caminhos da memória

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CAMINHOS DA MEMÓRIA

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CAMINHOS DA MEMÓRIA

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Memorial do ImigranteMercado Municipal de São Paulo

Vila dos Ingleses

Introdução

Este relatório tem por objetivo compreender a problemática do Centro Velho de São Paulo (região da Luz, Brás e arredores da

Rua 25 de Março). Partiremos dos casos particulares do Memorial do Imigrante, do Mercado Municipal e da Vila dos Ingleses,

destacando aspectos de sua história e a preservação da memória, para então, analisarmos de forma conjunta questões da

musealização do patrimônio e potencial turístico da região, tendo em mente as construções teóricas de Nestor Garía Canclini “O

porvir do passado”, na obra Culturas Híbridas na América Latina.

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Memorial do Imigrante

A princípio, o que mais chama a atenção no Memorial do Imigrante é o seu nome: local onde pretende-se relembrar a memória

da imigração no Brasil, mais especificamente de São Paulo. Entendendo-se por imigrantes aqueles que vieram do exterior a partir da

metade do século XIX, em busca de trabalho, sobretudo para as plantações de café, o nome faz jus à importância da hospedaria

durante todo o fluxo imigratório desses trabalhadores. O local foi construído para abrigar essas massas cada vez mais numerosas e

como uma tentativa de controlar os que aqui chegavam patrocinados pelo governo. O aspecto de prisão justifica-se pela intenção de

evitar o contato dos imigrantes com a cidade e de serem tratados unicamente como mão-de-obra de lavoura. A hospedaria possuía

desde hospital até correio e os trabalhadores permaneciam cerca de uma semana, tempo suficiente para serem recebidos,

selecionados (etapas em que eram identificados e produziam-se os documentos estudados hoje) e encaminhados para as fazendas do

interior. Segundo o folheto promocional do Memorial “De 1882 a 1978, passaram pela Hospedaria cerca de 2,5 milhões de pessoas,

de mais de 60 nacionalidades e etnias, todas devidamente registradas em livros e listagens”.

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O que era hospedaria passa a ser hoje Museu, com acervo e comunicação, mas que não se denomina como tal e ganha o cunho

de memorial, não de lugar histórico. A parte omitida da história é que a partir da década de 30 o fluxo migratório, majoritariamente

de nordestinos, passou a superar o imigratório. Esse fato, apesar de salientado pelo guia do Memorial do Imigrante, não se encontra

devidamente registrado em documentos da época. Em apenas alguns quadros, havia fotos desses migrantes, enquanto o resto do

museu dedica-se exclusivamente a história de chegada dos imigrantes. Logicamente, a falta de registros é uma falha da própria

época, mas ainda assim, o Memorial, como o próprio nome reitera, preferiu concentrar-se nos fluxos imigratórios. Não é à toa que

vemos bonecos vestidos com as roupas típicas desses países. O museu teve como seu recorte o trabalho com a memória imigrante.

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De acordo com o texto de Canclini “Esse conjunto de bens e práticas tradicionais que nos identificam como nação ou como povo é

apreciado como um dom, algo que recebemos do passado com tal prestígio simbólico que não cabe discuti-lo. (...) O patrimônio é o lugar

onde melhor sobrevive hoje a ideologia dos setores oligárquicos, quer dizer, o tradicionalismo substancialista”. Nesse sentido, só o que

nos interessa no Memorial e, conseqüentemente, na História, é um passado de início branco da nação brasileira e a construção do

mito da incorporação dos nordestinos, cuja contribuição é desqualificada na formação de São Paulo.

Mercado Municipal

Prédio do fim do século XIX, que abriga o mercado hortifrutigranjeiro da região central de São Paulo. Identificamos algumas

maneiras diferentes de freqüentar o mercado: de madrugada, os atacadistas fornecem seus produtos, de dia é a população que faz

suas compras nas diferentes barracas especializadas, mas o movimento diferencial deste mercado está no fato de ser um prédio

histórico recém restaurado, que recebe muitos turistas de várias partes do país e do exterior, principalmente nos fins de semana. A

visita se deu em um sábado e o mercado estava lotado de consumidores e de turistas, que procuravam os atrativos da arquitetura

do local e da gastronomia, principalmente dos famosos sanduíches de mortadela e pastel de bacalhau.

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Por muitos anos, o Mercado Municipal ficou “abandonado” e as vendas decaíram. A região onde está localizado passou por um

processo de degradação e desvalorização imobiliária, sendo chamada de Centro Velho, pois as elites abandonaram o local no início

do século XX e foram para a região da Avenida Paulista e arredores.

Hoje, com o Mercado restaurado, as elites voltam ao centro nos fins de semana, mas não percebem (ou não querem) a miséria

em que se encontram os moradores da região, em seus cortiços, prédios invadidos e mesmo nas ruas no entorno do Mercadão (como

é conhecido popularmente).

Vila dos Ingleses

Localizada na região da Luz (Centro Velho), a Vila dos Ingleses tem sua história ligada à estação ferroviária da Luz. Construída

como moradia dos engenheiros ingleses, que vieram ao Brasil para a construção e implantação da rede ferroviária São Paulo Railway

(a princípio Santos-Jundiaí), em meados do século XIX.

Hoje, a Vila dos Ingleses está preservada nas fachadas de sua arquitetura e abriga instalações comerciais no interior das

edificações. Houve mudanças no interior das residências, para abrigar tal destinação, mas o patrimônio histórico proíbe mudanças

nas configurações da Vila.

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Construída com mão-de-obra, materiais e no estilo inglês, assim como todas as estações da linha ferroviária, fato melhor

observado na Estação da Luz, que seria a estação-sede da capital de São Paulo. A Vila dos Ingleses está hoje preservada, mas não

conhecida da população da cidade. Localizada na Rua Mauá, paralela à linha do trem, não é tão facilmente percebida por quem

transita na região, além do mais, a região da Luz recebe um intenso comércio e as pessoas não param para ver os prédios históricos

que os cercam, como a Pinacoteca do Estado, a Estação Júlio Prestes, o Museu de Arte Sacra e a própria Estação da Luz. O

patrimônio já se tornou parte do cotidiano e é tratado sem diferenciação do conjunto arquitetônico da cidade.

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O centro histórico de São Paulo: questões do patrimônio e do potencial turístico

Tendo como base o Memorial do Imigrante, o Mercado Municipal e a Vila dos Ingleses, para se pensar as questões das

edificações históricas do centro de São Paulo, percebemos diversas soluções para a preservação do patrimônio. Os três casos

analisados tiveram uma destinação diferente da proposta original de sua construção: o que era uma hospedaria dos imigrantes e

migrantes, hoje se propõe como um museu que trata dessa temática; o Mercado Municipal continua com sua função, mas a

população tem outra relação com o espaço; por fim, a Vila dos Ingleses tornou-se abrigo para estabelecimentos comerciais e não

mais residências. Os casos aqui abordados tiveram como solução a restauração, mas nem sempre é isso que ocorre com as

edificações históricas do Centro. Vemos muitos prédios em ruínas ou com a arquitetura adaptada (mistura do original com diversas

adaptações realizadas ao longo dos anos), ou simplesmente a derrubada dos prédios históricos, para a construção de edifícios mais

“modernos” e funcionais, que atendem uma lógica imobiliária e especulativa.

Esse pensarmos sob esse prisma, nos perguntamos qual a função da preservação dos edifícios históricos para a memória da

sociedade paulistana. Para quem se destina e o porquê de tal empreitada. Temos que ter em mente que o patrimônio histórico é

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sempre uma construção do presente, acerca de uma memória que ele mesmo constrói para si. É a procura de uma identidade,

principalmente de uma nacionalidade, que faz a construção do patrimônio histórico. A discussão do presente só é possível através

de um contraponto do passado, essa relação nunca é neutra.

No caso do Memorial do Imigrante, o patrimônio se dá na forma de Museu Histórico, com acervo e suas implicações:

comunicação e reserva técnica. A história a ser contada por esse museu é devidamente selecionada ante a outras possibilidades.

Enquanto hospedaria abrigava primeiro os imigrantes e depois os migrantes, em sua maioria, principalmente os nordestinos – há

documentação de todo o período, mas para exposição museográfica, optou-se por valorizar a história dos imigrantes do ciclo do café,

só há referência à migração nordestina nas escadarias do museu, em painéis fotográficos. O museu também tem uma forte área de

pesquisa, que está disposta ao público em terminais de consulta sobre a possível chegada de ascendentes. A memória coletiva aqui

valorizada é a de uma constituição imigrante da cidade de São Paulo, principalmente de italianos, a memória nordestina é deixada

de lado, até mesmo pelas pesquisas.

O Mercadão e a Vila dos Ingleses não tiveram como destino o Museu, o primeiro tem ainda sua função original e a segunda foi

readaptada. O que nos chama a atenção nesses casos é a relação entre o patrimônio histórico e seu entorno. O patrimônio é

preservado, mas não tem nenhuma relação com a comunidade que o cerca, ele está aí para atender um público que não é do local,

um público sazonal ou mesmo de turistas. Daí, mais uma vez, temos que questionar o patrimônio e sua construção: de quem e para

quem. A região central está abandonada pelos que estão no poder, a população desta região vive em condições precárias e com

poucas perspectivas de melhora, o centro é uma área destinada ao comércio popular, mas há também muitas residências e partes

dominadas pelo tráfico (as denominadas cracolândia e boca do lixo). O projeto de revitalização do centro inclui a restauração de

prédios históricos, mas não visa o diálogo com a comunidade, que não freqüenta ou não utiliza tal patrimônio, por não se sentir

incluída. . A história contada não é a deles, mas a de um outro grupo, que visita o centro nos fins de semana e depois voltam para

sua região de origem. Não se conta a história dos vencidos, não vemos os nordestinos, os trabalhadores do mercado e os operários

ingleses nos locais visitados. O patrimônio preservado não faz parte da vida da comunidade, só faz parte do seu local de passagem.

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Museu da Companhia PaulistaJundiaí - SP

Caminhos

Na saída da USP em direção a Jundiaí, seguindo pelas Marginais Pinheiros e Tietê até a entrada na Rodovia dos

Bandeirantes, percebe-se a intervenção do desenvolvimentismo da segunda metade do século XX em quase todo o trecho da capital

e em uma parte do interior. Percebemos as ações de retezamento dos rios, a ocupação das laterais por empresas de médio e grande

porte, o alargamento das avenidas (identificando uma clara opção rodoviária para o sistema de transportes no Brasil, a partir do

período supracitado).

O nome de alguns logradouros pelos quais passamos, Avenida Mal. Castello Branco e a Ponte Ulisses Guimarães, são de

personagens importantes, embora contraditórios, do período supracitado, o que é um fato interessante.

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Observamos também a coexistência urbana dos prédios residenciais de luxo da região da Praça Panamericana com a favela

junto à Ponte do Jaguaré. A fixação de moradias neste local deu-se por conta da proximidade das grandes empresas da região como

a Jaraguá, a Perdigão, o CEAGESP e Cooperativa Agrícola de Cotia, hoje Editora Globo, além de estar-se ao lado da cidade-

dormitório de Osasco (conhecido abrigo de migrantes, sobretudo nordestinos). Já na margem rica do rio Pinheiros (à direita dos que

seguem no sentido Cebolão), as reformas promovidas na década de 1970, símbolo delas a Usina Elevatória de Traição, que vem

acabar com as enchentes até então comuns ocorridas, vinda no bojo do processo de retezamento do rio Pinheiros. Esse processo

valorizou o brejo do Boaçava, transformando-a em reduto de casas e condomínios de luxo, sendo inclusive local de residência do

atual prefeito paulistano.

O exemplo mais claro do contraste social ali inserido é a presença do Shopping Vila Lobos e logo adiante a favela do Jaguaré,

com o rio simbolizando a divisão física que se agrega à social.

Ao adentrar à marginal Tietê, é possível perceber maior freqüência de residências. Na Rodovia dos Bandeirantes, dentro do

trecho da capital, passamos através dos bairros do Piqueri, Pirituba, Vila Clarice, Jaraguá e Perus, todos eles com seus “centros”

junto às respectivas Estações de mesmo nome, da linha A da CPTM, antiga Estrada de Ferro Santos- Jundiaí (EFSJ), paralela à

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rodovia. Seguem esse mesmo exemplo as cidades de Caieiras, Franco da Rocha e Francisco Morato. Devido ao tempo de ocupação da

área (feita no sentido da capital ao interior) observamos que quanto mais próximo do rio Tietê, maior o grau de modernização e

desenvolvimento social das residências e de seu entorno.

O início da rodovia tem em sua margem esquerda condomínios de classe média, seguidas de casas mais simples, até que depois

do Pico do Jaraguá, vemos as casas em construção, ainda com tijolos vermelhos expostos, sem reboque. É nítido que o

deslocamento das classes médias e da burguesia leva consigo os trabalhadores firmando assim as contradições entre o capital e o

trabalho.

Apesar das diferenças, os moradores tanto abastados, quanto desfavorecidos, vêem com extremo carinho a linha férrea que

atravessa seus bairros. Os primeiros, geralmente a usam para acesso ao metrô, por meio da integração com a Estação Barra Funda,

com destino aos seus empregos na região central e da Avenida Paulista. O horário de maior lotação das plataformas da Estação

Pirituba, por exemplo, é entre sete e oito horas da manhã.

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Os mais pobres, entram nos vagões dirigindo-se sobretudo ao trabalho na região de Osasco (pela linha B da CPTM, também

com integração na Estação Barra Funda), ou a Lapa, para procura de emprego, nas diversas agências da região da rua Doze de

Outubro. No caso da Estação Jaraguá, percebemos maior fluxo pela manhã entre 5h30min e 7h30min.

Voltando à estrada, quando da saída da capital, encontramos diversas empresas nos municípios metropolitanos, por conta dos

incentivos fiscais a elas dados. Como maior exemplo temos a recém instalada Natura. Assim se segue até que entramos na cidade de

Jundiaí.

No Museu

Na parte externa do Museu, dois trens estão expostos ao sol e à chuva, num triste contraste com o objetivo do local. Já na parte

de dentro, observamos, na verdade, uma espécie de depósito de objetos relativos à Companhia Paulista – CP, mínima e

superficialmente agrupados: um museu sem vida. A estrutura do local, assim como observado na parte de fora, não condiz com sua

proposta de resgatar uma imagem do período áureo da empresa, ao contrário, reflete o desprezo que a ferrovia recebe atualmente. O

monitoramento é feito por uma única pessoa, que não pode estar presente no dia em que se supõe maior número de visitas: sábado.

Os demais funcionários não têm qualquer comunicação com o público, demonstrando em suas faces e atitudes uma indiferença

pela missão do Museu onde “prestam” serviço.

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Na sala inicial de visitação, vemos réplicas miniaturizadas, aparelhos ferroviários, mapas de São Paulo (assinalados todos pela

importância das ferrovias que cruzam o Estado), fotos sobre a expansão dos trilhos para o interior e uma tentativa de reprodução de

espaços existentes nas antigas Estações. Aí se verifica a precariedade do Museu: objetos que pertenceram ao mesmo contexto são

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aglutinados em um espaço ínfimo no qual a proposta de recriar o passado se perde em meio à falta de estrutura. Um contraponto a

isso pode ser observado no Memorial do Imigrante, onde, em vários momentos, têm-se a impressão de se ter regredido no tempo.

No segundo salão, acompanha-se a evolução do maquinário (partes de locomotivas), e na sua saída, vê-se uma parte onde estão

expostos documentos pessoais dos funcionários da CP, bem como alguns de seus uniformes, fotos de reuniões em finais de semana

e materiais usados outrora nas bilheterias.

No salão superior, grandes livros contábeis sobre a mesa, dão a impressão de ter sido assim a sala dos administradores da CP.

Na sala contígua, fotos, maquetes e a entrada para um salão de encontro de ferromodelistas (outra forma do resgate da memória).

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Conclusão

O objetivo do Museu da Companhia Paulista é o de fazer o resgate de um passado não tão distante em que o modelo ferroviário

era não só o mais bem quisto como também era símbolo de modernidade. Como exemplo disso, observa-se nos cartazes e convites

de inauguração do Teatro Municipal da capital em agosto de 1911, onde figurava em frente à construção de Ramos de Azevedo uma

locomotiva, ali colocada pelo criador do cartaz, pois, sobre trilhos, na época, ali apenas circulavam bondes de tração animal.

Os agentes de recuperação dessa memória têm ligação direta com os protagonistas das mesmas. Grande parte do material

exposto era acervo da Companhia Ferroviária Paulista e de particulares - famílias dos trabalhadores da empresa. O interesse dessas

famílias em recuperar a “respeitabilidade social” de outrora garante maior impulso a esse processo, aliado ao desejo de homenagear

seus entes queridos.

O Estado mantém-se à distância do Museu. Apenas alguns espaços por ele são ocupados. É notório que a opção por outro meio

(o rodoviário) é responsável pela perda de importância da ferrovia no seio governamental e por isso mesmo faz-se modesta sua

participação. Na segunda sala do andar superior, as fotos dos diretores-presidente da CP e suas substitutas (Fepasa – Ferrovia

Paulista SA., na década de 1970; e CPTM, a partir do último decênio) demonstram isso. Notamos que os ocupantes de tal cargo

tinham o nome precedido de um título: no século XIX, Barão; nos dias de hoje, Engenheiro. O que pode ser analisado também como

uma seleção mais criteriosa do quadro diretor, privilegiando aspectos técnicos, pode ser interpretado também pela perda de

importância política e de status do cargo de diretor-presidente da CP/Fepasa/CPTM.

Outro aspecto interessante é a total supressão de elementos tão identificados com os trabalhadores dos trilhos: as greves, afinal

era através delas que se obtinham as vitórias e vantagens como plano de saúde familiar, por exemplo. Assim como os escravos, eles

foram varridos para baixo do tapete, tentando demonstrar uma harmonia, irreal na prática, onde a CP estaria acima de qualquer

suspeita e era a responsável direta pelo bem estar dos seus empregados e livre de atos de violência, como o enfrentamento

truculento das greves ou o uso de mão de obra escrava.

Enfim, o Museu se prestaria a um serviço mais eficiente se fosse melhor administrado e se houvesse nele mais vida, interesse,

interatividade e cuidado com uma história importante que não pode ser esquecida, mas também não merece ser tão mal lembrada.

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(1)

(2)

(3)

No Memorial do Imigrante (este com forte apoio do Estado, ao contrário do Museu da CP) a reprodução do ambiente de uma Estação Ferroviária é de grande verossimilhança. Detalhes como os da Chefia da Estação (1), bilheteria, inclusive com o símbolo da São Paulo Railway - SPR (2) e plataforma de embarque (3) fazem bem seu papel de reconstituição e reprodução do passado.

Na entrada do Memorial, a figura do pica-passagem, os diversos painéis de representação histórica na sua parte interna e a locomotiva a vapor na qual é possível passear aos domingos, nos remetem a décadas atrás.

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Locomotiva no hangar de recuperação em Jundiaí.

Visão de passageiro ao transpor a ponte sobre o rio Tietê pelo trem da linha A da CPTM. Importante notar que nesse ponto, segundo o mapa de 1938, a cidade acabaria (entre as Estações Lapa e Piqueri).

1 - Início do elevado de acesso à Rodovia dos Bandeirantes2 - Avenida Raimundo Pereira de Magalhães (Estrada Velha de Campinas)

Estação do Piqueri (Linha A da CPTM). Ao fundo o Condomínio Portal dos Bandeirantes. Para se ter acesso à Estação é necessário que se passe por entre os seus prédios, o que pode suscitar a idéia de uma “Estação particular” aos condôminos.

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Na Estação de Pirituba, percebe-se uma certa vivacidade do modelo ferroviário, através da exaltação do passado no presente.

Placa em frente à Chefia da Estação Pirituba. Mesmo detalhe percebido ns representação da Chefia de Estação no Museu da Companhia Paulista.

A distância referenciada nesta placa é a existente entre Pirituba e Santos, por via férrea.

Os bancos utilizados ainda de armação de ferro e com assentos e encostos de madeira da época da EFSJ.

Vê-se nesta foto o lugar onde funcionavam as residências dos ferroviários da região de Pirituba, no século XIX até meados do XX, quando também haviam na região, fábricas produtoras de sacas de café (algumas poucas construções ainda resistem). Não por acaso o local é chamado de Chácara Inglesa.

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Na foto acima à esquerda, a decoração vegetal no jardim da Estação evocando o passado.

No centro, mosaico com o nome da Estação, colocado nas paredes internas do prédio quando da criação da CBTU – Companhia Brasileira de Trens Urbanos, na década de 1960 (que englobou a EFSJ).

A cor azul era a do logotipo da Companhia.

À direita, totem indicativo da atual condição da Estação: pertencente à linha A (identificada pela cor marrom) da CPTM.

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Junto à parede da Estação de Campinas, em 1880, verificamos cocheiros, brancos, com suas carruagens para o transporte de abastados.

Já na parte inferior da foto, quase escapando a ela, um escravo (percebe-se por estar descalço) fica próximo aos burros de transporte dos menos favorecidos. Aos que não tinham o privilégio de poder usufruir de transporte individual, ainda que nas charretes dos negros, restava o serviço de bonde movido a tração animal, cujos trilhos percebem-se ao solo da larga avenida.

Abertura de vias para a colocação de trilhos, na década de 1880, onde se percebe o uso de escravos para abertura de terreno para assento de trilhos e dormentes. Não fosse por tal foto, desprovida de legenda no Museu da Companhia Paulista, não se teria qualquer alusão ao trabalho dos negros.

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Dois funcionários da CP: o manequim do operário (esq) colocado num canto junto ao maquinário e o do Chefe da Estação (dir) ocupando lugar de destaque no salão principal do Museu.

Isso faz lembrar o texto de Bertold Brecht, que segue abaixo.

Perguntas de um Trabalhador que Lê

Quem construiu a Tebas de sete portas?Nos livros estão nomes de reis.Arrastaram eles os blocos de pedra?E a Babilônia várias vezes destruída.Quem a reconstruiu tanta vezes?Em que casas da Lima dourada moravam os construtores?Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta?A grande Roma esta cheia de arcos do triunfo. Quem os ergueu?Sobre quem triunfaram os Césares?A decantada Bizâncio tinha somente palácios para os seus habitantes?Mesmo na lendária Atlântida...Os que se afogavam gritaram por seus escravos na noite em que o mar a tragou.O jovem Alexandre conquistou a Índia. Sozinho?César bateu os gauleses.Não levava sequer um cozinheiro?Filipe da Espanha chorou, quando sua Armada Naufragou.Ninguém mais chorou?Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.Quem venceu além dele?Cada página, uma vitória. Quem cozinhava o banquete?A cada dez anos, um grande homem. Quem pagava a conta?Tantas histórias. Tantas questões.

Bertold Brecht

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Detalhe de um dos maiores mapas do Estado de São Paulo expostos no Museu nos mostra o perímetro urbano da capital paulista no ano de 1938. Percebe-se através dele que os limites da cidade à época eram ao sul o bairro de Santo Amaro, a oeste a região do Butantã, a norte a região do Campo de Marte e a noroeste a Lapa. Percebe-se também nesse mapa, a existência das atuais linhas A (Jundiaí / Francisco Morato – Luz) e C (Osasco – Jurubatuba) da CPTM, esta última em fase de projeto ainda. Para uma melhor localização espacial da dimensão da expansão da capital, basta observar-se o bairro de Perus, hoje o último da cidade na direção noroeste, na época bem distante do perímetro urbano (hachurado).Perceber a importância da via férrea (assinalada pela largura na representação) da EFSJ.

Representação da Chefia da Estação, onde se nota uma aglomeração de objetos em espaço ínfimo, demonstrando a precariedade do Museu que, assim, contraria sua própria função de recuperar a

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Maquete de locomotiva, tendo ao fundo mais um manequim, bem colocado, que representa o “pica-passagem” (funcionário que dispunha um aparelho de mão – assemelhado a um alicate ou espremedor de alho – com o qual fazia um furo na passagem (“picava a passagem”), inutilizando-o para viagens futuras). O boneco encontra-se à frente do “Trem Azul”, mural que representa a única parte viva do

Detalhe de maquete de locomotiva, produzida no centro de ensino profissionalizante anexo ao Museu.

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A combatividade dos ferroviários em suas inúmeras greves (omitidas do Museu da Companhia Paulista) foi responsável pela conquista de direitos trabalhistas como plano de saúde familiar e aposentadoria privada, por exemplo, antes

mesmo de legislação específica para tanto. Prova disso pode perceber-se através dos muitos documentos dos funcionários da CP encontrados naquele Museu. E, na demonstração de que aquela Companhia não figurava como

exceção em seu meio, o fac-símile da “Inscrição de Herdeiro” na Caixa de Aposentadoria e Pensões dos Ferroviários da São Paulo Railway (que precedeu à EFSJ – Estrada de Ferro Santos-Jundiaí), onde o funcionário Liberalino

Duarte Pereira faz a inclusão de sua esposa Adácia da Silva Pereira como sua dependente. No centro, foto de 1939, data do casamento e do cadastro. No verso da folha, à esquerda, foto de 1957 e à direita, outra de 2005. Um detalhe

observado no item 13 contido nas instruções do verso da folha: o texto pede o atestado de “duas testemunhas idôneas”, logo dando como sinônimo de idoneidade o fato das tais testemunhas serem “2 empregados ferroviários”.

01/02/2005

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Fazenda de Café – Nossa Senhora da ConceiçãoJundiaí - SP

A História da Fazenda

A Fazenda Nossa Senhora da Conceição localiza-se no município de Jundiaí e, segundo o Sr. Antônio, atual responsável, ela foi

adquirida por Francisco José da Conceição, futuro Barão de Serra Negra – homem de origem abastada, nascido em 1822 na cidade

de Piracicaba. Oriundo de uma família produtora de açúcar e de abastecimento para as regiões mineradoras, o barão participou, a

partir de 1850, da expansão da economia cafeeira no oeste paulista. A partir daí, essa propriedade teria tomado os moldes de uma

típica plantation de café, isto é, grande propriedade (cerca de 3 mil alqueires), monocultora (350 mil pés de café, segundo relato do

guia), com mão-de-obra escrava (por volta de 800 teriam trabalhado na fazenda).

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As construções remanescentes desse momento inicial são: a casa grande, a tulha, e senzala. A casa grande permanece sendo a

residência do proprietário da fazenda, descendente do Barão de Serra Negra; no piso inferior da casa grande foi preservada uma

pequena parte da senzala reservada aos escravos que trabalhavam dentro da casa, a outra cedeu espaço para a atual biblioteca; na

tulha funciona hoje o restaurante da fazenda; a antiga senzala foi o ambiente mais modificado, de tal forma, que se não fosse dito

que ali já fora habitação de escravos, dificilmente se constataria tal coisa.

Os monitores da visita relataram que em 1880 teriam entrado os primeiros imigrantes italianos na fazenda, os quais teriam

convivido com escravos até 1888, ano último da escravidão. Com os imigrantes a fazenda modificou-se e adquiriu feições novas com

as construções edificadas para atender às necessidades dos imigrantes, de tal modo que eles não precisassem ir até a cidade,

permanecendo isolados e distantes da tentação de aventurar-se no mundo urbano. A capela foi construída, segundo relatado, pelos

próprios imigrantes em fins do século XIX, homenageando Nossa Senhora da Conceição; além da escola que teria sido construída

para alfabetizar os colonos na língua portuguesa.

Capela Nossa Senhora da Conceição

Casa dos antigos colonos italianos

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A fazenda é um registro histórico riquíssimo sobre o oeste paulista, desde a segunda metade do século XIX, com a expansão do

café, passando pela substituição da mão-de-obra escrava pela mão-de-obra livre imigrante, e pela decadência do café, o que gerou a

necessidade da exploração de outros gêneros agrícolas. Assim, foi sendo implementado pelos imigrantes o cultivo de novas espécies

de uva para a produção de vinho, bem como a criação de gado leiteiro para o aproveitamento do leite e de seus derivados. Dessa

forma, a fazenda foi se modificando, alterando o caráter de suas construções e do aproveitamento de seu espaço físico, e diminuindo

sua dimensão, pois não havia mais suporte material para sua manutenção enquanto área territorial única.

Hoje a Fazenda atende ao turismo cultural sendo visitada por estudantes que ali encontram uma produção de café (mais ou

menos 10 mil pés) num processo de lavagem, secagem e preparação do produto nos mesmos moldes de seu período áureo. A casa

grande recebeu um anexo (jardim de inverno) que a descaracterizou muito. Essa alteração foi justificada pela necessidade de criar

um comedouro para a família que preserva a sala de jantar como nos tempos de glória do barão.

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A tulha continua com seus equipamentos mas não serve mais para os fins de silagem. No espaço criou-se um amplo

restaurante com varanda para receber os visitantes. Há uma lojinha e um pequeno “museu”.

As habitações dos colonos estão preservadas, mas sem uso.

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História e Memória da Fazenda Nossa Senhora da Conceição

Quando nos referimos a memória podemos pensar nas nossas lembranças registradas durante a nossa vida e nas informações

conservadas, avaliando sua importância.

A memória individual trata de lembranças que acreditamos serem exclusivas de cada um, sentimentos e recordações guardados

na nossa mente, mas também são inerentes do nosso passado.

Maurice Halbwachs, em “A memória coletiva” afirma: “Quantas vezes exprimimos então, com uma convicção que parece toda

pessoal, reflexão tomadas de um jornal, de um livro, ou de uma conversa. Elas correspondem tão bem a nossa maneira de ver que nos

espantaríamos descobrindo qual é o autor e que não somos nós”.

Isso não quer dizer que a memória individual não tenha importância, mas está sempre aberta às interferências do coletivo e

essas servem para as pessoas adotarem ou recusarem idéias de acordo com seus propósitos no âmbito da memória. O importante é

Turma em frente à capela Nossa Senhora da Conceição Interior da capela Nossa Senhora da Conceição

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que a memória individual está sempre relacionada com a coletiva, mesmo que no âmbito individual possamos preservar lembranças

que destoem daquelas que são conservadas pelo coletivo.

A memória histórica é ligada à identidade e à conservação de vários grupos diferenciados com o interesse em manter vivo os

feitos comuns de seu passado.

Essa memória terá uma grande importância para a coletividade, porque representa a escolha de grupos que querem consolidar

o passado histórico de sua classe, como podemos verificar na política vigente de preservação de documentos e monumentos e

também de criação de feriados.

Na verdade, os grupos que constroem a memória para se validar ganham o apoio das outras classes num mecanismo constante

de propagação de sua importância histórica, estabelecendo uma identidade particular como se fosse a de todos, construindo um

passado brilhante e heróico.

A Fazenda Nossa Senhora da Conceição foi uma das maiores produtoras e exportadoras de café no século XIX, com suas vastas

áreas de plantio, grande número de escravos e representava o poder que os cafeicultores detinham naquele período.

Senzala no piso inferior da casa grande

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Atualmente, a fazenda não tem mais essa representação de poder, o que pode ser constatado pela modificação de sua função: de

uma grande produtora de café para exportação no século XIX, hoje tornou-se um pequeno empreendimento turístico.

O grupo responsável pela fazenda busca atualmente, através da reconstrução da memória, legitimar-se pela importância do

passado. Mesmo sendo a fazenda explorada como turismo cultural e pedagógico ela se abre a perspectivas de restaurar a memória

de um grupo importante na história social política e econômica de São Paulo trazendo a tona seus valores aos visitantes.

No entanto, devemos frisar que cabe ao historiador evidenciar as diferenças entre a memória que os cafeicultores construíram

sobre si (empreendedores, progressistas, vitoriosos) e a que outros grupos possuem sobre o mesmo “período áureo” (a escravidão, a

miséria dos pobres livres, etc.):

Para Jacques Le Goff, em “História e Memória”: “A memória onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o

passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a

servidão dos homens”

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Esse conceito define bem o momento atual, pois demonstra uma dominação e expropriação da memória por um grupo social e

político dominante. Se cada grupo conseguisse preservar suas respectivas histórias e lutasse por seu direito à memória poderíamos,

no futuro, viver numa sociedade onde as identidades e os direitos fossem respeitados. Assim, a fazenda teria um valor maior para o

estudo do século XIX se não nos deparássemos com uma memória exclusiva, mas também com a do escravo, do vendeiro, enfim das

personagens que alguns desejam esquecer, mas cuja atuação foi imprescindível para todos.

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Musealização do espaço: questões do patrimônio e acervo

O espaço dessa Fazenda de café está sofrendo interferências para se incorporar aos padrões de um Museu de História, mas

devemos ter em mente o que significa ser um museu nessa especificidade para a região, quais as normas a serem adotadas para que

se torne um Museu propriamente dito e principalmente pensar as questões ligadas ao patrimônio e acervo desse espaço: porque a

fazenda deve ser pensada como um Museu de História e para quem está sendo construída ou interpretada essa memória.

Maria Cristina Oliveira Bruno no texto “Quadro operatório da disciplina museológica” afirma que existem alguns pressupostos

teóricos para se pensar os museus e o seu entorno. Em primeiro lugar, um museu é feito por uma sociedade, que deseja se

reconhecer enquanto grupo, ter uma identidade, que é expressa através de um acervo ou patrimônio, selecionado dentro de um

conjunto de objetos materiais ou imateriais. Portanto, a construção de um museu (de arte, história etc) nunca é neutra e o grupo o

pensou estaria se valorizando no presente, através de um passado que ele mesmo construiu para si. Assim, o museu deve lidar com

as referências patrimoniais, ou seja, os objetos, as coleções e os acervos, para então se estruturar como uma instituição, tendo uma

área específica para salvaguarda e outra para comunicação e ambas devem agir em conjunto para socializar as informações contidas

no museu.

Museu do Café

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A construção de um patrimônio histórico se dá na procura de uma identidade, principalmente na identificação com uma

nacionalidade. Para Nestor Canclini, no texto “O porvir do passado”, capítulo do livro Culturas Híbridas na América Latina, o

moderno é discutido através do patrimônio que simboliza o tradicional, por isso não percebemos sua construção e damos como dado

o passado que nos é fornecido através deste patrimônio.

Na Fazenda Nossa Senhora da Conceição, o monitor nos informou que ela faz parte da Associação Paulista dos Museus e recebe

a colaboração do Museu Histórico de Jundiaí. Mesmo assim, a fazenda vem sofrendo interferências que modificaram as construções

antigas tais como a casa grande e a senzala e o local denominado Museu contem um conjunto de materiais esparsos, não

identificados daquilo que foi possível resgatar pelo descendente do Barão de Serra Negra que herdou parte da antiga propriedade.

Interior do Museu do Café

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A fazenda existe para a fruição do público e conta com um serviço de monitoria, que é realizado conforme um agendamento

prévio à visita. Os grupos de visitantes são levados aos locais de visitação: a tulha (hoje restaurante), a capela dos imigrantes, a

senzala, que hoje é o museu do café, a casa grande (hoje residência particular do dono da fazenda) e a senzala de dentro sofreram

alterações profundas e o que permanece ainda no processo original é a técnica para a colheita do café, o terreiro de secagem e a

lavagem dos grãos. As casas dos colonos e uma trilha feita pelos escravos também reproduzem o modo de vida anterior. Em todos os

locais há objetos originais da época do plantio de café e mesmo na casa grande há objetos preservados.

A fazenda ainda não pode ser considerada um museu, segundo as metodologias da disciplina, porém, não podemos deixar de

notar a iniciativa de seus herdeiros, que estão tentando preservar sua história, ainda que de maneira amadora, independente de

suas intenções.

O patrimônio é um recurso importante para tentarmos compreender a História de uma determinada localidade, a partir de sua

cultura material, lembrando que toda a representação da memória é parcial e o debate que deve ser organizado na visitação dos

acervos pode permitir a recuperação do que está oculto se retomarmos as relações sociais existentes no momento das edificações

hoje consideradas patrimônio.

Antiga tulha,

atual restaurante

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Possibilidades do turismo histórico na fazenda Nossa Senhora da Conceição

O turismo histórico impulsiona atualmente a preservação de muitas cidades brasileiras como Paranapiacaba, Ouro Preto, Parati

e outras, com a intenção atrair de visitantes que movimentem suas economias, gastando com souvenir e serviços. Com vistas a este

tipo de empreendimento, o atual proprietário da fazenda buscou preservar objetos, documentos e edifícios do período áureo do café

paulista, e, além disso, fornecer atrativos e infra estrutura aos visitantes.

Na antiga senzala foi montada uma pequena narrativa sobre as origens e o desenvolvimento do plantio de café que ia desde sua

descoberta na Etiópia, até a crise de 1929; apostando no interesse do público pela história da riqueza que o café proporcionou a São

Paulo e no acervo da família do Barão de Serra. Neste local, parte das fotos e documentos (passagens, vistos internacionais e uma

curiosa autorização para condução de charretes) da família estava exposta, além de ferramentas de trabalho agrícola.

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Processo de lavagem e secagem do café

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A antiga tulha, onde o café recebia o tratamento final antes de ser ensacado e sair rumo ao porto de Santos, foi transformada num

restaurante que conta aproximadamente com cem lugares, decorado com objetos ali encontrados pelo proprietário e que faziam

parte da rotina do período em que a tulha ainda funcionava.

Foram construídos grandes alojamentos com a finalidade de abrigar grupos que tenham interessem em visitar a região por mais

tempo. Para tentar atrair estes visitantes seria importante desenvolver uma parceira com outros pequenos empresários e com o

poder público para o desenvolvimento de um pólo turístico na região; contudo, pelo que pudemos perceber no entorno da fazenda, e

pelo Museu da Ferrovia (cuja história se entrelaça com a do café) não há nenhuma iniciativa conjunta nesta perspectiva.

O passeio monitorado pela fazenda é uma importante possibilidade cultural e didática, no entanto os próprios monitores

afirmam que desconhecem as “tramas” históricas de muitos documentos que possuem, pois nenhum deles é “especialista” no ofício.

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Goiás

A viagem a Goiás foi programada para se realizar em três etapas: uma em Brasília, outra em Goiânia e outra na cidade de Goiás. A viagem possibilitou a escolha de algumas perspectivas para a análise de três diferentes cidades. Escolhi para este relatório observar a disputa e o uso do espaço público; o processo de construção e afirmação da memória institucionalizada e a contraposição desta mesma memória pela voz de sacerdotes católicos progressistas ligados à Comissão Pastoral da Terra. A preparação do grupo para a viagem foi apoiada por três textos troncos, a saber: “Fronteiras múltiplas, identidades plurais”, de Benjamin Abdala Jr, “A problemática do imaginário urbano: reflexões para um tempo de globalização” e “Morfologia das cidades brasileiras: introdução ao estudo histórico da iconografia urbana”, de Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses. Nossas possibilidades de observação, caracterizam-se com as sugestões dos autores lidos e discutidos em grupo após cada visita.

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Brasília

As vias

Antes de passarmos a discorrer acerca dos lugares visitados, é mister comentar algumas das impressões que a cidade nos passou sem que se necessitasse de alguma guia para fazê-lo. Considero que as vias públicas de Brasília não permitem agregação de pessoas como em outras cidades. A largura das avenidas, e o tamanho das quadras, indicam que o vivido das pessoas não se integra no espaço destinado ao aparado político-administrativo - Esplanada dos ministérios e a Praça dos Três Poderes, no Eixo Monumental, o que se vê nesta área são funcionários da limpeza pública ou turistas.

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Não havia pessoas para quem pudessem ser construídos tais calçamentos, ou melhor, estas existiam porém em lugares restritos do centro da cidade - fora deste espaço era raro encontrar alguém (a não ser alguns poucos trabalhadores responsáveis pela limpeza pública e outros poucos turistas – estes sempre conduzidos por ônibus privados). O deslocamento pela cidade torna-se impraticável quando se está fora dos limites do centro, a não ser que se tenha um veículo, como um carro, para o qual a cidade parece ter sido preparada a bem receber, uma vez que as vias são bem largas, conservadas e sinalizadas.

Este tipo de disposição onde o espaço rodoviário oprime o espaço do pedestre é a primeira marca da artificialidade da construção da cidade. Ora, é óbvio que a maioria da população não possui um carro, tampouco presenciamos pessoas em grande número se deslocando em coletivos como em outras capitais brasileiras – talvez por causa do feriado não houvesse muitas pessoas na rua, de modo que ao infeliz (Leia-se: “a grande massa dos trabalhadores”) que não dispõe de um veículo resta contar com as escassas linhas de ônibus que especificamente servem para conduzi-los de casa para o trabalho e vice versa.

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Os trabalhadores

Os trabalhadores vivem fora do centro da cidade, em superquadras ou nas cidades satélites. Deste modo, sua circulação é fragmentada, acompanhando a lógica dos setores urbanos e não da integração social. Assim os trabalhadores do serviço hoteleiro (norte e sul) não conseguem ver a cidade em sua diversidade, pois de casa apenas chega no local de trabalho que é separado de outras áreas do complexo urbano.

A mesma coisa para o funcionalismo que deve se submeter as grandes e áridas quadras onde não há nenhum bar ou lanchonete próximos.

A concentração de certos serviços em determinadas partes da cidade cria ilhas populacionais de trabalhadores, provavelmente de difícil contato mútuo – me é difícil conceber a existência de um fluxo entre tais ilhas durante a jornada aos moldes das cidades

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cuja disposição não favorece o surgimento de tais concentrações. Estas ilhas são quase totalmente compostas por trabalhadores do setor de serviços.

Dos funcionários públicos encontrados em atividade pudemos perceber uma gradação em três níveis. No nível mais elevado, temos os monitores do Panteão da República e do Congresso, que por entrarem em contato com o público provavelmente lhes são requeridos certo grau de escolaridade dispensada aos seguranças, porteiros, arrumadeiras e faxineiras, encontrados nos museus. Em último lugar está os jardineiros e lixeiros, único nível em que lembro ter visto alguns mulatos e negros, também único grupo que vi portar bicicletas (uma única bicicleta foi o que vimos durante toda a estada em Brasília).

Um grande problema da cidade é o déficit habitacional, uma vez que as construções devem seguir padrões que dificultam sobremaneira o estabelecimento de moradias populares. Como dito pelo monitor que nos recebeu no Panteão, “a insistência dos trabalhadores em permanecer na cidade após sua construção acabou por ‘estragar’ o sonho de seus idealizadores”, deixando subentendido que a cidade por eles construída a eles não se destinava e ainda hoje não se destina - a maioria das pessoas que fazem funcionar a cidade, bem como o relato das pessoas com quem conversamos, que não moram nela e sim nas cidades satélites, núcleos urbanos relegados à precariedade onde as populações excluídas do cenário urbano de Brasília convivem com a mesma miséria e descaso de outras cidades que na capital tanto se tenta mascarar.

Não há como negar a suntuosidade das construções monumentais com que nos deparamos na capital federal, porém há que se questionar a quem é reservado o acesso a estes espaços. É de grande notoriedade que a grandeza das construções se contrasta com o vazio humano, fazendo da cidade um objeto de contemplação e não de morada. Os candangos atuais, apesar da insistência de seus pais e avós por permanecerem na região, até hoje não encontraram seu lugar de liberdade no espaço público de Brasília. Há apenas o restrito espaço do trabalho.

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Os trabalhos de campo

No congresso vimos onde se assentam os políticos para fazerem suas leis. Guardamos um pouco do discurso oficial que seria desconstruído mais tarde e rebatemos alguns dos dizeres prontos que nos foram passados durante a visita. As principais questões levantadas referiam-se à produção de MP´s, ao processo de obstrução das votações, à freqüência dos parlamentares às cessões e ao acesso do público às votações – quanto a este tópico é necessário ressaltar o funcionamento do mecanismo que Zilda chamou de “ideologia da outorga”: é aberta a seção a público desde que este se faça imperceptível, atuando o mínimo possível, e desde que não se trate de uma votação polemica, do contrário o acesso à mesma é vedado e isto permite aos nossos delegados se livrarem do constrangimento de ter que agir conforme os princípios que declararam ter a seus eleitores quando da época de sua eleição.

A posição oficial quanto às questões levantadas foi apaixonadamente defendida pela monitoria, que permitiu um debate com a Zilda, nossa professora, pois ela não pode deixar de lhe contrapor um discurso crítico, entendido pela monitora como impertinente.

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No memorial JK encontramos um pólo de misticismo bem ao gosto do dúbio caráter de Brasília. O fundador e preceptor da cidade é mitificado na exposição de sua vida pública e privada através de documentos, fotos, roupas e objetos pessoais doados por Sarah, sua viúva. A grande atração do memorial é sem dúvida a câmara mortuária onde se encontram seus restos mortais. Trata-se de um salão oval de mármore negro cujo teto é um belíssimo vitral onde se desenha a forma de um anjo que protege e atesta a gloriosa e bendita empreitada realizada pelo pó que ali repousa. O memorial é na verdade um templo de culto ao fundador transformado em mito.

Infelizmente os monitores não souberam nos responder quantos de seus pais haviam morrido durante a construção da cidade (muito menos vimos indicações de onde ficaria o cemitério). A memória de tais homens se perdeu, porém a glória que construíram para Juscelino é lustrada diariamente com o apoio do capital público e privado além do dos visitantes que deixam dois de seus reais na entrada do templo.

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No Panteão da República tivemos uma aula prática de construção e forja da memória. Listados como se fossem parte real de um único grupo, amigos que compartilhariam do mesmo ideal, o da liberdade, encontravam-se: Zumbi dos Palmares, Almirante Tamandaré, Duque de Caxias, Marechal Deodoro da Fonseca, José Plácido de Castro (o “libertador” do Acre), D. Pedro I e o grande patrono J.J.S. Xavier, o Tiradentes (Aliás, Tiradentes e a Inconfidência Mineira são lembrados em vários pontos da cidade bem como em diversos símbolos de poder da república. Inúmeras bandeiras mineiras são encontradas espalhadas por Brasília, e mesmo na parte de trás do uniforme dos dragões da independência encontra-se o triangulo vermelho da inconfidência - convenientemente Juscelino era mineiro). De imediato já nos deparamos com uma sensação de desconforto ao vermos Zumbi “encaixado” em um mesmo grupo que Duque de Caxias ou Deodoro da Fonseca. Talvez isto só perca em contraditoriedade pela presença de um imperador em um panteão de república.

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A idéia original do Panteão é de Tancredo Neves. Os critérios exigidos para se ingressar no panteão são: o de se ter lutado pela liberdade, democracia (e pelo Estado) e o de ter se passado pelo menos 50 anos após a morte do candidato.

No Panteão foi possível montar um painel totalmente arbitrário, contraditório e anacrônico. Além dos atuais heróis, existem mais 17 nomes que estão esperando aprovação do congresso.

Após ouvirmos a proposta que justificava a existência do panteão, e da desconfortante sensação que tivemos ao saber quem fazia e quem não fazia parte do mesmo, tivemos uma prova concreta da artificialidade da memória que ali se pretende conservar. Nosso monitor – que, creio eu, pela desenvoltura com que nos atendeu, ali trabalha já há algum tempo, simplesmente chamou o “libertador” do Acre de Plácido Domingos, ao que se seguiu um burburinho e algumas risadas até que uma senhora, funcionária do museu, corrigiu sua fala – foi uma experiência engraçada e ao mesmo tempo triste.

A contraditória formação da cidade:

O projeto de uma capital situada no interior do país vem de longa data e se justifica à primeira vista pela necessidade de povoar regiões afastadas do litoral, historicamente relegadas a segundo plano. A intenção era romper com a tradição litorânea, parte da herança colonial, e assim refundar o Brasil com vistas a uma integração nacional baseada no desenvolvimentismo. Entretanto o projeto fez reafirmar a índole patriarcal, autoritária e elitista que se pretendia romper mas que hoje revela-se presente, a um olhar mais atento, na estrutura espacial de Brasília. Diz-se mesmo que o projeto mascara a intenção de afastar a população brasileira do centro do poder, uma vez que manifestações e ações de revelia não eclodem facilmente em espaço de tão difícil acesso e de tão peculiar disposição urbanística, o que a torna perfeitamente cômoda para o exercício do poder.

Nos principais museus da cidade faz-se referencia à racionalidade com que Brasília foi projetada e à labuta intelectual que precedeu sua construção, tenta-se explicar como é precisa a relação do plano piloto com a modernidade, com a maturidade de

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instituições baseadas não mais em tradições e sim na democracia. Não seria por acaso que a capital funda-se às costas de um avião e que a cúpula do poder se encontre na cabine do piloto. A razão e a técnica pretendem alçar vôo rumo à democrática era republicana. Por outro lado, a fundação da cidade também é marcada pelo acochambramento e pelo misticismo. Este, porém, não se resume somente à cruz transformada em avião. A uma sociedade pretensamente racional e laica é no mínimo segregante a intrínseca relação do poder com o catolicismo revelada nos rituais que antecederam e que figuraram a fundação da cidade, desde a escolha do local – marcada com uma cruz, até a sua inauguração – onde se faziam presentes inúmeros bispos. Ainda hoje é possível verificar o quão arraigado está o poder em tais tradições não-racionais, basta vermos os crucifixos presentes na câmara e no senado ou então a imponência do memorial JK (inclusive, esta mística instaurada na fundação da cidade atraiu para a região algumas seitas que alegam existir um imenso cristal incrustado no platô abaixo do plano piloto).

Algumas outras contradições contribuíram para que o vôo do plano piloto fosse tão esplendido quanto o de uma galinha ou de um peru. Entre os quais estão a continuidade de políticas econômicas existentes no império que garantiam a segura defesa da reprodução do capital dos grandes proprietários fundiários e industriais em detrimento dos outros 90% da população impedidos até de habitarem nas cidades mesmas que constroem.

A cidade tenta representar a dinâmica de uma modernidade no desenho de um avião ao mesmo tempo em que tenta congelar a história em sua portentosa monumentalidade impessoal – patrimônios materiais que se pretendem estáticos e resistentes à maré da história, estruturas urbanísticas que afastam a possibilidade de adequação do espaço frente a dinâmica das relações sociais que nele se dão.

Tal estatismo se revela até na fuga da morte como tentativa de impedir o fim da história. Os únicos túmulos por nós encontrados foram o do fundador e o do bispo. Fora estes não há outros tão facilmente visíveis já que a presença de um cemitério no plano piloto revelaria a consciência do efêmero diante do implacável Devir. Ora, Brasília ergueu-se como um monumento eterno, fundou-se para parecer imortal. A única ”morte” plenamente aceita é a de Juscelino já que ele continua vivo como Mito.

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A imprecisão quanto ao caráter da cidade é até mesmo oficialmente reconhecida, tanto que ao adentrar em um museu-monumento cujas paredes estavam repleta de frases deparei-me com uma máxima de Lúcio Costa referente à capital: “a um tempo derramada e concisa, bucólica e urbana, lírica e funcional”.

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O debate

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Ao final da noite foi discutido o primeiro texto acrescido das impressões que colhemos durante o dia em Brasília. Basicamente falou-se no que foi referido acima: uso e desuso do espaço público, construção e institucionalização da memória, relações artificiais na fundação humana e arquitetônica da cidade.

Uma questão interessante levantada na discussão foi a contraposição entre o modo como estávamos percebendo a cidade (com o olhar estrangeiro) e o modo como um seu morador provavelmente a veria. A oposição São Paulo x Brasília era feita quase que inconscientemente por nós a todo instante. Lembro-me de que todo comentário feito acerca da cidade era acrescido de uma comparação com São Paulo, como se fossemos incapazes de nos livrar de nossos referenciais. Apesar dos que criam estar fazendo uma leitura racional e objetiva da cidade, entendo eu, tal como Carl Schorse, que “Ninguém pensa a cidade em isolamento hermético. Forma-se uma imagem dela por meio de um filtro de percepção derivado da cultura herdada e transformado pela experiência pessoal” (Carl Schorse, Pensando com a História).

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Cidade de Goiás

Aparentemente Goiás nada tem a ver com Brasília, não fosse por ter ela se tornado um simulacro. Ao contrário de Brasília e Goiânia, Goiás não foi planejada segundo moldes contemporâneos. Entretanto, hoje em dia ela apresenta uma regularidade – artificial e estática, estruturada de forma a preservar a memória arquitetônica do século XIX visando manter-se como pólo de atração turística.

Parte da renda municipal é oriunda desta exploração – há todo um aparato disposto para bem receber contando com modestos hotéis, hospedarias, lojas de artesanato e souvenires, bares e restaurantes. O centro da cidade é muito aprazível e aconchegante. Os

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citadinos recepcionam com simpatia e é mesmo possível encontrar algum garoto – como a mim se ofereceu um, para servir de guia na cidade onde uma das principais atrações é a casa da poetisa Cora Coralina.

Nossa principal atividade em Goiás seria uma conversa com o Frei Marcos um representante da Comissão Pastoral da Terra que vem militando junto à população carente da região há muitos anos. Até que chegasse o horário combinado da palestra poderíamos usar o tempo livre para andarmos pela cidade. Assim veio a oportunidade de sair do palco destinado a preservar a memória institucional e nos dirigir a outros espaços. Logo pudemos perceber que fora do centro histórico a cidade não mais se mantinha tão limpinha e bem conservada, antes, assemelhava-se a qualquer outra pequena cidade do interior. Entretanto, contraste mais acentuado seria encontrado na periferia da cidade no bairro conhecido como Alto Santana. Este bairro fica um pouco afastado do centro sendo necessário subir alguns morros para lá chegar de modo que não é muito convidativo para os turistas, até por que trata-se de um lugar feio e miserável. As pessoas do Alto Santana eram diferentes das do centro. A maioria delas era mulata - algumas negras, que frente à presença dos estranhos, ficava desconfiada (alguns descontentes) por verem nos bastidores alguns dos

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espectadores que deveriam apenas freqüentar o palco a eles armados. Um casal de irmãos que brincavam no chão de terra ao lado de sua casa de taipas, bem como dois homens que se preparavam para se beber (era aprox. 12:30) foram os únicos que me dirigiram a palavra.

Em volta deles muito lixo, terra, casas construídas de papelão e bicicletas. A perspectiva do Alto Santana aparentava resumir-se em um Centro Espírita e em um templo da Assembléia de Deus que ironicamente se encontravam dispostos um ao lado do outro. Um cenário completamente diferente do que a cidade pretendia mostrar e preservar.

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A visita ao Santana nos permitiu enxergar como a política de preservação da memória perpetua contradições e valoriza o artificial em detrimento do natural presente. Enquanto o centro é memorizado e é pólo de atração de capital, o Alto Santana e demais bairros periféricos é esquecido e largado – não lembro ter visto nenhum anúncio de apoio à infra-estrutura de tais bairros por parte do capital privado como visto na fachada da casa de Cora Coralina. Tal como em Brasília o espaço artificial é liberdade para o turista que visita mas não é mais que espaço de trabalho para os residentes nas periferias. A aparência é valorizada mais que a essência. Distraídos pela peça que se apresenta no belo palco não percebem os turistas que são eles também parte importante da

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história. Uns fazem o papel do mudo, outros o do surdo ou o do cego e mesmo o do indiferente enquanto que nos bastidores severinamente passam os homens pela vida.

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A palestra

Após o almoço nos dirigimos à Igreja onde nos encontraríamos com Frei Marcos. A maioria de nós esperava encontrar alguém trajando um hábito ou batina, entretanto Frei Marcos encontrava-se em trajes “civis” – camisa, calças e sandália. Mas as decepções não pararam por aí. Ao contrário da timidez que se esperava encontrar o frei expôs sua fala com bastante desenvoltura. Apresentou-nos um resumo da interação da igreja com os grupos sociais da região, e a ação daquela como força de constituição de movimentos. A história que conta vai desde a construção da igreja, passa pela chegada do frei que o antecedeu e segue até sua própria história de militância na pastoral da terra (humildemente narrada em 3º pessoa ou na 1º do plural). Por fim abriu-se espaço para perguntas que ficaram em torno da obra pastoral e do envolvimento pessoal que Frei Marcos tinha com ela.

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Debate do texto

A visita a Goiás complementou o debate feito em Brasília acerca da memória que se escolhe para preservar. Baseados no texto de Ulpiano T. B. de Menezes foi discutido as formas de apropriação prática e simbólica da memória e do espaço público – sejam na forma de coretos transformados em espaço de convívio social por namorados e freqüentadores de bares ou fontes e chafarizes que se transformam em chuveiros ou tanques para a lavagem de roupas. Infelizmente não tratamos especificamente De como se dá a apropriação dos monumentos.

Zygmunt Bauman em “Globalização e conseqüências humanas” defende a tese de que a “perversão” do espaço público seria delimitado pela utilidade que as elites têm dele. Na medida em que dele não mais precisa, o isola, o larga ao sabor da reinterpretação.

“Os espaços públicos – ágoras e fóruns nas suas várias manifestações, lugares onde se estabelecem agendas, onde assuntos privados se tornam públicos, onde opiniões são formadas, testadas e confirmadas, onde se passam julgamentos e vereditos – tais espaços seguiram as elites, soltando-se de suas âncoras locais; são os primeiros a se desterritorializar e mudar para bem além do alcance da capacidade comunicativa meramente de wetware de qualquer localidade e seus habitantes. Longe de serem viveiros das comunidades, as populações locais são mais parecidas com feixes frouxos de extremidades soltas”

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Uma análise dos movimentos sociais como meio de alteração das representações institucionalizadas pode servir de contraponto à tese de Baunma que nos parece colocar como protagonistas da alternância de significados apenas as elites (seja pela passividade conformada ou pelo empenho ativo – caso da instituição “Viva o Centro” que luta por tornar o centro de São Paulo ao que “era antes”) desprovendo de mérito ações civis que resultaram em reformas. Ora, o caráter da revolução é ser abrupto e quando esta se processa não é porque simplesmente a ordem institucional vigente foi indiferente e conivente com as mudanças que se prenunciavam, mas sim por causa das muitas lutas e fadigas dos agentes revolucionários (sejam eles burgueses, proletários, fascista ou comunistas).

O texto de Ulpiano também permitiu-nos aprofundar em teoria mais abstrata ao deixar implícito a opinião de que o objeto não existiria em si, mas sim que seria formado concomitantemente ao processo de escolha e leitura que um seu observador realiza. Processo este que nos permite compreender como um objeto (seja ele um monumento, uma idéia ou uma memória) de representação simbólica possa ser desconfigurado até ao ponto de representar mesmo o seu contrário. O texto de Ulpiano levou-nos a questionar que posição o cientista deve tomar na hora de compor sua obra: levando-se em conta a impossibilidade da abstinência do ego deveria o cientista sempre se mostrar parcial de modo a não enganar o leitor ou deveria ele se lançar em busca da intangível objetividade científica bem a gosto do que pretendia Weber? Ulpiano crê que o meio mais honesto pelo qual deve agir um cientista é demonstrando-se humano.

Foi também lembrado que Ulpiano considera a cidade um perfeito objeto de análise para o cientista social e para o historiador, afinal de contas nela estariam sintetizadas e ressaltadas todas as contradições existentes em uma sociedade servindo como um microcosmo da mesma. Em uma mesma calçada de uma grande metrópole brasileira podemos ver mendigos, executivos, ambulantes, uma pequena floricultura, uma prostituta, um carroceiro, um quitandeiro, um banco internacional, um turista estrangeiro, um negro engraxate, um político e um trombadinha. Todos os componentes que formam a sociedade se encontram e se fazem representar no ambiente urbano.

Ora, as representações poderiam ser encaradas como mera questão de escolha se observássemos apenas a congruência destas com a ideologia das elites que as compõem. Entretanto cremos não ser assim tão simples a relação entre uma e outra. Ainda que imposta por uma elite, cremos ser muito forte afirmar que esta “escolheu” pensar e representar de tal maneira o objeto. Dizer isto é desconsiderar toda uma conjuntura causal, circunstancial e histórica que leva um indivíduo ou uma classe a pensar X e não Y, é reproduzir o discurso de nossas elites burguesas que dizem que o pobre é pobre por que se contenta com a pobreza, por que escolheu pensar assim. Por isso refutamos tal idéia.

O resto da discussão seguiu explorando principalmente os temas referidos no texto do Ulpiano - já que não tivemos uma maratona de visitas como havia ocorrido em Brasília, contando também com o compartilhamento das impressões captadas no dia e de sua associação com as experiências das visitas na Capital.

Finalmente à meia noite e meia, como ninguém era de ferro, realizamos uma pizzada.

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Goiânia

Em Goiânia tivemos poucas atividades – serviu mais como cidade-dormitório. Assistimos a uma palestra com D. Tomás Balduíno, visitamos o Museu de Arte de Goiás e também a Universidade Federal de Goiás - UFGO, onde o grupo alimentou e brincou com os macacos que passeiam pelo campus.

A palestra proferida por D. Tomás Balduíno e por seu assessor na Comissão Pastoral da Terra teve o tom mais conservador, a impostação e a menor flexibilidade centrou-se na militância da pastoral limitada pela posição hierárquica orienta de Balduíno. Comparada à palestra de D. Marcos sobre o mesmo tema pudemos observar a diferença do olhar e do lugar social de cada um.

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Conclusão

Durante nossa viagem tivemos a oportunidade de conhecer realidades urbanas que apesar de distintas carregam em si uma semelhança decisiva: a disposição das cidades-monumento é fruto do anseio de determinados grupos interessados em gerar, manter e reproduzir uma determinada ordem que os favoreça.

A memória

Preservar a memória é um esforço de pertencimento que não recupera o passado como aconteceu, mas cristalizar o passado e transporta-lo para o presente apenas produz simulacro. Assim, a relação presente-passado permite que se possa ao mesmo tempo desconstruir os monumentos e construir perspectivas do devir pelo pensamento crítico e pela práxis revolucionária.

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Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências HumanasDepartamento de História

Disciplina: História do Brasil Independente IIProfª Drª Zilda Márcia Grícoli Iokoi

2º Semestre/2004

Apoio: Pró-Reitoria de Graduação / Comissão de Orçamento e Patrimônio

Produção:Fabrício M. A. FonsecaRita de Cássia Luvisotto AlexandreTeresa Cristina TelesZilda Márcia Grícoli Iokoi

Montagem: Teresa Cristina TelesZilda Márcia Grícoli Iokoi

Textos:

Fazenda de Café Nossa Senhora da Conceição Jundiaí – SP: Êça Pereira, Priscila de Almeida Xavier, Sérgio Ricardo Gerard Neves, Waldomiro Lourenço da Silva JúniorMuseu da Companhia Paulista Jundiaí – SP: Fabio Luís Pereira Queiroz de AzevedoMemorial do Imigrante, Mercado Municipal de São Paulo, Vila dos Ingleses: Priscila de Almeida Xavier, Luís Henrique Melhado BarbosaViagem à Goiás: Fabrício M. A. Fonseca

Fotos: Fabrício M. A. FonsecaFabio Luís Pereira Queiroz de AzevedoFernanda RamosPriscila XavierTeresa Cristina Teles