caminhos da experimentação no sertão de ourolândia

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No meio, a mata cinza que separa o azul do céu do vermelho da terra. Os berros das cabras e dos bodes misturados com os sons das galinhas compõem a melodia desta orquestra sertaneja. Mais ao fundo, o canto dos pássaros afinam esta sinfonia. O cenário que se apresenta é o da caatinga. Este bioma, que hiberna neste período e aguarda pacientemente a chuva para brotar e mostrar sua beleza, abriga o pedreiro, agricultor e militante social, José Anchieta, sua esposa e seus três filhos. Desde 1990 optaram em (con)viver com as condições climáticas da comunidade de Cais, no município baiano de Ourolândia, no Território Piemonte da Diamantina, a 458km de Salvador. Morar no sertão é o que ele preserva desde moço quando aprendeu com o pai, além de fincar suas raízes nesta terra, as duas atividades que mais exerce hoje: cuidar da roça e construir cisternas. Em ambas as profissões sempre atua com postura de militante religioso e social da comunidade onde mora. Erguendo e disseminando esperanças Começou cedo na profissão de pedreiro, mas foi com a construção de cisternas que ele escreveu a sua história. Pioneiro nesta profissão, na região de Senhor do Bonfim, e, posteriormente, na de instrutor dos cursos de pedreiros, ergueu as primeiras placas desta tecnologia social na propriedade da família quando ela ainda era novidade, em 1986. Depois disto, não parou mais de levantar cisternas. As primeiras foram dos projetos da igreja Católica na Diocese de Senhor do Bonfim financiado com dinheiro estrangeiro. A partir de 2003 vieram as destinada a armazenar água para o consumo humano, da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) e, posteriormente, as de produção. Neste rumo, ele partiu para ser um multiplicador de conhecimentos, como instrutor das capacitações de pedreiros. Nesta atividade começou, praticamente, com os projetos pilotos do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC). Exercendo esta função, de ensinar aos outros pedreiros a serem cisterneiros não só desenvolveu a habilidade de multiplicar conhecimentos técnicos, mas também de ser um mobilizador social. Modesto, hoje não consegue contar quantas pessoas ajudou a ter uma nova profissão, entre outras ações. Ele também foi incentivador de ações solidárias por onde andou. Ele explica que a solidariedade com o próximo junto com valor de multiplicar experiências é fundamental, “eu faço porque gosto e acho que precisa e todo mundo devia fazer isto. Quando a gente sabe de uma coisa e o outro não sabe a gente pode ensinar”, afirma. Como exemplo, ele conta que, quando erguia esta tecnologia também se preocupava em cobrar que elas beneficiassem, prioritariamente, as comunidades que mais necessitavam, “a gente dizia, primeiro dá pão e água a quem ta com fome e a quem ta com sede. Sei que com isto nós conseguimos fazer um movimento aqui na parte do sertão e conseguimos que Ourolândia fosse bem atendida com cisternas da ASA”. As boas ações iniciadas por ele não terminam por aí. Entre elas, os mutirões de construção e cobertura de cisternas para as famílias que não eram contempladas pelos projetos. “A gente chamava o pessoal da entidade, ás vezes eles conseguiam arrumar algum cimento, a gente entrava com o restante do material e a própria família comprava o cimento e algum material que faltasse. No final a gente juntava os pedreiros que estavam atendendo naquela comunidade e cobria as cisternas e/ou fazia algumas”. A atividade de pedreiro de cisterna significou muito na sua vida e o ajudou a edificar os alicerces do que ele conquistou até hoje, principalmente, com todo o apoio que recebeu da família e de instituições sociais que o direcionaram neste caminho da solidariedade humanitária. Neste rumo, ao presenciar as mudanças das famílias Bahia Ano 5 | nº 161 | maio | 2011 Ourolândia- Bahia Boletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas CAMINHOS DA EXPERIMENTAÇÃO NO SERTÃO DE OUROLÂNDIA 1 Seu Anchieta na capacitação de pedreiros ensina como preparar os materiais necessários para erguer a cisterna.

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Page 1: Caminhos da experimentação no sertão de Ourolândia

No meio, a mata cinza que separa o azul do céu do vermelho da terra. Os berros das cabras e dos bodes misturados com os sons das galinhas compõem a melodia desta orquestra sertaneja. Mais ao fundo, o canto dos pássaros afinam esta sinfonia. O cenário que se apresenta é o da caatinga. Este bioma, que hiberna neste período e aguarda pacientemente a chuva para brotar e mostrar sua beleza, abriga o pedreiro, agricultor e militante social, José Anchieta, sua esposa e seus três filhos. Desde 1990 optaram em (con)viver com as condições climáticas da comunidade de Cais, no município baiano de Ourolândia, no Território Piemonte da Diamantina, a 458km de Salvador.

Morar no sertão é o que ele preserva desde moço quando aprendeu com o pai, além de fincar suas raízes nesta terra, as duas atividades que mais exerce hoje: cuidar da roça e construir cisternas. Em ambas as profissões sempre atua com postura de militante religioso e social da comunidade onde mora.

Erguendo e disseminando esperançasComeçou cedo na profissão de pedreiro, mas foi com a construção de cisternas que ele escreveu a sua

história. Pioneiro nesta profissão, na região de Senhor do Bonfim, e, posteriormente, na de instrutor dos cursos de pedreiros, ergueu as primeiras placas desta tecnologia social na propriedade da família quando ela ainda era novidade, em 1986. Depois disto, não parou mais de levantar cisternas. As primeiras foram dos projetos da igreja Católica na Diocese de Senhor do Bonfim financiado com dinheiro estrangeiro. A partir de 2003 vieram as

destinada a armazenar água para o consumo humano, da Art iculação do Semiárido Brasi leiro (ASA) e, posteriormente, as de produção.

Neste rumo, ele partiu para ser um multiplicador de conhecimentos, como instrutor das capacitações de pedreiros. Nesta atividade começou, praticamente, com os projetos pilotos do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC). Exercendo esta função, de ensinar aos outros pedreiros a serem cisterneiros não só desenvolveu a habilidade de multiplicar conhecimentos técnicos, mas também de ser um mobilizador social. Modesto, hoje não consegue contar quantas pessoas ajudou a ter uma nova profissão, entre outras ações.

Ele também foi incentivador de ações solidárias por onde andou. Ele explica que a solidariedade com o próximo junto com valor de multiplicar experiências é fundamental, “eu faço porque gosto e acho que precisa e todo mundo devia fazer isto. Quando a gente sabe de uma coisa e o outro não sabe a gente pode ensinar”, afirma.

Como exemplo, ele conta que, quando erguia esta tecnologia também se preocupava em cobrar que elas beneficiassem, prioritariamente, as comunidades que mais necessitavam, “a gente dizia, primeiro dá pão e água a quem ta com fome e a quem ta com sede. Sei que com isto nós conseguimos fazer um movimento aqui na parte do sertão e conseguimos que Ourolândia fosse bem atendida com cisternas da ASA”.

As boas ações iniciadas por ele não terminam por aí. Entre elas, os mutirões de construção e cobertura de cisternas para as famílias que não eram contempladas pelos projetos. “A gente chamava o pessoal da entidade, ás vezes eles conseguiam arrumar algum cimento, a gente entrava com o restante do material e a própria família comprava o cimento e algum material que faltasse. No final a gente juntava os pedreiros que estavam atendendo naquela comunidade e cobria as cisternas e/ou fazia algumas”.

A atividade de pedreiro de cisterna significou muito na sua vida e o ajudou a edificar os alicerces do que ele conquistou até hoje, principalmente, com todo o apoio que recebeu da família e de instituições sociais que o direcionaram neste caminho da solidariedade humanitária. Neste rumo, ao presenciar as mudanças das famílias

Bahia

Ano 5 | nº 161 | maio | 2011Ourolândia- Bahia

Boletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas

CAMINHOS DA EXPERIMENTAÇÃO NO SERTÃO DE OUROLÂNDIA

1

Seu Anchieta na capacitação de pedreiros ensina como preparar os materiais necessários para erguer a cisterna.

Page 2: Caminhos da experimentação no sertão de Ourolândia

do sertão a partir do acesso a água através das cisternas, ele carinhosamente denominou esta tecnologia de “a cisterna da cidadania”.

A religiosidade foi fator importante neste processo de formação de militância social e religiosa. Além de fazer parte do movimento social religioso, ele logo se integrou na Comissão Municipal da Água de Ourolândia e, consequentemente, foi um representante fiel do povo mais carente da sua região. Para tudo isto, ele somou os conhecimentos adquiridos com o pai e as oportunidades que teve através de programas sociais da igreja católica e da ASA. Ele continua na luta, mas sem carregar bandeira partidária, lutando somente pelo social.

Caminhos da experimentação O caráter inovador das experiências da família de seu

Anchieta não se limita ao modo de construir cisternas e nem no desenvolvimento da agricultura familiar. Na propriedade dele tem a criação de animais de pequeno porte que se adaptam bem ao clima da nossa região, viveiro de mudas nativas, estocagem de água e de ração para os animais, adubos orgânicos e a cerca elétrica de baixo custo que garantem a criação animal e a preservação da caatinga. Todas estas atividades começaram a serem desenvolvidas na forma de experimentação e com recursos próprios da família.

“Duas coisas que eu faço: é plantar aquilo que a terra dá e preservar o que tem aqui na minha propriedade. Hoje mesmo, eu planto aqui no sertão e aqui não chove, então eu planto as plantas que resistem. Então, a gente vai aprendendo assim através desta luta”.

Esta pluriatividade foi a forma que encontrou para continuar vivendo no sertão. “No tempo que a gente não ta fazendo cisterna a gente ta cuidado da roça. Porque a vida da gente é difícil. Eu trabalho muito e me esforço porque eu sei que a gente precisa de nossa liberdade e sou livre”.

Companheirismo familiarMas não foi sozinho que ele construiu esta história. Ao seu lado sempre esteve, D. Maria do Socorro. Ela

continua sendo a companheira atuante nesta relação de mãe, esposa e agricultora. Ela, uma das pessoas protagonistas na história de Seu Anchieta, contribuiu para ele continuar neste caminho de luta que escolheu. D. Maria do Socorro destaca que o trabalho é gratificante e que gosta muito do campo, “eu gosto. Aqui a gente se distrai mais. Lá na cidade é ruim, a gente não tem o que fazer. Fica só dentro de casa, enjoa, estressa. Aqui na roça vou cuidar dos cabritos e esqueço do mundo”, explica.

Com esta união eles sempre se preocuparam com a educação dos três filhos. Nunca depositaram somente na escola a responsabilidade em educar os filhos, por mais que investissem nisto. Hoje colhem os resultados ao contar com a ajuda primordial dos filhos nos trabalhos sociais desenvolvido na comunidade, na roça e no rumo que cada um está seguindo. “Todos eles participam dos movimentos [sociais] também”, diz seu Anchieta.

Por puro conhecimento, coragem, respeito e solidariedade eles fazem com as próprias ações exemplos de vida de que se é possível viver com dignidade no semiárido brasileiro. “A gente plantando o pessoal vê e vai fazendo também. Acho que o caminho é este. Porque dizer, a televisão diz, o rádio diz, nas reuniões diz também, a teoria já estamos cansados de ouvir, precisa agora é fazer”, explica seu Anchieta.

Ao contar sua própria história, seu Anchieta deixa bem claro o quanto precisa ter fibra para continuar nesta luta. Esposo e pai de três filhos nos ensina que a fé divina sempre deve andar alicerçada

com a solidariedade e ação cotidiana de que se é possível viver neste belo sertão. “O que eu aprendi foi isto, trabalhar na roça e depois trabalhar em construção. Eu gosto do que estou fazendo, está dando para viver. Estou satisfeito”.

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Plantação da melancia de cavalo para a ração animal

Boletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas Bahia

Apoio:

Seu Anchieta e sua esposa, D. Maria do Socorro, dividem as atividades na roça