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Caminho Alternativo: o que nos dizem as fotografias de A Câmara Clara1
Valéria Berti CONTESSA2
Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, SP
RESUMO
Este trabalho aborda o livro A Câmara Clara de Roland Barthes, segundo o caminho
alternativo sugerido por Etienne Samain, isto é, partir de suas imagens. O objetivo do
trabalho é, num primeiro momento, analisar as linhas gerais de seu projeto gráfico numa
discussão que, embora pareça um tanto formal, irá nos conduzir a um paralelo inusitado
entre ida do autor e a obra. Num segundo momento, vamos nos ater às primeiras
imagens do livro de sua importância, já que estas operam, segundo nossa avaliação,
como portas de entrada para o universo vertiginoso da obra do escritor e pensador,
Roland Barthes. Finalmente, concluiremos a abordagem proposta, além de alçar Barthes
à posição de autor-curador, também nos coloca, leitores de seu livro, numa postura mais
ativa e inventiva, na qual podemos passear livremente pelas fotografias.
PALAVRAS-CHAVE: A Câmara Clara; Roland Barthes; fotografia.
Justificativa
O livro A Câmara Clara [La Chambre Claire] de Roland Barthes, publicado em 1980 na
França (BARTHES, 1980), é um dos pilares do pensamento teórico sobre a fotografia.
Como se poderia discutir e pensar novamente essa obra seminal após tantas reflexões?
Tomaremos por guia Etienne Samain que nos indica – em seu texto Um Retorno à
Câmara Clara: Roland Barthes e a Antropologia Visual, publicado no livro O
Fotográfico – um caminho alternativo para abordagem do livro de Barthes, a saber:
Barthes inserirá no seu texto um total de 24 fotografias (15 na primeira parte
e 9 na segunda). É a partir dessas fotografias e de suas respectivas legendas
que se deveria iniciar a leitura de A Câmara Clara. Olhá-las cuidadosamente
durante um longo tempo. São elas que dão razão ao tom da dupla leitura
mítica e selvagem que Barthes empreende (SAMAIN, 2005, p. 123).
1 Trabalho apresentado no GP Fotografia, XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento
componente do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
2 Mestre em Comunicação e semiótica pela PUC-SP, graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São
Paulo. E-mail: valeria [email protected]
mailto:valeria%[email protected]
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A fim de trilhar o caminho de Samain, serão considerados os três seguintes
elementos isoladamente: a) a imagem fotográfica, b) os comentários de Barthes, entre
aspas, denominados de “legenda” por Samain e, por último, c) título original da foto,
que irá apenas nos servir como indicação, já que, como veremos, esta informação é
mencionada apenas para que se tenha uma referência espaço-temporal sobre a fotografia
e a que a legenda à que esta se refere. É essa a sequência em que esses três elementos
estão posicionados na grande maioria das páginas que contém fotos, em A Câmara
Clara.
A Câmara Clara: sobre o projeto gráfico da versão original
A análise que se segue tratará da versão original do livro em francês – La
Chambre Claire: note sur la photographie – publicada em 1980 na Coleção Les Cahiers
du Cinéma pelas editoras Gallimard e Seuil3.
Comecemos pelos comentários de Barthes em cada fotografia. Eles aparecem
imediatamente abaixo das mesmas, enquanto que o título original aparece na parte
inferior da página com um tipo e tamanho de letra muito menor do que a dos
comentários do autor (que, vale lembrar, Samain denomina “legenda”, mas que nós
chamaremos, a partir de agora de comentários).
Esta manobra subverte, em termos, o conceito de legenda, posto que o que a
legenda clássica das fotografias – que consiste nas informações de título, autor, local e
data – foi posicionada na parte mais inferior da página, com um tamanho de letra
pequeno, bem longe da foto, e, ainda, bem abaixo dos comentários de Barthes entre
aspas. Os comentários de Barthes entre aspas ganham em importância ao ocuparem uma
posição de destaque.
Neste artigo trataremos de três das imagens das vinte e seis imagens, a saber: a
imagem da capa, a primeira foto do interior do livro (colorida) e a primeira foto em
preto-e-branco, cujo padrão de dimensões e diagramação será seguido por praticamente
todas as outras fotos do livro.
Vamos iniciar com a primeira imagem, que está presente na capa.
3 Roland Barthes, La chambre claire: Note sur la photographie. Paris, Seuil, 1980
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Imagem 1– Capa da edição original
O Formato do livro é 150mm x 215mm com 12mm de espessura. A capa
apresenta um fundo bege chapado, que pode, segundo nossa análise, aludir ao tom de
pele de uma pessoa, que, segundo nossa avaliação, poderia ser a pele da mãe do autor,
Henriette Barthes. O nome do autor e a editora estão impressos em azul escuro, e o
título e subtítulo do livro em rosa pink, o que poderia aludir a uma tatuagem corporal
sobre a pele (que seria o fundo bege da capa). Além disso, podemos apontar uma
relação feminino/masculino tanto no texto como na imagem, já que esta apresenta o
desenho de um homem e uma mulher. Trata-se de uma gravura de um homem
utilizando uma câmara clara para desenhar uma mulher. Esta figura funciona como um
correspondente imagético do texto do título. Faz-se necessário um breve esclarecimento
sobre o título do livro A Câmara Clara, levantada por Geoffrey Batchen no texto de
2008, Uma Outra Pequena História Da Fotografia (BATCHEN, 2008):
A escolha do título também merece uma análise cuidada. Uma Câmara Clara
é um instrumento de desenho inventado antes da fotografia. Constitui-se de
um prisma de vidro que foca a luz refletida para o seu interior de uma cena e
de um papel colocados por baixo do instrumento, sendo que estas duas fontes
de luz são depois fundidas na parte de trás de retina de um observador. É um
instrumento no qual se vê a imagem apenas no olho da mente, tornando a
experiência totalmente privada e individual. Barthes escolhe perversamente
este termo para este aparato desprovido de câmera e este olhar-para-dentro,
para representar um livro ostensivamente dedicado à nossa experiência
comum de olhar para imagens de uma máquina fotográfica. Para onde quer
que olhemos, o livro está carregado com binários deste género, onde cada
termo é apresentado como o inverso de outro (BATCHEN, 2008).
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Batchen aponta que esta oposição, já presente no título da obra, sugere o tom do
que seguirá: inúmeras dualidades de termos, tanto de imagens quanto de conceitos,
como veremos à frente. Observamos ainda que esses binários são muito dinâmicos já
que seus termos são, ora opostos, ora complementares. Na parte posterior do livro –
quarta capa – encontraremos outra dualidade, expressa no texto citado por Barthes:
Imagem 2– Quarta capa da edição original
A tradução desse texto para o português é:“Marpa ficou muito perturbada
quando seu filho foi morto e um de seus discípulos lhe disse: ‘Dizias-me sempre que
tudo é ilusão. E a morte do teu filho, não é uma ilusão ?´ E Marpa respondeu: ’Com
certeza, mas a morte do meu filho é uma superilusão.´ Prática da via tibetana.”4
O texto transcrito acima se refere à perda de um filho por uma mãe, enquanto
que a temática do livro gira em torno da perda de uma mãe por um filho. Eis, portanto,
presente, na capa – na pele? – a segunda dualidade do livro, já que Barthes retoma a dor
da perda de sua mãe por diversas vezes no corpo do livro.
Passemos ao corpo do livro: o papel das páginas internas (miolo do livro) é de
alta gramatura – vale apontar que em nenhuma edição brasileira encontramos um papel
tão espesso – o que possibilita a impressão em ambos os lados da página (tanto de texto
como imagem fotográfica), sem que haja o prejuízo a visualização da outra face da
página. Notamos também que a área das páginas é 145mm x 215mm e a dimensão das
manchas de texto é 95mm x 130mm. As margens são todas bastante generosas5.
4 A tradução é de responsabilidade da autora 5 Páginas da direita: margem superior 3 cm, lateral esquerda 2 cm, lateral direita 3 cm, inferior para as página da
direita, somente com texto. As páginas da esquerda são espelhadas, isto é, margem lateral esquerda de 3cm, lateral
direita de 2 cm, e superior e inferior de 4cm
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Imagem 3 – Lado esquerdo: Página só fotografia só com texto e lado esquerdo (ambas sem escala)
Nas páginas que contém fotografias, a dimensão das mesmas acompanha as
dimensões da mancha gráfica que é de 95mm x 130mm, o que fica claro na imagem
acima. O fato de as margens apresentarem dimensões equivalentes tanto nas páginas de
texto quanto nas de foto revela que ambos os textos, tanto o visual e o texto escrito com
imagens, têm, para Barthes, a mesma importância do texto escrito com palavras.
A fonte escolhida para compor o texto foi a clássica Times New Roman. Trata-
se de fonte serifada (facilita a leitura de textos longos) e com um corpo grande, o que
também proporciona ao leitor bastante conforto visual.
O que podemos concluir desta breve análise é que o projeto original do livro A
Câmara Clara, da Editora Gallimard-Seuil, foi cuidadosamente planejado pelo autor, e a
editora preserva sabiamente até hoje o projeto gráfico, o que dá integridade à obra e
possibilita que tenhamos acesso, quase quarenta anos depois da primeira edição, a um
exemplar absolutamente idêntico ao original, que data de 1980.
A Câmara Clara: Escolha das fotos
Roland Barthes seleciona, para a publicação em seu livro, fotos de vários períodos
numa ordem aparentemente aleatória. Para Geoffrey Batchen, ao realizar essa operação,
Barthes subverte a ordem cronológica das imagens fotográficas. Tal procedimento
indica que para além da História – no seu sentido tradicional – como é apresentada, por
exemplo, no livro The History of Photography, de Beaumont Newhall, (NEWHALL,
1964) existe a “estória”: a narrativa própria, a história do sujeito, na qual os
protagonistas são seus familiares e ele mesmo, que aparecem no livro de maneira muito
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sutil, por meio de uma manobra estratégica, quase digna de romance policial, de aludir a
fotos particulares que somente são mostradas em outro livro, sua biografia, Roland
Barthes por Roland Barthes, de 1975.
Ao mesmo tempo em que Barthes valoriza fotografias ditas (por ele) de amadores
para falar sobre fotografia, ele também escolhe fotografias de artistas consagrados como
August Sander, André Kertész, Felix Nadar, entre outros. Ora seleciona as mesmas
fotos que estão em Newhall, ora escolhe outras obras dos fotógrafos que estão presentes
em Newhall, ora coloca fotos do suplemento Le Nouvel Observateur Spécial Photo6,
suplemento da revista de variedades Le Nouvel Observateur, ou mesmo de seu acervo
pessoal.
Em A Câmara Clara, Barthes irá perscrutar a fotografia a partir de uma seleção
criteriosa e pessoal (segundo ele próprio) de fotografias dos séculos XIX e XX. Mas,
como explica Batchen, talvez não se trate de um critério tão arbitrário quanto pareça
numa primeira abordagem:
Existem 24 fotografias ilustradas a preto e branco em Câmara Clara,
juntamente com uma única reprodução a cores de uma imagem Polaroid pelo
fotógrafo francês Daniel Boudinet. É interessante considerar por um
momento esta seleção de imagens, desligadas do texto que explica o seu
significado no livro. As ilustrações aparecem-nos em intervalos regulares e
sem uma ordem cronológica particular. Dez delas são do século dezenove,
sendo a mais antiga (que Barthes, erroneamente, chama de “a primeira
fotografia”) datada de 1823 e a mais recente, incluindo o trabalho de
Boudinet, tirada em 1979, ano em que o livro foi escrito. Assim, enquanto
afirma, numa declaração que ficaria famosa, que faria da “medida do
conhecimento fotográfico” apenas ele próprio (CL, 9), Barthes oferece, no
entanto, aos seus leitores, uma amostra completa da fotografia, com exemplos
de 1820, 1850, 1860, 1880, 1890, 1900, 1920, 1930, 1950, 1960 e de 1970.
Uma recolha nada má, para uma seleção que pretende ser arbitrária e
inteiramente pessoal (BATCHEN, 2008).
Além de Barthes ter escolhido todas essas fotografias, ele também inclui – fato
já embora deveras discutido ainda não comprovado – duas fotografias de seu arquivo
pessoal: a Polaroid, como já vimos, e a foto de sua mãe quando criança, que denomina,
6 NOUVEL OBSERVATEUR (1977). Spécial Photo, n.2, nov,
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de maneira quase sorrateira de La Souche, título esse que poderia ser traduzido como “A
Cepa”. Durante todo o livro, o autor também se refere a esta foto pelo nome de foto do
Jardim de Inverno.
Imagem 4 – La Souche ou Fotografia do Jardim de Inverno
A Câmara Clara: primeiras imagens
A primeira imagem do livro marca presença logo de início: trata-se de uma
pequena gravura de traços pretos e fundo branco, que aparece sobre a parte inferior da
pele, digo, capa do livro. Tal gravura representa o uso de uma câmara clara. Trata-se de
uma gravura de Vincent Chevalier, de 1834, que também está no livro The History of
Photography, de Beaumont Newhall7.
Imagem 5 – Reprodução da gravura nas dimensões em que a mesma se encontra na capa do livro
Esta imagem, embora apresente dimensões reduzidas (ocupa um pequeno
quadrado de 35mm de lado), é bastante significativa, já que, além de ser a representação
física do objeto câmara clara – ou camera lucida –, também remete à operação que o
autor irá realizar ao longo do livro. É como se Barthes, representado pelo o homem da
gravura, ao olhar para o objeto de desejo mãe/fotografia à sua frente – corresponde à
7 Em ambas versões: de 1964 e 2012
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mulher da imagem – através da mediação do artefato da câmara clara, fosse escrever,
desenhar, anotar, delinear, traduzir o que é este “objeto”: – a Fotografia, praticamente
um nome próprio. Esta imagem acena ao leitor com um tom sutil de metalinguagem: ela
corresponde, em termos de imagem, à complexa operação que Barthes efetua ao longo
de todo seu livro: perscrutar a fotografia através de um olhar interior, introspectivo.
Partiremos agora para a primeira imagem do interior de A Câmara Clara. Trata-se de
uma fotografia retirada do arquivo pessoal do autor. É uma fotografia realizada com
uma câmera Polaroid na qual domina o tom azul esverdeado, realizada pelo amigo de
Barthes, Daniel Boudinet, em 1979.
Imagem 6 – Polaroid, Primeira foto do livro
Neste caso, não há comentário do autor. Barthes simplesmente insere o título da
foto, numa posição inferior na página, mas que não chega a alcançar o pé da pagina
(como ocorrerá na foto seguinte), juntamente com o autor, seu amigo Daniel Boudinet.
Além disso, o título corresponde à marca de um fabricante que se tornou sinônimo desse
tipo de foto. É curioso como logo após a imagem de uma gravura, que poderíamos
considerar como um dos ancestrais da fotografia (por conta do princípio de
sensibilização de chapas metálicas), Barthes introduz uma imagem de 1979, realizada
por uma câmera Polaroid analógica – câmera que realiza a revelação química
instantânea da foto – muito usual no período.
A fotografia sugere, segundo Samain, a entrada num recinto misterioso, no
mundo do imaginário, ou ainda na câmara obscura, espécie de caixa preta com um
pequeno orifício que é o princípio básico de toda câmera fotográfica – da mais
rudimentar até as digitais – como o próprio autor aponta no seguinte trecho:
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A primeira [fotografia] abre, simbolicamente, o livro. É uma polaróide datada
de 1979, que realizou Daniel Boudinet, amigo de Barthes. O interior do
apartamento de Barthes, ambiente reservado, aconchegante, um tanto secreto
[...]. Ambiente um tanto inquietante desse espaço quase fechado: atrás dessas
cortinas, dessa alcova, dessa câmara obscura, o que estava por acontecer, o
que havia de acontecer luminosamente? Nada se sabe ainda. Apenas uma
pequena abertura, uma fenda, uma concha amorosa e benevolente, um
triângulo secreto, um triângulo de ouro e luz, aberto a um novo olhar sobre
signos incertos do mundo (SAMAIN, 2005, p. 123).
É curiosa a oposição que há entre esta fotografia e a imagem da capa do livro
original, a saber: trata-se de um quarto escuro, espécie de contraponto à primeira
imagem da capa externa do livro, reproduzida abaixo, de um dispositivo de desenho
largamente utilizado antes do advento da fotografia, a câmara clara. A camera obscura,
termo em latim que significa quarto escuro em português, também é o nome do local
onde se realiza a revelação e ampliação de placas fotográficas e negativos. Poderíamos
montar o seguinte esquema de comparação entre as imagens:
Câmara clara (imagem da capa) X Câmara obscura (primeira foto do livro).
Objeto que permite ver X véu, passagem estreita, alcova que esconde.
Olivier Beuvelet, no texto Image-Fente et indicialité photographique chez
Barthes, aponta que como esta imagem funciona junto com a epígrafe “Em
Homenagem a O Imaginário de Sartre”. Assim, esta foto seria uma imagem-fresta
(image-fente). Ele afirma ainda que desde a abertura do livro, “tudo já está aí,
formulado visualmente.” (BEUVELET, 2013).
O autor afirma ainda que a imagem-fresta
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Exprime visualmente o desejo de uma imagem que assombra o ensaio e a
reflexão de Barthes aqui...o luto da mãe, afeto por um rastro luminoso,
passagem real da luz, presença de um escondido (de um longínquo?) que
entra como uma luz vinda de um alhures invisível, ou ao menos velado...Esta
imagem seria uma teoria visual da fotografia tal que a semiologia a
concebe.[...] poderíamos dizer que o que esconderia esta imagem-tela8 que
abre como um negativo seu ensaio sobre a fotografia que seria seu
desenvolvimento, seria a famosa foto do jardim de inverno onde não se vê
sua mãe fotografada9 na idade de 5 anos ao lado de seu irmão de sete anos,
que escolhe não mostrar (BEUVELET, 2013).
Ou seja, esta imagem-fresta, imagem-tela esconderia outra imagem também
relacionada com sua mãe, a fotografia do Jardim de Inverno10
. Beuvelet continua: “A
imagem-fresta permite esclarecer a relação com a origem, isto é com objeto
representado, na representação, e como toda a imagem é ao mesmo tempo retorno e
corte em relação à sua origem” (BEUVELET, 2013). Fontanari também corrobora essa
opinião, ao afirmar:
Ora, se partirmos dessa concepção de fragmento, poderíamos dizer que essa
seria talvez a justa definição para a fotografia, uma vez que o que a
caracteriza de fato é uma espécie de golpe ou corte de espaço e tempo ou, em
outras palavras "uma fatia única de espaço-tempo, literalmente cortado a
vivo" (Dubois, 2008, p.161). Isso é, “a imagem-ato fotográfica interrompe,
detém, fixa, imobiliza, destaca, separa a duração, captando dela um único
instante. Especialmente, da mesma maneira, fraciona, levanta, isola, capta,
recorta uma porção de extensão” (ibid). (FONTANARI, 2015).
É como se toda imagem – tal como a Polaroide de Boudinet – fosse uma
imagem-fresta (Beuvelet) ou imagem ato (Dubois). Essa qualidade forneceria portanto,
uma qualidade de continuidade, de movimento, de ação à tão pretensamente “estática”
imagem fotográfica.
Após esse portal, entrada, véu, passagem estreita para um ambiente interno,
escuro e íntimo, há uma fotografia, ao contrário, produzida em ambiente externo.
Apontamos para uma abertura em direção a uma grande variedade de sensações.
8 tradução livre de image-écran 9 tradução livre de saisie 10 Fotografia que encerra o grande mistério de A Camara Clara: teria ela sido esta publicada no livro ou não?
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Imagem 6 – Segunda foto do livro
Comentário de Barthes11: “De Stieglitz só me encanta a sua foto mais conhecida....”
Notamos, primeiramente, que esta foto escolhida por Barthes também está
presente no livro de Newhall, The History of Photography, (edição de 1964). Trata-se
de uma fotogravura12
de 1893 de Alfred Stieglitz. Trata-se de uma imagem bastante
enigmática. O vapor ocupa grande parte da cena. Trata-se de uma fotografia complexa,
na qual os sentidos se abrem, já que ela sugere muitas coisas: a) movimento e ruído dos
cavalos, b) o odor de cavalos, c) sensação de frio e calor, pois há neve no piso, e há
vapor saindo do corpo e da boca dos cavalos, d) é como se houvesse várias imagens em
uma só. Além disso, esta imagem poderia certamente ser um fotograma de um filme,
analogamente às imagens analisadas por Barthes em seu texto de 1970, O terceiro
sentido [Le troisième sens]. Nesse texto, Barthes se utiliza de fotogramas de O
Encouraçado Potemkin13
para expor os conceitos de óbvio e obtuso, que ele criou para a
fotografia, que por sua vez apresentam alguma semelhança com os conceitos centrais de
A Câmara Clara: de punctum e studium. Tomamos a opção de não tratar de tais
conceitos neste texto, já que estes já foram especificamente abordados pela autora, em
sua dissertação de mestrado14
.
Por fim, ao escolher as três primeiras imagens do livro, Barthes termina por –
além, é claro, de nos brindar com fotografias cheias de alusões – realizar um apanhado
de várias técnicas. A saber: gravura que – conforme apontado acima – é um dos
ancestrais da fotografia; uma Polaroid, – processo técnico analógico, pontual de um
11 Que no livro se encontra logo abaixo da fotografia
12 https://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/58.577.11
13 O Filme de Sergei Ensenstein de 1925 que retrata a Revolução de 1905 na Rússia Czarista.
14 Contessa, Valéria Berti. Roland Barthes e a Câmara Clara: um novo estatuto para as imagens. 2014. 121 f.
Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2014.
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momento específico – e, finalmente a segunda fotografia: uma fotogravura, processo
que antecedeu o processo do negativo.
O autor como curador
Resta-nos ainda abordar uma questão trazida à tona por Batchen. Diz ele:
“Certamente, ao fazer de si mesmo um elemento retórico tão central no seu olhar sobre
a fotografia, Barthes torna-nos conscientes do seu papel autoral, como escritor e como
curador”. (BATCHEN, 2008).
O caráter titubeante, de descontinuidade e fragmentação em A Câmara Clara, é
facilmente identificável ao longo de toda a obra. Descontinuidade, conflito, hesitações.
Talvez tudo isto desoriente um pouco o espectador-leitor ao longo do livro. Contudo
essas operações não confundem o leitor, mas, ao contrário revelam que, por trás de
tantas certezas aparentes, o autor-produtor também oscila, titubeia, tergiversa, e, ao fim
e ao cabo, termina por construir um texto denso, sólido e coerente, sobre o qual tanto se
discutiu, e ainda se discute. Ademais, esta obra permanece ainda intrigante, inovadora e
atual – mesmo após quase 40 anos depois de sua publicação. O livro nos conduz a
conceitos centrais da fotografia que não serão superados tão cedo.
Além disso, como nos aponta Batchen, Barthes, ao se expor, seja ao falar de seus
sentimentos, tanto quando trata da saudade de sua mãe e de seu luto, quanto quando
mostra a fotografia de sua mãe criança com seu tio Binger (trata-se muito
provavelmente da fotografia que ele intitula La Souche, embora se refira a ela por A
Foto do Jardim de Inverno), ou criando uma espécie de mistério, jogo de esconde-
esconde ou até mesmo quando mistura a ordem cronológica e linear das fotos escolhidas
para o livro, assume, em relação à sua obra, o papel de autor-curador. Essa operação se
desdobra, de certa maneira como uma sugestão para nós, leitores. Serve de indicação
para sua obra com uma postura ativa e criativa, igualmente como curadores.
Considerações finais
Este artigo buscou, por um lado, provocar a curiosidade do leitor e motivá-lo a
abordar (ou, retomar) o livro A Câmara Clara de Roland Barthes de um novo ponto de
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vista, como aponta Samain, isto é, partir de suas fotografias, seguindo as pistas do
caminho de um “outro” texto: da narrativa visual.
Além disso, este trabalho teve o propósito de, através do olhar de Batchen,
revelar a operação que Barthes realiza como curador das fotos de seu livro. Batchen
também sugere, por extensão, que adotemos, diante de uma obra, uma postura mais
ativa. É oportuno lembrar que estamos nos referindo a um contexto dos anos oitenta do
século passado. E que hoje, essa função de autor-curador nos parece tão corriqueira.
Referências
BARTHES, R. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Lisboa: Edições 70, 2009.
_______ A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
_______ La chambre claire: Note sur la photographie. Paris: Éditions du Seuil, 1980.
_______ O Terceiro Sentido. In: O Óbvio e o Obtuso, Lisboa: Edições 70, 1984.
_______ Roland Barthes by Roland Barthes, translated by Richard Howard. Los Angeles:
University of California Press, 1994.
_______ Roland Barthes por Roland Barthes, tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:
Estação Liberdade, 2003.
_______ Sur la photographie. In: OEuvres complètes Roland Barthes vol III, p. 1233. Paris:
Editions du Seuil, 1995.
BATCHEN, G. Photography Degree Zero. Cambridge: The MIT Press, 2011.
DUBOIS, P. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 2008.
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FONTANARI, R. Roland Barthes e a revelação profana da fotografia. São Paulo: EDUC,
2015.
NEWHALL, B. The History of Photography. New York: The Museum of Modern Art, 1964.
NEWHALL, B. The History of Photography. New York: The Museum of Modern Art, 2012.
SAMAIN, E. Um retorno à Câmara Clara: Roland Barthes e a antropologia visual. In: O
fotográfico. São Paulo: Hucitec, 1998.
Referências da internet
BATCHEN, G. Uma Outra Pequena História Da Fotografia. 2008.
Disponível em: .
Acesso em: 5 Jul. 2018.
BEUVELET, O. Image-fente et indicialité photographique chez Barthes…
Disponível em: < http://culturevisuelle.org/parergon/archives/1794
Acesso em: 1 Nov. 2013.
FONTANARI, R. Roland Barthes e a fotografia.
Discursos fotográficos, Londrina, v.6, n.9, p.53-76, jul./dez. 2010
Disponível em: