abordagem no diz respeito ao intento de construir uma paisagem mais universal do fenmeno. preciso considerar a existncia de fatores que agem sobre nuances dos objetos de pesquisa que no podem ser explicados com o puro uso destes aparatos tericos. Concentrar-se sobre as propostas epistemolgicas da narratologia e da ludologia oferece uma viso dedicada especificamente aos objetos, o que, por si s,

    suficiente para minimizar a importncia dos sujeitos.Embora o dilogo para com tais esforos e para com suas

    ticas e estticas seja necessrio, buscamos, atravs deste artigo, empreender um movimento precisamente contrrio ao descrito, onde reafirmamos que no possvel conceber o estudo desses artefatos sem considerar relaes de uso dos mesmos. Esta abordagem, que busca complexificar o pensamento a respeito da relao entre homem e objeto tcnico, est alinhada ao pensamento de Bruno Latour (1994), para quem objetos tcnicos no mediam as nossas aes No, eles so ns (LATOUR, 1994, p.64).

    A inteno demonstrar, por de um esquema de associaes entre atores humanos e no-humanos, como homem e tcnica agem um sobre o outro, influindo simultaneamente em interesses e aes recprocas, demonstrando que o significado proveniente desse padro de interao advm no de essncias carregadas previamente, mas do momento no qual h um engajamento mtuo no processo.

    Para tanto, havemos de nos debruar sobre uma discusso que cara tanto ao contexto genrico relativo s cincias sociais quanto ao contexto especfico e que diz respeito diretamente aos game studies: a discusso sobre a existncia ou no da capacidade dos indivduos de agir independentemente e fazer livres escolhas a discusso a respeito da existncia de agncia. Feito isto, introduziremos a ideia de prescrio chave para esse entendimento que consiste em como um actante pauta as aes de outro com base em uma rede de agncias necessariamente hbridas.

    Da (Sempre Recorrente) Ideia de Agncia

    A reflexo bsica acerca da ideia de agncia se posiciona sobre uma suposta vulnerabilidade essencial humana s estruturas sociais vigentes quando do nosso contexto interacional. As questes centrais dizem respeito esfera do Quando agimos, quem mais est agindo? Quantos agentes esto, tambm, presentes? Por que eu nunca fao o que eu quero? Porque todos somos presos a foras que no so de nossa prpria produo? (Latour, 2005: 43)1. Tal debate

    1 Livre traduo: When we act, who else is acting? How many agents are also present? How come I never do what I want? Why are we all held by forces that are not of our own making?

  • 147no passvel de unanimidade e enquanto vises mais clssicas, orientadas quilo que Latour (2005) chamaria de sociologia do social2, tendem a favorecer uma viso orientada s limitaes impostas pelas estruturas, h um sem-nmero de outros pensadores que favorecem a agncia humana, ou mesmo uma relao entre os dois epifenmenos. Embora se identifique uma aproximao latente s temticas discutidas pelas cincias da comunicao, tal questo no em especial cara ao contexto. Boa parte do que pode tangencialmente ser relacionado discusso evocada aqui diz respeito a consideraes acerca dos diversos efeitos que as mdias produzem sobre aqueles que as consomem.

    Discursar sobre a relao entre agncia e estrutura complexo no sentido em que os modelos tericos modernos foram quase que completamente rejeitados por todo um sculo de pensamento, responsvel por desconstruir uma srie de ideias de unidade, em especial as que concernem ao corpo e ao sujeito, embora no as nicas. Se nos dias de hoje o debate se concentra ao redor de uma composio relacional entre agncia e estrutura (Bourdieu, 1977; Giddens, 1984; Archer, 1988), nem sempre pde-se contar com uma viso compartimentalizada da situao: ambas as aproximaes s dinmicas da vida em sociedade possuam vises distintas e antagnicas, dividindo-se basicamente em (1) modos pelos quais a estrutura responsvel pelo comportamento dos indivduos; ou (2) modos pelos quais existe agncia em cada indivduo, e as agregaes sociais so apenas a soma de cada um destes.

    Para a corrente conhecida como funcionalismo estrutural, que se estabeleceu a partir de autores como Durkheim (1964) para quem as estruturas e as relaes de hierarquia eram as responsveis pela estabilizao da existncia de uma sociedade, alm de acreditar que um coletivo poderia apresentar o desenvolvimento emergente de propriedades que no estavam necessariamente subscritas a cada um dos indivduos a ele pertencentes a sociedade deve ser interpretada como uma estrutura de partes inter-relacionadas, responsveis pelo processo conhecido como socializao, no qual indivduos so imbudos de normas, costumes e ideologias que pautam suas disposies e

    2 Em detrimento de uma sociologia das associaes, empreendida pelo prximo, e discutida frente, neste trabalho.

    possibilidades de ao. Posteriormente, o debate abandonou a tica holista com

    a qual se mantinha alinhado para se posicionar de forma a desafiar o domnio das estruturas. A corrente interacionista, por exemplo, originada no pensamento de Mead (1934), para a qual todo o significado assimilado por um indivduo depende crucialmente da interao, confere um ndice muito maior de autonomia figura do indivduo, ponto do qual pode-se extrapolar um movimento inverso, no qual agentes individuais possuiriam a capacidade de construir e reconstruir seus mundos, de certa forma alheios ao das estruturas.

    Num movimento de dissoluo de dicotomias consideradas hoje pelo pensamento acadmico como algo dmod h ainda uma posio harmonizadora que oferece um vis composicional a tais epifenmenos; e no de admirar que tal posio se apresente de forma vigente quando se considerando o contexto atual: estrutura e agncia no deixaram de ser consideradas pelo pensamento contemporneo, mas ao invs de discutir a existncia de um lado em detrimento do outro, socilogos como Bourdieu (1977), Giddens (1984) e Archer (1988; 1995) passaram os dois elementos como foras opostas, medida que as estruturas sociais passam a influenciar o comportamento humano, e os humanos so capazes de mudar as estruturas sociais das quais eles fazem parte. uma reflexo a partir deste terceiro movimento que desejamos construir no presente artigo: como a discusso sobre agncia e estrutura vo nos ajudar a empreender uma reflexo de ordem metodolgica acerca dos jogos eletrnicos?

    Para tanto e enfim tecido o contexto com o qual este trabalho dialoga devemos nos concentrar sobre o trabalho de trs autores em especfico: (1) a teoria da estruturao de Giddens (1984) nos ser til para entender em que medida agncia e estrutura se relacionam; (2) em seguida, necessrio que problematizemos este corpo terico confrontando-o com o pensamento de Latour (2005), referente teoria ator-rede, demonstrando como este pensa o processo; por fim, no intuito de prover bases plausveis para uma incurso metodolgica, (3) uma relativizao deste dilogo deve ser feita com base no Dualismo Analtico de Margaret Archer, que procura identificar, mesmo em fenmenos co-dependentes (como o caso da relao entre

    FALCO, T.; BITTENCOURT, M. C. A. Camadas relacionais de prescrio: rascunhos para uma metodologia de anlise dos jogos eletrnicos

  • Ano 1, no 2, janeiro a junho de 2013

    148agncia e estrutura) traos que podem tornar sua observao analtica possvel.

    De estruturao

    Talvez um dos paradigmas de entendimento da relao entre agncia e estrutura mais aceito hoje seja a teoria da estruturao, proposta por Giddens (1984), em The Constitution of Society Outline of the Theory of Structuration, com o intuito de reconciliar teoricamente uma srie de dicotomias dos sistemas sociais: agncia e estrutura, sujeito e objeto, perspectivas micro e macro.

    O uso deste aporte terico se legitima medida que uma perspectiva de reconciliao entre dicotomias oferece um entendimento universal. No caso, ao invs de assumir que as dadas foras so apenas explicaes distintas para um determinado fenmeno, Giddens (1984) se aproxima da relao entre agncia e estrutura como se estas fossem foras constitutivas uma da outra. Para o autor, um aporte que dialogue exclusivamente com a esfera do ator individual ou unicamente com a esfera da totalidade social no consegue compreender como as dinmicas sociais contemporneas da sua crtica latente aos approaches estruturalistas, como o de Claude Lvi-Strauss, por possurem um vis que minimiza a importncia da ao humana. Ao invs disso, o paradigma construdo por Giddens (1984) se preocupa muito mais com como as prticas sociais so ordenadas atravs do tempo e do espao e de como, por isso, certos padres podem ser encontrados de forma intermitente, repetidos nas entrelinhas das estruturas sociais.

    Para a teoria da estruturao, a vida social no a soma de toda a atividade em nvel micro, de todas as dades como ensejam o interacionismo simblico (Mead, 1934; Blumer, 1969) e a sociologia dramatrgica (Goffman 1959; 1974) mas a atividade social tambm no pode ser completamente explicada a partir de uma perspectiva macro. Giddens (1984) postula que, medida em que somos delimitados pelas estruturas que empreendem nosso processo de socializao, mesmo estas estruturas no so inviolveis ou permanentes, podendo ser modificadas por nossas atitudes. Ele (Giddens, 1984: 25) postula que as estruturas , enquanto recursivamente organizadas como um conjunto de regras e discursos, esto fora do tempo e do espao, menos em suas

    instncias e co-ordenaes como associaes da memria. Sua ideia alocar as estruturas em uma zona de abstrao na qual podemos nos apoiar para realizar aes e construir um sentido em nossa realidade social. Esta repetio aludida pela ideia de recursividade diz respeito ao fato de Giddens (1984) acreditar que a repetio das aes, na forma de um sempre retorno aos padres institudos anteriormente tem, como uma de suas consequncias, a proliferao da estrutura. Obviamente, h consequncias no propositais, no previstas em tal repetio, mas mesmo estas podem funcionar como fatores contribuintes para o processo. Esta repetio dos padres estruturais responsvel pela gerao de uma segurana ontolgica, descrita por Giddens (1984) como sendo uma confiana a qual os indivduos possuem nas estruturas sociais: aquilo que acontece no dia-a-dia tem um nvel considervel de previsibilidade, o que garante a estabilidade social. Neste sentido, embora a atmosfera que envolva o trabalho do pensador britnico seja a de reconciliao paradigmtica, ainda assim possvel identificar um ndice de desequilbrio em favor das estruturas o que, de acordo com o historiador americano William Sewell (1992), acontece pelo fato de Giddens (1984) assumir que estruturas so regras, e no meramente esquemas, como Sewell (1992) sugeriu posteriormente.

    O propsito mximo da evocao do contexto do debate sobre agncia e estrutura introduzir premissas passveis de reconfigurao no decorrer da argumentao do presente artigo. A partir de agora, atentaremos para uma discusso acerca deste debate que confrontar as ideias discutidas com o pensamento de Bruno Latour, cujos esforos possibilitam uma aproximao dessas reflexes provenientes de uma sociologia do social aos domnios da tcnica, interesse direto deste trabalho.

    De Atores e Redes

    A iniciativa de Latour a de uma sociologia diferente da que se instaurou desde meados da modernidade que, para ele no se justifica, de acordo com Grahan Harman. Ao negar a existncia ou a eficcia da modernidade, Latour (1993) nega praticamente o estabelecimento de todas as grandes verdades das cincias sociais quase todas dispostas, ento, em dicotomias: sujeito e objeto,

  • 149causa e efeito, identidade e diferena, concreto e abstrato, natureza e cultura. Factualmente, embora parea arriscado, precisamente este o intuito do autor: [Os modernos] cortaram o n grdio com uma espada afiada. O eixo est quebrado: na esquerda, eles puseram o conhecimento das coisas. Na direita, o poder e a poltica humanos (Latour, 1993: 3).

    A justificativa para o desenvolvimento de uma sociologia que seja, ao mesmo tempo, contrria medida em que ignora toda explicao holista com base em estruturas e posiciona o sentido na interao entre o que devemos chamar de actantes e tributria uma vez que surge no ensejo de um pensamento ps-estruturalista, embora deliberadamente se exima do pertencimento a tal, alm de estar assumidamente embasada no pensamento de Gabriel Tarde jaz num entendimento que a prpria lngua tornou excludente, nas noes de natureza e cultura. Para Latour, esta dicotomia no existe e no porque natureza e cultura so imbricadas e inseparveis, mas simplesmente porque elas no consistem em zonas distintas.

    A modernidade muitas vezes definida em termos de humanismo, tanto como uma forma de saudar o nascimento do homem quanto como uma forma de anunciar sua morte. Mas mesmo este hbito moderno, porque ele se mantm assimtrico. Ele negligencia o nascimento simultneo da no-humanidade coisas, objetos ou bestas e o igualmente estranho incio de um Deus riscado do contexto, relegado s entrelinhas (Latour, 1993: 13)3.

    A citao conecta o contexto experimentado por Latour (1993) ao discorrer sobre os problemas ensejados pelo entendimento moderno das dinmicas sociais, e a argumentao de interesse mais especfico deste trabalho. Ao evocar a ideia de no-humanidade, ele vai de encontro a boa parte dos tratados na rea das cincias sociais, j que a partir desta postulao que ele enseja sua noo de o que seriam actantes.

    3 Livre traduo: Modernity is often defined in terms of humanism, either as a way of saluting the birth of man or as a way of announcing his death. But this habit itself is modern, because it remains asymmetrical. It overlooks the simultaneous birth of nonhumanity - things, or objects, or beasts and the equally strange beginning of a crossed-out God, relegated to the sidelines.

    O conceito de actante tomado emprestado da semitica, e diz respeito a qualquer entidade que age em uma trama at a atribuio de um papel figurativo ou no (1994: 33)4. Latour (1994) explica que abandona o termo ator porque este pode vir a causar confuses, por causa de seu entendimento de quem possui agncia em meio as dinmicas sociais. Talvez sua maior contribuio para a teoria social e o grande vetor das crticas que lhe so feitas o que diferencia a sociologia da traduo (Latour, 2005: 9) das vises mais tradicionais da sociologia que esta no apenas posiciona o peso da ao sobre o ombro dos humanos, mas tambm o faz sobre os no-humanos. Da o dilogo extenso que Latour (1994: 30) inicia para com o entendimento heideggeriano de tcnica como mediao como enquadramento do homem; entendimento do qual discorda com veemncia, afirmando que Heidegger (1977) estava enganado ao afirmar que o relacionamento entre homem e tcnica seria livre se o homem concebesse sua existncia aliada ao Wesen desta. Ao invs disto, Latour (1994) defende que somos, todos instrumentos da prpria instrumentalidade, e assim a tcnica no pode mediar nossas aes, porque os objetos tcnicos, afinal, so parte de ns.

    Latour (1992; 1994; 2005) confere aos actantes no-humanos mais um privilgio: mesmo estes so passveis da noo de agncia no s os humanos so reconhecidos como donos da ao e posicionados criticamente na relao entre ao e estrutura; tambm os no-humanos, de posse de suas inscries e dobraduras so atores ativos nas associaes experimentados dia aps dia. Sua posio sobre como a ideia de agncia se desenvolve , se de um lado, reconfortante, de outro lcida, e se aproxima da edificao de um realismo crtico, preocupado mais com o nvel dos mecanismos de gerao de eventos do que dos eventos em si. importante pontuar que o relacionamento entre humanos e no-humanos, para Latour (1994; 2005) indissocivel. Nossa evoluo se d com base em aparatos tcnicos durante todo o tempo, e mesmo outros de ns podem ser considerados pura tcnica, segundo esta viso. Nossas aes, contudo, no so nossas o que no significa, para Latour (2005, p. 45),

    4 Livre traduo: a borrowing from semiotics; any entity that acts in a plot until the attribution of a figurative or nonfigurative role.

    FALCO, T.; BITTENCOURT, M. C. A. Camadas relacionais de prescrio: rascunhos para uma metodologia de anlise dos jogos eletrnicos

  • Ano 1, no 2, janeiro a junho de 2013

    150que elas pertenam sociedade.

    O ponto que, para Latour (2005), a ao ser tomada por outras redes no inibe o desenvolvimento por parte do actante a nica grande queixa que ele tece ao modelo que proclama que toda ao est envolvida por um enlace entre estruturas a de que os socilogos do social abdicaram com veemncia do uso da filosofia algo que comum e recomendvel para Latour (2005), e que ele sublinha de forma precisa, quando criticando o empreendimento da sociologia tradicional e, alm disso, estes socilogos

    limitaram estritamente o conjunto de agncias realmente agindo no mundo, para livrar os atores de sua desiluso e preparar o terreno para uma engenharia social em grande escala, e para suavizar o caminho rumo modernizao (Latour, 2005: 51)5.

    O ponto, portanto, dificilmente est em uma dicotomia entre agncia e estrutura, para Latour (2005) ou mesmo na auto-composio, como ensejado pelo pensamento de Giddens (1984). O que ele pontua que o sentido de agncia est mais espalhado do que realmente parece, e que cada programa de ao diferenciado ao qual nos aproximamos cada actante, objeto, aspecto da mediao produz, em ns, uma srie de outras agncias, que vo se encadeando e, dando forma s nossas aes. Ao invs de limitar a agncia s estruturas, Latour (2005) dissolve a agncia por todo o contexto, descentralizando ainda mais esse processo que perigosamente retornara (ou que nunca arrancara) um ndice de subjetividade ao indivduo. O sentido, para Latour, est cada vez mais na ao, que para ele deve ser sempre fresca, imprevisvel, impossvel de se rastrear, j que ocorre invariavelmente num tempo verbal que, medida em que se profere, j abandonou o status de presente. Para ele, a ao deve incorporar uma surpresa, mediao ou evento.

    Essa imprevisibilidade, esta caracterstica mediadora, est depositada em qualquer actante a qualquer momento. Para Latour (1994; 2005), a prpria ideia de mediao varia de acordo com a associao sendo observada, medida

    5 Livre traduo: They have also strictly limited the set of agencies really acting in the world so as to free actors from their delusion, prepare the ground for social engineering on a grand scale, and smooth the path toward modernization.

    que toda associao vai ser composta por actantes exercendo eventualmente o papel de mediador, na qual cada movimento incide sobre o programa de ao, modificando-o; mas estes mesmos podem, eventualmente, mover-se para o pano de fundo e funcionar apenas como intermedirios, adicionando somente riqueza contextual da interao sem jamais lhe serem centrais. De posse desta cincia, possumos arcabouo para discursar sobre estratgias de anlise dos jogos eletrnicos, ao passo que introduziremos, a partir dessa discusso, a ideia de prescrio ou de como um actante pauta as aes de outro com base em toda uma rede de agncias necessariamente hbridas.

    De Jogos Eletrnicos

    Em se traando uma instncia, podemos discursar com relativa tranquilidade sobre a ideia de agenciamento pertencente aos jogos eletrnicos, nos aproveitando das discusses a respeito dos detalhes epistemolgicos que dizem respeito ao campo; a respeito das teorias concernindo relao entre ao e estrutura e, finalmente, ao entendimento peculiar do sentido de agncia oferecido pela teoria ator-rede.

    importante perceber que os videogames so dispositivos que possuem uma caracterstica comumente endereada como presena de interatividade.Ainda que possamos afirmar que dispositivos representacionais miditicos tradicionais demandam atividade de seus leitores, Galloway (2006) oferece uma reflexo muito apropriada: h uma srie de diferenas separando vdeo games de filmes e livros e esta a razo pela qual ele descarta a ideia de interatividade e abraa a noo de que os videogames so um meio baseado na ao (2006: 3).

    A diferena principal no que diz respeito aos jogos eletrnicos est no controle das aes de um protagonista ou de elementos que ofeream uma vivel manipulao, ao menos e que assim possamos decidir o que ser feito em seguida, e por que caminhos o jogo ir prosseguir.

    Quando as coisas que fazemos trazem resultados tangveis, experimentamos o segundo prazer caracterstico dos ambientes eletrnicos o sentido de agncia. Agncia a capacidade gratificante de realizar aes significativas e ver os resultados de

  • 151nossas decises e escolhas. (...) Normalmente, no esperamos vivenciar a agncia dentro de um ambiente narrativo (Murray, 1997: 127).

    A herana genealgica neste conceito de agncia por parte da narratloga americana se mostra bvia, medida que lidamos apenas com uma transposio para um sistema simulacional com muito menos variveis e muito mais monitoramento e represses do que nosso contexto situacional. De acordo com a autora, Machado (2007) afirma que um dos componentes particulares do processo de imerso nos videogames esta noo apropriada de agncia, onde o jogador experimenta a sensao de que suas decises influem no desenrolar dos eventos determinantes do jogar.

    Discusso relacionada a esta foi travada em um momento anterior (Falco, 2010), onde empreendemos um movimento de decomposio dos sentidos da agncia relacionada aos jogos eletrnicos, condicionando estes a elementos da estrutura inerente a cada bem simblico, relativizando a noo de agenciamento em duas vertentes que respeitam a subdiviso proposta anteriormente por Juul (2005), para quem qualquer jogo obedece o modelo de formao por regras e fico. Tal processo, portanto, foi decomposto em micro-processos associados (1) ao sentimento de ao voltado para o componente de regras chamado de agncia operacional e (2) ao sentimento de ao voltado para o componente narrativo presente nos jogos chamado de agncia diegtica. A argumentao questionava a validade do conceito de agncia, se, na verdade, tudo o que poderia acontecer num ambiente eletrnico estaria, por fim, programado escrito. Numa passagem na qual discursa sobre o Massive Multiplayer Online Roleplaying Game (MMORPG) World of Warcraft, Tanya Krzywinska (2009) afirma que:

    Realizar quests6 d ao jogador um sentido de que ele tem um papel na estria do mundo de jogo. Enquanto isto importante porque alinha o jogador narrativa que comporta o jogo, , tambm, uma forma de agncia ilusria, porque bastante bvio para qualquer jogador que ele executa as mesmas tarefas j

    6 Quests so tarefas desempenhadas por um jogador para que ele receba pontos de experincia que permitem a evoluao e/ou dinheiro e itens importantes. Para detalhes, consultar Corneliussen e Rettberg (2009).

    completadas por outros (Krzywinska, 2009: 127)7.

    Embora, mesmo de acordo com o arcabouo terico aqui discutido, acreditamos, particularmente, que a validade de um processo de agncia no que diz respeito aos jogos eletrnicos seja discutvel nossa escolha a de articular uma complexificao da estrutura proposta anteriormente (Falco, 2010), no intuito de decompor o processo considerando no s os artefatos in-game, como anteriormente, mas processando de forma conjunta todo o contexto ou, ao menos, uma abstrao deste referente ao contato entre indivduos e videogames.

    De Camadas de Prescrio

    Retornamos ao pensamento de Latour (1992), no intuito de postular a respeito de nossa relao para com o objeto tcnico, o console de videogame, e tentar extrair uma estrutura de observao que possibilite traar anlises de casos distintos, e que seja, acima de tudo, passvel de extrapolao para os vrios domnios de onde os jogos se encontram nos dias de hoje.

    necessrio defender, de antemo, o argumento, medida que no exploramos aqui uma anlise de grande escala ou tentamos extrair verdades que funcionaro para qualquer contexto. Por ledo que parea tecer uma afirmao destas quando imbudo dos prprios ideais da teoria ator-rede, o objetivo aqui nos posicionar em componentes estruturais do processo mediadores em cada um dos momentos nos quais a experincia do jogo se d no intuito de, ao observar esta conexo, encontrar pontos centrais possam ser identificados. O que, por si s, contraditrio prpria teoria ator-rede. Latour (2005) acredita que mediadores e intermedirios no so portadores de lugares particulares: para ele, toda associao precisa ser observada no nvel da sua formao, e s ento possvel que identifiquemos quem vai assumir o papel de mediador e quem vai assumir o papel de intermedirio em uma dada situao. Aps isso, a estabilidade toma conta, formam-se instituies mais ou

    7 Livre traduo: Undertaking quests lends the player a sense that they are playing a role in the history of the gameworld. While this is important in stitching the player into the games overarching narrative, it is however a form of illusory agency because it is patently obvious to any player that they undertake the very same tasks already completed by others.

    FALCO, T.; BITTENCOURT, M. C. A. Camadas relacionais de prescrio: rascunhos para uma metodologia de anlise dos jogos eletrnicos

  • Ano 1, no 2, janeiro a junho de 2013

    152menos sedimentadas e o actante desaparece, engolfado pelas linhas que o ligam caixa preta formada. A busca por esse momento que mantm a tarefa de traar as associaes valiosa para o pesquisador das cincias sociais.

    Ainda assim, uma das principais crticas feitas teoria ator-rede jaz precisamente no ponto no qual necessrio que abandonemos a abstrao e percorramos o campo em busca do que deve ser observado quais so as premissas metodolgicas a serem seguidas, afinal? Ou a teoria ator-rede serve apenas de guia para o entendimento de uma realidade social alternativa a partir da qual pode-se problematizar as relaes entre actantes? O modo pelo qual o presente trabalho busca viabilizar tal atividade articulando as premissas de Bruno Latour com a ideia de que possvel manter um entendimento interdependente dos setores da ao social e ainda assim considerar que eles agem em escalas de tempo diferentes o que nos permite traar, com considervel desenvoltura, suas associaes.

    Este entendimento proveniente de uma aproximao ao pensamento de Margaret Archer (1988), que desenvolveu a noo que ela chama de dualismo analtico, que consiste, basicamente, em assumir que agncia e estruturas so positivamente interdependentes sem indivduos no haveria a formao de estruturas, numa bvia simplificao do pensamento de Archer (1988) mas esta relao se d em escalas de tempo diferentes: em qualquer dado momento, estruturas existentes anteriormente confinam e habilitam agentes, cujas interaes produzem consequncias propositais e acidentais, as quais levam elaborao estrutural e a reproduo (ou transformao) das estruturas iniciais.

    Tal estrutura resultante prov um contexto similar para a ao de futuros agentes. De forma semelhante, a estrutura anterior foi resultado da ao de agentes anteriores - mesmo que agncia e estrutura sejam interdependentes, Archer (1988) argumenta que possvel separ-los analiticamente. Isolando fatores estruturais ou culturais que provm contexto para a ao de agentes, possvel investigar como estes fatores moldam as interaes subsequentes de outros agentes, e como estas interaes, em seguida, passam a transformar o contexto inicial.

    O motivo pelo qual a dada discusso no se ope ao pensamento de Bruno Latour tido como centro para o desenvolvimento deste framework de observao da interao

    entre indivduos e jogos eletrnicos se d precisamente numa apropriao da ideia de estrutura desenvolvida por Archer (1988). A formao de estruturas sobre a qual a sociloga discursa empreitada por Bruno Latour e Couze Venn (2002) em outra direo ao invs de discursar sobre a presena de estruturas como pautando a ao, o socilogo francs fala de dobraduras que se empilham umas sobre as outras, dando a um actante a noo de que ele no surgiu do nada, de que possui uma dimenso temporal e responde por uma histria ainda que esta seja representada mais genealogicamente como influncia do que de forma coercitiva. Dobraduras so, segundo as palavras dos pensadores, o tempo, o espao e o tipo de actantes (Latour & Venn, 2002, p. 249) sedimentados na ao tcnica.

    A noo de dualismo analtico de Margaret Archer (1988) , portanto, utilizada no sentido de oferecer ao presente trabalho um maior ndice de contato para com o objeto estudado nos eximindo da parcela meramente abstrata que parece permear as estruturas da teoria ator-rede, podemos desencaixar parcelas de uma dada sequncia de eventos e estudar suas dinmicas causais internas, oferecendo aproximaes baseadas no s em uma dada prtica metafsica, mas de ndice emprico considervel.

    Feita esta breve digresso relativa s iniciativas epistemolgicas tomadas neste artigo, orientados fortemente pelas assunes traadas pela teoria ator-rede mas empreendendo um mapeamento de um cenrio genrico, chegamos ao ponto no qual podemos traar um mapa de associaes que so comuns prtica dos jogos eletrnicos, e que considera as relaes entre os actantes como cascatas de prescrio, que passam a surgir em um ponto central de simplicidade relativa, e que se desenvolvem da, tornando o sistema observado extremamente complexo ainda que passvel de anlise.

    A noo de prescrio de Bruno Latour (1992) dialoga de forma extremamente fortuita com a ideia de dobradura citada acima. De fato, o prprio socilogo teceu esta articulao eventualmente (Latour, 2002), atentando principalmente para o trabalho de James Gibson a respeito de affordances.

    Objetivamente, prescrio uma caracterstica atravs da qual os actantes ensinam para o contexto como estes devem ser aproximados. , obviamente, muito mais fcil

  • 153pensar em um movimento destes quando nos referindo a objetos tcnicos: uma porta oferece uma prescrio quando ela est fechada mas possui uma maaneta que podemos saber serve para abri-la. O aposto se refere precisamente a um fator que pontuado por Latour (1992), quando se referindo a prescries: sempre que um actante prescreve algo, ele limita, de certa forma, aqueles que podem se utilizar de suas facilidades. Efetivamente, se no temos o conhecimento prvio de como se abre uma porta, dificilmente giraremos a maaneta e esta perder sua utilidade.

    Exemplos discriminatrios relativos a estratgias de prescrio podem ser vistos a todo momento: algumas pessoas possuem maior facilidade em lidar com teclados do que com interfaces touch-screen; algumas pessoas possuem dificuldades em adaptar a velocidade do seu passo para subirem rapidamente em uma escada rolante; algumas pessoas no conhecem as facilidades que um boto pode oferecer, ao ativar o timer de um semforo, na rua.

    A ideia de prescrio, como proposta por Bruno Latour (1992), conduz o argumento diretamente para a noo de affordance, articulao j citada e empreendida pelo socilogo anteriormente (Latour, 2002). Embora o conceito tenha sido apropriado por vrios campos, entre eles, e principalmente, o do design de interao, sua origem se encontra na psicologia, e remete ao trabalho de Gibson (1986) que dialoga de forma muito mais adequada para com o trabalho empreendido por Bruno Latour. O conceito de affordance diz respeito no somente ao que um actante possibilita ensina, pauta, enquadra ao outro: a relao entre actantes, nesse sentido, muito mais ntima: diz respeito a uma complementaridade entre um e outro uma relao que se exime do juzo moral para simplesmente abrir novos horizontes novos programas de ao.

    Da a convergncia entre o pensamento de Latour (1992; 1994) e o de Gibson (1986), nesse sentido. Para o socilogo francs (Latour, 1992), a cada momento, em cada uso especfico de cada objeto tcnico, milhares de programas de ao diferente so considerados de acordo com as possibilidade ensejadas nesta simples interao. Isso diz respeito no s relao homem-tcnica, mas para Gibson (1986), prpria relao entre identidade e alteridade: as affordances de um ambiente so o que ele oferece ao animal, o que ele prov ou equipa, para o bem e

    mau. (...) Esta relao implica na complementaridade entre animal e ambiente (Gibson, 1986: 127)8.

    Em se retomando a discusso empreendida (e evocada) anteriormente (Falco, 2010) a respeito de modos de agenciamento em jogos eletrnicos, vlido pontuar que o presente esforo deve ser interpretado como uma evoluo direta do pensamento engendrado em momento anterior, ao passo que postula as cascatas de prescrio como modos agenciais, onde cada um desses modos corresponde precisamente ao que Latour (2005) identifica como as mltiplas agncias que tomam nossas aes. Nesse sentido, mesmo que a distribuio anterior (Falco, 2010) tenha sido feita com base em um paradigma estruturalista, herdeiro direto da dicotomia ludologia-narratologia, o entendimento proveniente de uma lente interpretativa como a da teoria ator-rede no inviabiliza o esforo, mas meramente considera-o, em certa medida, incompleto.

    Da Iniciativa de Anlise

    Para alanar essa completude no cenrio estudado, necessrio construir uma abstrao que nos permita identificar como tais agncias so construdas. Consideremos, portanto, um cenrio distinto onde um indivduo joga videogame. Como o intuito no o de uma anlise a posteriori, no trataremos de nuances especficas s dobras relativas ao sujeito o que por si s pode representar uma negligncia por parte da teoria, mas uma empreendida de modo consciente, no intuito de priorizar as relaes mais aparentes as relaes de mediao. Em um dado espao, o sujeito interage para com seu console este primeiro contato entre homem e mquina se enseja como nosso primeiro contexto de anlise. A princpio, pode-se postular a independncia deste contexto com relao aos demais que sero tratados: no h nenhuma necessidade em se entender o jogo, em se saber nada a respeito do universo perscrutado ou a respeito de regras. As relaes de prescrio neste sentido dizem respeito, basicamente, ao modo pelo qual os dispositivos sensrios as mos, atravs do tato se

    8 Livre traduo: The affordances of the environment are what it offers the animal, what it provides or furnishes, either for good or ill. () It implies the complementarity of the animal and the environment.

    FALCO, T.; BITTENCOURT, M. C. A. Camadas relacionais de prescrio: rascunhos para uma metodologia de anlise dos jogos eletrnicos

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    Figura 1

    adequam ao dispositivo tcnico. Neste primeiro cenrio, identificamos relaes de

    prescrio que dizem respeito ao controle, ou ao teclado do computador, ou interface do celular no vem ao caso, para esta dada abstrao, qual o dispositivo no qual o jogo frudo: cada um deles vai possuir materialidades especficas que ho de prescrever formas de ao que lhes digam respeito. Um jogo no computador mapearia o teclado como seu controle. As teclas usadas para comunicao atravs de linguagem seriam ressignificadas por um novo programa de ao, se transformando em um dispositivo de comunicao entre um aspecto da realidade e um aspecto da diegese. O mesmo aconteceria em um dispositivo mvel qualquer. Identifica-se, neste primeiro momento, dois actantes elementares: o indivduo e o console (Figura 1).

    O que nos prov nossa primeira inconsistncia, ao mesmo tempo que nos remete a uma dvida primal a respeito de se utilizar a teoria ator-rede para descrever um sistema de associaes: quando, afinal, devemos cessar a descrio? Ora, a resposta visvel neste caso em especial se considerarmos que a affordance de um boto nos leva a apert-lo. Mas com que intuito? Se o cenrio apenas diz respeito a (1) indivduo e (2) console, o apertar de um boto no vai nos prover nenhum estmulo simblico embora o faa sensorialmente: necessitamos, portanto, dos elementos internalizados ao dispositivo. Para compreender as relaes de prescrio entre os dois primeiros actantes identificados

    neste sistema, necessrio que adentremos ao nvel do universo provido pelo jogo. O que nos leva a acreditar que tal universo consiste no prximo actante passvel de mediao. Contudo, h um nvel entre indivduo e universo do jogo que, se se enseja de forma sutil, responsvel pela prpria localizao do jogador no universo de discurso referente ao jogo. O contato entre indivduo e universo do jogo acontece invariavelmente atravs do avatar que, pode efetivamente ter um papel figurativamente antropomrfico (Latour, 1992) que no necessrio, a menos que tenhamos, no universo do jogo, um mundo ficcional.

    Neste ponto, identificamos mais trs elementos que funcionam como actantes no processo de relacionamento entre homens e jogos eletrnicos: o (3) avatar usado para representar uma parcela da dimenso subjetiva do indivduo no universo do jogo; o prprio (4) universo do jogo, que possui uma dimenso instrumental, ou de bem simblico, podendo ser considerado, strictu sensu, como medium, mesmo; em se decompondo este universo do jogo, inegvel que deixemos de considerar os (5) aspectos diegticos a presentes (Figura 2).

    Figura 2

  • 155jogo. A partir do momento em que o avatar internalizado como compositor de um novo actante, o universo se mostra como um espao novo a ser explorado, como um estado de possibilidades e ousaramos ensejar que neste momento que a experincia do jogo se torna diferente: a experincia do outro lugar, do universo paralelo, do outro lado do espelho. Esta experincia independe da existncia de aspectos diegticos, sendo muito mais composta por um outro componente que ainda no foi citado, mas que se enseja, definitivamente, como actante passvel de realizar processos de mediao: (6) os aspectos operacionais esto imbudos no sistema e atravessam camadas de prescrio para interagirem diretamente com o indivduo-controle (Figura 3).

    As relaes de prescrio entre estes complexificam, em muito, as camadas aqui institudas. Primeiro, ao considerar as camadas 3 e 4 como vetores do contato direto entre indivduo e informao, executamos um movimento de estabilizao de um sistema, a partir do momento em que os aspectos interacionais entre indivduo e console se tornam to naturais quanto o manusear de um garfo. Esta estabilizao diz respeito a um conceito de Latour (1994), ainda no evocado, mas de importncia crucial para o entendimento dessas camadas: a ideia da criao de um actante que uma harmonizao imediata de outros tantos, e que cria aquilo que o autor chama de caixa preta uma internalizao de movimentos de mediao a um nvel no qual eles se tornam taken for granted. Para Latour (1994) s a desestabilizao deste sistema (o controle quebrar, um calo se desenvolver na mo do indivduo, impedindo-o de jogar) consegue reabrir tal caixa.

    De posse do conhecimento dessa estratgia de blackboxing, voltemos descrio de nosso cenrio hipottico: se indivduo e console esto fundidos, podemos considera-los um actante apenas, medida que o prximo movimento ensejado entre este actante indivduo-console e seu avatar. As prescries nesse momento vo depender crucialmente, o que demonstra, mais uma vez, a inter-relao entre tais camadas, (a) da diegese consumida atravs do jogo e (b) dos aspectos do sujeito ocupando o lugar de indivduo. Estratgias de customizao de avatares no so em nada novidades, e a prtica est internalizada tanto em jogos multiplayer massivos (MMORPGs), como em sites de redes sociais (no caso dos Jogos Sociais) e mesmo em consoles tradicionais (no caso do Mii, do Wii, por exemplo). notrio que, mesmo que tenhamos deliberadamente deixado de fora as nuances relativas ao sujeito, estas se insinuam quando tratamos de mecanismos de customizao como estes, que so, na verdade, prescritos pela relao entre avatar e indivduo.

    Empreendamos, neste ensejo, mais um movimento de blackboxing, e ignoremos que indivduo, console e avatar foram, algum dia, actantes independentes neste ponto, possumos novamente um actante, composto dos trs acima, agrupados com suas respectivas dobraduras em programas de ao e relaes de prescrio. A prxima camada diz respeito interao entre indivduo (agora composto) e universo do

    Figura 3

    FALCO, T.; BITTENCOURT, M. C. A. Camadas relacionais de prescrio: rascunhos para uma metodologia de anlise dos jogos eletrnicos

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    156Discursamos, nesse momento, nas affordances que so

    oferecidas pelo sistema atravs das regras do jogo: saber que um boto pode girar as peas que vm caindo, em Tetris (Alexei Pajitnov, 1984), por exemplo, compele o jogador a usar o boto para encaixar a pea do melhor modo possvel no momento. Essa relao prescritiva simples, no caso de Tetris, mas pode se tornar extremamente complexa. No incomum que estas estejam imbricadas prxima forma de prescrio que , por assim dizer, (7) social. O carter social inerente aos jogos confere a estes relaes antagnicas e de colaborao seria um exerccio de incompletude considerar que nosso cenrio no deveria possuir o elemento de prescrio social (Figura 4), que pauta, de forma muito

    Em jogos multiplayer estas relaes so extremamente triviais e acontecem num esquema simples de causa e efeito, que remete ao que Aarseth (2009) chama de crueldade social automtica: ou o jogador dono de um nvel de proficincia com relao s regras e ao uso do dispositivo, ou este no ser algum bem sucedido neste contexto em especfico. A essncia desta crueldade social remete inicialmente s relaes de prescries bsicas do console para com o indivduo, conecta-se, atravs destas, com o mundo dos aspectos operacionais e enseja um comportamento discriminatrio tpico de relaes prescritivas, segundo Latour (1992).

    Este ltimo actante responsvel pela ltima camada de prescrio identificada no nosso cenrio hipottico tambm um retorno ao primeiro: eventualmente, o indivduo passvel de sofrer prescries tanto atravs do ambiente informacional quanto do contexto presencial no qual se encontra partidas colaborativas dos vrios jogos da srie Guitar Hero (Activision, 2005-), por exemplo, podem dar conta dessa prescrio social, atravs da qual a desenvoltura de um actante para com um sistema pautada pelos outros actantes humanos, imbudos, obviamente, de suas respectivas dobraduras na forma de regras sociais, sua volta.

    Consideraes FinaisNo decorrer deste artigo, tecemos uma articulao,

    atravs das lentes interpretativas da teoria social, entre o uso dos jogos eletrnicos e suas discusses estruturais internas em especfico, as que se referem ao processo conhecido como agncia. Nosso propsito foi o de avanar nas reflexes empreendidas acerca de tal processo em esforo anterior, especialmente conferindo um carter mais terico discusso, retirando-a do contexto confortvel das teorias voltadas para o campo dos game studies e expondo-a a um leque maior de aparatos tericos com os quais esta no possua contato.

    A inteno principal foi harmonizar aproximaes tericas aos jogos eletrnicos, de forma que no haja necessidade de uma excluso, ao passo que tratamos tanto de caractersticas internas, inerentes materialidade dos meios, ou de caractersticas de cunho social, envolvendo aspectos da subjetividade e das associaes entre indivduos. Neste sentido, a teoria ator-rede, defendida por Bruno Latour, ofereceu um aparato valioso para que o processo de agenciamento interno e externo ao entendimento dos jogos eletrnicos pudesse ser aproximado.

    Procuramos, num ltimo esforo, delinear um cenrio hipottico que possui, como objetivo mximo, servir de alicerce para reflexes que levem ao desenvolvimento para uma metodologia de anlise para jogos eletrnicos esquematizando os primeiros traos sobre que actantes assumiriam posies de mediao e como se dariam relaes de prescrio, entendidas aqui como mltiplas agncias, entre estes.

    Figura 4

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